Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
781/17.2T9EVR.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
AGRAVAÇÃO DA PENA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto no artigo 291.º do CP é um crime de perigo concreto nos casos previstos nos n.ºs 1, 3 e 4 e de perigo abstrato na situação do seu n.º 2.
2. No respeitante ao tipo objetivo o legislador previu no artigo 291.º do CP duas espécies de condutas suscetíveis de colocar em perigo os bens jurídicos protegidos: a falta de condições para conduzir com segurança e a violação grosseira das regras de circulação (alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 291.º do CP aplicável, também às situações dos n.ºs 3 e 4).
3. Quanto ao elemento subjetivo, no n.º 1 do artigo 291.º do CP estão previstas as condutas com “dolo de ação” e “dolo de perigo” (ou conduta dolosa e criação dolosa de perigo); No n.º 3 as condutas com “dolo de ação” e “negligência de perigo” (ou conduta dolosa e criação negligente de perigo); e no n.º 4 as condutas com “negligência de ação” e “negligência de perigo” (ou conduta negligente e criação negligente de perigo).
4. Quando a conduta (condução perigosa de veículo rodoviário com “dolo de ação” e “dolo de perigo”) provocar em concreto a morte ou a ofensa corporal grave de uma ou mais pessoas haverá, ainda, que apurar se o agente agiu com dolo ou negligência quanto a esse resultado.
5. Se o “resultado for doloso” e o crime cometido se subsumir ao n.º 1, alínea b) do artigo 291.º ocorrerá necessariamente uma situação de concurso efetivo entre o crime de condução perigosa e o de homicídio ou ofensa corporal grave. Já se o “resultado for negligente” verificar-se-á agravação da pena abstrata - prevista no artigo 285.º do CP, por força do 294.º, n.º 3 do CP – não se colocando uma questão de concurso aparente ou efetivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. Da decisão
No Processo de Instrução n.º 781/17.2T9TVR da Comarca de Faro Juízo de Instrução Criminal de Faro - Juiz 1, relativo à arguida AA[1], o Tribunal de instrução Criminal decidiu:
- Não pronunciar a arguida pela prática de um crime de condução perigosa, previsto e punível pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b) e 69.º, n.º 1, alínea a) ambos do CP e artigo 35.º do CE.
- Pronunciar a arguida, para ser submetida a julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 ex vi artigo 144.º, alíneas b) e d) e 69.º, n.º 1 alínea b) do CP.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões da assistente BB
Inconformada com a decisão a assistente interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1ª Pretende a douta sentença recorrida que, apesar de se encontrar preenchido o tipo objectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, que não se pode no presente caso estar perante um crime de condução perigosa de veículo rodoviário nos termos que são imputados pela acusação pública à arguida, uma vez que o resultado impõe a agravação prevista no artigo 285º do Código Penal, pelo que entende a douta decisão instrutória que nos encontramos perante uma situação de concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado e o crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, por referência ao artigo 144º, alíneas b) e d), do Código Penal e 69º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma legal.
2º. Os factos fortemente indiciados, para além de indiciarem a prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, indiciam, ainda, a prática pela arguida de um crime de ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado, p. e p. pelos artigos 148º, nºs. 1 e 3, e 144º , alíneas b) e d), ambos do Código Penal.
3.ª Com este preceito incriminador pretende-se proteger a integridade física individual, enquanto o artigo 291º do Código Penal visa proteger a integridade física em geral e não apenas a da concreta vítima.
4.ª Ora, é consabido que o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias leis penais concorrem só em aparência porquanto uma delas há-de excluir as outras.
5ª. E essa exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.
Como ensina o Prof. Eduardo Correia a relação de especialidade “Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na lex especialis se contêm já todos os elementos duma lex generalis, isto é, daquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda, certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: lex specialis derogat legi generali…ponto será que a realiz.ação de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação, sob pena, de outra forma, de se violar o princípio ne bis in idem.
6ª. É o que sucede, por exemplo, entre o crime de ofensa à integridade física simples e ofensa à integridade física qualificada, mas não entre a ofensa à integridade física por negligência e a condução perigosa de veículo rodoviário. (cfr Ac. TRL, de 23/05/2006, proc.º n.º 2146/2006-5, disponível em www.dgsi.pt e Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/06/2009, proc.º n.º 2141/07.4TAVIS-C1).
7ª. Há uma relação de subsidiariedade quando um preceito penal só seja aplicado desde que um outro não tenha aplicação, o que, manifestamente, não é o caso dos dois tipos de crime em causa.
A relação de consunção ocorre quando entre os valores protegidos pelas normas criminais se verifica por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa.
8.ª Também não é o caso dos autos, pois o crime de ofensa à integridade física protege a própria ofensa a esse bem jurídico, enquanto o artigo 291º, o perigo de violação desse bem jurídico.
9º. Aliás, como refere o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2/6/2009, proc.º n.º 2141/07.4TAVIS-C1 “O crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º do C.P. é um crime de perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efectivo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, mas o que tem de ser concreto é o perigo de tal ocorrer, não sendo necessário que se verifique efectivamente a lesão”
10.ª Ocorre, deste modo, ao contrário do decidido pela douta decisão instrutória, uma relação de concurso efectivo entre os dois crimes, como foi entendido na decisão recorrida.
11.ª Certamente por mero lapso, a douta decisão recorrida refere que o crime de ofensas corporais pelo qual pronuncia a arguida tem uma moldura penal superior ao crime de condução perigosa de veículo motorizado (preconizando ser a moldura penal para o mesmo de três anos, quando o artigo 148º, n.º 3, do Código Penal prevê uma moldura penal até dois anos), mas sem razão, pois este sempre seria agravado em um terço pelo resultado, e, daí, com uma moldura penal mais elevada.
12.ª Resulta dos autos a destruição do motociclo do ofendido/assistente, bem como a sua marca, pelo que é fácil aferir o seu valor patrimonial, pelo que, nos termos do artigo 202º do Código Penal, verifica-se um perigo para bens alheios de valor patrimonial elevado, pelo que, também por esta via se encontra fortemente indiciado, o crime de condução perigosa de veículo motorizado.
Nestes termos e nos mais de direito, com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser considerado procedente por provado, e, em consequência, ser a arguida pronunciada, também pelo crime de condução perigosa p. e p. pelo artigo 291º do Código Penal, (…)”.


2.2. Das contra-alegações da arguida
Motivou a arguida defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“(…) bem andou o Tribunal a quo em decidir como decidiu, isto é ao não pronunciar a arguida AA pelo crime de condução perigosa (pelo qual fora, aliás, injustamente acusada), não merecendo, assim, neste segmento, o despacho ora sindicado pela assistente qualquer reparo ou alteração.”


2.3. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado tutela, além da segurança das comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente, se ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta.

2. O artigo 294.º aplica-se a todos os crimes previstos nos artigos 287.º a 291.º e, ao remeter para o artigo 285.º estende a aplicação da agravação pelo resultado a todos os casos em que a conduta do agente cause a morte ou a lesão grave da integridade de outra pessoa, sendo o agente punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
3. A moldura abstrata aplicável ao tipo de ilícito previsto no art.º 148.º n.º 3 - pena de prisão até 2 anos – é inferior à prevista no tipo de ilícito previsto no art.º 291.º n.º 1 [e também 3] agravada pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 294.º n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal, razão pela qual é este último o tipo fundamental [lex consumens] que consome a proteção que o tipo de crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, [lex consunta] já visa e que deixa de ser aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem uma vez que não se indiciou suficientemente que outro bem jurídico tenha sido ameaçado pelo perigo aposto pela arguida para além daquele onde esse mesmo perigo se concretizou.
4. Por outro lado, o Tribunal a quo não integrou corretamente os factos que deu como suficientemente indiciados dado que, do seu ponto 16. retira-se que a arguida criou, com dolo eventual, o perigo referido no n.º 1 daquele art.º 291.º do Código Penal, mas o Tribunal a quo no raciocínio que fez escreveu na decisão recorrida que, “a subsumir-se no crime de condução perigosa sempre o perigo criado fora de modo negligente, pelo que a pena seria de 2 anos agravada de um terço – cf. art. 291.º, n.º 3 e 285.º, do CP.”.
5. Assim, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra onde o Tribunal a quo integre corretamente os factos que deu como suficientemente indiciados, designadamente, decidindo que, para além do crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, os factos pelos quais a arguida foi pronunciada também integram um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelo art.º 291.º n.º 1, al. b), agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 294.º n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal.
6. Acresce que o Tribunal a quo incorreu ainda em manifesto lapso aquando do raciocínio que fez sobre as normas punitivas a aplicar em sede de concurso aparente entre os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física grave por negligência quando fez constar que “ou seja, a pena seria inferior à prevista no art. 148.º, n.º 3, do Código Penal, relativo ao crime de ofensa à integridade física grave por negligência que contempla o máximo de 3 anos de prisão”.
7. Este lapso viciou inelutavelmente o raciocínio do Tribunal a quo dado que, caso representasse que o crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, é punido com pena de prisão até 2 anos - inferior àquela pelo qual é punido o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravada de um terço - não teria concluído que o tipo de crime dominante, in casu, corresponde ao crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, decidindo-se antes, como defendemos, pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado.
Termos em que, não deve ser reconhecido provimento ao recurso interposto pela assistente na parte em que pugna pela verificação de um concurso efetivo entre o crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, e o crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado, mas deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que integre os factos pelos quais a arguida foi pronunciada num crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelo art.º 291.º n.º 1, al. b), agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 294.º n.º 3 e 285.º, todos do Código Penal, daí extraindo as legais consequências.(…)”.

2.4. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no mesmo sentido propugnado pelo MP em 1.ª instância.

2.5. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso e a resposta do MP as questões a conhecer são a de saber se a arguida devia ter sido pronunciada:
2.1. Para além do crime de ofensa à integridade física por negligência também pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário;
2.2. Apenas pelo crime de condução perigosa (artigo 291.º, n.º 1, alínea b) do CP) agravado pelo resultado (artigos 285.º e 294.º, n.º 3 do CP).


