Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
652/06.8JAFAR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA MÉDICA
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – Só existe negligência quando a conduta do agente se traduza na criação de um risco não permitido, previsível ou cognoscível para o mesmo, e desde que se estabeleça a relevância desse comportamento, isto é, quando se verifica um resultado danoso mediante a concretização e actualização de tal risco.
II – Se o resultado - morte de doente assistido pela arguida - se tivesse produzido ainda que tivessem sido observados todos os cuidados médicos devidos, não pode concluir-se pela negligência daquela.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 652/06.8JAFAR.E1

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 652/06.8JAFAR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, veio o Ministério Público recorrer do despacho que não pronunciou a arguida A.
Entende o Ministério Público que estão indiciados nos autos factos que integram a prática pela arguida de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal.
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Apresenta as seguintes (transcritas) conclusões, extraídas da motivação do recurso:
“I - Em nosso entendimento, com o devido respeito, a Mª JIC encarou a problemática numa perspectiva errada. Limitou-se a especular acerca da eventual cura clínica do ofendido esquecendo o que realmente interessava; apurar se o resultado morte era uma consequência normal e previsível da conduta descuida da arguida e se o dever violado era o adequado a evitar esse resultado.
II - Como claramente resulta do despacho de não pronúncia e do parecer elaborado pelo Conselho de Médico-Legal (secundado e devidamente esclarecido pelo seu subscritor) a arguida violou um dever de cuidado que se lhe impunha observar.
III - Logo, de acordo com as noções gerais da punibilidade da negligência (no que concerne à imputação do resultado), depois de ter chegado a esta conclusão, o que se impunha era demonstrar, ou não, se o resultado morte que veio a ocorrer era uma consequência previsível, típica, normal, dessa violação e se o dever omitido era o adequado a evitar esse resultado.
IV - Porém, nada disso foi feito no despacho de não pronúncia.
V - A Mº JIC, com o devido respeito, como acima dissemos, limitou-se a especular acerca da eventual cura clínica do ofendido (como factor determinante da punibilidade), analisando uma série de imponderáveis de molde a justificar a incerteza quanto à verificação de tal estado.
VI - Porém, em nosso entendimento, não são, nem podem ser, factores desconhecidos e imponderáveis que determinam a responsabilidade penal da arguida.
VII - A ser assim, e a levar às últimas consequências a tese do despacho recorrido, a punição pela negligência médica tinha acabado em Portugal.
VIII - A Mª JIC ao invés de procurar justificar a eventual possibilidade de cura clínica do ofendido, deveria ter procurado procurar demonstrar se a conduta da arguida era ou não a adequada a evitar o resultado morte e se esse resultado era ou não uma consequência previsível da violação do dever objectivo de cuidado que considerou, e bem, existir.
IX - Obviamente que a cura clínica, devido aos imponderáveis por nós apontados e pelos referidos no despacho de não pronúncia, nunca se poderia, em concreto, demonstrar, mas isso não poderá significar o afastamento da punição da negligência.
X - Por outro lado, consta do despacho recorrido que “não obstante na acusação se refira que a arguida não dispensou o tratamento adequado e que poderia resultar na cura clínica das lesões, tal não resulta minimamente demonstrado de toda a prova reunida” uma vez que a conduta negligente se situa somente ao nível do diagnóstico.
XI - Porém, tal conclusão é que não tem a mínima correspondência com o que consta dos autos.
XII - Na acusação, limitamo-nos a afirmar que se a arguida tivesse actuado como se impunha, diagnosticando atempadamente as lesões, isso, normalmente, implicaria a cura clinica dessas mesmas lesões.
XIII - Em lado algum afirmámos, nem o poderíamos fazer, que o ofendido ficaria curado, dissemos, isso sim (como impõem os requisitos da imputação do resultado), que normalmente (previsivelmente, tipicamente), isso viria a suceder.
XIV - E proferimos tal afirmação apoiados em sólidos elementos de prova, desde logo no parecer do Conselho Médfico-Legal onde se pode ler: “sublinhe-se que o hematoma epidural agudo é uma situação clínica que, quando diagnosticada a tempo, resulta na maioria das situações na cura clínica” (sublinhado nosso).
XV - De igual forma, tal conclusão resulta clara e inequívoca das declarações proferidas em sede de instrução pelo subscritor do referido parecer.
XVI - Aliás surpreendentemente, a Mª JIC acaba por se contradizer com o que anteriormente havia dito no seu despacho, fls. 869, onde se pode ler: “também do parecer médico-legal bem como dos esclarecimentos prestado pelo Sr. Perito que o elaborou, Dr. B, resulta que a causa de morte de C poderia ter sido evitada se tivesse sido efectuada uma TAC em tempo útil (…). Efectivamente, existem vários elementos do processo que realmente indiciam tal”.
XVII - Parece-nos pois evidente, que existem (e fortes) meios de prova que indiciam claramente que um diagnóstico atempado significa, em situações normais, a cura clínica das lesões que o ofendido apresentava.
XVIII - Ora, esta conclusão implica, desde logo, a verificação do nexo de causalidade afastado no despacho recorrido. Na medida em que da mesma resulta claramente que a morte se ficou a dever à falha de diagnóstico e que o comportamento omitido pela arguida era o adequado a evitar tal resultado, sendo as restantes, eventuais, vicissitudes posteriores irrelevantes em termos de punição do crime.
XIX - Acresce que, o facto de não ser a arguida a efectuar a intervenção que se impunha, não poderá afastar tal conclusão, pois também não seria ela quem iria conduzir a ambulância ou o pilotar o helicóptero, ou transportar a maca etc.. Mais uma vez estamos a chamar à colação imponderáveis que não podem nem devem ser tidos em consideração, para efeitos de verificação da incriminação em apreço.
XX - Neste sentido atente-se aos doutos ensinamentos constantes do Ac. da Relação do Porto, de 12/11/2008, “É (…) de imputar o resultado morte á conduta negligente do médico, que não apenas não observou as normas de cuidado que lhe eram exigidas enquanto tal, como violou as regras legais, profissionais, e da experiência médica, sendo que o mesmo tem capacidade para observar tais regras, deveres e normas, sendo que a inobservância dos “cuidados” adequados (…) abrangeu tanto o diagnóstico, como a prevenção e a “indicação médica” ou seja o tratamento idóneo / adequado (segundo os conhecimento e experiências da medicina) e a realização segundo as legis artis.
XXI - Também o Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed. Coimbra ed. 2007, pag. 335, perfilha igual entendimento quando escreve: “Sucede muitas vezes que, na situação, já está criado, antes da actuação do agente, um risco que ameaça o bem jurídico protegido. Não obstante, o resultado será ainda imputável ao agente se este, com a sua conduta, aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando, em consequência, a situação do bem jurídico ameaçado. São objectivamente imputáveis, por conseguinte, condutas como a daquele que dá a morte a um paciente já moribundo, ou agrava o estado corporal de um doente…” (sublinhado nosso).
XXII - Para além disso, entendemos, conforme resulta da prova produzida nos autos, que se a arguida tivesse determinado a realização da TAC aquando da sua primeira observação do ofendido, como poderia e deveria ter acontecido (vide declarações do Ex. mo Sr. Dr. B) e diagnosticado a lesão que o ofendido sofria, isso, em condições normais, importaria a sua cura clínica (mesmo que a operação que se impunha somente pudesse ser realizada em Lisboa).
XXIII - Pelo exposto, em nosso entendimento existem nos autos indícios suficientes do cometimento por parte da arguida do crime pelo qual vinha acusada, violando a Meritíssima Juíza de instrução, ao assim não entender o disposto nos arts. 137.º, n.º 1, 10.º, ambos do C. Penal e 308.º, n.º 1, do C. Processo Penal.
XXIV - Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie a arguida pela prática do crime pelo qual foi acusada”.
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A arguida respondeu ao recurso, no sentido de ser negado provimento ao mesmo e mantida a decisão recorrida, e apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:
“I. Não resulta dos autos que a arguida tivesse qualquer informação sobre o que de concreto ocorreu com o C antes da sua entrada no Hospital, nomeadamente até que horas esteve a consumir álcool, se se envolveu nalguma escaramuça ou sequer que tenha estado bem e que a sua situação só se tenha agravado mais tarde.
II. Assim como não resulta que o pai do C tivesse também ele esse tipo de informação.
III. O que ressalta é que a arguida falou com o pai do C, que nada lhe confirmou. Facto que foi anotado na ficha clínica.
IV. Resulta da natureza das coisas que se o pai do C tivesse dado qualquer outra informação a arguida tê-la-ia escrito, como fez relativamente ao que lhe foi transmitido.
V. Tendo em atenção as informações fornecidas, os sinais e sintomas apresentados e, bem assim, os exames toxicológicos disponíveis no Hospital de Faro à data dos factos, resulta claramente dos autos que o quadro clínico apresentado não correspondia ao de um hematoma extradural agudo, por se verificar midríase bilateral, passível de se relacionar com a ingestão de drogas e da documentada presença de marijuana e por não haver assimetria motora (veja-se o parecer do Colégio da Especialidade de Neurocirurgia da Ordem dos Médicos, a fls. 113 do Anexo I aos autos).
VI. O Colégio da Especialidade de Neurologia da Ordem dos Médicos (fls. 107 do Anexo I) refere que o quadro clínico apresentado não é típico de hematoma epidural, não só por não haver referências a traumatismos, como também por não haver qualquer menção a cefaleias, vómitos ou hemiparésia.
VII. O Colégio da Especialidade de Neurologia conclui ainda que “o quadro de disfunção encefálica difusa de grande prostração é compatível com intoxicação alcoólica” (fls. 108 do Anexo I).
VIII. Questionado também este Colégio da Especialidade de Neurologia sobre se, perante o quadro clínico apresentado deveria ter sido pedida de início uma TAC crâneoencefálica, a resposta é clara: “perante a informação recolhida e sintomatologia apresentada admite-se que o diagnóstico inicial fosse de intoxicação alcoólica. Uma história actual mais precisa, fazendo admitir um intervalo livre, colocaria a indicação de TAC. Nos documentos fornecidos não há indicação que esses elementos existissem nos documentos de entrada.” (fls. 108 do Anexo I).
IX. Mais, o Colégio de Neurocirurgia da Ordem dos Médicos, a fls. 113, em resposta à pergunta se perante o quadro clínico constatado pela arguida deveria ter sido pedida de início uma TAC crânio-encefálica, responde: “Da análise do processo de averiguações considera-se que a TAC foi pedida no momento adequado para o bom esclarecimento da situação clínica.
X. Deste modo, jamais poderia concluir-se que a arguida tinha a obrigação de determinar a realização de uma TAC aquando da primeira observação que fez do doente, pois para tanto não tinha elementos que a conduzissem a essa conclusão.
XI. Ao caso concreto, a escassez de informação que a arguida detinha atrasou significativamente o diagnóstico.
XII. Não obstante, tal atraso não foi determinante para a morte do C.
XIII. De acordo com os esclarecimentos do Prof. B, quando o doente apresenta midríase bilateral arreactiva o prognóstico é muito mau e, se associarmos a paragem respiratória, as probabilidades do doente se curar são próximas de zero.
XIV. E é certo que às 14h o C estava em paragem respiratória e com midríase bilateral arreactiva, o que na prática significa que a probabilidade de se curar era praticamente nula.
XV. Ora, se, como diz a Mmª Juiz a quo, o agravamento do estado de saúde do C é detectado por volta do meio-dia, ainda que tivesse sido feito uma TAC de imediato, não haveria qualquer possibilidade de o C se salvar na medida em que teria sempre de ser conduzido a Lisboa para poder ser intervencionado, o que levaria a que a paragem respiratória ocorresse no caminho, atenta a evolução que se verificou e que seguramente não sofreria alterações significativas.
XVI. Na verdade e como diz o Prof. B, a única possibilidade de se obter a cura consistia na realização imediata da necessária cirurgia, o que não era possível por não haver urgência de neurocirurgia no Hospital de Faro.
XVII. Note-se ainda que mesmo que a arguida tivesse pedido uma TAC logo da primeira vez que observou o C, o resultado seria em tudo idêntico, apenas diferindo o local do caminho para Lisboa onde o C estaria quando ocorresse a paragem respiratória, pois o transporte tem uma duração de cerca de 3 horas.
XVIII. Ou seja, não pode ser imputada qualquer responsabilidade à ora arguida, mas à agressão de que o C foi vítima, às drogas e ao álcool, que conduziram a um diagnóstico que se revelou incorrecto, à falta de informação prestada ao INEM e à arguida e ao facto de não existir neurocirurgia na Urgência do Hospital de Faro no dia em causa.
XIX. É doutrina assente que o dever cuja violação a negligência supõe consiste em o agente não ter usado a diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento, dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum.
XX. Como se viu, a arguida usou a diligência que lhe era exigida, pois não tinha conhecimento de elementos fácticos que pudessem apontar num sentido diferente daquele que seguiu: o estado do C à entrada no Hospital de Faro era compatível com uma intoxicação alcoólica.
XXI. Mas, ainda que assim não se entendesse, o que só por mera cautela de patrocínio se concebe, não é possível imputar objectivamente à conduta da arguida o resultado morte.
