Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
121/23.1PAENT-A.E1
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu.
II - Durante o inquérito, o depoimento da testemunha especialmente vulnerável deverá ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime, para garantir uma memória viva e próxima de tal ocorrência e, bem assim, para garantir a eficácia na obtenção de prova.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
O MP veio recorrer do despacho proferido pelo JIC que indeferiu a prestação de declarações para memória futura do ofendido (B), nos autos de Inquérito que correm termos contra o arguido (A), pela prática de factos suscetíveis de consubstanciar um crime de violência doméstica contra a sua ex-companheira (C) praticados na presença e também sobre a pessoa do (B).
Para o efeito apresentou as seguintes conclusões:
I. Por despacho judicial (com a referência 95109436, de 13.12.2023) proferido nestes autos, em que se investiga a prática do crime de violência doméstica (artigo 152º do Código Penal), por parte do arguido (A), na pessoa da sua ex-companheira (C) (artigo 152º do Código Penal), foi rejeitada a tomada de declarações para memória futura à criança (ofendida) (B).
II. É desta decisão que discordamos, e daí a interposição do presente recurso.
III. Nos presentes autos, em 06.12.2023 (com a referência 95067505) o Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura à testemunha (B) nos seguintes termos:
«Para o JIC:
Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, pelo arguido (A), do crime de violência doméstica, na pessoa da sua ex-companheira (C) (artigo 152º do Código Penal).
Resulta dos autos que o arguido (A) e (C) têm um filho em comum, o (B), nascido em (…..).
Segundo aquilo que resulta dos autos, o filho comum terá presenciado situações agressivas.
Na verdade, resulta, das declarações da ofendida, que o arguido a agredia fisicamente, na presença do filho comum, que enquanto viveram juntos o denunciado por diversas vezes a colocou na rua juntamente com o filho menor.
Resulta ainda do teor do aditamento n.º 7, que o arguido, quando telefona ao filho comum profere expressões injuriosas, referindo-se à ofendida (como «não presta, mete nojo, …»).
Segundo a testemunha (D) (fls. que antecedem) «o arguido injuriou a ofendida e ameaçou a própria testemunha na frente do filho (B); que o arguido telefone ao (B) e diz ‘a tua mãe não vale um caralho, é uma puta’».
Em sede de interrogatório, (A) negou os factos.
Importa, assim, proceder à inquirição de (B), em sede de declarações para memória futura, de forma a impedir que o mesmo seja diversas vezes confrontado com os factos, revivendo-os, de forma a evitar a vitimização daquele e a evitar o agravamento da sua saúde e estado psicológico/ emocional.
Só com a audição de (B), em sede de declarações para memória futura, se garantirá a frescura da sua memória e declarações.
Importa proceder à audição de (B), em ambiente formal e sem a presença do arguido, de modo a assegurar que o mesmo seja o mais livre e imparcial possível, sendo as declarações de (B) fundamentais para a prova dos factos e para a realização da justiça.
Atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos temos que (B) é particularmente indefeso, desde logo, pela sua tenra idade.
A criança terá sido ainda exposta a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatária de atos de violência, sendo vítima daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP).
Impõe-se que o ofendido (B) seja ouvido, desde já, existindo o risco que o denunciado poder exercer pressão sobre o seu filho, comprometendo a recolha das suas declarações de forma livre.
Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura ao ofendido (B), nascido em (…..), nos termos dos artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º 4 do Código de Processo Penal, 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal, 16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, e da Diretiva n.º 5/2019 da PGR (Ponto IV – A – 1 e 2), a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento, bem como a aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção para além do TIR, e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições do ofendido (B).
Importando que a audição de (B) seja feita o mínimo de vezes e o mais breve possível, assim se acautelando a frescura das suas memórias e se acautelando sucessivos e eventuais confrontos com o sistema judicial.
Mais se promove, que as declarações sejam tomadas na ausência do arguido, com a assistência de técnico especializado, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.»