3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida (transcrição):
“(…) O art. 286.º do CPP clarifica que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.». É esta uma fase facultativa, em que há intervenção do juiz de instrução criminal de forma a controlar a decisão que encerrou o inquérito, determinando a submissão ou não da causa a julgamento.
No âmbito desta fase processual, o juiz de instrução criminal leva a cabo os atos instrutórios que entenda pertinentes e necessários à descoberta da verdade, limitado pelas finalidades da instrução, cfr. art. 290.º, n.º 1 do CPP, e realiza-se um debate instrutório de cariz obrigatório, art. 297.º do CPP.
Findos os mesmos, cabe proferir decisão instrutória que será balançada pela ponderação dos indícios recolhidos, indagando se dos mesmos se recolhem os pressupostos necessários à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança ou não, proferindo o juiz, respetivamente, uma decisão de pronuncia ou não pronuncia, em conformidade com o disposto no art. 308.º do CPP. Por remissão deste preceito normativo, atende-se ao teor do art. 283.º, n.º 2 do CPP, o qual tem a seguinte redacção «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança».
Discutida é a questão de que indícios são estes, de quando se pode afirmar que os indícios são suficientes de modo a instruir uma decisão de pronúncia. É entendimento de parte da doutrina o de que o juízo terá de ser já o mesmo do julgamento, ou seja, a exigência dos indícios será a mesma que o juiz terá no julgamento da causa.
Não obstante, este Tribunal não perfilha tal entendimento, seguindo o entendimento da jurisprudência maioritária, no sentido de que se deve aferir a existência de indícios suficientes quando exista uma «possibilidade razoável» de condenação que terá uma vertente positiva mais forte do que negativa.
Este juízo é feito a partir da ponderação dos indícios recolhidos, que de forma exemplar, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-09-2008, relator Alberto Mira, disponível em http://www.dgsi.pt, explana que «indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.».
Assumindo, também, esta linha de entendimento, encontra-se Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, I, 1984, pág. 133, o qual define a suficiência indiciária ou probatória quando, já em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.
Tal juízo a concretizar significa dizer que não é exigida a certeza processual imposta na fase de julgamento, ou seja, não é necessária a certeza subjacente a um juízo condenatório, sendo certo que também não se pode sustentar numa mera e vaga possibilidade, porquanto não é indiferente para um cidadão ser ou não submetido a julgamento, existindo consequências perante a comunidade e perante a ordem jurídica.
Destarte, essa possibilidade razoável consiste num juízo de elevada probabilidade, concluindo-se que os elementos probatórios constantes dos autos suportam que é mais forte a possibilidade de o arguido vir a ser condenado em julgamento, do que ser absolvido.
Desenlaça-se, portanto, esta decisão instrutória em dois momentos chave que o Tribunal tem de percorrer: numa primeira fase, cumpre indagar da verificação de uma conduta ilícita criminal face a todos os elementos probatórios que foram produzidos nos autos, analisando se de toda a prova produzida resulta a imputação ao arguido da prática do crime; e por fim, numa segunda fase aglutinando tudo o que supra se aduziu, lança-se mão de um juízo de prognose condenatório, aferindo se há uma razoável possibilidade de vir a ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança.
** III.2. Dos factos
Factos indiciados pela instrução
1. No dia 6 de junho de 2017, pelas 16h45m., na E.N. n.º ..., em área desta instância local ..., a arguida AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-RP-.., propriedade de Europcar Internacional Aluguer de Automóveis, S.A., na faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha de ... para ....
2. No mesmo circunstancialismo de tempo e local, CC, conduzia o motociclo, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-OZ-.., de sua propriedade, no sentido de marcha ..., pela faixa de rodagem da sua direita.
3. Ao atingir o Km 130,150 da referida E.N. ..., junto ao entroncamento de .../..., a arguida direcionou o veículo por si tripulado para a esquerda, para um espaço da via destinado aos veículos que pretendem mudar de direcção para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, a fim de se dirigir para .../....
4. Nesse local, encontrava-se inscrito no piso um sinal STOP, com tinta branca, assim como uma linha contínua de paragem (M8a) que delimita o ponto de imobilização obrigatória dos veículos que ocupam tal espaço da via a fim de mudarem de direcção à esquerda.
5. Aí chegada, a arguida rodou o volante do seu veículo para a esquerda e invadiu a faixa de rodagem contrária à do seu sentido de marcha, onde circulava o ofendido CC que, assim que visualizou o veículo da arguida, acionou os travões e a buzina, assim como efetuou sinais de luzes com o seu motociclo, o que fez repetidamente.
6. Ainda assim, quando a arguida realiza tal manobra de mudança de direção à esquerda e o seu veículo já se encontrava numa posição oblíqua em relação ao eixo da via em que seguia e dentro da faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos que seguiam no sentido .../..., aquele embateu com a sua parte frontal lateral direita, junto à roda e porta do passageiro, com a parte frontal do motociclo tripulado por CC.
7. Após tal colisão, o veículo tripulado pela arguida ficou imobilizado junto ao local do embate e o motociclo tripulado pelo ofendido e este foram projetados para a faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha inicial, vindo a imobilizar-se o motociclo a 2,40m da roda traseira do veículo da arguida e o ofendido a cerca de 11,10m do mesmo veículo.
8. Como consequência direta e necessária do embate descrito em 6, entre o veículo conduzido pela arguida e o motociclo tripulado por CC, este sofreu, além de outras, as seguintes lesões e sequelas:
- politraumatismo com TCE grave, evolução de foco de contusão expansivo do lobo temporal esquerdo, com marcado edema e feito de massa loccoregional associado a quadro de hipertensão craniana refratária a medidas médica, com anisocoria; contusão pulmonar, laceração hepática com hemoperitoneu nos abdominais; fratura do rádio e cúbito direito; fratura cominutiva diafasária do fémur direito, luxação de Lysfranc do pé direito; rabdomiólise, choque sético por pneumonia associada a ventilador;
- tetraparésia assimétrica espástica, alterações cognitivo comportamentais, afasia global;
9. Tais lesões e sequelas determinaram ao ofendido CC, 954 dias de doença, com incapacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional até à presente data. As consequências permanentes acima descritas traduzem-se em afetação grave e persistente das capacidades neurocognitivas e motoras do ofendido, com marcado prejuízo do seu desempenho global, condicionando estado de elevada dependência de terceiros para a realização da totalidade das suas atividades de vida diária. Associação com dano estético grave (uso de cadeira de rodas), limitação grave da capacidade de trabalho geral e profissional e limitação grave da capacidade de utilização do seu corpo e linguagem. Face a gravidade da sua situação clínica, envolveu ainda perigo para a vida (aminas?suporte transfusional? traqueostomia? manobras de SBV? manobras de SAV? e suporte ventilatório?), tudo melhor descrito nos relatórios periciais constantes nos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
10. A descrita conduta da arguida causou ainda danos no motociclo com a matrícula ..-OZ-.., que ficou totalmente destruído, quer no veículo por si tripulado, cujos valores não foram concretamente apurados.
11. No momento em que ocorreu o embate o tempo estava seco.
12. A via de trânsito onde o embate acima descrito ocorreu tem uma largura de 9,90m. (nove metros e noventa centímetros), e comporta dois sentidos de trânsito.
13. Tal via configura uma reta, com cerca de 200 (duzentos) metros de comprimento desde o seu início até ao entroncamento onde ocorreu a colisão atento o sentido de marcha .../ ..., plana, com sinalização horizontal, encontrando-se o respetivo piso, betuminoso, em estado regular. O respetivo limite de velocidade situa-se em 90 Km/ hora.
14. O ofendido, imediatamente antes da ocorrência do embate circulava a 1,85 m da linha guia descontínua que delimita a faixa de rodagem em que circulava e a respetiva berma e, por força da travagem que efetuou, deixou um rasto de pneumáticos no piso com 5,20m, no sentido de marcha ..., até ao ponto de colisão com o veículo tripulado pela arguida.
15. Ao realizar a manobra de mudança de direção à esquerda nos moldes acima descritos, a arguida agiu ciente de que antes de iniciar tal manobra, não tinha imobilizado totalmente o veículo por si tripulado no sinal STOP existente no local, pelo tempo necessário a assegurar-se de que não circulavam outros veículos na faixa de rodagem contrária, que tinham prioridade em relação à mesma e aos quais estava obrigada a ceder passagem, o que era do seu conhecimento.
16. Sabia ainda a arguida que após iniciar a manobra de mudança de direção e invadir a faixa de rodagem contrária, o deveria fazer com a maior celeridade possível por forma a não colocar em crise a segurança da circulação rodoviária assim como a integridade física e a vida dos demais utentes da via e dos veículos que circulavam no local, como efetivamente colocou, resultado que previu como possível e com o qual se conformou.
17. A arguida quis efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda pela forma acima descrita, com total desrespeito pelas regras da circulação de veículos automóveis relativas à prioridade e à obrigatoriedade de cedência de passagem e de mudança de direção, que bem conhecia, assim como da obrigatoriedade de acatar tais condutas impostas por lei.
18. A arguida assumiu a conduta acima descrita, de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a mesma era apta a colocar em crise a integridade física e a vida dos demais utilizadores da via, assim como os demais veículos que ali circulavam, bem sabendo que a mesma era proibida e punida pela lei penal.
19. Ao conduzir pela forma acima descrita a arguida não procedeu com o mais elementar cuidado e diligência a que a obrigava o normal exercício da condução e sem averiguar se podia circular em segurança sem por em perigo a vida e integridade física dos demais utentes daquela via, como veio efetivamente a suceder.
20. Fê-lo de forma desatenta e imperita, sem respeitar as mais elementares normas de segurança rodoviárias e sem adotar as regras comuns de cautela que a via e o tráfego exigiam e de que era capaz.
21. Circulava a arguida, em violação dos comandos legais que lhe eram impostos e de que tinha conhecimento e com violação do especial dever de cuidado que sobre si impendia, enquanto condutora numa via que sabia pública e com tráfego rodoviário intenso.
22. Em consequência de tais condutas da arguida, deu-se o embate acima descrito, embate esse que foi causa direta e adequada das lesões e sequelas sofridas por CC, resultado que a arguida previu como possível, por ter capacidade para tal, mas com o qual não se conformou.
23. A arguida agiu livre e conscientemente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida pela lei criminal.
*
Factos não indiciados pela instrução
Inexistem factos não indiciados.
** III.3. Da análise dos indícios
É momento de escrutinar a prova existente e concluir pela indiciação ou não dos factos constantes da acusação pública.
Começa-se o presente juízo por remeter o mesmo para a observação e a apreciação da participação de acidente viação de fls. 11, no qual se identificam os envolvidos no sinistro, com a descrição dos acontecimentos, croqui desenhado e estando identificado a fls. 13 o local provável do embate.
Inquirida a testemunha DD, militar da GNR que se deslocou ao local, a fls. 93, o mesmo explicitou que antes do entroncamento, no sentido de marcha do motociclo existe uma curva aberta para a direita com uma lomba que dificulta e retira ao condutor do motociclo visibilidade do entroncamento, acrescentando que o mesmo efetuou uma travagem brusca ou de recurso a fim de evitar a colisão. A testemunha elucidou que identificou o local do embate tendo em consideração os vestígios existentes no local, como vidros e plásticos provenientes de ambos os veículos.
A fls. 96 dos autos consta o auto de exame direto ao local, o qual de modo completo consigna a identificação do acidente, o sentido de circulação, o ponto fixo de referência, descrevendo as vias de trânsito, a sinalização existente no local e as marcas e vestígios existentes no local.
Aquando do acontecimento dos factos em dissecação estavam no local, a circular nas suas viaturas, as testemunhas EE e FF.
A testemunha EE descreveu que conduzia no sentido de ... para ... e assistiu à colisão, orientando que ia atrás da arguida e viu-a a virar no entroncamento para ..., momento em que surge um motociclo no sentido oposto e que dá sinais de luzes e vai embater no veículo da arguida «pelo facto do veículo ligeiro se atravessar na frente do motociclo». Afirmando que não sabe se a arguida deu sinais luminosos de manobra, vulgo piscas, nem sabe se parou no STOP e que não existia encandeamento pelo sol.
Por sua vez, a testemunha FF relatou que o ofendido apitou constantemente e tentou desviar-se para a esquerda, tendo visto que a arguida procedeu à sinalização luminosa de manobra de mudança de direção e que parou no STOP, mas por pouco tempo, tendo iniciado em seguida a mudança de direção, rematando, também, que não existia possibilidade de encadeamento.
Visualizando o relatório fotográfico de fls. 126 e 127 afere-se o local do embate e os locais onde ficaram as viaturas após colisão, verificando-se os danos causados na viatura conduzida pela arguida, indicando o ponto de colisão do motociclo. Por outro lado, do relatório fotográfico de fls. 150 é visível as condições das vias, as sinalizações existentes e o pós-embate.
Quanto às consequências do sinistro para o corpo e a saúde do ofendido, as mesmas têm suporte nos vários elementos probatórios juntos aos autos como é o caso do atestado médico de incapacidade multiuso – fls. 129, a informação clínica do médico fisiatra – fls. 148, relatório pericial de avaliação de dano corporal em direito penal – fls. 489 e sentença de acompanhamento de maior de fls. 539. De frisar que o relatório pericial de avaliação de dano corporal em direito penal afirma o nexo de causalidade entre o sinistro e as lesões verificadas na pessoa do ofendido.
Ora, destes elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito é de concluir pela existência de indícios suficientes dos factos constantes da acusação pública, ou seja, efetivamente a arguida pretendendo virar à esquerda e tendo para o efeito de se atravessar na faixa de rodagem em que circulava o motociclo, parou no STOP, mas por pouco tempo, iniciando a manobra e atravessando-se em frente ao motociclo, não tendo este como evitar o embate. Destarte, das imagens colhidas percebe-se que a colisão ocorre na via em que circula o ofendido e que o mesmo colide entre a porta da frente da viatura, do lado do passageiro, e a parte dianteira da viatura.
Donde, a arguida não respeitou o sinal de STOP, porquanto não imobilizou a viatura pelo tempo necessário a bem observar e certificar-se que podia efetuar a manobra de mudança de direção sem colocar em perigo a segurança dos restantes utentes da via pública. Se o fizesse, não se atravessaria em frente ao motociclo, deixando-o sem possibilidade de se imobilizar atempadamente. Esta é a descrição expendida pelas testemunhas oculares, as quais ainda disseram que o motociclo apitou constantemente e fez uma manobra de evasão à esquerda, mas sem sucesso. Ou seja, ambas viram o motociclo e a arguida a introduzir-se na faixa de rodagem do mesmo. Nenhuma das testemunhas asseverou que o ofendido tivesse aparecido inopinadamente, em velocidade excessiva, e que não fosse visível na estrada. Percebe-se, pois, que o motociclo com a breve paragem da arguida no sinal de STOP acreditou que a mesma o estava a ver e que quando já está em cima do entroncamento, a mesma atravessa-se à sua frente inopinadamente, nada conseguindo fazer que não seja a reação de apitar e virar para a esquerda. Esta conduta do ofendido é compatível com o sucedido, se a arguida ia virar para a sua esquerda, direita do ofendido, este tenta evadir-se para a sua esquerda, acreditando que seguindo aquela para a esquerda, este ainda conseguisse passar por trás da viatura conduzida pela arguida, pois que se virasse para a sua direita, esquerda da arguida, não teria mesmo qualquer hipótese de não colidir, pois seria levado em frente pela arguida.
Realizados os atos de instrução requeridos pela arguida, parece ao Tribunal que estes indícios saem reforçados.
O relatório de averiguação de danos corporais elaborados pela Toga&Boaventura, Lda – Gabinete de Peritagem, desenvolve que a arguida não se terá apercebido da presença do motociclo e que este tentou evitar a colisão, concluindo que a arguida não terá tomado as devidas precauções quando iniciou a manobra para mudar de direção e que foi cortar a linha de progresso à viatura terceira, que transitava no sentido oposto, originando a eclosão do acidente. A fls. 856 e 860 desse mesmo relatório de peritagem vê-se de modo bastante pormenorizando os danos provocados na viatura conduzida pela arguida, sendo os mesmos compatíveis com a dinâmica do sinistro descrita na acusação pública, percebendo-se que com a manobra de mudança de direção à esquerda expendida pelo ofendido, a frente do motociclo vai embater no inicio da porta da frente do passageiro e bate de lado com o motociclo até ao guarda-lamas. Ora esses danos e dinâmica são tão compatíveis com os danos verificados no motociclo e visíveis a fls. 863 a 866.