XXII. Determinante para a imputação objectiva a um arguido de conduta com relevo penal, em consequência de um aumento do risco permitido em que tenha incorrido, é saber se esse risco, da forma como se manifestou, era adequado a concretizar, o resultado típico.
XXIII. A imputação objectiva é determinante para apurar a responsabilidade criminal, sendo necessário que se possa concluir que aquele resultado aconteceu provocado pela conduta do agente, ou seja, que tinha sido pelo facto do agente ter incumprido as regras de cuidado e só por esse motivo que a lesão da vítima aconteceu.
XXIV. Neste âmbito, perante a prova recolhida, o resultado que veio a ocorrer era insusceptível de ser afastado face às circunstâncias concretas, pois no Hospital de Faro não havia, no dia em que o C deu entrada na urgência, especialistas de neurocirurgia, o que sempre implicava a deslocação do doente para Lisboa.
XXV. Nesta situação a existência de um nexo de causalidade não se estabeleceu, nem é possível estabelecer, face aos factos apurados.
XXVI. A adequação da acção à verificação do resultado típico tem de referir-se não apenas ao resultado, mas a todo o "processo causal", de modo que a intervenção dolosa ou negligente de terceiro é susceptível de quebrar o nexo causal, tornando o processo "atípico", com a consequente impossibilidade de imputação objectiva do resultado ao agente.
XXVII. Todavia, ao caso qualquer intervenção da arguida no tratamento do C em Faro não teve, nem era apta a ter, qualquer interferência no processo causal, pois mesmo que o doente tivesse sido encaminhado para Lisboa logo após a primeira observação a que foi sujeito, a morte teria certamente ocorrido.
Ou seja, quer pela prova produzida quer por via da aplicação do princípio “in dubio pro reo” à arguida, não se verificam os pressupostos necessários para que, com grande probabilidade, possa vir a ser aplicada uma pena à arguida em sede de julgamento.
Consequentemente, impõe-se a manutenção do despacho de não pronúncia.
Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser indeferido o recurso interposto”.
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Neste Tribunal da Relação, aquando da vista a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, louvando-se, no essencial, na argumentação expendida pelo Digno Magistrado do Ministério Público na motivação do recurso, que sufragou, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

Em apertada síntese, são duas as questões que vêm suscitadas no presente recurso:
1ª - Saber se a arguida omitiu, no caso concreto, alguma diligência, segundo a “leges artis”.
2ª - Avaliar se, em resultado dessa omissão, sobreveio o resultado (morte).

2 - A decisão recorrida.

O despacho recorrido é do seguinte teor (integral):
“Declaro encerrada a instrução.
A fls. 633 e ss, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida A, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido nos termos do art.º 137º do Código Penal, com os fundamentos de facto e de direito aí constantes.
Não se conformando com a acusação contra si deduzida, veio a arguida requerer a abertura da instrução, nos termos constantes de fls. 701 e ss., que aqui se dão por integralmente reproduzidos, propugnando pela sua não pronúncia.
No decurso da instrução, procedeu-se à reinquirição e inquirição de várias testemunhas bem como à tomada de esclarecimentos a Perito médico, estando os seus depoimentos registados através de sistema integrado de gravação em uso neste tribunal.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, em cumprimento do preceituado nos artigos 297.º e seguintes do Código de Processo Penal.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.
A arguida tem legitimidade para requerer a abertura da instrução.
Não existem quaisquer nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
Cumpre, agora, proferir decisão instrutória que será de pronúncia ou de não pronúncia, conforme o juízo que se faça sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios de verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena.
Cumpre, pois, em primeiro lugar, proceder a uma breve análise dos fins a que se destina esta fase processual.
Resulta do artigo 286º, n.º1, do Código de Processo Penal, que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Trata-se, portanto, de uma fase facultativa, em que é exercido um controle jurisdicional sobre a decisão que pôs termo ao inquérito.
Ou melhor: a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar o inquérito, proferida pelo Ministério Público, no final daquele.
Trata-se de uma fase iniciada sob impulso do arguido ou do assistente, dirigida por um juiz, composta por uma série de actos instrutórios que o juiz considere necessários (artigo 290.º n.º 1 do CPP) e, obrigatoriamente, por um debate instrutório (artigo 297.º do CPP), com o seu termo assinalado por uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia.
Quanto à decisão instrutória a proferir, preceitua o artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”
Segundo o art. 283º, nº 2 do Código de Processo Penal, para onde remete o art.º 308º, nº 2, do mesmo Código “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
Esta fase processual não tem por objectivo alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas apenas apurar se existem ou não “indícios suficientes” de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.
De facto, finda a instrução, a decisão de pronunciar tem na sua génese um juízo sobre os elementos colhidos nos autos, sobre o conjunto da prova indiciária.
Tudo se resume ao conjunto de indícios dos quais possa resultar uma possibilidade razoável de ao arguida vir a ser aplicada, por forma deles, em julgamento, uma pena.
O que entender então pela referência legal a “indícios suficientes”?
Temos para nós que a interpretação de tal conceito se há-de fazer à luz do elemento histórico, tendo presentes os princípios estruturantes do processual penal, nomeadamente, o princípio “in dubio pro reo”.
A referência do art.º 283º, nº 3 do Código Processo Penal de 1987 surge na sequência do entendimento, doutrinal e jurisprudencial, que já advinha de expressão idêntica contemplada nos art. 349º, 354º, § 1 e 368º, de “fortes indícios” do art. 291.º, § 1 ou mesmo de “indícios bastantes de culpabilidade” do art. 362º, todos do Código Processo Penal de 1929.
Entendia-se, então, que constituíam indícios suficientes para a pronúncia aqueles que, relacionados e conjugados, persuadiam da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que viria a ser condenado.
Precisou-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 1963/Jun./26 (J. R. III/777) que “Por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer que há crime e é o arguido responsável por ele”, anotando-se, no entanto, que “para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser bastantes e suficientes, por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado”.
Alertava-se ainda para o facto de que os arguidos não deveriam ser submetidos a “vexames e despesas inúteis”.
Dizia Castanheira Neves que “na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final”, dando conta que na suficiência de prova “não se trata de aceitar uma grau menor de comprovação, uma mera presunção ou probabilidade insegura … antes se impõe também aqui uma comprovação acabada e objectiva”.
Pois bem.
Tendo presente o elemento histórico, o entendimento doutrinário e jurisprudencial atrás exposto, devemos entender, como aliás o vem fazendo a jurisprudência, que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa, em que “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido”, sendo os indícios suficientes quando haja “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Dito por outras palavras, “Não se exigindo a certeza – a certeza processual para além de toda a dúvida razoável - que tem de preceder um juízo condenatório, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.”
E isto porque “A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não for mesmo, em certos casos, um vexame.” (Ac. do STJ de 28/06/2006, in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Germano Marques da Silva, “nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão-só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”.
Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só pode pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” (cfr. Curso de Processo Penal, Volume III, Lisboa, 2.ª Edição, p. 178 a 179).
E, ainda com maior grau de exigência, acentua Carlos Adérito, in “Indícios Suficientes: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação”, Revista CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, Almedina, p. 180, que “apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou da possibilidade elevada de condenação, a integrar no segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção da inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo”.
Face ao exposto, no culminar da fase de instrução, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases:
a) A 1ª, de um juízo de indiciação da prática de um crime, ou seja, a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada;
b) Uma 2ª, de juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse (s) facto (s) criminoso (s) ao arguido;
c) Uma última, de juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir, que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento.
1 – Das Diligências Realizadas em Fase de Inquérito e Instrução
A) Foi interrogado a arguida.
- A (fls. 497 a 500) que declarou que foi cerca das 11:00 horas que teve conhecimento do doente, que tinha entrado na urgência do HDF com intoxicação alcoólica e suspeita de consumo do MDA (ecstasy), tendo sido atendido nos dez minutos após a triagem. O doente encontrava-se sozinho, sendo que na triagem foi-lhe medida a temperatura (37º) e a glicemia (179), apresentando-se semi-inconsciente, com midríase bilateral arreactiva, mexendo os quatro membros e apresentando-se resistente e agressivo às tentativas de observação. Apresentava-se hemodinamicamente estável, com tensão arterial de 140/70 e com uma escoriação de cerca de 0,5 cm na testa e sem qualquer sinal de traumatismo ou hematomas. Segundo a arguida quer o álcool quer o ecstasy são drogas depressoras do sistema nervoso central que produzem importante midriase bilateral, efeito que pode ser potenciado com a adição de outras drogas. Foram solicitadas análises ao sangue e pedidas análises à urina, sendo que à data não era possível efectuar análises ao álcool no sangue. Foi prescrita medicação para evitar o vómito e para aumentar a velocidade de metabolização do álcool, sendo dada indicação de dieta zero e determinada a algaliação. Cerca das 11:30/11:45 horas conversou com o pai do João Dias que confirmou a ingestão de álcool e desconhecimento sobre o consumo de qualquer outra droga. Entre as 12:00 e as 12:15 horas falou com um indivíduo de sexo masculino que se identificou como irmão do doente e que confirmou a ingestão de álcool por parte daquele bem como confirmou a ingestão que havia consumido outras substâncias que não precisou. Entre as 12:15 e as 12:30 observou novamente o doente e verificou que apresentava 38,6º de febre sendo negativa a observação aos sinais meníngeos. Nessa altura o doente já se encontrava inconsciente, sem falar e não apresentava resistência. Foi então que falou com a E, especialista de neurologia a quem pediu a avaliação do doente, sendo que, nessa sequência, pediu um TAC craneo-encefálico, o que sucedeu cerca das 12:30 horas. Entre as 12:30 e as 13:00 horas também falou com a Dr. F, que se encontrava na sala de directos, e esta também foi da opinião de ser solicitada a TAC. Mais tarde falou com os pais, uma vez que foi informada que a mãe do doente tinha chegado e explicou que a situação tinha piorado e que já tinha pedido a avaliação pela neurologia e um TAC-EC. Cerca das 14 horas, quando o doente estava à porta da sala de directos, fez paragem cardio-respiratoria, tendo entrado para a sala onde foi reanimado e ventilado pela Dr.ª F. Enquanto prestou assistência ao doente o resultado do TAC não chegou, o que só ocorreu depois. Explicou que o procedimento normal de solicitação desse exame era colocar a requisição numa caixa própria para o efeito e aguardar que alguém recolha tal requisição e o exame realizado, tendo sempre carácter de urgente. Esclareceu que o facto de constar dos registos clínicos que o estado do doente não ser completamente atribuível ao álcool foi por si entendido como se tal estado também estivesse associado ao consumo de estupefacientes. Acrescentou ainda que apenas teve o doente a seu cargo até as 13:20 horas, hora em que o deixou junto à entrada da sala de directos, sendo que antes o observou juntamente com a colega da medicina interna, dando-lhe conta da situação, bem como adoptou igual procedimento com a colega da neurologia, tendo o doente ficado a aguardar a realização da TAC.
B) Foram inquiridas as testemunhas:
I. G, tendo prestado as declarações constantes de fls. 52 a 54 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, sendo que com particular relevância declarou que na madrugada de 8 de Dezembro de 2006 o falecido C se havia envolvido em confronto físico com outros rapazes. Reinquirido prestou as declarações vertidas no auto de fls. 218 bem como a fls. 297 e 298.
II. H, tendo prestado as declarações constantes de fls. 56 a 58 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, sendo que com particular relevância declarou que na madrugada de 8 de Dezembro de 2006 o falecido C se havia envolvido em confronto físico com outros rapazes e que um deles desferiu um murro na sua cabeça, no lado esquerdo, sendo que, posteriormente, se apercebeu que ele apresentava um inchaço, tipo “caroçozinho” nessa zona, tendo verbalizado que lhe doía a cabeça. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 264 e 265.
III. I, tendo prestado as declarações constantes de fls. 75 a 77 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Com particular relevância a testemunha referiu que quando se dirigia com o C para o local, comum, de trabalho este referiu que queria vomitar, tendo despido a roupa e ficado apenas com as calças. Depois deixou de falar apenas fazendo sons guturais. Ainda viu a vomitar e voltaram para Faro, onde o pai do C se encontrou com eles e chamou a ambulância. nessa noite e na sua companhia, o C havia ingerido várias bebidas alcoólica e fumado dois charros de haxixe. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 299 e 300.
IV. J tendo prestado as declarações constantes de fls. 79 e 80 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 264 e 265. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 269.
V. K, (tendo prestado as declarações constantes de fls. 81 a 83, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Com particular relevância a testemunha declarou quer houve um momento em que o C se afastou do local onde ela se encontrava com os outros amigos e que quando regressou disse-lhe que tinha andado à porrada com uns moços, mas pedindo-lhe que não comentasse tal com os demais, sendo que o mesmo se encontrava alcoolizado. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 301 e 302.
VI. L tendo prestado as declarações constantes de fls. 84 e 85, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Com particular relevância a testemunha declarou que esteve com C na madrugada de 8 de Dezembro e que este comentou que tinha levado um murro na cabeça, ao que pensa no lado direito, sendo que não visualizou quaisquer marcas dessa agressão. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 266.