IV. Por seu turno, no despacho ora recorrido, decidiu-se do seguinte modo:
«Investiga-se nos presentes autos a prática, pelo arguido (A), de factos suscetíveis de crime de violência previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, na pessoa da sua ex-companheira (C).
Ambos têm um filho comum (B), nascido em (…..), contando atualmente com 7 anos.
O Ministério Público veio requerer a prestação de declarações para memória futura por parte da referida criança.
Sustentou, para tanto, que os autos demonstram o seguinte:
«Na verdade, resulta, das declarações da ofendida, que o arguido a agredia fisicamente, na presença do filho comum, que enquanto viveram juntos o denunciado por diversas vezes a colocou na rua juntamente com o filho menor.
Resulta ainda do teor do aditamento n.º 7, que o arguido, quando telefona ao filho comum profere expressões injuriosas, referindo-se à ofendida (como «não presta, mete nojo, …»).
Segundo a testemunha (D) (fls. que antecedem) «o arguido injuriou a ofendida e ameaçou a própria testemunha na frente do filho (B); que o arguido telefone ao (B) e diz ‘a tua mãe não vale um caralho, é uma puta’»
Refere ainda que «a criança terá sido ainda exposta a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatária de atos de violência, sendo vítima daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP».
Apreciando.
Ora, nos termos do artigo 33.º da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro «O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.»
É consabido que as declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação, pois as provas recolhidas sob a égide do juiz de instrução podem ser tomadas em conta no julgamento. Trata-se, no fundo, de uma antecipação parcial do julgamento.
Subjacente à admissibilidade deste instituto – declarações para memória futura – está o interesse público da descoberta da verdade material, a conservação da prova e o interesse da vítima.
Como é bom de ver, tal meio probatório reveste um caráter excecional, devendo ser sopesados os interesses da investigação com outros interesses que devam ser protegidos.
Tal ocorre justamente no caso de as declarações para memória futura deverem ser prestadas por uma criança, circunstância que exige uma prévia ponderação sobre a necessidade de a mesma ser utilizada como meio probatório e, como tal, sujeitá-la à tensão inerente à prestação de um depoimento em Tribunal no âmbito de uma ação penal.
Nestes termos, haverá que atender aos meios de prova disponíveis, concretamente assentes na prova pessoal, personificada na assistente (C) e na testemunha (D), seu companheiro, como também na eventual existência de prova documental materializada nas mensagens trocadas entre o arguido e a assistente.
Ademais, importa não desconsiderar que a testemunha (D) como também a própria assistente afirmaram que a criança era destinatária das chamadas do arguido que se traduziam em expressões insultuosas dirigidas à mãe.
Assim, perante a diversidade de meios de prova existentes no caso em apreço, revela-se desnecessária a prestação de declarações por parte da criança.
É clara a intenção do legislador que na recolha da prova se protejam as vítimas, nomeadamente as crianças de tenra idade, sendo que a sua capacidade limitada de contextualizar factos no espaço e no tempo e de produzir relatos detalhados e coerentes implica que as suas declarações têm uma utilidade mais limitada como meio de prova.
Por outro lado, a sujeição de uma criança desta idade a esta diligência, no âmbito de um conflito que opõe os seus pais, é suscetível de causar na mesma trauma considerável.
Assim sendo, o mais elementar bom senso leva a que só se recorra ao testemunho de crianças neste tipo de situações traumáticas quando seja absolutamente necessário à obtenção da prova e a realização das finalidades do processo penal, o que, como vimos, não é o caso dos autos.
Pelo exposto, indefiro o requerido.
Notifique e devolva.».

V. Salvo o devido respeito, o Ministério Público não concorda com a decisão proferida pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal (JIC).
VI. Resulta dos autos que (B) terá sido exposto a situações de violência dirigidas a sua mãe, assim sofrendo danos psicológicos, traumáticos.
VII. Não obstante a jovem idade de (B) o mesmo sente o sofrimento, a tristeza, o medo de sua mãe.
VIII. Por outro lado, o (B) acabou também por ser destinatário direto de violência por parte do progenitor/arguido. Na verdade a mãe de (B) (a ofendida (C)) disse que «enquanto viveram juntos o denunciado por diversas vezes a colocou na rua juntamente com o filho menor» (fls. 22 a 23).