Dos esclarecimentos prestados pelo INML consta que o THC normalmente é indetetável ao fim de 3 a 4 horas após o consumo, afirmando o Sr. Perito que acredita que aquela quantidade detetada no organismo do ofendido não era fator acrescido de risco de acidente.
De especial acuidade, elucubra-se o relatório técnico de acidente de viação de fls. 933, o qual explicando os passos dados, encerra que a distância total para o motociclo se imobilizar, somando o tempo de reação e a travagem para um motociclo que circule a 90 km/h, é de 75,46 metros. Ora, atento o local de embate percebe-se que o motociclo estava bem mais perto da arguida do que uma distância de 75,46 metros. Em verdade, se quando a arguida inicia a travessia, o motociclo ainda estivesse longe ou antes da curva, como procurou a arguida sustentar, por certo que a viatura da arguida estaria já noutro ponto da estrada, ou seja, o embate ocorreria no máximo na parte da traseira da viatura, a menos que a arguida tenha arrancado e imobilizado a viatura já na faixa de rodagem do ofendido.
Por outro lado, desse relatório resulta explorado que tendo por referência as distâncias de visibilidade apuradas, 128 e 140 metros, a arguida, caso o ofendido circulasse a 90 km/h, disporia de 5,12 segundos para efetuar a manobra, tempo suficiente a fazer essa travessia, com exceção de algum evento anómalo como deixar o carro desligar-se ou imobilizar o mesmo no meio da via, e tal sucederia mesmo que o arguido se deslocasse a 110 km/h, dispondo de 4,58 segundos para fazer a travessia. Ora, segundo a versão da arguida, o ofendido teria que estar àquela distância máxima para não o ver e ainda assim, supondo que o arguido circulava à velocidade máxima permitida ou que a excedesse em 20 km/h, a arguida conseguiria fazer a travessia, mas não foi assim que sucedeu, porque atento o ponto de colisão verifica-se que a arguida não circulou durante 5 segundos, tendo a colisão lugar no exato momento em que se atravessa na via.
Neste ensejo, a versão trazida pela arguida de que tinha a certeza de que o motociclo não era visível quando iniciou a manobra não pode merecer colhimento, considerando que as testemunhas oculares afirmaram que viram o motociclo e a arguida a atravessar-se na sua faixa de rodagem e atendendo aos vários cálculos apresentado a fls. 935 a 937, pois que para não ser visível quando a arguida avança e depois embater naquele ponto concreto da estrada e na parte frontal da viatura, o arguido teria que circular a uma velocidade demasiado excessiva e incompatível com a curva que tinha que efetuar e que tem uma lomba. Ademais, tal circunstância não fora afirmada por qualquer uma das duas testemunhas. Neste sentido, crê-se que em virtude da curva e da lomba, o motociclo terá sempre que circular numa velocidade mais moderada, ainda que se aceite que a mesma fosse o limite fixado para aquela via. Em verdade, não se descura que também o motociclo tinha que ajustar a sua velocidade ao passar no entroncamento, mas nada refere que não o tenha feito, como se disse, tendo-se laborado naquelas velocidades como equacionando o pior quadro possível da conduta do ofendido e, ainda assim, não se pode deixar de conceber que a arguida parou no STOP, mas de modo leviano, tanto que como descreveu a testemunha parou e avançou imediatamente atravessando-se em frente ao motociclo.
A testemunha GG, que circulava com a arguida no lugar do passageiro, não contribuiu de qualquer modo para beliscar os indícios deslindados, porquanto disse que não estava atenta à estrada, estando a ver fotografias na sua máquina fotográfica e que só se apercebeu do embate quando o ofendido embateu no automóvel.
A arguida afirma que não viu o motociclo e não se pode deixar de acreditar nessa parte da sua versão, até porque a acreditar-se sempre a sua conduta não seria meramente negligente, mas dolosa, ainda que sob a forma de dolo eventual, ou seja, a arguida para além de representar o resultado da sua conduta, conformou-se com a verificação do mesmo e não foi isto que sucedera, o que sucedera é que olhou sem a atenção devida e avançou imediatamente, não acreditando, pois, na verificação do resultado que veio suceder.
De assinalar que a estrada dispunha de boas condições e nada impedia a boa visualização da estrada.
Por outro lado, a arguida é possuidora de habilitação legal para conduzir, logo sabia e tinha que saber, não só pela marca de STOP existente no local, mas porque teria que atravessar uma via de trânsito, pretendendo mudar de direção, que tinha de imobilizar o veículo pelo tempo suficiente a garantir a segurança da manobra, observando de modo cauteloso toda a estrada e perante essa segurança avançar de modo expedito por forma a não ficar atravessada na via de trânsito, colocando em risco a segurança, a saúde e a vida dos demais utentes da via. Ora, não tendo atuado de tal modo, sabia do perigo da saúde conduta para os demais utilizadores da via pública. Perigo que não só gerou como se concretizou, ofendendo o corpo e a saúde do ofendido.
Nestes termos conjugados, resulta, pois, que ao nível indiciário que se exige nesta fase para a submissão da arguida a julgamento é de proferir decisão de pronúncia, porquanto os elementos probatórios coligidos aos autos permitem concluir pela forte indiciação da factualidade descrita na acusação pública.
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III.4. Do enquadramento jurídico
Vem imputado à arguida a prática, em concurso efetivo e na forma consumada e em autoria material, na prática de:
-um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148.º, ns.º 1 e 3 ex vi art.º 144.º ambos do Código Penal e 69.º, n.º 1 al. b) do mesmo compêndio legal;
-um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.º. 291º, nº 1 al. b) e 69º, nº 1 al. a) ambos do Código Penal e art.º 35.º do Código da Estrada
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Do crime de ofensa à integridade física por negligência
Refere a norma incriminadora do art. 148.º, n.º 1 do Código Penal que «Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.» e o n.º 3 do mesmo preceito que «Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.».
Ora o 144.º do Código Penal norma incriminadora do crime de ofensas à integridade física graves prescreve que «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: (…) b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; (…) d) Provocar-lhe perigo para a vida».
Por sua vez, alude o art. 15.º do Código Penal que «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.».
E refere o art. 29.º, n.º 1 do Código da Estrada que «O condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direção deste.» e o art. 30.º, n.º 1 do Código da Estrada tutela que «Nos cruzamentos e cruzamentos o condutor deve ceder a passagem aos veículos que se lhe apresentem pela direita.». Ademais, o art. 35.º do Código da Estrada preceitua que «1 - O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.».
O Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de outubro que aprova o Regulamento de Sinalização do Trânsito, estabelece no art. 21.º sob a epigrafe «Enumeração e significado dos sinais de cedência de passagem» estabelece que «Os sinais de cedência de passagem, representados no quadro
XXIII, em anexo, são os seguintes: (…) B2 - paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento: indicação de que o condutor é obrigado a parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento junto do qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar», verificando-se da visualização desse quadro que corresponde ao sinal de STOP; e o art. 61.º desse mesmo diploma legal preceitua que «As marcas transversais, apostas no sentido da largura das faixas de rodagem e que podem ser completadas por símbolos ou inscrições, são as seguintes: M8 e M8a — linha de paragem e linha de paragem «STOP»: consiste numa linha transversal contínua e indica o local de paragem obrigatória, imposta por outro meio de sinalização; esta linha pode ser reforçada pela inscrição «STOP» no pavimento quando a paragem seja imposta por sinalização vertical».
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O crime de ofensa à integridade física por negligência protege o bem jurídico integridade física que compreende a integridade corporal e a saúde física da pessoa humana.
É este um crime de dano ou de resultado, quer-se expressar que é elemento do tipo objetivo deste crime que alguém ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa.
O corpo compreende não só o corpo humano, mas igualmente todos os aparelhos implantados ou ligados ao corpo da vítima de forma permanente, e a saúde engloba tanto a saúde física concretizada na verificação de lesões ou sequelas, como a saúde psíquica que comporta implicações objetivas no corpo, mormente originando dores de estômago e outros tipos de indisposições.
A ofensa ao corpo ou à saúde pode ser empregue de múltiplas formas e através de inúmeros comportamentos lesivos, podendo existir uma ofensa ao corpo sem que a mesma implique uma ofensa à saúde.
Como orienta Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 385 «Não é condição da relevância típica a provocação de dor ou mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho, aleijão ou marca física (…). Mas é condição dessa relevância típica que tenha um mínimo de gravidade, descortinável segundo uma interpretação do tipo à luz da adequação social.» Ensinamento este também aplicado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Janeiro de 2016, relator Vasques Osório, disponível em http://www.dgsi.pt.
A norma incriminadora vertida no art. 144.º do CP eclode da consideração de que o resultado manifestado imbrica em certa medida com uma ilicitude mais grave do que a das ofensas à integridade física simples. Enaltece-se, aqui, o desvalor do resultado.
Quanto às alíneas e à concreta parte destas que no caso concreto relevam, tem-se que a afetação das capacidades intelectuais densifica-se na afetação da inteligência e da vontade, a qual pode ser transitória ou duradoura; e a possibilidade de utilizar o corpo repercute-se no desempenho normal das funções biológicas, as quais podem ser limitadas total ou parcialmente e transitória ou permanentemente, integrando aquelas os sentidos que conexiona o ser humano e os estímulos externos através da ação-reação e a expressão, a linguagem e capacidade de compreensão. O perigo para a vida tem de ser um perigo que se verificou in concretu, e tal tem lugar quando as lesões sofridas pela vítima desencadeiam sinais ou sintomas que tangem a morte próxima. Este perigo pode ser efémero, não sendo necessário um perigo prolongado.
No que concerne à culpa o tipo subjetivo das ofensas à integridade física por negligência exige como o próprio nome indica a atuação do agente com negligência, nos termos do art. 15.º supra transcrito.
Nas palavras de Eduardo Correia in Direito Criminal, Volume I, pág. 431 «A negligência consiste na omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o agente (segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais) podia ter cumprido.». E como de modo sagaz discorre Figueiredo Dias in Direito Penal – Questões Fundamentais – A Doutrina Geral do Crime, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 860 «o facto negligente não é, simplesmente, uma forma atenuada ou menos grave de aparecimento do correspectivo facto doloso: é “outra coisa”, é “outro facto”, em suma, é um aliud relativamente ao facto doloso correspondente».
O juízo de censura que alicerça a punição do agente a título de negligência decorre da violação concreta de deveres provenientes da proibição de certos eventos, a qual pode assentar numa não representação por parte do agente ou numa representação inexata do resultado. Fala-se em negligência inconsciente e negligência consciente.
Há negligência consciente quando o agente prevê como possível a realização do resultado típico, mas acredita na sua não verificação, mesmo podendo e não devendo confiar na mesma. Esta diverge do dolo eventual, porquanto naquela o agente não se conforma com a sua verificação, enquanto neste o agente representando a realização do facto como possível actua conformando-se com a sua verificação, é esta a teoria da conformação dominantemente defendida na doutrina e jurisprudência. – Figueiredo Dias in Direito Penal – Questões Fundamentais – A Doutrina Geral do Crime, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, págs. 371 e segs.. De outra feita, a negligência inconsciente surge quando o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
Ao nível da dogmática é axiomático que o tipo negligente estrutura-se em duas pedras basilares: o tipo de ilícito e o tipo de culpa.
Consolida-se que o preenchimento do tipo de ilícito do facto negligente implica um comportamento do agente que contende com outro que deveria ter adotado face à situação de perigo para os bens jurídico-penalmente relevantes que se visam proteger com a norma incriminadora, objetivando-se evitar uma violação juridicamente proibida. Àquele comportamento agrega-se a necessidade de que o agente tenha violado um dever de cuidado que sobre ele impendia e que levou à produção do resultado típico.
Ora, a avaliação do desempenho e da diligência do agente deve ser efetuada tendo por referência o cuidado que se exigia ao homem médio colocado nas mesmas condições daquele. Emprega-se, pois, um juízo ex ante, depreendendo-se qual o cuidado exigível a um homem medianamente conhecedor e diligente, do tipo social do agente, colocado na concreta situação deste e com os conhecimentos especiais que este detinha aquando da prática do ato.
Aclama Paula de Ribeiro Faria in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Janeiro de 1999, pág. 261 «A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á caso a caso, em função das particulares circunstâncias da actuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários deveres e regras de conduta no âmbito de actividades perigosas (por exemplo, as normas de circulação rodoviária”)».
Em síntese do explanado, neste percurso racional, o julgador tem de se colocar no tempo em que ocorreram os factos e questionar como o homem médio, naquelas circunstâncias e com os conhecimentos que o agente detinha, valoraria tal concreta situação, nomeadamente se percecionaria o perigo para o bem jurídico ou não.
Numa fase posterior, o resultado obtido deve ser confrontado com a conduta concreta do agente, e se se concluir que este agiu desconformemente conclui-se pela negligência. Desta feita, só não haverá conduta típica se o agente usar dos deveres objetivos de cuidado que naquela situação concreta se impunham.
De mais a mais, o dever de cuidado omitido pelo agente tem de ser adequado a evitar a produção do resultado típico. A negligência não se basta pois com a omissão de um dever que juridicamente se impunha, exigindo-se que o dever seja adequado evitar a verificação do resultado típico. Este nexo de imputação objetiva da violação do dever à produção do resultado típico deve ter-se como não verificado caso com grande probabilidade, próxima da certeza, se afigure que o resultado típico, decorrente da conduta realizada sem o dever de cuidado que se impunha, se iria igualmente produzir mesmo que o agente usasse do dever de cuidado omitido.
É ainda pressuposto do crime de ofensas à integridade física por negligência que o resultado típico verificado e o processo causal que o gerou sejam previsíveis, ou seja, o agente tem de engendrar o resultado típico como uma consequência normal da conduta que adotou. Esta conceção lógica entre o evento e o resultado não é apreciada por consideração da subjetividade do agente, mas de uma consideração objetiva segundo as regras gerais da experiência do homem médio, se este o conseguiria depreender. Deste modo, excluem-se as condutas violadoras de um dever de cuidado que produzem resultados estranhos ou anómalos, imprevisíveis pelas regras da normalidade e da lógica. Pensa-se se o resultado lesão corporal da forma como se produziu era ou não previsível, ou considerada consequência de um determinado comportamento ou da omissão de um dever de cuidado que era adequado a evitá-lo.
Convalidados todos estes pressupostos atesta-se preenchido o tipo de ilícito do crime negligente e cabriola-se para a análise do tipo de culpa do mesmo.
O tipo de culpa parte da compreensão concreta do agente e da sua conduta, interessando, nesta fase, dissecar se aquele dever de previsão e cuidado geral podia ser cumprido por aquele agente concreto atendendo às suas específicas capacidades pessoais, ao seu intelecto, formação, experiência de vida e inserção social.
Esta simbiose entre o tipo de ilícito e o tipo de culpa nos factos negligentes é auspiciada como doutrina do duplo escalão – aludida também no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de outubro de 2012, relator Vítor Morgado, disponível em http://www.dgsi.pt/.
A principal fonte de dever de cuidado são as normas de comportamentos estabelecidas por lei ou regulamento, dotadas de generalidade e abstração, ou por prescrições da autoridade competente, gozando de individualidade, assumindo umas e outras qualquer natureza, mesmo que não penal.
Em síntese das considerações expendidas, são elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de ofensas à integridade física por negligência punidas pelo n.º 3 da norma incriminadora:
- a existência de um dever objetivo de cuidado;