VII. M, tendo prestado as declarações constantes de fls. 86 a 87 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Com particular relevância, declarou que passadas duas ou três horas do C ter ido para o hospital, de ambulância, deslocou-se até lá, com o seu amigo N, onde após ter forçado a entrada observou que o C se encontrava no corredor, numa maca, com a mesma roupa vestida, e sem ninguém ao pé dele. após ter efectuado algum barulho, apareceram duas enfermeiras e um médico que levaram o C para dentre de uma sala. A testemunha foi reinquirida e prestou as declarações de fls. 267.
VIII. O tendo prestado as declarações constantes de fls. 88 a 89 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, sendo que, com particular relevância apenas declarou que esteve com o C na noite de 7 de Dezembro e madrugada de dia 8 e que viu que este ingeriu várias bebidas alcoólicas.
IX. P tendo prestado as declarações constantes de fls. 90 a 91 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, sendo que com particular relevância a testemunha declarou ter visualizado o falecido João dias envolvido numa discussão com outros jovens, sendo que um deles lhe deu um murro na cabeça. Posteriormente, a testemunha foi reinquirida e prestou as declarações vertidas no auto de fls. 216 e 217 bem como no auto de fls. 355 a 356.
X. N tendo prestado as declarações constantes de fls. 95 e 96 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Com particular relevância a testemunha declarou que se dirigiu ao Hospital de Faro, na manhã de 8 de Dezembro a fim de saber do seu estado. Tendo estado com ele depois da hora de almoço, viu que ele estava deitado numa maca, num corredor, encontrando-se a soro e como que a dormir, embora de vez em quando mexesse o pescoço. Estava com ele havia cerca de um minuto quando ele começou a espumar pelo que pediu ajuda e vindo então pessoal do hospital. Referiu ainda que o C apresentava um pequeno arranhão na testa, quase a meio, com cerca de um cm de comprimento.
XI. Q, tendo prestado as declarações constantes de fls. 97 e 98 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XII. R, tendo prestado as declarações constantes de fls. 99 e 100 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XIII. S, tendo prestado as declarações constantes de fls. 102 e 103 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XIV. T tendo prestado as declarações constantes de fls. 104 e 105 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XV. U tendo prestado as declarações constantes de fls. 106 e 107 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XVI. V tendo prestado as declarações constantes de fls. 108 e 109 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XVII. W tendo prestado as declarações constantes de fls. 110 a 111 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XVIII. X tendo prestado as declarações constantes de fls. 112 a 113 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XIX. Y tendo prestado as declarações constantes de fls. 120 a 121 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XX. Z tendo prestado as declarações constantes de fls. 122 a 123 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXI. AA tendo prestado as declarações constantes de fls. 143 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXII. BB tendo prestado as declarações constantes de fls. 104 e 105 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXIII. CC tendo prestado as declarações constantes de fls. 104 e 105 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXIV. DD tendo prestado as declarações constantes de fls. 148 e 149 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. segundo a testemunha, viu o C quando este chegou com o I ao local de trabalho, sendo que ele se encontrava no interior da carrinha, inconsciente e não conseguindo falar, sendo que viu vestígios dele ter vomitado.
XXV. EE tendo prestado as declarações constantes de fls. 166 e 167 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXVI. FF tendo prestado as declarações constantes de fls. 170 e 171 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
XXVII. F tendo prestado as declarações constantes de fls. 170 e 171 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Com particular relevância resulta que a testemunha exercia funções de médica na especialidade de medicina interna no HDF no dia dos factos, confirmando as declarações que prestou no âmbito do processo de averiguações anexo aos presentes autos, com excepção do facto de aí constar que o doente se encontrava em paragem cardio-respiratoria, porque o doente encontrava-se efectivamente em paragem respiratória, como consta de fls. 226. Esclareceu ainda que foi contactada pela primeira vez acerca da situação por uma colega, tendo logo sugerido a realização de uma TAC. No anexo I, que contem cópia do processo de averiguações, constam a fls. 56 e 58 as declarações prestadas por esta testemunha. Naquela sede a testemunha declarou que falou informalmente com a Dr. A sobre o doente, seriam entre as 12:00 e as 13:00 horas, e que se tratava de uma situação de ingestão de álcool e droga, sendo que o doente se encontrava semi-inconsciente e mobilizava os membros, tendo aconselhado a realização de uma TAC crâneo-encefálica. Entretanto voltou a passar pelo serviço de urgência e apercebeu-se que o doente estava com cianose facial e empurrou a maca, chamando por ajuda, levando-o para a sala de directos onde constatou a paragem respiratória, pelo que procedeu a entubação orotraqueal e à conexão a prótese ventilatória. Quando solicitada pela família para prestar informações colheu informações de que doente na noite anterior havia ingerido excessivamente álcool, e teria havido ingestão posterior de droga, ecstasy, não havendo informação de traumatismo craniano ou sinais externos de violência física. Perante o quadro clínico e suspeita de intoxicação por drogas, contactou o Centro de Intoxicações para saber quais os efeitos da droga e qual a abordagem, sendo que como o doente apresentava midríase, hipertemia e taquicardia, sinais compatíveis com a suposta intoxicação, procedeu às medidas terapêuticas e de suporte indicadas e que constam do processo clínico, tendo sido também solicitadas análises toxicológicas à urina. Enquanto aguardava a realização do TAC manteve-se o mesmo nível de consciência. Quando acompanhou o doente ao serviço de radiologia as imagens que observou e que eram sugestivas de hematoma epidural, determinaram o contacto imediato com a Dr.ª E, que já tinha conhecimento do doente, e depois houve contacto com o serviço de Neurocirurgia do Hospital de São José, tendo sido dada autorização de transferência àquela. Posteriormente, e ainda no âmbito do processo de averiguações, declarou que o doente se encontrava no corredor ao lado da sala de directos para onde foi levado após a paragem cardiorespiratória.
XXVIII. GG, enfermeiro no HDF e que confirmou as declarações que prestou no processo de averiguações e que constam no Anexo I. Segundo se recorda no dia abandonou o serviço entre as 15:00 e as 16:00, hora em que o doente ainda se encontrava na sala de directos. Confirma ter sido o autor do registo de fls. 12 do anexo I e que os exames aí referidos foram realizados aproximadamente na hora que consta do referido registo (vide auto de fls. 423). De atentar que da análise do Anexo I resulta que os registos a que a testemunha fez alusão são os constantes a fls. 20. Como resulta das declarações prestadas pela testemunha no processo de averiguações (vide fls. 71), o mesmo declarou que quando efectuou a avaliação inicial o doente já se encontrava com entubação endotraqueal e ventilação assistida, o que terá ocorrido na sala de directos durante a sua hora de almoço. Durante o seu turno e cerca das 15:00 horas efectuou nova avaliação, confirmando os registos dos sinais vitais às 15:00 horas, mantendo-se o estado neurológico do doente. Confirmou a realização de exames ao doente e cumpriu a terapêutica prescrita. Entre as 15:30 e as 16:00 fez a passagem de turno, sendo que referiu que o doente aguardava a realização de TAC.
XXIX. HH, tendo prestado as declarações constantes de fls. 424 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. De particular relevância a testemunha apenas reconheceu como sendo a autora das observações realizadas ao doente às 17:30 e 18:00 horas e constantes do registo de enfermagem de fls. 13 do Anexo I. Compulsado o Anexo I verifica-se que os registos a que a testemunha aludiu como sendo os por si efectuados são os constantes de fls. 21.
XXX. E, tendo prestado as declarações de fls. 517. A testemunha, que é médica na especialidade de neurologia, confirmou as declarações prestadas no processo de averiguações em apenso e esclareceu que a colega de balcão a informou sobre a situação do doente, tendo-a orientado para pedir um TAC, aguardar pelo resultado das análises e que à posteriori observaria o doente. Do teor de fls. 54 e 55 do anexo I, verifica-se que no âmbito do processo de averiguações a testemunha declarou que foi a Dr.ª F que lhe solicitou a observação do doente, na sala de directos, cerca das 16:00 horas. Não questionou os familiares ou acompanhantes acerca de eventual ingestão de álcool ou drogas mas já tinha sido informada pela sua colega da medicina interna acerca da existência destes factos. Também terá ouvido alguém, que não recorda a identidade, informar que ele tinha sido agredido, confirmando o exame descrito no boletim clínico. Face à gravidade da situação decidiu transferir o doente para o Hospital de São José porque se tratava de um doente de neurocirurgia.
XXXI. II, médica radiologista no HDF e que declarou que cerca das 13:00/13.30 foi contactada por uma auxiliar, que veio depois a saber ser amiga da mãe do doente, e que a informou que o C se encontrava no serviço de urgência e que precisaria de uma TAC, tendo dito para o trazerem de imediato, como sempre sucede em casos urgentes. No entanto o doente não compareceu no seu serviço, sendo que somente cerca das 14:30 horas recebeu o pedido oficial dos serviços de urgência para a realização do exame, tendo ido o auxiliar dos seus serviços aos serviços de urgência dar indicação de que poderiam levar o doente para realizar o exame. Por razões que desconhece somente após as 16:00 horas o doente foi levado vindo acompanhado de uma médica dos serviços de urgência, tendo o exame sido realizado às 16:28 horas como nele consta. Esclareceu que quando as situações são muito urgentes, por regra, os médicos do serviço de urgência informam a testemunha da situação e solicitam rapidez na realização dos exames da sua especialidade.
Já em sede de instrução, procedeu-se à inquirição das seguintes testemunhas
- Reinquirição de F, que confirmou que antes da sua hora de almoço, antes das 13:00 horas, a arguida havia falado consigo sobre o doente e que havia aconselhado a solicitar a realização de uma TAC. Todavia, e uma vez que aquando do contacto da arguida não havia visto o doente, o seu primeiro contacto com ele só sucedeu após a hora de almoço, cerca das 14:00 horas, tendo reparado que aquele se encontrava numa maca no corredor, com alterações na cor da pele e em paragem respiratória, tendo gritado por ajuda e com a enfermeira que aí apareceu, levado o doente para a sala de directos, sendo que pensa que, nesta altura, o doente estava com alguém ao pé dele. Avaliou o doente e constatou que estava em paragem respiratória, tendo seguido o protocolo estabelecido para este tipo de situação. Foi a testemunha quem escreveu as observações do quadro direito da ficha clínica de fls. 238 dos autos bem como as observações descritas no seu verso no campo dos registos de enfermagem. Após estabilização do doente ainda falou com os pais e o seu chefe de equipa, sendo que face às suspeitas de ingestão de ecstasy colheu-se urina para análises e depois fez-se o contacto para a TAC, onde o doente só poderia ir depois de estabilizado e de haver disponibilidade do serviço de radiologia. A partir das 3 horas algum enfermeiro há-de ter ido pedir para fazer a TAC, que pensa já estar pedida pela Dr.ª A. A testemunha também explicou que a requisição da TAC é efectuada através de um papel, que é colocado numa caixa, indo depois um auxiliar levá-lo ao serviço, sendo que o técnico faz a inscrição no sistema e depois chamam o doente. A testemunha declarou ainda que a TAC apenas foi pedida, e sugerida por si, porque o doente apresentava febre e alteração da consciência, que podiam indicar várias causas entre as quais uma infecção do sistema nervoso central, não havendo qualquer suspeita de hematoma, sendo que também esclareceu que uma escoriação significa, em linguagem corrente, um arranhão (que constitui uma lesão de baixa intensidade), equimose significa uma nódoa negra e o hematoma é o comummente designado por “galo” (e pressupõe uma lesão de alta intensidade). A testemunha também declarou que foi ela quem determinou a realização do ECG de fls. 252 e que a hora se encontra rasurada provavelmente por o técnico ter efectuado a rasura devido à alteração (legal) da hora. Segundo a testemunha os sintomas do doente não apontavam para a existência de um hematoma epidural, sendo que nem o ECG nem a febre são sinais desse estado clínico, pois que a taquicardia não aponta nesse sentido, sendo antes esperada, nesse quadro, a braticardia ou hipertensão. A testemunha esclareceu que o pedido de fls. 64 (fls. 20 do Anexo I) é da enfermeira e que o pedido de ANL se refere a pedidos de análises, sendo que perante a hora aí indicada do pedido de ECG é possível que o mesmo só tenha sido efectuado após as 15:00, o que não consegue precisar face ao tempo que já passou desde essa data. Esclareceu também que no hospital não tinham meios para realizar testes ao MDMA e ao álcool, sendo que a hora que consta no relatório de análises, nomeadamente de fls. 239 é a hora a que, provavelmente, os testes estão concluídos. Os resultados de fls. 241 até poderiam indicar a existência de uma infecção ou stress, porque tinha leucocitose, glóbulos brancos elevados, glicemia alta, aparentando desidratação, o que também poderia ser compatível com a ingestão de ecstasy. Segundo referiu só após o doente ter entrado na sala de directos passou a estar sob a sua responsabilidade. esclareceu também que quando a ficha clínica do doente refere a existência de uma alteração de consciência não completamente atribuível ao álcool tal poderia ser entendido como sendo derivado a outra causa, nomeadamente uma infecção do sistema nervoso central. Embora entendesse que fazer referência à existência de escoriações não era indicação para um diagnóstico de hematoma epidural, uma vez que este pressupõe a existência de uma lesão de grande intensidade, veio a declarar que a ingestão de ecstasy é um factor de risco para a sua existência. A nível de sintomas de hematoma epidural indicou a existência de deficits motores, que pode ser bilateral, a existência de uma pupila dilatada e outra reduzida, perda de consciência, convulsões, esclarecendo que apenas após ter detectado a paragem respiratória é que se apercebeu da midriase bilateral o que pode significar a existência de uma lesão extensa mas não sendo sintoma de hematoma epidural.