IX. Nesta medida, (B) é testemunha e ofendido, é vítima especialmente vulnerável, desde logo, atenta a sua jovem idade e bem assim porquanto ao testemunhar poderá ter de o fazer contra o progenitor.
X. O ofendido tem a saúde, integridade física e psicológica afetada, encontrando-se numa posição de particular e especial vulnerabilidade, sendo de toda a importância, para a salvaguarda da integridade psíquica (e física) do ofendido que ele possa, desde já, prestar declarações para memória futura, de forma rigorosa e esclarecedora, sendo que, as declarações poderão ser valoradas nas fases subsequentes do processo (inclusivamente de julgamento).
XI. Nos termos dos indicados artigos 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, e artigo 33.º Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, estão reunidos os pressupostos para a audição para memória futura do ofendido (B) nos autos.
XII. Cabe ao Ministério Público a direção da ação penal, decidindo o mesmo da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito, sendo de toda a utilidade e necessidade a audição da testemunha (B).
XIII. Não obstante a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica, não se pode ignorar que os mesmos, muitas vezes, demandam uma investigação que acaba por ser demorada, e em que os depoimentos das vítimas são essenciais na descoberta da verdade material, importando que os seus depoimentos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais), sobretudo quando estamos perante criança!
XIV. A audição desta testemunha (ofendido) nesta fase do processo e em sede de declarações para memória futura permitira evitar uma contaminação do seu depoimento assim como a perda de memória dos factos na sua plenitude.
XV. A audição da testemunha/ofendida/ vítima especialmente vulnerável (B) é fundamental para a realização das finalidades do processo penal, para a descoberta da verdade material, uma vez que (B) é uma das principais testemunhas dos factos, sendo fundamental ouvi-lo sobre o que efetivamente aconteceu, só assim se podendo fazer justiça!
XVI. Na verdade:
a. (C), mãe do ofendido (B), denunciou (A), pai do ofendido;
b. Ora, o arguido negou expressamente os factos;
c. As declarações de (C) são apenas corroboradas pelas do seu atual namorado (D), porém, atenta a relação amorosa entre (C) e (D) poder-se-á futuramente argumentar que a versão deste poderá estar comprometida com a de sua namorada.
d. A versão de (C) não está corroborada por qualquer outro elemento de prova (para além do testemunho de (D)), como sejam mensagens - apesar de (C) ter sido notificada para juntar aos autos as mensagens que pudesse ter na sua posse e que corroborassem a denúncia/ a sua versão (fls. 147), tais (alegadas) mensagens não foram juntas.
XVII. Com a diligência de tomada de declarações para memória futura, pretende-se também proteger (B), que é vítima especialmente vulnerável, evitando-se a sua vitimização secundária (artigo 17º da lei n.º 130/2015 de 4 de setembro).
XVIII. Nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, do Relator: AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA, de 12-10-2023, que aqui seguimos:
«I - Requerida a prestação de declarações para memória futura de vítimas de violência doméstica, o juiz de instrução apenas poderá indeferir o exercício de tal direito quando, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada da prova.
II - A prestação antecipada de declarações por menor de 12 anos de idade, vítima indireta dos atos de violência doméstica em investigação dirigidos à sua progenitora, evitará não só a perda de memória dos acontecimentos que presenciou e vivenciou (e que tenderá a esquecer) com o rigor necessário à descoberta da verdade material, permitindo a preservação da integridade da prova, como também salvaguardará a vítima, de futura exposição em julgamento, minimizando a sua vitimização secundária. (…)»
(in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/aeeaf9cc56fc048180258a580055330d?OpenDocument).
XIX. Tendo em vista evitar uma eventual lesão decorrente da sujeição a declarações para memória futura, prevê o legislador que as declarações sejam tomadas na ausência do arguido, com a assistência de técnico especializado, nada impedindo que o tribunal proceda à audição das vítimas (crianças) em ambiente informal e reservado.