- uma ação ou omissão violadora do dever objetivo de cuidado imposto; - a produção de um resultado típico;
- que o resultado consista na afetação ou subtração, de maneira grave, da capacidade de trabalho, das capacidades intelectuais, de procriação ou fruição sexual, ou a possibilidade utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem, e que o resultado provoque perigo para a vida;
- a imputação do resultado ao agente, sendo a ação ou omissão do dever de cuidado adequada à produção do resultado, o qual podia ser evitado pela conduta adequada através do respeito do dever de cuidado;
- que o resultado caia no âmbito de proteção da norma;
- a possibilidade do agente prever o perigo de realização do tipo; - a atuação que não observe o cuidado objetivo que se impõe.
Feita esta resenha e perquiridos todos os elementos constituintes do crime de ofensas à integridade física por negligência com referência ao crime de ofensas à integridade física grave, atento o resultado verificado na pessoa de CC, brota no Tribunal o dever de descamar os mesmos tendo por base a factualidade concreta, procedendo à subsunção desta normativamente.
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Vertendo um olhar cuidado sobre o acervo factual indiciado de forma a subsumi-lo jurídico-normativamente, da leitura dos factos n.ºs 1 a 4, verifica-se que a arguida circulava no sentido de ... para ... e o ofendido no sentido contrário, sendo que a arguida pretendia virar à esquerda em direção a ..., tendo para o efeito uma linha contínua de paragem – M8a - marca de ponto de imobilização obrigatória para todos os veículos que pretendam virar à esquerda. Tal marca encontra-se como se viu descrita no art. 61.º do Decreto-Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de outubro que aprova o Regulamento de Sinalização do Trânsito. O local em crise configura um entroncamento, tendo a arguida a obrigação de imobilizar o veículo e ceder a passagem em virtude na marca de STOP existente no local, mas também por se tratar de um cruzamento, tendo de se atravessar na faixa de rodagem em que circulava o ofendido, devendo ceder a passagem a quem se apresente pela sua direita, como era o caso.
Elucubra-se, assim, a existência de um dever objetivo de cuidado que impendia sobre a arguida – cf. arts. 29.º, 30.º e 35.º, do Código da Estrada – o de imobilizar a viatura antes de efetuar manobra, observar se a podia executar em segurança e só nessas circunstâncias avançar. Frisa-se aqui que não é a imobilização do veículo só por si que a norma de cuidado impõe, mas o imobilizar, observar e assegurar-se que nenhum veículo circula na via que se irá atravessar e estas últimas obrigações, a arguida não cumpriu.
No entanto, da análise dos factos n.ºs 5 e 6 depreende-se que a arguida chegada a esse local rodou o volante do veículo para a esquerda e evadiu a faixa de rodagem do ofendido, tendo-se atravessado em frente ao ofendido o que levou ao embate do motociclo na viatura automóvel em que circulava a arguida. Desta feita, a arguida não cumpriu o dever de cuidado que sobre si impendia, não tendo imobilizado o veículo pelo tempo necessário a observar cuidadosamente a faixa de rodagem que pretendia atravessar, não tendo efetuado tal manobra em segurança – factos n.º 15 a 17. Ou seja, a arguida sabia que tinha que ceder a passagem a quem circulasse na via de sentido de ... para ..., devendo assegurar-se de que não circulavam veículos naquela faixa rodagem o que não fez, tendo se atravessado na mesma e gerado a colisão ocorrida.
Desvenda-se, assim, a violação do dever de cuidado que impendia sobre a arguida. Quanto às consequências desse embate, as mesmas estão devidamente descritas nos
factos n.ºs 8 a 10, as quais causarem problemas para o corpo e saúde do ofendido grave, mormente gerando-lhe perigo para a vida e afetando-lhe de modo grava a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais e a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos e a linguagem. Há, portanto, a verificação do resultado típico na vertente agravada e o nexo de causalidade de imputação do resultado à conduta da arguida, pois que se esta tivesse respeitado a norma de cuidado, o embate não ocorreria e o ofendido não padeceria de tais lesões e sequelas.
Dos factos n.ºs 11 a 14 resulta que nada impedia que a arguida visualizasse a sinalização de paragem e que observasse o motociclo em que circulava o ofendido, estando bom tempo e a estrada em boas condições de circulação.
Conforme resulta dos factos indiciados n.ºs 15 a 23, a arguida, enquanto cidadão médio de normal diligência, tendo uma marca de paragem obrigatória no chão da via e sabendo que ia atravessar-se em frente a veículos que circulavam noutra faixa de rodagem, sabia das cautelas que deveria observar, mormente parar e bem observar, certificando-se que efetuava a manobra em segurança, sabendo que desse descuido poder-se-ia verificar um acidente rodoviário e do mesmo consequências nefastas para a vida e integridade de física de outrem, ou seja, a arguida podia prever o resultado da sua conduta, mas ainda assim atuou em violação desse dever de cuidado.
Proclamam-se verificados todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência.
Finda-se que os factos indiciados são suscetíveis de integrar a prática em autoria material do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art. 148.º, nºs. 1 e 3 ex vi art.º 144.º, als. b) e d), e 69.º, n.º 1 al. b) do Código Penal.
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Do crime de condução perigosa de veículo rodoviário
Delineia o art. 291.º, n.º 1 do C.P. que «Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: a) Não estando em condições de o fazer em segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob a influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.». Por sua vez os n.ºs 3 e 4, da mesma norma, preceituam que «Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.” e que “Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.».
O bem jurídico protegido pela incriminação é a segurança da circulação rodoviária e ainda a vida, a integridade física e o património de outrem.
O tipo de ilícito objetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário exige os seguintes elementos:
- que o agente conduza um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada;
- que este mesmo agente viole de forma grosseira as regras de condução, ou seja, que desrespeite os mais elementares deveres no âmbito da circulação rodoviária, suscetíveis de colocar bens jurídicos em perigo ou que o agente não esteja em condições de conduzir o veículo em segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob a influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; e,
- que da conduta do agente resulte um efetivo perigo para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
É tendo por referência o último elemento do tipo objetivo que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário se traduz num crime de perigo concreto, porquanto o seu preenchimento não se basta com a violação grosseira das regras da circulação rodoviária ou que o agente não se encontre em condições de conduzir (por se encontrar em determinado estado físico ou psíquico) tornando-se igualmente necessário que, no circunstancialismo do caso concreto, se deduza a ocorrência de um perigo concreto para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. No que concerne ao elemento subjetivo de ilícito, o tipo de crime previsto no art. 291.º do C.P. comporta diversas cambiantes: a) dolo de ação e dolo de perigo quanto ao evento de perigo (em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14.º do C.P.) - cf. art. 291.º, n.º 1 do C.P.; b) dolo de ação e negligência quanto ao evento de perigo; ou c) negligência em relação à ação perigosa e negligência em relação ao resultado de perigo - cf. art. 291.º, n.ºs 3 e 4 do C.P..
Diante da factualidade dada como indiciada dúvidas não restam que a arguida conduzia veículo a motor na via pública, tendo violado de modo grosseiro as regras de circulação, mormente de imobilização do veículo e observar se podia iniciar a travessia em segurança, tendo gerado perigo para a vida e para a integridade física de outros utilizadores da via, como veio efetivamente a concretizar-se na pessoa do ofendido CC.
Deste modo, o tribunal só poderá concluir que se mostram verificados os dois primeiros elementos do tipo objetivo de crime imputado à arguida. Sucede, todavia, que o tipo exige ainda que da condução realizada pela arguida resulte ou seja criado um perigo concreto para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. Assim, e mais uma vez tendo como referência a factualidade dada como indiciada, é de dar como assente que a conduta da arguida criou um perigo efetivo (concreto) para a vida de CC, tanto que criou que efetivamente afetou de modo grave o corpo e a saúde do mesmo.
Todavia, de modo diverso, não resulta da acusação e, consequentemente, da factualidade indiciada a verificação de qualquer perigo efetivo para outros bens jurídicos pessoais ou patrimoniais que se possa subsumir a uma situação de perigo concreto decorrente da condução da arguida. Deste modo, é de concluir que se mostram verificados todos os elementos do tipo objetivo em questão, contudo tal não se afigura suficiente para que a arguida seja condenada pelo mesmo.
Na verdade, e tendo como assente que a condução da arguida originou ofensas graves à integridade física do ofendido CC, certo é que não se pode nos presentes autos estar perante um crime de condução perigosa de veículo rodoviário nos termos que são imputados pela acusação pública à arguida, uma vez que o resultado ofensa grave à integridade física impõe a agravação prevista no art. 285.º do C.P.. Ora, estabelece o art. 294.º, n.º 3 do C.P. que ao crime previsto no art. 291.º do C.P. aplica-se o disposto nos arts. 285.º e 286.º, ainda que com as agravações previstas nos números anteriores. Por sua vez, preceitua o art. 285.º do C.P. que se do crime (previsto no art. 291.º do C.P.) resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Nos presentes autos resultou como indiciado que a conduta da arguida resultou na ofensa à integridade física grave de CC, ou seja, estando verificados os elementos do tipo do crime em análise tal levaria a agravação dos limites mínimo e máximo da pena aplicável prevista, conforme previsto nos arts. 285.º e 294.º, n.º 3 do C.P.. No entanto, e independentemente do supra descrito, entende-se que nos presentes autos verifica-se uma situação de concurso aparente entre o crime de condução perigosa agravado pelo resultado e o crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3 do C.P..
Conforme elucida Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2015, p. 740, «Há concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o crime de homicídio negligente quando o perigo se tenha concretizado apenas no resultado morte.». No mesmo sentido Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão in CCCP I, 2012, p. 186 segs. explicitam que «se num crime negligente de perigo concreto para a vida, uma vítima morreu, só deve ser punido por homicídio negligente, por força de uma relação de subsidiariedade…».
Perscrute-se que, sendo protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física, postos em perigo pela conduta do agente, ainda que estes reflexamente, se ocorrer uma lesão deste último como resultado daquela conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só pelas disposições combinadas dos arts. 291.º, 294.º e 285.º, mas também, de forma genérica, pelos crimes dos arts. 137.º e 148.º, do C.P.. Destarte, e na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-11-2007, relator Arménio Sottomayor, disponível em www.dgsi.pt, «Quando tal acontece, as disposições penais encontram-se numa relação de consunção – uma, a de protecção mais ampla [lex consumens] consome a protecção que a outra [lex consunta] já visa e que deixa de ser aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem.». No mesmo sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-06-2020, relatora Elisa Sales, disponível em www.dgsi.pt..
Encerra-se, assim, que apenas é lícito ao tribunal, em obediência ao princípio ne bis in idem, valorar uma única vez as ofensas ao corpo e saúde do ofendido CC, devendo assim a arguida ser pronunciada pelo tipo de crime dominante que, in casu, corresponde ao crime de ofensas à integridade física grave por negligência, por se tratar do tipo fundamental e consumir o crime de condução perigosa de veículo rodoviário. Em verdade, a subsumir-se no crime de condução perigosa sempre o perigo criado fora de modo negligente, pelo que a pena seria de 2 anos agravada de um terço
– cf. art. 291.º, n.º 3 e 285.º, do CP – ou seja, a pena seria inferior à prevista no art. 148.º, n.º 3, do Código Penal, relativo ao crime de ofensa à integridade física grave por negligência que contempla o máximo de 3 anos de prisão.
Pelo exposto, e atendendo aos fundamentos supra perquiridos, não mais resta concluir que deve a arguida ser não pronunciada pela prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 291.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do C.P..
Entende, assim, o Tribunal que a probabilidade de a arguida ser condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência em julgamento é maior do que a probabilidade de ser absolvida, mostrando-se fortes os indícios constantes dos presentes autos e sendo a factualidade indiciada apta a integrar a prática do crime em análise. Neste conspecto, mais não resta do que proferir decisão de pronúncia quanto à prática de tal crime e de não pronúncia quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
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III.5. Da responsabilidade tributária
Tendo a abertura de instrução sido requerida pela arguida, as custas serão fixadas a final, sendo considerada, em caso de condenação, a fase de instrução, nos termos do disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à correspondente tabela III.
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IV. Decisão
Nestes termos, em conformidade com a fundamentação exposta, decide-se:
- não pronunciar a arguida pela prática de um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art. 291º, nº 1 al. b) e 69º, nº 1 al. a) ambos do Código Penal e art. 35.º do Código da Estrada.
- pronunciar, para ser submetida a julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular: AA, solteira, engenheira, filha de HH e de II, nascida a .../.../1991, natural de ..., ..., de nacionalidade ... e ..., portadora do passaporte n.º...31, emitido a 17/07/2016, pela ..., residente na Av.ª ..., ..., ...; pela prática dos seguintes factos constantes da acusação pública e que aqui se reproduzem:
1. No dia 6 de Junho de 2017, pelas 16h45m., na E.N. n.º ..., em área desta instância local ..., a arguida AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-RP-.., propriedade de Europcar Internacional Aluguer de Automóveis, S.A., na faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha de ... para ....
2. No mesmo circunstancialismo de tempo e local, CC, conduzia o motociclo, marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-OZ-.., de sua propriedade, no sentido de marcha ..., pela faixa de rodagem da sua direita.
3. Ao atingir o Km 130,150 da referida E.N. ..., junto ao entroncamento de .../..., a arguida direcionou o veículo por si tripulado para a esquerda, para um espaço da via destinado aos veículos que pretendem mudar de direção para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, a fim de se dirigir para .../....
4. Nesse local, encontrava-se inscrito no piso um sinal STOP, com tinta branca, assim como uma linha contínua de paragem (M8a) que delimita o ponto de imobilização obrigatória dos veículos que ocupam tal espaço da via a fim de mudarem de direção à esquerda.
5. Aí chegada, a arguida rodou o volante do seu veículo para a esquerda e invadiu a faixa de rodagem contrária à do seu sentido de marcha, onde circulava o ofendido CC que, assim que visualizou o veículo da arguida, acionou os travões e a buzina, assim como efetuou sinais de luzes com o seu motociclo, o que fez repetidamente.
6. Ainda assim, quando a arguida realiza tal manobra de mudança de direção à esquerda e o seu veículo já se encontrava numa posição oblíqua em relação ao eixo da via em que seguia e dentro da faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos que seguiam no sentido .../..., aquele embateu com a sua parte frontal lateral direita, junto à roda e porta do passageiro, com a parte frontal do motociclo tripulado por CC.
7. Após tal colisão, o veículo tripulado pela arguida ficou imobilizado junto ao local do embate e o motociclo tripulado pelo ofendido e este foram projetados para a faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha inicial, vindo a imobilizar-se o motociclo a 2,40m da roda traseira do veículo da arguida e o ofendido a cerca de 11,10m do mesmo veículo.
8. Como consequência direta e necessária do embate descrito em 6, entre o veículo conduzido pela arguida e o motociclo tripulado por CC, este sofreu, além de outras, as seguintes lesões e sequelas:
- politraumatismo com TCE grave, evolução de foco de contusão expansivo do lobo temporal esquerdo, com marcado edema e feito de massa loccoregional associado a quadro de hipertensão craniana refratária a medidas médica, com anisocoria; contusão pulmonar, laceração hepática com hemoperitoneu nos abdominais; fratura do rádio e cúbito direito; fratura cominutiva diafasária do fémur direito, luxação de Lysfranc do pé direito; rabdomiólise, choque sético por pneumonia associada a ventilador;
- tetraparésia assimétrica espástica, alterações cognitivo comportamentais, afasia global.