- Reinquirição de II, sendo que esta testemunha confirmou que cerca das 13:30 falou com uma auxiliar que disse ser amiga da mãe do doente e que ele precisava de uma TAC pelo que disse para ele vir. No entanto, passado algum tempo foi à recepção e foi-lhe dito que não havia sido feita qualquer requisição, sendo que esta apenas foi inserida no sistema cerca das 14:30 horas, o que é feito de imediato após a recepção da requisição. Segundo referiu o médico elabora a requisição e é um funcionário que a leva aos seus serviços, sendo que, em casos de urgência, há colegas que avisam da situação e telefonam a fim de o doente passar à frente. Como o doente foi acompanhado pela médica, mal a médica viu as imagens apercebeu-se logo do diagnóstico e começou a diligenciar pela transferência do doente. Da requisição apenas se sabe que foi um médico das urgências que fez o pedido, sendo que quando o mesmo foi registado nem havia muito trabalho, mas não obstante o maqueiro ter ido por diversas vezes dizer para trazerem o doente ninguém o trouxe.
- Reinquirição de E, tendo a testemunha declarado que o quadro esquerdo da ficha clínica foi por si preenchido. Segundo a testemunha esteve com o doente no corredor, antes da hora de almoço, e ele encontrava-se sonolento, tendo colocado a hipótese de tal ser efeito de drogas ou uma malformação vascular, sendo que face a ele estar a ficar febril, também colocou a hipótese se estar perante um abcesso cerebral, pelo que seria mandatório fazer uma TAC. Fez a observação a pedido da arguida e embora assumindo estar confusa relativamente à hora em que tal sucedeu refere que se encontrava no local uma familiar do doente que trabalha no hospital. Segundo a testemunha, o que levou a várias possibilidades de diagnóstico foi a ideia de que existia ingestão de álcool e drogas e inexistência de história de agressão. Referiu ainda que quando elaborou o texto que consta da ficha do doente ainda não havia sido efectuada a TAC, pensando que tal sucedeu antes das 13:20 horas e que viu a arguida a preencher a requisição do TAC, sendo que esta também já havia falado com a Dr.ª A sobre a realização desse exame. A testemunha acabou por referir que quando viu o doente também viu o resultado das análises e o resultado dos leucócitos, sendo que esse era atípico e podia ser sintoma de várias coisas, entre as quais um hematoma. A testemunha também referiu que aquando da observação do doente este ainda falava. Também referiu que o hematoma é que provocou a paragem respiratória, que provocou a midriase, e levou à morte cerebral, pois que o hematoma comprime o tronco e impede a respiração. A testemunha explicou ainda que aquando da primeira observação do doente nada escreveu na sua ficha e que quando o deixou ele se encontrava sonolento e deficitário, tendo ficado acompanhado de familiar, sendo que na altura referiu ao maqueiro que era para fazer TAC. Também referiu que a midriase fixa é sintoma de morte cerebral e que uma das causas do hematoma epidural, para além de trauma, é a ingestão de drogas. De atentar que a testemunha também explicou que aquando do rebentamento da veia o doente se sente mal, tem vómitos, tonturas , mas depois há uma atenuação dos sintomas e melhoramento do estado, vindo depois a sobrevir um novo intensificar do mau estar, num processo que pode durar várias horas. Esclareceu ainda que não obstante a Dr.ª A ter escrito na ficha que ele apresentava midriase bilateral arreactiva, quando viu o doente ele não se encontrava nesse estado.
- JJ, médico que também trabalhou nas urgências do HDF no ano de 20’06 e que explicou os procedimentos utilizados para efectuar requisições de TAC. Explicou que o médico que efectuava a requisição preenchia um papel e deixava-o numa gaveta que estava pendurada na parede. Depois o auxiliar ía levar o papel à radiologia, sem que fosse controlado o tempo que demorava o auxiliar a efectuar esta operação. No serviço de radiologia, inseriam os dados de requisição no sistema e depois pediam para o doente ir fazer o exame.
- KK, médica que também trabalhou no HDF e que confirmou os procedimentos existentes para requisitar a realização de uma TAC nos termos em que também depôs a testemunha JJ. Segundo esclareceu era esperado que o auxiliar demorasse pelo menos meia-hora para entregar a requisição, pelo que em situações de emergência (ocorridos na sala de directos) seria normal pedir verbalmente ao auxiliar ou mesmo telefonar para o colega da radiologia.
- LL, mãe do falecido C, que declarou que apenas chegou ao Hospital cerca das 13:45 horas, sendo que quando entrou dentro das urgências se apercebeu que um amigo do filho ia a sair mas não tendo falado com ele. Como estava acompanhado do marido este indicou a Dr.ª A como sendo a médica do filho, e falou com ela. Esta, seriam cerca das 14 horas, disse-lhe que tinha feito análises que deram positivas para álcool no sangue e marijuana, tendo depois perguntado se ela sabia do que era o “traço” que ele tinha na cabeça. Como respondeu não saber a Dr.ª A disse que então ia fazer uma TAC. Depois foi procurar o filho e como não o encontrou no corredor, e a Dr.ª A também disse não saber onde ele estava. Foi à sala de Rx onde o MM lhe disse que ele não estava lá e que não tinha nenhum pedido de exame, sendo que depois outro colega disse-lhe que ele estava na sala de directos, vindo depois a Dr.ª F dizer-lhe que o filho tinha entrado em paragem. Foi para a sala de espera, e às 15:40 foi novamente à sala de RX saber se o filho já tinha feito algum exame e o colega disse que não. Já depois das cinco tarde uma colega, a NN, disse-lhe que o filho ia para Lisboa e depois falou com três médicas, a Dr.ª F, a Dr.ª OO e Dr.ª PP onde lhe disseram que ele ia para Lisboa. Perguntou quem era a neurologista, disseram-lhe que era a Dr.ª E mas nunca falou com ela. Depois foi para Lisboa e às 3:00 horas falou com o médico que se mostrou com surpreendido por ter enviado o seu filho para Lisboa com o coma em que ele se encontrava. A testemunha negou que tivesse estado a falar com a Dr.ª E cerca da hora do almoço.
- Reinquirição de M que declarou que apenas soube que o C se tinha sentido mal quando o amigo que estava com ele e que com ele trabalhava regressou com ele a casa, tendo-o visto e constatado que ele estava completamente inconsciente. Quando o C foi para o Hospital foi lá, acompanhado do seu amigo N, e dizendo que era irmão do C conseguiu entrar no serviço de urgências, acompanhado do N, onde encontrou o C deitado numa maca e sem se mexer e inconsciente, tendo ainda dado duas chapadinhas no seu rosto sem que ele tivesse respondido. Embora tivesse permanecido junto dele durante um pouco não viu nenhum médico a assisti-lo. Depois veio para o exterior, sendo que como as portas abriam e fechavam, conseguia ver o C no corredor e sozinho. Em hora que não sabe precisar voltou a entrar, na companhia do N, tendo visto que ele estava a espumar da boca pelo que pediu ajuda, vindo pessoas que levaram o C para uma sala. Em nenhum momento falou com algum médico sobre o C e pareceu-lhe que ele estava num estado muito grave, pois que não se mexia, sendo que quando alguém bebe demais pelo menos tem movimentos.
Em sede de instrução foram tomados esclarecimentos ao Perito médico, Dr. B, estando o teor dos mesmos registados em sistema de gravação integrado em uso neste tribunal. Com particular relevo, resulta dos esclarecimentos prestados que a arguida, aquando da sua primeira observação, já deveria ter solicitado a realização da TAC uma vez que resultava da avaliação do CODU que o doente já se encontrava num estado deteriorado e não existia tipicidade na intoxicação alcoólica. No entender do perito, a midriase bilateral arreactiva é sintoma de compromisso cerebral gravíssimo, resultando uma suspeita clínica que determina a realização imediata de TAC, sendo inclusivamente um sintoma de hematoma epidural porque a lesão vai evoluindo pelo que pode causar a dilatação das duas pupilas. Referiu ainda que esta midriase é um sintoma muito mau e revelador de prognóstico muito mau que provavelmente levaria à morte ainda que sujeito a operação. Segundo o Perito a existência de uma escoriação apenas significava a existência de um embate na região frontal, sendo que o hematoma teria necessariamente uma causa traumática e não a ingestão de ecstasy. Esclareceu também que este tipo de lesão normalmente manifesta-se entre o estado mau, estado bom e regresso ao estado mau, existindo um “ intervalo livre”, em que a pessoa não manifesta sintomas para depois se dar a recaída. A lesão desenvolve-se entre a dura mater e a face interna do crânio, devido ao rompimento de uma veia ou artéria, sendo que também a circunstância da dura mater estar ou não aderente ao crânio, influencia a forma como se desenvolve em termos temporais o hematoma. Como referiu, mesmo que a TAC tivesse sido realizada cerca das 11:00 horas não seria possível afirmar que teria sido possível a sobrevivência, perante a existência de midriase bilateral arreactiva. O Perito mostrou ainda perplexidade perante a circunstância do paciente ter demorado cerca de duas horas a fazer uma TAC desde o momento em que entrou em paragem respiratória.
D) Constam dos autos, com interesse para a decisão da causa, os seguintes documentos:
- Relatório de autópsia, efectuada em 13 de Dezembro de 2006. Do exame realizado ao hábito externo resulta a existência de escoriação na bossa frontal direita, à frente da implantação anterior dos cabelos, com eixo maior horizontal, com 1 cm de comprimento e 0,3 cm de largura, bem como várias escoriações no pescoço. Ao nível do hábito interno foram detectadas infiltrações sanguíneas no pericranio bem como no musculo temporal esquerdo, fractura da base do crânio, interessando a escama do temporal esquerdo, junto à grande asa do esfenoide, hematoma epidural sobre os lombos temporal e parietal esquerdos, infiltração sanguínea na tenda do cerebelo, focos de contusão em ambos os lobos temporais e tronco cerebral, edema acentuado do encéfalo, com amolecimento difuso e infiltração sanguínea nos músculos do pescoço, nas faces anterior e lateral direita.
O relatório de autópsia conclui que: “A morte de C foi devida às graves lesões traumáticas crânio-vasculo-encefálicas referidas em A) do hábito interno. Estas lesões traumáticas são casa adequada de morte. Estas, bem como as restantes lesões traumáticas, referidas nas alíneas A) dos Hábitos Externos e interno, resultaram de traumatismo violento de natureza contundente. As lesões traumáticas, referidas na alínea B) do Hábito Externo resultaram de intervenção terapêutica. As lesões traumáticas referidas nas alíneas C) do Hábito Externo e alínea B) do Hábito Interno resultaram da colheita de órgãos “pos mortem”, ao abrigo da Lei n.º 12/93, de 22/04.
- Cópia do processo de C e relativo ao tratamento efectuado no Hospital Distrital de Faro, onde deu entrada às 10:28 horas de dia 8 de Dezembro de 2006, e também onde consta a requisição de TAC – vide fls. 61 a 68;
- Cópia do episódio de urgência n.º 6149371 relativo ao acompanhamento médico prestado a C no hospital de São José – fls 125 a 142 (sendo que a fls. 131 se encontram o relatório de exames analíticos efectuados, resultando a existência de vestígios de etanol, opiáceos e canabinóides).
- Parecer no sentido de que as lesões constantes do relatório de autópsia poderiam ter sido provocadas por um murro na cabeça – fls. 229.
- Ficha do CODU de onde consta que a ambulância chegou ao local às 10:11 horas, estando C inconsciente, reagindo apenas a estímulos dolorosos, e apresentando pupilas em midriase. Colhida a informação de que a vitima havia ingerido muito álcool durante a noite e que havia consumido MDA cerca das 1:30 horas – fls. 237.
- Resultado de análises efectuadas a C no HDF, às 12:30 horas, quer a benzodiazepinas quer a cocaína, marijuana e opiáceos, sendo o teste positivo a marijuana – fls. 239.
- Resultado de análises efectuadas a C HDF, às 16:19 horas, sendo o teste negativo a anfetaminas e derivados – fls. 240.
- Resultado de análises efectuadas a C no HDF, às 12:48 horas - fls. 241-.