XX. Na verdade, mais prejudicial será não fazer a justiça que o caso merece e permitir que esta criança continue a ser exposta a situações de violência, potenciando o desenvolvimento do trauma que a criança possa estar a vivenciar com essa exposição.
XXI. Na verdade, o tipo de trauma psicológico (e neuropsicológico) será tanto mais gravoso quanto estiver não só associado a stressores em idade precoce como associado a múltiplos incidentes.
XXII. Ora, só ouvindo a testemunha (que terá presenciado diretamente situações de violência doméstica) se poderá apurar aquilo que efetivamente sucedeu, a verdade material, e se poderão adotar medidas tendo em vista a sua proteção adequada e efetiva.
XXIII. Por outro lado, mantendo-se o indeferimento de tal diligência, a Magistrada do Ministério Público titular, terá de convocar o (B) para se deslocar aos Serviços do Ministério Público, para ser inquirido. Porém, as declarações de (B) não poderão então ser consideradas em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo que, terá de ser indicado como testemunha e ser chamado, uma vez mais, a prestar declarações, voltando a reproduzir os factos.
XXIV. Ora, a audição em sede de declarações para memória futura visa, no caso, evitar a revitimização de (B), que ele seja submetido a sucessivas inquirições que o obriguem a recordar e vivenciar repetidamente os acontecimentos.
XXV. Assim, ao ter decidido como decidiu, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 26º/2, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, artigo 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 4 de setembro, 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal, 16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º4, 53.º n.º 2 al. b), 67º-A, n. º1/a)i), iii), al. b), n.ºs 3 e 4, 262° e 263° do Código de Processo Penal.
XXVI. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho que determine a prestação de declarações para memória futura de (B).
XXVII. Assim, e nos termos de tudo o que foi supra exposto, substituindo o despacho recorrido por outro que determine a prestação de declarações para memória futura de (B), farão V.as Exas. a habituada Justiça!
*
O Sr. PGA junto desta Relação exarou o seguinte parecer:
Aderimos à fundada argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância pela sua correção jurídica e clareza, bem se pronunciando acerca das questões a dirimir, sendo que qualquer adenda de substância seria despiciente, restando-nos acompanhá-la, na íntegra.
Tudo ponderado, somos de parecer que o recurso deve obter provimento.
*
Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.º 419º, n.º 3 do C.P.P, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
Questões a decidir:
- Declarações para memória futura de criança, vítima de violência doméstica.
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***
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III – Apreciação:
O requerimento apresentado pelo MP com vista à tomada de declarações para memória futura à ofendida tem o seguinte teor:
Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, pelo arguido (A), do crime de violência doméstica, na pessoa da sua ex-companheira (C) (artigo 152º do Código Penal).
Resulta dos autos que o arguido (A) e (C) têm um filho em comum, o (B), nascido em (…..).
Segundo aquilo que resulta dos autos, o filho comum terá presenciado situações agressivas.
Na verdade, resulta, das declarações da ofendida, que o arguido a agredia fisicamente, na presença do filho comum, que enquanto viveram juntos o denunciado por diversas vezes a colocou na rua juntamente com o filho menor.
Resulta ainda do teor do aditamento n.º 7, que o arguido, quando telefona ao filho comum profere expressões injuriosas, referindo-se à ofendida (como «não presta, mete nojo, …»).
Segundo a testemunha (D) (fls. que antecedem) «o arguido injuriou a ofendida e ameaçou a própria testemunha na frente do filho (B); que o arguido telefone ao (B) e diz ‘a tua mãe não vale um caralho, é uma puta’».
Em sede de interrogatório, (A) negou os factos.
Importa, assim, proceder à inquirição de (B), em sede de declarações para memória futura, de forma a impedir que o mesmo seja diversas vezes confrontado com os factos, revivendo-os, de forma a evitar a vitimização daquele e a evitar o agravamento da sua saúde e estado psicológico/ emocional.