9. Tais lesões e sequelas determinaram ao ofendido CC, 954 dias de doença, com incapacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional até à presente data. As consequências permanentes acima descritas traduzem-se em afetação grave e persistente das capacidades neurocognitivas e motoras do ofendido, com marcado prejuízo do seu desempenho global, condicionando estado de elevada dependência de terceiros para a realização da totalidade das suas atividades de vida diária. Associação com dano estético grave (uso de cadeira de rodas), limitação grave da capacidade de trabalho geral e profissional e limitação grave da capacidade de utilização do seu corpo e linguagem. Face a gravidade da sua situação clínica, envolveu ainda perigo para a vida (aminas?suporte transfusional? traqueostomia? manobras de SBV? manobras de SAV? e suporte ventilatório?), tudo melhor descrito nos relatórios periciais constantes nos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
10. A descrita conduta da arguida causou ainda danos no motociclo com a matrícula ..-OZ-.., que ficou totalmente destruído, quer no veículo por si tripulado, cujos valores não foram concretamente apurados.
11. No momento em que ocorreu o embate o tempo estava seco.
12. A via de trânsito onde o embate acima descrito ocorreu tem uma largura de 9,90m. (nove metros e noventa centímetros), e comporta dois sentidos de trânsito.
13. Tal via configura uma reta, com cerca de 200 (duzentos) metros de comprimento desde o seu início até ao entroncamento onde ocorreu a colisão atento o sentido de marcha .../ ..., plana, com sinalização horizontal, encontrando-se o respetivo piso, betuminoso, em estado regular. O respetivo limite de velocidade situa-se em 90 Km/ hora.
14. O ofendido, imediatamente antes da ocorrência do embate circulava a 1,85 m da linha guia descontínua que delimita a faixa de rodagem em que circulava e a respetiva berma e, por força da travagem que efetuou, deixou um rasto de pneumáticos no piso com 5,20m, no sentido de marcha ..., até ao ponto de colisão com o veículo tripulado pela arguida.
15. Ao realizar a manobra de mudança de direção à esquerda nos moldes acima descritos, a arguida agiu ciente de que antes de iniciar tal manobra, não tinha imobilizado totalmente o veículo por si tripulado no sinal STOP existente no local, pelo tempo necessário a assegurar-se de que não circulavam outros veículos na faixa de rodagem contrária, que tinham prioridade em relação à mesma e aos quais estava obrigada a ceder passagem, o que era do seu conhecimento.
16. Sabia ainda a arguida que após iniciar a manobra de mudança de direção e invadir a faixa de rodagem contrária, o deveria fazer com a maior celeridade possível por forma a não colocar em crise a segurança da circulação rodoviária assim como a integridade física e a vida dos demais utentes da via e dos veículos que circulavam no local, como efetivamente colocou, resultado que previu como possível e com o qual se conformou.
17. A arguida quis efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda pela forma acima descrita, com total desrespeito pelas regras da circulação de veículos automóveis relativas à prioridade e à obrigatoriedade de cedência de passagem e de mudança de direção, que bem conhecia, assim como da obrigatoriedade de acatar tais condutas impostas por lei.
18. A arguida assumiu a conduta acima descrita, de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a mesma era apta a colocar em crise a integridade física e a vida dos demais utilizadores da via, assim como os demais veículos que ali circulavam, bem sabendo que a mesma era proibida e punida pela lei penal.
19. Ao conduzir pela forma acima descrita a arguida não procedeu com o mais elementar cuidado e diligência a que a obrigava o normal exercício da condução e sem averiguar se podia circular em segurança sem por em perigo a vida e integridade física dos demais utentes daquela via, como veio efetivamente a suceder.
20. Fê-lo de forma desatenta e imperita, sem respeitar as mais elementares normas de segurança rodoviárias e sem adotar as regras comuns de cautela que a via e o tráfego exigiam e de que era capaz.
21. Circulava a arguida, em violação dos comandos legais que lhe eram impostos e de que tinha conhecimento e com violação do especial dever de cuidado que sobre si impendia, enquanto condutora numa via que sabia pública e com tráfego rodoviário intenso.
22. Em consequência de tais condutas da arguida, deu-se o embate acima descrito, embate esse que foi causa direta e adequada das lesões e sequelas sofridas por CC, resultado que a arguida previu como possível, por ter capacidade para tal, mas com o qual não se conformou.
23. A arguida agiu livre e conscientemente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida pela lei criminal.
Tais factos são suscetíveis de integrar a prática pelo arguido, como autor material, na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148.º, ns.º 1 e 3 ex vi art. 144.º, als. b) e d) e 69.º, n.º 1 al. b), do Código Penal. (…)”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pela assistente
Cumpre agora conhecer as questões assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão, começando por sumariar as posições assumidas pela assistente e pelo MP.
A assistente considera que o Tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do Direito aos factos considerados suficientemente indiciados, por duas ordens de razão:
- Primeiro por ter entendido não se verificar concurso efetivo entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário e o crime de ofensa à integridade física grave por negligência;
- Segundo por ter partido da premissa segundo a qual a moldura penal abstrata para este último crime (ofensa à integridade física grave por negligência) é de um mês a três anos de prisão quando é de um mês a 2 anos de prisão. Conclui, assim, pela revogação da decisão recorrida a ser substituída por outra que pronuncie a arguida também pelo crime de condução perigosa previsto e punido pelo artigo 291.º do CP para além do crime de ofensa à integridade física por negligência.
O MP, por seu turno, entende:
- Não dever ser reconhecido provimento ao recurso interposto pela assistente na parte em que pugna pela verificação de um concurso efetivo entre o crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, e o crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado.
- Dever a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que integre os factos pelos quais a arguida foi pronunciada num crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelo artigo 291.º n.º 1, alínea b), agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 294.º, n.º 3 e 285.º do CP, daí extraindo-se as legais consequências.
Para compreender o verdadeiro alcance das considerações realizadas pela assistente e pelo MP, dando-lhes cabal resposta, torna-se necessário fazer uma prévia análise ao tipo legal do artigo 291.º do CP.