- Documento demonstrativo de requisição de TAC registado às 14:36 horas de dia 8 de Dezembro de 2006- fls. 244;
- Imagens do TAC efectuado ás 16:26 horas – fls. 245 e 246;
- Relatório da sala de ressuscitação, onde se encontra registada como hora de avaliação inicial, as 14:00 horas, e de onde consta terem sido solicitados exames ANL e ECG, o primeiro pelas 14:30 horas e o segundo pelas 15:00 horas - fls. 251;
- Resultado do ECG, de onde se conclui que houve rasura da hora nele inscrita, pois é visível que se encontra manuscrito o algarismo “4”, sobreposto ao algarismo “5” que se encontra impresso – fls. 252.
- Parecer emitido pelo conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal, IP, no âmbito de consulta técnico-científica (fls. 385 a 387).
- Informação do HDF onde confirma a hora de entrada do doente (10.28 horas), a hora da primeira observação (10:54 horas), a hora do pedido de TAC (14:36 horas) e a hora da sua realização (16:27 horas).
Cumpre, então, proceder à análise do tipo de ilícito pelo qual a arguida se encontra acusado.
Dispõe o art.º 137º, n.º1 do Código Penal que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”, sendo que, o n.º2 deste dispositivo legal, pune com pena até 5 anos de prisão, o agente que actuar com negligência grosseira.
De atentar que, após a reforma do Código Penal de 1995, a violação das «legis artis» causadora de perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente deixou de ser punida como crime autónomo, só integrando ilícito penal se houver ofensa no corpo ou na saúde, quer seja dolosa, quer seja negligente.
Constituindo este ilícito um crime de resultado, abrange não só a acção adequada a produzi-lo, mas também a omissão de acção adequada a evitá-lo, só sendo esta punível quando sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde deste, e tal em virtude do estatuído no art.º 10º do Código Penal.
Ora, no caso de actuação médica, esse dever existe inevitavelmente, pois a aceitação de um doente cria para o médico o dever jurídico, próprio do garante, de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde do doente.
O art.º 15º do Código Penal (sob a epígrafe “Negligência”) formula um juízo de dois graus, na medida em que se dirige a quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e é capaz, consagrando, nestes termos e pelo menos aparentemente, a consideração de um dever de cuidado objectivo, situado ao nível da ilicitude, a par de um dever subjectivo, situado ao nível da culpa.
Assim, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade de realização típica (negligência inconsciente). Age ainda negligentemente, quem, de forma ilícita e censurável, representa como possível a realização típica, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente).
Trata-se de um tipo legal de crime cujo bem jurídico protegido é a vida humana e, como já referimos supra, é um crime de resultado, na medida em que é necessária a verificação de um determinado evento para que ocorra a sua consumação.
Em sede de tipo de ilícito para que exista crime é necessário que exista:
a) A violação de um dever objectivo de cuidado que pode ter origem legal autónoma, se derivar de certas normas que visem prevenir perigos ou tão somente derivar de certos usos e costumes ou da experiência comum.
b) A produção de um resultado típico.
c) A imputação objectiva do resultado à acção: a violação do dever de cuidado tem que ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela acção.
d) A imputação subjectiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado. Para o Homem médio colocado naquelas circunstâncias e segundo a experiência normal, há-de ser previsível que da violação do dever objectivo de cuidado resulte a produção do resultado típico que seria evitável através do cumprimento do dever objectivo de cuidado.
Quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais, ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se o agente que, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto (vide, neste sentido, Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, pág. 71).
De outra forma, deparando-nos perante um crime negligente de resultado há que atender que, para o preenchimento do tipo de ilícito, não basta que se verifique o resultado e que se verifique a violação do dever objectivo de cuidado, pois que não se pode prescindir da imputação objectiva do resultado. Assim, temos, também, que a imputação objectiva se limita com o fim da protecção da norma, não sendo imputáveis ao agente os resultados que não caem na esfera de protecção da norma de cuidado violada pelo agente. Deste modo, mesmo que se verifique a violação de um dever objectivo de cuidado, não se pode imputar a responsabilidade ao agente se a norma de onde esse dever de cuidado emanava não tinha por finalidade evitar resultados como o produzido.
Ao nível da negligência grosseira ela constitui um grau aumentado ou expandido de negligência, produto de exasperada imprevisão ou imprudência, significando isto que o agente tem que estar perante uma acção particularmente perigosa (perigo intolerável) e de um resultado de verificação altamente provável (com especial aptidão) à luz da conduta adoptada, existindo, nestes termos, uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido.
Como já o dissemos, este crime também pode ser cometido por omissão – crime omissivo impróprio ou impuro -, sendo que para a sua verificação se exige a ausência de acção, como acto voluntário, a capacidade fáctica de acção (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente), e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.
Inegável, portanto, que o ilícito em análise tanto pode ser cometido por acção, ao desencadear um processo causal que cria ou aumenta o perigo de verificação de uma lesão, como por omissão, consubstanciada na circunstância de não desencadear ou interromper um processo causal que evite ou diminua a concretização de um perigo preexistente de lesão. Como refere Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in Responsabilidade Médica em Direito Penal, ”Nos crimes comissivos por acção o agente cria o perigo para o bem juridicamente relevante tutelado ou lesa esse bem, nos delitos por omissão impura (como em todos os crimes omissivos), por via de regra, tal perigo é anterior à acção esperada e estranho ao agente e é tal perigo que origina a espera de uma conduta que o esconjure.” (vide pág. 118).
Para além destas questões gerais da doutrina sobre a negligência, há que atentar que no caso concreto da negligência médica, se impõe a análise de outras questões e conceitos.
Desde logo, há que atentar na questão do diagnóstico, que constitui “ (...) o momento central da actividade típica do profissional médico, enquanto este para poder estabelecer um tratamento deve verificar se efectivamente existem sinais morbosos objectivos, e a existirem qual a natureza da enfermidade e a sua gravidade (...)”. – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in ob. cit., pág.31.
Também de atentar e ter presente que atenta a relação contratual que se estabelece entre médico e doente (vide, neste sentido o Ac. do TRL de 24/04/07, publicado in www.dgsi.pt), para aquele nasce uma obrigação de meios (assistência clínica ou dever de tratamento), ou seja, o médico apenas se compromete a desenvolver de forma prudente e diligente a sua arte para a obtenção da cura do paciente (pois os meios devem representar esforço tendencial para a consecução da cura ou melhoria de saúde do paciente, de acordo com as regas da ciência médica e o estado actual dos conhecimentos técnico-científicos – o fim em vista que a obrigação de meios supõe), mas sem assegurar que a mesma ocorre (vide também neste sentido Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in ob. cit., pág.62.).
E, é neste quadro e âmbito que se deve traçar o conceito de negligência, imprudência, imperícia médica, ou seja, num contexto de elaboração contra legem artis do diagnóstico e das diferentes etapas de tratamento.
Assim, para que o agente possa ser punido temos que verificar se se verifica:
- violação do dever de cuidado (imprudência ou criação de um risco não permitido) que é aquele que é apto a causar a lesão e for exigível e possível ao agente a sua evitação. “(...) para que o resultado possa ser atribuído ao agente (médico) (...) é necessário, no plano objectivo, que o resultado a imputar constitua a realização ou um aumento de um risco juridicamente relevante ou risco proibido (...) cuja evitabilidade do resultado nefasto seja, precisamente, a finalidade (...) da norma infringida pelo agente, nisto se traduzindo a doutrina do âmbito de tutela da norma. Em caso de dúvida razoável, a questão decide-se pela regra universal do direito probatório in dubio pro reu (...)” - Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in ob. cit., pág.280;
- a representação ou representabilidade do facto (previsão ou previsibilidade do facto), pois o médico para agir de forma diligente tem de poder prever uma situação de agravamento da saúde, uma lesão corporal ou uma morte, como causa da sua conduta: “(...) de resto, é justamente em função dessa previsibilidade que se poderá falar de imputação subjectiva nos crimes negligentes de resultado (homicídio negligente, ofensas à integridade física por negligência, intervenções ou tratamentos médicos-cirúrgicos arbitrários) só havendo tal imputação nos casos em que o concreto resultado seja previsível por um médico, com a qualificação do agente e colocado nas mesmas circunstâncias deste.” – cfr. Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in ob. cit., pág.274;
- a não aceitação do resultado (evitabilidade do facto ilícito previsível), uma vez que tendo o médico uma obrigação de meios e não de resultado, apenas lhe é exigível todo o esforço possível e adequado a evitar o resultado danoso e não a cura ou o salvamento, o que equivale a dizer que ao mesmo apenas se exige a diligência necessária a evitar o evento desde que seja evitável de acordo com a lei e demais normas jurídicas e extra-jurídicas, universalmente aceites, de cautela, prudência e ponderação. “(...) Deverá socorrer-se, além do mais, das chamadas “regras de arte” (legis artis) cuja observância, por força do art-º 150º do Código Penal, afastará a própria tipicidade de ofensas corporais ou de homicídio. [...] Mesmo que o acto médico que desempenhado, como sempre, segundo a “legis artis” desencadeie a morte do paciente (v.g. através de uma intervenção cirúrgica), deve considerar-se que o empobrecimento da ordem jurídica por perda do bem vida, não resulta do próprio acto em médico em si — se bem que na imediatidade causalista isso seja indesmentível — mas advém antes do processo ininterrupto e imparável (...)” Faria Costa, in “O Perigo em Direito Penal”, reimpressão, Coimbra 2000, pág. 532.
Em suma, o médico será responsável penalmente se, através de uma acção ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função de médico, provocar um resultado, in casu, a morte, que era objectivamente previsível e passível de ser evitada.
Face a tudo o exposto sobre a negligência, cumpre, agora, apreciar, se a arguida A, com a sua conduta, incorreu efectivamente na prática de um crime de homicídio negligente, como o entendeu o Ministério Público no terminus da fase de inquérito.
Ora, desde logo, teremos que ter em devida atenção uma questão essencial: no dia dos factos, no Hospital Distrital de Faro não se encontrava ao serviço qualquer médico neurocirurgião, pelo que, necessariamente, a intervenção cirúrgica que teria que ser efectuada a C, perante o diagnóstico de hematoma epidural, implicaria a sua transferência para Hospital de Lisboa.
Também do parecer médico-legal bem como dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito que o elaborou, Dr. B, resulta que a causa de morte de C poderia ter sido evitada se tivesse sido efectuada uma TAC em tempo útil, e que a médica de clínica geral que atendeu o doente não agiu com a diligência necessária, principalmente no que concerne à determinação da realização de uma TAC.
Efectivamente, existem vários elementos do processo que realmente indiciam tal, pois que, e pelas regras da lógia e das legis artis não se consegue entender como a arguida, ao não ter uma fonte directa que atestasse o consumo de MDMA e não podendo sequer levar a cabo análises que indicassem o nível de intoxicação alcoólica ou da presença da substância MDMA no sangue ou urina, se mantivesse segura num diagnóstico que apontasse para um quadro de intoxicação. Também de atentar que se é certo que o relatório do CODU não fizesse a menor indicação da dinâmica dos consumos de álcool ou de ecstasy, a arguida teve a possibilidade de colocar questões ao pai do C, sendo que necessariamente se impunha que o questionasse sobre se sabia até que horas tinha estado a ingerir álcool e as circunstâncias que rodearam o surgimento dos sintomas. Atente-se que tais questões eram essenciais, pois que resulta dos autos que C ingeriu álcool até cerca das 4 ou 5 horas da madrugada e manteve-se sempre consciente e bem disposto, surgindo os sintomas de indisposição, vómitos e inconsciência apenas quando se dirigia para o seu local de trabalho, já de manhã. Ora, face ao lapso temporal que decorreu entre a cessação da ingestão de álcool, o surgimento dos sintomas e a sua observação hospitalar, não era expectável que a sintomatologia se desse por intoxicação alcoólica, como bem notou o Dr. B, sendo mandado que se realizasse a TAC para detectar o que causava ou causou tão severo estado.
Existem nestes autos diversos depoimentos e circunstâncias que colocam até em causa que efectivamente, antes das 14:36 horas, a arguida tivesse efectivamente solicitado uma TAC ao paciente. Sendo certo que a Dr.ª F, declara que antes da hora de almoço (entre as 12:00 e as 13:00 horas, como resulta do inquérito) falou com a arguida e que perante o quadro clínico do doente, consubstanciado em alteração da consciência e febre, aconselhou a fazer uma TAC, não podemos ter a certeza de que tal conselho tenha sido efectivamente seguido, pois que os procedimentos normalmente seguidos no Hospital de Faro não tornariam credível que se demorasse cerca de duas horas a chegar a requisição de tal exame ao serviço de Raio X, pois que como a arguida declarou foi logo pelas 12:30 horas que pedia a TAC.