3.2.1. Do crime de condução perigosa de veículo rodoviário:
O tipo do artigo 291.º do CP sob a epígrafe “Condução perigosa de veículo rodoviário” estabelece, o seguinte:
“1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…)
3 - Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”[2].

A propósito do transcrito normativo deve salientar-se que os crimes se distinguem, quanto à forma como o bem jurídico é posto em causa pelo agente, entre crimes de dano e crimes de perigo.
Enquanto nos primeiros a realização do tipo tem como consequência uma lesão efetiva do bem jurídico, nos crimes de perigo a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera colocação em perigo do bem jurídico[3].
O crime de condução perigosa é de perigo[4], por virtude de a atuação típica do agente consistir em agir de modo a criar perigo de lesão de determinados bens jurídicos, independentemente de ocorrer efetivamente a lesão. O perigo consiste numa situação onde ocorre a possibilidade de produção de um resultado danoso, correspondendo, por isso, a criminalização das condutas a uma tutela antecipada dos bens jurídicos tutelados. Com este tipo de incriminação o Estado pretende, por intermédio do seu poder punitivo, acautelar a vida, a integridade física e o património de outrem, e concretamente através desta previsão penal, o domínio da circulação rodoviária.
Os crimes de perigo podem ser classificados de perigo abstrato e os de perigo concreto.
Nos crimes de perigo abstrato o perigo resultante da ação do agente não está individualizado em qualquer vítima ou bem, não sendo a produção ou verificação do perigo elemento do tipo. Já nos crimes de perigo concreto o perigo resultante da ação do agente encontra-se individualizado numa vítima ou num bem (ou mais), sendo a produção ou verificação do perigo elemento do tipo.
O crime de condução perigosa é, assim, de perigo concreto[5] nos casos previstos nos n.ºs 1, 3 e 4 e de perigo abstrato na situação do seu n.º 2[6].
Embora os crimes de perigo se caracterizem pela inexistência de uma lesão efetiva, bastando que a conduta do agente seja apta a originar um dano, a verdade é que, em alguns casos, a condução perigosa de veículo rodoviário pode provocar efetivamente uma lesão ou dano (ex: morte; ofensa corporal grave; dano de valor elevado). Nessa situação é, ainda, imprescindível indicar-se se o resultado é imputável ao agente a nível doloso ou negligente (dolo de resultado ou dolo negligente), como mais à frente se explanará.
No respeitante ao tipo objetivo o legislador previu no artigo 291.º do CP dois tipos de condutas suscetíveis de colocar em perigo os bens jurídicos protegidos:
- A falta de condições para conduzir com segurança (estado de embriaguez ou sob influência do álcool; influência de estupefaciente, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo; deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva) – cf. alínea a) do n.º 1 do artigo 291.º do CP aplicável, também às situações dos n.ºs 3 e 4;
- A violação grosseira das regras de circulação rodoviária[7] (violação: das regras de prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em autoestradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita) – cf. alínea b) do n.º 1 do artigo 291.º do CP aplicável, também às situações dos n.ºs 3 e 4.
Assim, tendo em atenção o referido e o teor do artigo 291.º do CP é possível concluir que quanto ao elemento subjetivo: No seu n.º 1 estão previstas as condutas com dolo de ação e dolo de perigo (ou conduta dolosa e criação dolosa de perigo); No n.º 3 as condutas com dolo de ação e negligência de perigo (ou conduta dolosa e criação negligente de perigo); e no n.º 4 as condutas com negligência de ação e negligência de perigo (ou conduta negligente e criação negligente de perigo).
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra[8] o “agente fica (…) sujeito à punição prevista no n.º 1 sempre que a sua conduta seja dolosa, abrangendo o seu dolo a criação do perigo, enquanto o n.º 3 refere-se a condutas dolosas com criação negligente de perigo e o n.º 4 supõe que o agente actue de forma negligente, vindo a causar de forma também negligente o perigo.
(…) na subsunção da conduta do agente a qualquer das formas previstas no tipo legal do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, haverá sempre que distinguir entre a intencionalidade da acção e a intencionalidade, ou falta dela, relativamente ao perigo.
O preenchimento do tipo da alínea b) do n.º 1 do artigo 291.º do CP basta-se com a prática de uma das condutas ali prevista desde que seja possível identificar um concreto perigo para a vida ou a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de elevado valor, independentemente de ocorrer uma lesão para a vida, integridade física ou dano de elevado valor.
No que tange ao tipo subjetivo do n.º 1, do artigo 291.º do CP, como se deixou atrás referenciado, é exigível uma atuação dolosa, da conduta, mas também do perigo, nos termos do artigo 14.º do Código Penal. O dolo exigido é, todavia, o dolo de perigo, traduzido na vontade de criar o evento de perigo e não o do dano consequente. O perigo é a probabilidade ou possibilidade de dano. O agente ao querer criar a situação de perigo tem de admitir a possibilidade de dano, independentemente de este se concretizar.
É pois necessário não confundir o dolo de ação, o dolo de perigo e o dolo de dano ou de resultado[9].
Revertendo ao caso em apreciação resulta encontrar-se preenchido o tipo objetivo do crime, previsto nos n.ºs 1 (e também do n.º 3) do artigo 291.º do CP, atento o teor dos pontos 1. a 7. dos indícios colhidos. A arguida, efetivamente, conduzia um ligeiro de passageiros na EN ... e quando chegou a um entroncamento a fim de mudar de direção, não imobilizou o veículo, como lhe impunha o sinal STOP e a linha contínua de paragem (M8a) rodou o volante para a esquerda e invadiu a faixa de rodagem contrária à do seu sentido de marcha, onde circulava o ofendido CC que, embora tivesse travado, buzinado e efetuado repetidamente sinais de luzes com o seu motociclo não evitou o embate.
Já quanto aos elementos subjetivos do tipo face à factualidade descrita no despacho de pronúncia julga encontrar-se, no caso, indiciariamente apurado o dolo de ação e o dolo de perigo, e por isso preenchido o tipo do n.º 1 do artigo 291.º do CP.
Atente-se ao teor dos pontos 17. (dolo de ação) e 18. (dolo de perigo) dos factos constantes da acusação e considerados indiciados pelo despacho de pronúncia:
“17. A arguida quis efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda pela forma acima descrita, com total desrespeito pelas regras da circulação de veículos automóveis relativas à prioridade e à obrigatoriedade de cedência de passagem e de mudança de direção, que bem conhecia, assim como da obrigatoriedade de acatar tais condutas impostas por lei.
18. A arguida assumiu a conduta acima descrita, de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a mesma era apta a colocar em crise a integridade física e a vida dos demais utilizadores da via, assim como os demais veículos que ali circulavam, bem sabendo que a mesma era proibida e punida pela lei penal.”[10]

Decorre dos factos indiciados ter a arguida atuado a título de dolo de ação, querendo conduzir, nas referidas circunstâncias, sabendo que estava obrigada, antes de mudar de direção, a imobilizar por completo o veículo no sinal STOP não averiguando se o podia fazer em segurança para os demais utentes da via. Ao não adotar a conduta que lhe era imposta violou grosseiramente as regras de condução, sendo a conduta adotada adequada a criar um perigo para a vida ou a integridade física de outrem ou para bens jurídicos alheios de valor elevado.
Tendo a conduta sido praticada de forma dolosa (mudança de direção à esquerda com violação do sinal STOP) e o perigo criado de forma dolosa a um concreto motociclista que seguia na via, resulta indiciada a prática do tipo previsto no n.º 1 e não a do n.º 3, pois neste último caso o perigo teria de ser negligente. Quando, naturalmente, do ponto 18. dos factos indiciados consta que a “arguida assumiu a conduta acima descrita, de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a mesma era apta a colocar em crise a integridade física e a vida dos demais utilizadores da via”, não se pode chegar a outra conclusão que não seja a de a arguida ter atuado com dolo de perigo.
Daí estarem indiciariamente preenchidos todos os elementos do tipo subjetivo do crime de condução perigosa do n.º 1, alínea b) do artigo 291.º do CP.
Questão diferente é a de ter ocorrido um resultado concreto (lesões e danos) derivado desta conduta da arguida.
Quando a conduta (condução perigosa de veículo rodoviário com dolo de ação e dolo de perigo) provocar em concreto a morte ou a ofensa corporal grave de uma ou mais pessoas haverá, ainda, que apurar se o agente agiu com dolo ou negligência quanto a esse resultado. Se o resultado for doloso e o crime cometido se subsumir ao n.º 1, alínea b) do artigo 291.º ocorrerá necessariamente uma situação de concurso entre o crime de condução perigosa e o de homicídio ou ofensa corporal grave. Já se o resultado for negligente verificar-se-á uma agravação da pena abstrata - prevista no artigo 285.º do CP, por força do 294.º, n.º 3 do CP - e não uma situação de concurso aparente ou efetivo[11].
Os indícios apontam no sentido de as ofensas à integridade física grave e os danos provocados no veículo (resultado) terem sido negligentes. Atente-se ao descrito nos pontos 19., 20. e 21. quanto ao resultado provocado:
“19. Ao conduzir pela forma acima descrita a arguida não procedeu com o mais elementar cuidado e diligência a que a obrigava o normal exercício da condução e sem averiguar se podia circular em segurança sem por em perigo a vida e integridade física dos demais utentes daquela via, como veio efetivamente a suceder.
20. Fê-lo de forma desatenta e imperita, sem respeitar as mais elementares normas de segurança rodoviárias e sem adotar as regras comuns de cautela que a via e o tráfego exigiam e de que era capaz.
21. Circulava a arguida, em violação dos comandos legais que lhe eram impostos e de que tinha conhecimento e com violação do especial dever de cuidado que sobre si impendia, enquanto condutora numa via que sabia pública e com tráfego rodoviário intenso.
22. Em consequência de tais condutas da arguida, deu-se o embate acima descrito, embate esse que foi causa direta e adequada das lesões e sequelas sofridas por CC, resultado que a arguida previu como possível, por ter capacidade para tal, mas com o qual não se conformou.”.