Não descuramos que a testemunha E declarou, nesta sede, que esteve com o falecido C, e que visualizou a arguida a preencher a requisição da TAC, no entanto, face ao por si declarado em sede de inquérito não poderemos dar credibilidade à testemunha, pois que nessa altura, a testemunha declarou que a Dr.ª A lhe pediu um conselho e ela aconselhou a TAC, mas sem ver o doente, uma vez que disse que depois da TAC e das análises o iria observar, observação que foi por si efectuada na sala de directos e a pedido da Dr.ª F. Ora, se nas suas anteriores inquirições, quer em sede de inquérito quer no âmbito do processo de averiguações que se encontra anexo, a testemunha nunca declarou ter estado com o falecido, que declarou que só o viu a pedido da Dr.ª F, como poderemos dar alguma credibilidade ao que nesta sede veio declarar? Não podemos duvidar que a Dr.ª A se possa ter aconselhado com a testemunha sobre o estado do doente e que a testemunha a tenha aconselhado a pedir uma TAC, no entanto teremos que desvalorizar tudo o demais declarado nomeadamente o ter falado com a mãe do falecido ou outra pessoa que com ele estivesse, que tivesse falado com o C ou que tivesse visto a arguida a requisitar qualquer TAC. De atentar que até da observação que fez constar da ficha clínica resulta que a testemunha ao depor como o fez nesta sede ou faltou deliberadamente à verdade ou se encontra confusa, pois que resulta que a observação médica por si efectuada foi realizada após o doente ter realizado a TAC, pois que a este exame faz alusão.
Mas, tal faz-nos suscitar uma questão… como é possível que na ficha clínica possa constar observação da neurologia às 13:20 horas quando a TAC só esteve pronta às 16:28 horas??? Se não houve qualquer observação da neurologia à hora que aí foi feita constar, não nos podemos deixar de questionar se a ficha não foi alvo de alterações. E se foi, que alterações foram efectuadas, quando e porquê.
Mas também não poderemos deixar de aqui atentar que a arguida, no seu interrogatório, declarou que foi após ter notado o agravamento dos sintomas, com febre e perda de consciência, o que sucedeu entre as 12:15 e as 12:30 horas, que falou com a E e que foi então que pediu a TAC, o que sucedeu cerca das 12.30 horas. Ora se assim foi, como explicar que a requisição só tenha dado entrado na radiologia às 14:36 horas? Não se consegue explicar esta questão e também não existe qualquer explicação para o comportamento posterior da arguida, pois o que resulta do seu depoimento é que deixou de acompanhar o doente, pois que das suas declarações não resulta que tivesse verificado o seu estado após essa hora. Ademais, a própria arguida declarou que cerca das 13:20 o deixou perto da sala de directos e que o deixou a ter a seu cargo.
Inevitável é questionar se não ficou a cargo da arguida então C ficou a cargo de quem???, pois que como F declarou o doente só passou para o seu serviço após ter entrado em paragem respiratória (e não cardio-respiratória como incorrectamente referiu no inquérito e com o já resultava da sua ficha clínica). É forçoso concluir que a arguida deixou o doente abandonado à sua sorte e se efectivamente havia feito a requisição da TAC, como o declara ter feito, às 12:30 horas, também se desinteressou da mesma, pois que sendo um caso claro de agravamento de sintomas, com um diagnóstico não confirmado de abusos de substâncias aditivas, e com sinais claros de agressões (atente-se no resultado da autopsia para concluir que o falecido apresentava escoriações quer na zona da testa quer na zona do pescoço), a sua conduta deveria ser de se manter atenta à realização do exame e à chamada do doente para a sua realização.
Perante todo este quadro fáctico, e perante todas as discrepâncias e contradições que a prova veio retratar, entendemos que efectivamente a arguida violou uma das obrigações que se lhe impunham perante o estado da ciência médica, o determinar, em tempo útil, a realização da TAC, pois que este era o único exame que lhe possibilitaria efectuar um correcto diagnóstico do doente, quando se atende que não existiam dados concretos que permitissem sustentar um diagnóstico de intoxicação por álcool ou MDMA. Se perante o quadro clínico que o C apresentava aquando da primeira observação realizada pela arguida, onde apresentava sinais de consciência e mobilidade, e perante os dados de que dispunha, pudéssemos considerar que não se justificaria mandatória a realização do exame, não podemos no entanto olvidar que entre as 11:30 e as 11:45 horas a arguida poderia ter recolhido variada informação junto do pai do doente que lhe permitiria ter uma avaliação distinta da situação como já supra explicámos. E se entre as 12:15 e as 12:30 horas a arguida detectou um agravamento dos sintomas no paciente, com febre e perda de consciência, e é aconselhada no período entre as 12:30 e as 13:00 horas, quer por F quer por E a efectuar uma TAC, e resultando indiciado que não o terá feito de imediato (atento o que declara a mãe de C no sentido de que foi quando falou com a arguida, cerca das 14 horas que esta referiu que iria solicitar o exame, devidamente aliado à circunstância de estar demonstrado que a requisição do TAC foi registada após as 14:36 horas – fls. 244), então, pelo menos neste concreto momento teremos que considerar que a arguida violou o seu dever de cuidado, ao não determinar, com urgência a realização do mencionado exame, único que permitiria detectar a existência de lesão cerebral, e que permitiria um diagnóstico correcto que levaria ao despoletar das intervenções médicas necessárias ao debelar do estado do paciente.
Perante isto, não nos suscitam dúvidas de que a arguida efectivamente violou um dever objectivo de cuidado, que sabia sobre si recair e de que dispunha de todos os conhecimentos e condições pessoais que lhe permitiriam actuar de forma correcta e adequada.
No entanto, esta conclusão não será suficiente para concluirmos que possamos imputar à arguida o crime de que se encontra acusada.
Como já referimos supra, o agente deve causar o resultado por negligência, sendo este um pressuposto da maioria dos tipo-de-ilícito (homicídio negligente, ofensas à integridade física negligentes…). Tem de existir um nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o resultado produzido.
A este propósito a doutrina frequentemente usa a terminologia alemã do “nexo de infracção do dever” ou “conexão de ilicitude”, no sentido de que não bastará para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou.
Com efeito, "as acções negligentes de resultado pressupõem uma estrutura limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever objectivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a exigência de um especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado"” (vide, Faria Costa, O Perigo, p. 487.).
Como dissemos, entre as 12:30 e as 13:00 horas a arguida teria conhecimento de todos os dados que determinavam a realização da TAC e não diligenciou pela sua imediata e urgente realização, o que impediu o detectar do hematoma epidural. Também como resulta do depoimento da Dr.ª F foi após ter detectado a paragem respiratória e portanto já na sala de directos, que foi verificada midriase bilateral arreactiva, sinal de extensa lesão cerebral, e como referiu B perfeitamente compatível com o efectivo estado clínico detectado.
Perante a falta de precisão dos registos médicos não se poderá afirmar com alguma margem de certeza a que horas foi detectada a midriase bilateral arreactiva, que como referiu o Perito B é sintoma de lesão já irreparável (sendo que a neurologista E também declarou que esta é sintoma de morte cerebral), pois que se atentarmos na ficha do Hospital, e nas próprias declarações da arguida, este sinal também está anotado, sendo que embora a arguida refira que o notou logo na primeira avaliação tal não se mostra compatível com a circunstância de também ser então concomitante a existência de consciência e movimentação dos quatro membros do doente.
Esta questão é insusceptível de ser esclarecida por qualquer meio de prova mas teremos de dar credibilidade ao declarado por F no que concerne a ter detectado a midriase na sala de directos, após a detecção da paragem respiratória.
Ora, não podemos deixar de novamente chamar aqui à colação o já constatado supra no que concerne a que a intervenção cirúrgica adequada a debelar a condição clínica de C apenas se poderia realizar em Lisboa, para onde veio a ser efectiva ( e inutilmente) transferido. Atenta a distância entre Faro e Lisboa, mais de 270 km (como se pode consultar em diversos sítios de internet), então necessariamente seriam necessárias cerca de três horas para efectuar a deslocação do paciente até esse hospital, quer esse transporte fosse feito por ambulância quer fosse por helicóptero (considerando os depoimentos prestados neste sentido pelas testemunhas F e E).
Ou seja, temos então que considerar que se a TAC tivesse sido pedida pela arguida entre as 12.30 e as 13:00 horas, como concluímos que se impunha, quando o paciente chegasse ao local onde poderia ser intervencionado já se encontraria no mesmo estado clínico que foi detectado na TAC que foi efectuada no HDF às 16:27 (vide fls. 245 e 246). E, como resulta, quer do declarado por E quer pelo Dr. B perante o quadro clínico detectado na TAC o paciente encontrava-se já num estado clínico irreversível em que a intervenção cirúrgica já não seria viável para evitar o resultado morte.
Atente-se até que dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito nunca poderíamos ter como fortemente indiciado que se a TAC tivesse sido realizada logo pelas 11:00 horas, aquando da primeira observação do paciente pela arguida, ainda fosse possível realizar com sucesso a operação que se impunha para retirar o sangue causado pelo hematoma, pois que é impossível detectar qual a velocidade de vazamento do mesmo (atento que entram em conta factores desconhecidos como a circunstância de ser distinta a velocidade de vazamento de uma artéria ou de uma veia e a ainda a circunstância da dura mater estar ou não aderente ao crânio), sendo mandatório que o estado clínico seja detectado e intervencionado quanto antes.
Assim sendo entendemos que faltam meios de prova, insupríveis, que permitam considerar indiciado que se a arguida A tivesse actuado de acordo com as boas e adequadas regras médicas, observando o dever de cuidado e diligência que se lhe impunham, diligenciando pela realização tempestiva de uma TAC, se pudesse efectivamente, evitar o trágico e infeliz resultado que se veio a verificar, não podendo, por conseguinte, este ser-lhe imputado.
De atentar ainda que não obstante na acusação se refira que a arguida não dispensou o tratamento adequado e que poderia resultar na cura clínica das lesões, tal não resulta minimamente demonstrado da toda a prova reunida, pois que como vem resultando do acima exposto, a conduta negligente situou-se tão somente ao nível do diagnóstico, pois que para a cura do hematoma epidural era necessária intervenção cirúrgica para a qual a arguida não se encontrava habilitada, sendo necessária a intervenção de neurocirurgião, que não se encontrava ao serviço nesse dia como resulta dos autos mormente a fls. 66 a 70 do Anexo I.
Ora, conforme supra se referiu, nos termos do artigo 308°, n.º1 do Código de Processo Penal, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia sempre que se tenham recolhido indícios suficientes de que se praticou um crime e de quem foram os seus autores.
Segundo Figueiredo Dias “a simples dedução da acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.
(...) A alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico”. (cfr. Direito Processual Penal, 1º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág.133).
Atento o supra exposto, os indícios apurados não se mostram idóneos e suficientes para garantir, com uma probabilidade segura, que à arguida será aplicada uma pena a final, pois que não se poderá considerar como fortemente indiciado que “se as lesões tivessem sido atempadamente diagnosticadas e tratadas pela arguida, como podia e devia ter acontecido, resultaria normalmente na sua cura clínica”.
Em face do exposto, decido não pronunciar a arguida A, pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido nos termos do disposto no art.º 137º do Código Penal.
Sem custas, atento o disposto no art.º 517º do Código de Processo Penal.
Notifique”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

Antes de iniciar a apreciação das duas questões que, resumidamente, vêm suscitadas no recurso, cumpre deixar consignadas duas notas:
1ª - Estamos, nos presentes autos, é certo, na fase da instrução (e não na fase do julgamento).
Porém, mesmo nesta fase de instrução, e quer na apreciação dos indícios (da sua suficiência) quer na ponderação da qualificação jurídica dos factos, está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final.
Como bem esclarece o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1º Vol., 1981, pág. 133 - a respeito do Código de Processo Penal anterior mas ainda com total utilidade para a compreensão do actual), “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. (…) Tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução (...) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Nesta mesma senda se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª edição, pág. 332, nota nº 10 ao artigo 127º), ao concluir que “é inconstitucional a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia que se basta com a formulação de um juízo minimalista segundo o qual só não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil”.
Em síntese: podemos concluir que a arguida só deverá ser pronunciada se, já em face das provas recolhidas no inquérito e na instrução, a sua condenação for mais provável que a sua absolvição.
2ª - Pretende o Ministério Público que a arguida seja pronunciada (e, portanto, julgada) como autora de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, sendo que comete este tipo legal de crime quem “matar outra pessoa por negligência”.
Em termos simplificados, a negligência, como tipo de culpa, traduz-se numa atitude pessoal, concretizada num ilícito típico, de descuido ou leviandade face às exigências do dever-ser jurídico-penal.
A sua estrutura engloba (constituindo requisitos cumulativos):
1 - Previsibilidade objectiva do perigo de realização do tipo de ilícito. Quer dizer, exige-se que a atenção do homem consciente e cuidadoso tivesse podido advertir o perigo de violação do bem jurídico pela conduta adoptada.
2 - Não observância do cuidado objectivamente adequado a impedir a produção do resultado típico (omissão do dever objectivo de cuidado).
3 - Verificação do resultado típico.
4 - Imputação objectiva deste resultado típico à omissão do dever objectivo de cuidado.
Esta imputação objectiva é duplamente condicionada:
a) Por um lado, é necessário que se possa afirmar, com razoável probabilidade, que o resultado ter-se-ia evitado se o agente tivesse procedido com o cuidado objectivamente exigível.
b) Mas, além desta comprovação, requer-se, ainda, que este cuidado que se omitiu visasse, precisamente, impedir a produção de resultados do tipo do resultado efectivamente produzido no caso concreto.