Por outras palavras, e sintetizando o atrás referido: a arguida indiciariamente atuou com dolo de ação, dolo de perigo, mas com negligência em relação ao resultado provocado (conduta dolosa e criação dolosa de perigo e resultado negligente).
Deste modo, estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do artigo 291.º do CP e a agravação prevista no artigo 285.º do CP.
Como se depreende da decisão transcrita o Tribunal a quo subsumiu a factualidade indiciariamente apurada no tipo do n.º 3 do artigo 291.º, enquanto o MP pugnou pela subsunção dos factos no n.º 1 do mesmo normativo. É ao MP que assiste razão, pois o resultado negligente (ofensa à integridade física e o dano) não se confunde com a situação de negligência de perigo prevista naquele n.º 3 do artigo 291.º do CP.
Em rigor estamos perante uma conduta da arguida AA cometida sob uma tríplice vertente: conduta dolosa, criação dolosa de perigo e resultado negligente (do n.º 1) e não como propugnado pelo Tribunal recorrido conduta dolosa, criação negligente de perigo e resultado negligente (n.º 3 do artigo 291.º do CP).

3.2.2. Do concurso efetivo de crimes
Em sede de acusação, o MP integrou juridicamente os factos no crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b) do CP e artigo 35.º do CE em concurso efetivo com um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 ex vi artigo 144.º ambos do CP.
O Tribunal a quo, todavia, em sede de integração jurídica daqueles factos, considerou que:
“(…) tendo como assente que a condução da arguida originou ofensas graves à integridade física do ofendido CC, certo é que não se pode nos presentes autos estar perante um crime de condução perigosa de veículo rodoviário nos termos que são imputados pela acusação pública à arguida, uma vez que o resultado ofensa grave à integridade física impõe a agravação prevista no art. 285.º do C.P.. Ora, estabelece o art. 294.º, n.º 3 do C.P. que ao crime previsto no art. 291.º do C.P. aplica-se o disposto nos arts. 285.º e 286.º, ainda que com as agravações previstas nos números anteriores. Por sua vez, preceitua o art. 285.º do C.P. que se do crime (previsto no art. 291.º do C.P.) resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Nos presentes autos resultou como indiciado que a conduta da arguida resultou na ofensa à integridade física grave de CC, ou seja, estando verificados os elementos do tipo do crime em análise tal levaria a agravação dos limites mínimo e máximo da pena aplicável prevista, conforme previsto nos arts. 285.º e 294.º, n.º 3 do C.P.”..

Depois o Tribunal a quo concluiu dever a arguida ser pronunciada pelo tipo de crime dominante correspondente ao crime de ofensas à integridade física grave por negligência, por se tratar do tipo fundamental e consumir o crime de condução perigosa de veículo rodoviário. Acrescentando que “a subsumir-se no crime de condução perigosa sempre o perigo criado fora de modo negligente, pelo que a pena seria de 2 anos agravada de um terço – cf. artigo 291.º, n.º 3 e 285.º, do CP – ou seja, a pena seria inferior à prevista no art. 148.º, n.º 3, do Código Penal, relativo ao crime de ofensa à integridade física grave por negligência que contempla o máximo de 3 anos de prisão.”
Como já se deixou assinalado, no despacho de pronúncia confunde-se o resultado negligente (ofensas corporais graves sofridas pelo ofendido) com a “criação negligente de perigo” prevista no n.º 3 do artigo 291.º do CP.
Acresce ter, ainda, o Tribunal a quo incorrido em manifesto lapso, no tocante à moldura abstrata da pena do crime de ofensa à integridade física por negligência (que não é até 3 anos, mas sim até 2 anos de prisão – artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 ex vi artigo 144.º, alíneas b) e d) e 69.º, n.º 1 alínea b) do CP) enquanto a moldura penal abstrata do crime cometido (condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado – artigos 291.º, n.º 1, alínea b) e 285.º do CP) é de prisão de 40 dias a 4 anos.
Por fim, quanto à questão do concurso, suscitada pela assistente recorrente, é verdade que como no artigo 291.º do CP (condução perigosa) se protege, no essencial, o bem coletivo da segurança rodoviária e no artigo 148.º do CP (ofensa à integridade física) um bem jurídico individual (integridade física), por regra ocorreria concurso efetivo entre estes dois crimes.
Na situação em apreciação, todavia, o arguido sofreu, além de outras, as seguintes lesões e sequelas:
- politraumatismo com TCE grave, evolução de foco de contusão expansivo do lobo temporal esquerdo, com marcado edema e feito de massa loccoregional associado a quadro de hipertensão craniana refratária a medidas médica, com anisocoria; contusão pulmonar, laceração hepática com hemoperitoneu nos abdominais; fratura do rádio e cúbito direito; fratura cominutiva diafasária do fémur direito, luxação de Lysfranc do pé direito; rabdomiólise, choque sético por pneumonia associada a ventilador;
- tetraparésia assimétrica espástica, alterações cognitivo comportamentais, afasia global;”

Tais lesões e sequelas determinaram ao ofendido CC:

“954 dias de doença, com incapacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional até à presente data. As consequências permanentes acima descritas traduzem-se em afetação grave e persistente das capacidades neurocognitivas e motoras do ofendido, com marcado prejuízo do seu desempenho global, condicionando estado de elevada dependência de terceiros para a realização da totalidade das suas atividades de vida diária. Associação com dano estético grave (uso de cadeira de rodas), limitação grave da capacidade de trabalho geral e profissional e limitação grave da capacidade de utilização do seu corpo e linguagem. Face a gravidade da sua situação clínica, envolveu ainda perigo para a vida (aminas?suporte transfusional? traqueostomia? manobras de SBV? manobras de SAV? e suporte ventilatório”.

Daí, no caso, o ofendido ter sofrido, não ofensas à integridade física simples, mas ofensas à integridade física grave.
Quando o resultado da prática de um crime de condução perigosa (artigo 291.º do CP) é uma ofensa corporal grave ou a morte essa situação está expressamente prevista no artigo 285.º do CP (ex vi artigo 294.º, n.º 3 do CP), não se colocando uma questão de concurso efetivo. Por outras palavras, se da conduta, prevista no artigo 291.º, n.º 1, alínea b) do CP, resultar ofensa à integridade física grave por negligência, o agente é punido com a pena que ao caso cabe, agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo, tratando-se de uma situação de agravação da pena, e não de concurso de crimes[12].
Situação distinta seria se o resultado (ofensa corporal grave) tivesse ocorrido a título doloso, pois aí ocorreria concurso efetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário (artigo 291.º, n.º 1, alínea b) do CP) com a ofensa à integridade física grave (artigo 144.º, alínea b) do CP). Nessa situação ocorreria um dolo de ação, um dolo de perigo e um resultado doloso, porquanto o agente teria atuado representando e conformando-se com a lesão grave da integridade física (ex: dolo eventual de resultado), sempre em conjunto, obviamente, com os atos típicos de uma condução perigosa.
Daí a arguida dever ser pronunciada, tão só, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado (artigos 291.º, n.º 1, alínea b), 294.º, n.º 3 e 285.º), pois o resultado é-lhe imputado indiciariamente a nível negligente.

3.2.3. Do crime de dano
Quanto aos danos, a questão, do ponto de vista jurídico-criminal, é prejudicada pela existência de uma ofensa à integridade física grave.
Desde logo, não existindo “resultado doloso”, mas tão só “resultado negligente” e sendo o crime de dano um crime doloso (o dano negligente não é punido), não ocorre concurso efetivo entre a condução perigosa e o crime de dano. Por outras palavras, não existe crime de dano praticado por negligência.
Depois, o crime de condução perigosa está desde logo preenchido (é aí que opera o dolo de perigo) pela simples existência de ofensa à integridade física, sendo irrelevante saber se foi, ou não, também criado perigo para “bens patrimoniais alheios de valor elevado” (artigo 291.º, n.º 1 do CP). Daí mostrar-se criminalmente irrelevante determinar o concreto valor dos danos patrimoniais causados pela conduta da arguida.
Face aos factos indiciados a arguida é pronunciada não pelo crime de ofensa à integridade física negligente, mas de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelo artigo 291.º, n.º 3, alínea b), agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 294.º, n.º 3 e 285.º do CP, que esgota no seu escopo a relevância penal daqueles factos, assumindo-se como tipo agregador da tutela dos bens jurídicos postos em causa pela conduta da arguida.
O recurso é, pois, de proceder na exata medida assinalada dando-se parcial provimento ao recurso interposto pela assistente, embora por fundamento distinto, revogando-se a decisão proferida substituindo-se por outra, pronunciando-se a arguida pelos factos já dados como suficientemente indiciados pelo Tribunal a quo, integradores de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido, pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 294.º, n.º 3 e 285.º todos do CP.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Concede-se provimento parcial ao recurso interposto pelo assistente, embora por fundamento diverso, coincidente com o constante da resposta do MP, revogando-se o despacho recorrido pronunciando-se a arguida pela prática de um crime de condução perigosa do artigo 291.º, n.º 1, alínea b) agravado pelo resultado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 294.º, n.º 3 e 285.º todos do CP.
2. Sem custas
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 10 de janeiro de 2023.

Beatriz Marques Borges - Relatora
João Carrola
Maria Leonor Esteves
____________________
[1] Solteira, engenheira, filha de HH e de II, nascida em .../.../1991, natural de ..., ..., de nacionalidade ... e ..., portadora do passaporte n.º...31, emitido a 17/07/2016, pela ..., residente na Av.ª ..., ..., ....
[2] Sublinhado e negrito nosso.
[3] DIAS, Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª Edição, págs. 308 e 309.
[4] Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 1022. ISBN 978-972-54-0489-8.
[5] Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 1022. ISBN 978-972-54-0489-8.
[6] Cf. ALBUQUERQUE, ob. cit. P. 1022.
[7] DIAS, Jorge Figueiredo (direção) – “Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial: artigos 200.º a 307.º. Tomo II. Coimbra Editora. 1999. P. 1080. ISBN 972-32-0853-5.
[8] Cf. Acórdão de 20.4.2016 do TR Coimbra proferido no P. 326/13.3GCTND.C1 e relatado por Fernando Chaves.
[9] ALBUQUERQUE, ob. cit. P. 964.
[10] Sublinhado e negrito nosso.
[11] Cf. neste sentido DIAS, Jorge Figueiredo (direção) – “Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial: artigos 200.º a 307.º. Tomo II. Coimbra Editora. 1999. Pags. 1091 e 1032. ISBN 972-32-0853-5.
[12] Neste mesmo sentido cf. DIAS, Figueiredo ob. cit., P. 1091.
[13] Já não naturalmente a nível civil.