5 - Possibilidade de o agente, segundo as suas capacidades individuais e as circunstâncias concretas do caso, ter previsto os perigos da sua conduta (previsibilidade subjectiva) e de ter cumprido as exigências de cuidado adequadas a evitar a concretização de tais perigos.
É à luz destes pressupostos da figura da negligência que iremos analisar e decidir o caso concreto posto nos autos.


a) Da omissão, pela arguida, da diligência devida.

Para podermos considerar que a arguida agiu com negligência, temos de concluir que omitiu um dever (objectivo) de cuidado.
Em que se traduz, concretamente, este dever?
Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Jornadas de Direito Criminal”, C.E.J., 1983, Vol. 1º, págs. 70 e 71), para além dum elemento objectivo, medido pelo padrão e capacidade normal ou do homem médio, “está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido (...) é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência”(cfr., do mesmo autor, “Lições de Direito Penal”, Sumários à 2ª Turma do 2º ano, Coimbra, 1975, págs. 226 e 227).
Como, no caso dos autos, estamos perante uma arguida profissional de medicina, a actuação da arguida e a eventual omissão do dever de cuidado (ou diligência) por parte desta têm de ser avaliadas a essa luz.
Há, pois, que analisar, com o pormenor necessário (mas atendo-nos ao essencial), a situação de facto colocada nos autos e a concreta actuação da arguida:
- No dia 08 de Dezembro de 2006, a arguida (médica) encontrava-se a prestar serviço no Serviço de Urgência do Hospital de Faro, serviço esse que dispunha de clínicos gerais, especialista e internos de Medicina Interna, especialista de Neurologia e especialista de Cirurgia Geral, estando a funcionar também, em presença física, a urgência de Radiologia.
- O Hospital de Faro não possuía urgência de Neurocirurgia.
- Nesse dia 08 de Dezembro de 2006, pelas 10h54m, foi visto, na triagem, C.
- O C acabara de ser transportado pelo INEM/CODU, de cujo verbete consta: “motivo da chamada: etilizado, inconsciente; vítima esteve a beber muito álcool durante a noite; consumiu MDA por volta da 1.30h, segundo os amigos; à nossa chegada reage apenas a estímulos dolorosos”. Nos campos destinados a “Trauma” e a “Hábitos Farmacológicos” foi aposto um traço, o que indica que nenhuma das hipóteses ali apontadas se verificou. Como antecedentes pessoais registou-se tratar-se de uma pessoa saudável.
- No Balcão de Triagem, o enfermeiro responsável registou como queixa: “doente aparentemente alcoolizado e consumiu MDA?; embriaguez aparente; alteração do estado de consciência não completamente atribuível ao álcool”. Foi-lhe medida a temperatura e a glicémia, tendo-se constatado que estava apirético (37º), sendo atribuída, na triagem, a cor laranja.
- A arguida, médica no serviço de urgência, observou o C, quando lhe foi apresentado, cerca das 11 horas, não estando, nessa ocasião, o C acompanhado por qualquer pessoa (ou seja, a única informação que existia era a constante do verbete do INEM).
- No exame que fez ao C, a arguida verificou (e registou) que o mesmo estava hemodinamicamente estável, com uma tensão arterial de 140/70. Tinha uma escoriação na testa de, mais ou menos, 0,5 cm, sem outras feridas aparentes no corpo. Não apresentava sinais de traumatismo nem hematomas.
- Face às informações disponíveis, à observação efectuada e aos sintomas apresentados, a hipótese diagnóstica colocada pela arguida foi a de intoxicação por ingestão de álcool e drogas.
- E, perante tal hipótese diagnóstica, a arguida solicitou a realização de análises de sangue, com hemograma, glicose, BUN, ionograma, creatinina, LDH e PCR. Mais solicitou a realização de análise à urina, para detecção de psicotrópicos (cocaína, marijuana, opiáceos e benzodiazepinas).
- Naquela data, o Hospital de Faro não fazia análises ao álcool no sangue nem pesquisa de MDA.
- A arguida solicitou ainda a realização de um BM/teste, para confirmação de que o C não tinha hipoglicemia e para descartar essa possível causa da deterioração/alteração neurológica.
- A arguida prescreveu, de imediato, a administração de soroterapia, com a administração de uma fórmula de Primperan EV (para evitar os vómitos, já que, no caso de intoxicações alcoólicas, pode ocorrer a sua aspiração) e duas fórmulas de Metadoxil EV (este aumenta a velocidade de eliminação do álcool, proporcionando uma mais rápida recuperação da toxicidade neurológica que esta droga tem).
- A arguida deu também indicação para que o C ficasse em “dieta zero” (isto é, sem comer e beber), a fim de evitar uma provável aspiração, e, bem assim, determinou a sua algaliação (para colheita rápida da urina e para confirmar se conservava a diurese).
- Todas essas determinações e prescrições da arguida foram satisfeitas pelos competentes serviços de enfermagem do Hospital de Faro.
- De seguida, o C ficou em observação, a aguardar o resultado dos exames, o efeito da medicação, e qualquer outra informação que permitisse esclarecer a origem do seu estado.
- Cerca das 11h30m/11h45m, do dia 08 de Dezembro de 2006, a arguida falou com uma pessoa, que se identificou como sendo o pai do C, que disse saber que o filho tinha bebido álcool, mas desconhecer se havia consumido alguma outra droga. Não foi dada, pelo mesmo, qualquer outra informação relevante.
- Entre as 12h15m e as 12h30m, a arguida voltou a observar o C.
- Pelo tacto, notou que estava quente, pelo que mediu a temperatura auricular, que era de 38,6º, informação que registou na ficha da urgência.
- Tratava-se de um dado novo, que levou a arguida a ver os sinais meníngeos, observação que foi negativa (e que também foi anotada na respectiva ficha).
- O C tinha ventilação espontânea, mas estava inconsciente: não falava, não se defendia e não oferecia resistência, tal como havia feito durante a primeira observação.
- Assim, e para tratar a febre, a arguida prescreveu 1 grama de Paracetamol.
- Na valoração das probabilidades diagnósticas, foi ponderada a hipótese de uma causa infecciosa (meningite), que, no entanto, era contrariada pela inexistência de sinais meníngeos e encefalite.
- A arguida ponderou ainda outras causas, designadamente vasculares, sem prejuízo da consideração da etiologia tóxica e metabólica, o que só poderia ser confirmado após a recepção dos resultados das análises.
- Cerca das 12h30m do dia em referência, a arguida falou com a Drª E, especialista de Neurologia, a quem pediu a avaliação do C.
- Na sequência dessa conversa, e atendendo ao conselho recebido dessa mesma médica especialista, a arguida determinou, a hora concreta que se desconhece, a realização de uma TAC Crâneo-Encefálica.
- A “requisição” da realização dessa TAC Crâneo-Encefálica deu entrada nos serviços de radiologia do Hospital de Faro às 14h36m, e a sua “realização”, com obtenção do respectivo resultado, ocorreu cerca das 16h27m.
- Após as 12h30m, a arguida falou ainda com a Drª F, especialista de Medicina Interna, que estava na sala de “directos” (onde se faz um acompanhamento mais rigoroso dos doentes), para que o C ali fosse colocado.
- Esta médica especialista foi também da opinião que a TAC era importante para esclarecer a situação.
- Por falta de vaga na referida sala de “directos”, a Drª F deu indicação para que a maca do C fosse colocada próximo da sua porta de entrada, o que foi feito.
- A arguida não voltou, entretanto, a ter qualquer contacto com o C, e, a hora concreta que se desconhece, quando este estava à porta de entrada da sala de “directos”, na maca, o mesmo fez uma paragem respiratória, tendo entrado de imediato para a dita sala.
- Foi reanimado e ventilado pela Drª F, especialista de Medicina Interna.
- Em face do resultado da TAC Crâneo-Encefálica, obtido, nos serviços de radiologia, cerca das 16h27m, e como não existia no Hospital de Faro um serviço de urgência de Neurocirurgia, o C foi transferido para o Hospital de S. José, em Lisboa, onde chegou cerca das 22h20m.
- No Hospital de S. José, o C não chegou a ser intervencionado, porque, na altura em que chegou a tal hospital, já se encontrava em morte cerebral.
- O C faleceu às 21h30m do dia seguinte, tendo a sua morte ficado a dever-se a graves lesões traumáticas crâneo-vasculo-encefálicas.
No despacho revidendo, a Mmª Juíza entendeu, e em breve síntese, que a arguida não agiu com a diligência a que estava obrigada e de que era capaz.
Escreve a Mmª Juíza, neste ponto, e naquilo que consideramos essencial: “não se consegue entender como a arguida, ao não ter uma fonte directa que atestasse o consumo de MDMA e não podendo sequer levar a cabo análises que indicassem o nível de intoxicação alcoólica ou da presença da substância MDMA no sangue ou urina, se mantivesse segura num diagnóstico que apontasse para um quadro de intoxicação. (…) Face ao lapso temporal que decorreu entre a cessação da ingestão de álcool, o surgimento dos sintomas e a sua observação hospitalar, não era expectável que a sintomatologia se desse por intoxicação alcoólica, (…) sendo mandado que se realizasse a TAC para detectar o que causava ou causou tão severo estado. Existem nestes autos diversos depoimentos e circunstâncias que colocam até em causa que efectivamente, antes das 14:36 horas, a arguida tivesse efectivamente solicitado uma TAC ao paciente. Sendo certo que a Dr.ª F, declara que antes da hora de almoço (entre as 12:00 e as 13:00 horas, como resulta do inquérito) falou com a arguida e que perante o quadro clínico do doente, consubstanciado em alteração da consciência e febre, aconselhou a fazer uma TAC, não podemos ter a certeza de que tal conselho tenha sido efectivamente seguido, pois que os procedimentos normalmente seguidos no Hospital de Faro não tornariam credível que se demorasse cerca de duas horas a chegar a requisição de tal exame ao serviço de Raio X, pois que como a arguida declarou foi logo pelas 12:30 horas que pediu a TAC. (…) Não poderemos deixar de aqui atentar que a arguida, no seu interrogatório, declarou que foi após ter notado o agravamento dos sintomas, com febre e perda de consciência, o que sucedeu entre as 12:15 e as 12:30 horas, que falou com a E e que foi então que pediu a TAC, o que sucedeu cerca das 12.30 horas. Ora se assim foi, como explicar que a requisição só tenha dado entrado na radiologia às 14:36 horas? Não se consegue explicar esta questão e também não existe qualquer explicação para o comportamento posterior da arguida, pois o que resulta do seu depoimento é que deixou de acompanhar o doente, pois que das suas declarações não resulta que tivesse verificado o seu estado após essa hora. Ademais, a própria arguida declarou que cerca das 13:20 o deixou perto da sala de directos e que o deixou de ter a seu cargo. Inevitável é questionar se não ficou a cargo da arguida, então C ficou a cargo de quem, pois que, como F declarou, o doente só passou para o seu serviço após ter entrado em paragem respiratória. (…) É forçoso concluir que a arguida deixou o doente abandonado à sua sorte e se efectivamente havia feito a requisição da TAC, como o declara ter feito, às 12:30 horas, também se desinteressou da mesma, pois que sendo um caso claro de agravamento de sintomas, com um diagnóstico não confirmado de abusos de substâncias aditivas, e com sinais claros de agressões (atente-se no resultado da autopsia para concluir que o falecido apresentava escoriações quer na zona da testa quer na zona do pescoço), a sua conduta deveria ser de se manter atenta à realização do exame e à chamada do doente para a sua realização. Perante todo este quadro fáctico, e perante todas as discrepâncias e contradições que a prova veio retratar, entendemos que efectivamente a arguida violou uma das obrigações que se lhe impunham perante o estado da ciência médica, o determinar, em tempo útil, a realização da TAC, pois que este era o único exame que lhe possibilitaria efectuar um correcto diagnóstico do doente, quando se atende que não existiam dados concretos que permitissem sustentar um diagnóstico de intoxicação por álcool ou MDMA. (…) Perante isto, não nos suscitam dúvidas de que a arguida efectivamente violou um dever objectivo de cuidado, que sabia sobre si recair, e de que dispunha de todos os conhecimentos e condições pessoais que lhe permitiriam actuar de forma correcta e adequada”.
Contudo, e com o devido respeito, não sufragamos tal entendimento da Mmª Juíza a quo.
Na verdade:
- Não resulta dos autos que a arguida tivesse (ou pudesse ter) qualquer informação relevante (decisiva) sobre o que, de concreto, acontecera ao C antes da sua entrada no Hospital de Faro (nomeadamente, até que horas consumiu álcool, se sofreu uma queda, se se envolveu nalguma disputa física com terceiros, etc.).
- Nada indica que as anotações constantes da ficha de urgência relativa ao C (e acima por nós transcritas) não sejam fiéis àquilo que a arguida efectivamente apurou (e podia ter apurado).
- Não podemos concluir que a arguida tinha a obrigação de determinar a realização de uma TAC, logo aquando da primeira observação que fez ao C, já que não tinha elementos de diagnóstico que lhe impusessem essa obrigação.
- As interrogações (as dúvidas) levantadas pela Mmª Juíza (designadamente relativas à concreta hora em que a arguida solicitou a realização da TAC, ou relativas a saber por que razão a arguida não acompanhou, até ao fim, a situação do C) não podem, sem mais, funcionar contra a arguida.
- O quadro clínico do C, tendo em conta todas as informações fornecidas à arguida e atendendo aos sintomas apresentadas pelo mesmo, era inteiramente compatível com a ingestão, em excesso, de bebidas alcoólicas e de drogas.
- Assim é que, o Colégio de Especialidade de Neurologia da Ordem dos Médicos, analisando a situação posta neste processo, e em parecer junto aos autos (Apenso I, a fls. 118 e 119), conclui, além do mais, que: “perante a informação recolhida e sintomatologia apresentada admite-se que o diagnóstico inicial fosse de intoxicação alcoólica. Uma história actual mais precisa, fazendo admitir um intervalo livre, colocaria a indicação de TAC. Nos documentos fornecidos não há indicação que esses elementos existissem nos documentos de entrada”; “o quadro é de disfunção encefálica difusa de grande prostração compatível com intoxicação alcoólica”; “o quadro não é típico de hematoma epidural”.
- Também o Colégio da Especialidade de Neurocirurgia da Ordem dos Médicos, debruçando-se sobre os elementos do presente processo, em parecer junto aos autos (Apenso I, a fls. 114 e 115), esclarece que “o quadro clínico descrito não corresponde ao habitualmente verificado no hematoma extradural agudo, designadamente sem anisocórria (antes se verificava midriase bilateral passível de se relacionar com a informação de ingestão de drogas e documentada presença de marijuana) e sem assimetria motora”.
Em conclusão: não se nos afigura que a arguida tenha violado a leges artis por não ter requisitado a TAC de imediato.
Acresce que nada nos indica, com clareza (e com o grau de certeza indispensável para submeter a arguida a julgamento), que a arguida não tenha, como declara nos autos, solicitado a TAC muito antes da sua efectiva realização, ou que a arguida não tenha passado, tempestivamente, a responsabilidade do doente para a especialidade médica que o caso exigia (atente-se que, na ficha clínica da urgência, na parte inferior esquerda, pode ler-se “enviado à especialidade de Neurologia às 13h20m”, e, logo de seguida, por baixo desses dizeres, consta o registo da observação efectuada pela especialista de neurologia Dr.ª E, onde é feita já uma referência à TAC realizada ao C).
Com base nesse escrito constante da ficha de urgência (“enviado à especialidade de Neurologia às 13h20m”), e se os serviços do Hospital de Faro tivessem funcionado normalmente, o C devia, logo após as 13h20m, ter sido observado por médico neurologista, sendo, assim, incorrecta a afirmação de que a arguida “abandonou” o doente à sua sorte.
Por conseguinte, e em jeito de síntese: perante a sintomatologia apresentada pelo falecido C, a arguida procedeu de acordo com as regras fixadas na sua profissão para tal sintomatologia.
Ou seja, a intervenção da arguida, no caso em apreço, foi, toda ela, conduzida de acordo com a arte médica (“leges artis”), não existindo prova nos autos que permita a este tribunal concluir que houve uma intervenção médica e uma execução de tratamento desconformes com o estado actual da ciência médica, com a normal prática clínica ou com o que era exigível à arguida.
Não omitiu a arguida, perante os conhecimentos científicos actuais e a prática clínica corrente, qualquer dever de diligência.
Actuou de acordo com o que era razoavelmente de esperar dela, enquanto médica de clínica geral, a trabalhar no serviço de urgência do Hospital Distrital de Faro.
Isto é: a arguida não violou qualquer dever de cuidado.
Só por aqui, o recurso do Ministério Público tem, necessariamente, de improceder.


b) Da verificação do resultado (morte) em consequência da omissão de diligência.

Além da violação de um “dever objectivo de cuidado”, é ponto assente, como bem expõe Hans Welzel (in “Derecho Penal Alemán”, 11ª ed., trad. esp., Santiago do Chile, Editorial Jurídica do Chile, 1970, pág. 194), que “tem que comprovar-se que o resultado se produziu em virtude de uma omissão de cuidado (...); de outro modo, deve absolver-se”.
Do mesmo modo, escrevem Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (in “Responsabilidade Médica em Portugal”, estudo publicado no BMJ, nº 332, pág. 73), que se “do error artis não derivar uma ofensa no corpo ou na saúde do paciente, a conduta do médico não será, por causa daquele erro, criminalmente punível”.
No lapidar dizer de Cuello Calón (in “Derecho Penal”, Tomo I, Parte General, Vol. 1º, Bosch Editorial, Barcelona, 1980, pág. 468), para a existência da negligência é preciso, entre outros requisitos, que “entre o acto inicial e o resultado danoso exista uma relação de causa e efeito. Esta relação tem de ser directa e imediata, de modo que entre o facto e o resultado não exista solução de continuidade”.
Ou, como muito bem refere o Prof. Eduardo Correia (in “Direito Criminal”, Liv. Almedina, Coimbra, 1971, Vol. 1º, pág. 423), “de negligência poder-se-á falar unicamente quando o agente pratique uma actividade donde resulte (...), e como consequência adequada dessa actividade, um facto punível. Isto é: objectivamente existe a omissão do dever de diligência apenas quando o resultado seja objectivamente imputável à actividade do agente. (…) A ilicitude reside na produção de um dano ou um perigo para bens jurídicos criminalmente protegidos, mas produção que tem de resultar como consequência adequada, típica e normal da conduta”.
Em suma: se o resultado (no caso dos autos, a morte do C) também se tivesse produzido ainda que tivessem sido observados todos os cuidados médicos devidos, não pode falar-se em negligência e em responsabilidade criminal da arguida.
Cabe, agora, aplicar estes considerandos ao caso sub judice.
Ora, nesta vertente, subscrevemos inteiramente a posição expressa pela Mmª Juíza a quo no despacho revidendo: “teremos que ter em devida atenção uma questão essencial: no dia dos factos, no Hospital Distrital de Faro não se encontrava ao serviço qualquer médico neurocirurgião, pelo que, necessariamente, a intervenção cirúrgica que teria que ser efectuada a C, perante o diagnóstico de hematoma epidural, implicaria a sua transferência para Hospital de Lisboa. (…) Tem de existir um nexo de causalidade entre a acção ou omissão e o resultado produzido. (…) Não se poderá afirmar, com alguma margem de certeza, a que horas foi detectada a midriase bilateral arreactiva, que, como referiu o Perito B, é sintoma de lesão já irreparável (sendo que a neurologista Isabel Vicente também declarou que esta é sintoma de morte cerebral). (…) Esta questão é insusceptível de ser esclarecida por qualquer meio de prova, mas teremos de dar credibilidade ao declarado por F no que concerne a ter detectado a midriase na sala de directos, após a detecção da paragem respiratória. (…) A intervenção cirúrgica adequada a debelar a condição clínica de C apenas se poderia realizar em Lisboa, para onde veio a ser efectiva (e inutilmente) transferido. Atenta a distância entre Faro e Lisboa, mais de 270km (…), então necessariamente seriam necessárias cerca de três horas para efectuar a deslocação do paciente até esse hospital, quer esse transporte fosse feito por ambulância quer fosse por helicóptero (considerando os depoimentos prestados neste sentido pelas testemunhas F e E). Ou seja, temos então que considerar que se a TAC tivesse sido pedida pela arguida entre as 12.30 e as 13:00 horas (…), quando o paciente chegasse ao local onde poderia ser intervencionado já se encontraria no mesmo estado clínico que foi detectado na TAC que foi efectuada no HDF às 16:27. (…) Perante o quadro clínico detectado na TAC, o paciente encontrava-se já num estado clínico irreversível, em que a intervenção cirúrgica já não seria viável para evitar o resultado morte. (…) Faltam meios de prova, insupríveis, que permitam considerar indiciado que, se a arguida A tivesse actuado de acordo com as boas e adequadas regras médicas, observando o dever de cuidado e diligência que se lhe impunham, diligenciando pela realização tempestiva de uma TAC, se pudesse, efectivamente, evitar o trágico e infeliz resultado que se veio a verificar, não podendo, por conseguinte, este ser-lhe imputado”.
Por outras palavras (e resumidamente): qualquer que fosse a concreta intervenção da arguida, ou qualquer que fosse o tratamento médico a que o C tivesse sido submetido no Hospital Distrital de Faro, o mesmo não sobreviveria, ou, sequer, veria a sua vida prolongada por mais algum tempo.
Perante as circunstâncias profusamente descritas pela Mmª Juíza a quo no despacho recorrido (e acima, parcelarmente, por nós transcritas), é de concluir, claramente, que no Hospital Distrital de Faro nada podia ser feito para evitar a morte do C, e, além disso, atendendo ao tempo necessário para o mesmo ser conduzido ao Hospital de S. José (em Lisboa), é de concluir também que não era possível, de qualquer modo, evitar tal morte.
Não foi, assim, a natureza do diagnóstico ou da terapêutica efectuados pela arguida, ou a existência de uma qualquer omissão por parte da mesma, que estiveram na causa do falecimento do C.
Com efeito, e ainda que a arguida tivesse providenciado pela imediata realização de uma TAC ao C, tal como, segundo o alegado na motivação do presente recurso, devia ter feito, ou seja, ainda que a arguida tivesse actuado “como se impunha” (na expressão constante da conclusão XII extraída da motivação do recurso), diagnosticando atempada e correctamente, e ao que está demonstrado nos autos, não teria evitado a morte do doente.
Isto é, quaisquer que fossem as atitudes e os cuidados tomados pela arguida, nada indica que pudesse ser evitada, ao que ficou apurado, a morte do C.
Assim sendo, não pode falar-se em negligência e em responsabilidade criminal da arguida.
*
Alega o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente (cfr., designadamente, conclusões XVII a XXII extraídas da motivação do recurso), que, estando indiciado que um diagnóstico atempado significa, em situações normais, a cura clínica das lesões que o ofendido apresentava, tal conclusão implica a verificação do nexo de causalidade afastado no despacho recorrido (pois o comportamento omitido pela arguida era o adequado a evitar o resultado, sendo as restantes vicissitudes posteriores irrelevantes em termos de punição do crime).
Com o devido respeito, nenhuma razão assiste ao Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente nessa sua alegação.
É que, para alguém responder penalmente por um crime negligente, exige-se, sem hesitações, que o resultado que se verificou pudesse ser evitado pelo sujeito.
É decisivo contar com que a acção contrária ao dever de cuidado conduza ao posterior e efectivo desenvolvimento dos acontecimentos, incluída a produção do resultado.
Este requisito falta quando o prejuízo do bem jurídico foi produzido com independência da conduta concretamente contrária a tal bem jurídico.
Tal questão pode ser perspectivada, de modo aceitável, com recurso à fórmula da teoria da adequação, sobre a base de uma prognose objectiva e efectuada a posteriori, mediante o juízo atento de um observador (objectivo) que estabeleça se cabe contar com o resultado efectivamente produzido enquanto realização do perigo criado pelo sujeito actuante.
Como bem escreve Maurach (in “Derecho Penal - Parte General”, Tradução da 7ª Edição Alemã, por Jorge Bofill Genzsch, Editorial Astrea, Buenos Aires, 1995, Vol. II, págs.135 e segs.), “a imputação objectiva depende de um acontecimento fáctico e do seu juízo. O acontecimento fáctico, a imputar, está constituído pela provocação de uma situação de perigo, com infracção do dever de cuidado (...), e a sua realização em prejuízo de um bem jurídico. Se se criou um perigo e se este foi concretizado é algo que deve ajuizar-se mediante o recurso às regras vigentes respectivas (conhecimentos científicos-naturais, máximas de experiência, etc.)”.
Dito de outro modo: só se pode falar na existência de negligência quando a conduta do agente se traduza na criação de um risco não permitido (incremento ou potenciação de risco), previsível ou cognoscível pelo agente, e desde que se estabeleça a relevância jurídico-penal de tal conduta, a qual apenas existirá quando o resultado lhe for objectivamente imputável, isto é, quando se verifica um resultado danoso mediante a actualização do risco, já que, como se sabe, a negligência é incompatível, entre nós, com a tentativa.
Só haverá negligência se a violação do dever objectivo de cuidado tiver criado um risco não permitido e, além disso, necessariamente, se o resultado se plasmar na concretização ou actualização de tal risco.
Assim, e em jeito de síntese: a imputação objectiva é determinante para apurar a responsabilidade criminal, sendo necessário que se possa concluir que o resultado aconteceu provocado pela conduta do agente.
É, pois, absolutamente imperioso que tenha sido pelo facto do agente ter incumprido as regras de cuidado que a morte (ou a lesão) da vítima sobreveio.
Ora, in casu, e conforme supra-exposto, o resultado que veio a ocorrer (morte do C) era insusceptível de ser afastado pela arguida.
A arguida não pode, assim, ser pronunciada.
Por conseguinte, e atento tudo o predito, o recurso é totalmente de improceder.


III - DECISÃO

Nos termos expostos, os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora decidem negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a douta decisão instrutória de não pronúncia.
Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 05 de Fevereiro de 2013.
João Manuel Monteiro Amaro
Maria Filomena de Paula Soares