Só com a audição de (B), em sede de declarações para memória futura, se garantirá a frescura da sua memória e declarações.
Importa proceder à audição de (B), em ambiente formal e sem a presença do arguido, de modo a assegurar que o mesmo seja o mais livre e imparcial possível, sendo as declarações de (B) fundamentais para a prova dos factos e para a realização da justiça.
Atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos temos que (B) é particularmente indefeso, desde logo, pela sua tenra idade.
A criança terá sido ainda exposta a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatária de atos de violência, sendo vítima daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP).
Impõe-se que o ofendido (B) seja ouvido, desde já, existindo o risco que o denunciado poder exercer pressão sobre o seu filho, comprometendo a recolha das suas declarações de forma livre.
Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura ao ofendido (B), nascido em (…..), nos termos dos artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º 4 do Código de Processo Penal, 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal, 16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, e da Diretiva n.º 5/2019 da PGR (Ponto IV – A – 1 e 2), a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento, bem como a aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção para além do TIR, e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições do ofendido (B).
Importando que a audição de (B) seja feita o mínimo de vezes e o mais breve possível, assim se acautelando a frescura das suas memórias e se acautelando sucessivos e eventuais confrontos com o sistema judicial.
Mais se promove, que as declarações sejam tomadas na ausência do arguido, com a assistência de técnico especializado, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.
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O despacho judicial que apreciou este requerimento tem o seguinte teor:
Investiga-se nos presentes autos a prática, pelo arguido (A), de factos suscetíveis de crime de violência previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, na pessoa da sua ex-companheira (C).
Ambos têm um filho comum, (B), nascido em (…..), contando atualmente com 7 anos.
O Ministério Público veio requerer a prestação de declarações para memória futura por parte da referida criança.
Sustentou, para tanto, que os autos demonstram o seguinte:
«Na verdade, resulta, das declarações da ofendida, que o arguido a agredia fisicamente, na presença do filho comum, que enquanto viveram juntos o denunciado por diversas vezes a colocou na rua juntamente com o filho menor.
Resulta ainda do teor do aditamento n.º 7, que o arguido, quando telefona ao filho comum profere expressões injuriosas, referindo-se à ofendida (como «não presta, mete nojo, …»).
Segundo a testemunha (D) (fls. que antecedem) «o arguido injuriou a ofendida e ameaçou a própria testemunha na frente do filho (B); que o arguido telefona ao (B) e diz ‘a tua mãe não vale um caralho, é uma puta’»
Refere ainda que «a criança terá sido ainda exposta a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatária de atos de violência, sendo vítima daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP».
Apreciando.
Ora, nos termos do artigo 33.º da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro «O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.»
É consabido que as declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação, pois as provas recolhidas sob a égide do juiz de instrução podem ser tomadas em conta no julgamento. Trata-se, no fundo, de uma antecipação parcial do julgamento.
Subjacente à admissibilidade deste instituto – declarações para memória futura – está o interesse público da descoberta da verdade material, a conservação da prova e o interesse da vítima.
Como é bom de ver, tal meio probatório reveste um caráter excecional, devendo ser sopesados os interesses da investigação com outros interesses que devam ser protegidos.
Tal ocorre justamente no caso de as declarações para memória futura deverem ser prestadas por uma criança, circunstância que exige uma prévia ponderação sobre a necessidade de a mesma ser utilizada como meio probatório e, como tal, sujeitá-la à tensão inerente à prestação de um depoimento em Tribunal no âmbito de uma ação penal.
Nestes termos, haverá que atender aos meios de prova disponíveis, concretamente assentes na prova pessoal, personificada na assistente (C) e na testemunha (D), seu companheiro, como também na eventual existência de prova documental materializada nas mensagens trocadas entre o arguido e a assistente.
Ademais, importa não desconsiderar que a testemunha (D) como também a própria assistente afirmaram que a criança era destinatária das chamadas do arguido que se traduziam em expressões insultuosas dirigidas à mãe.
Assim, perante a diversidade de meios de prova existentes no caso em apreço, revela-se desnecessária a prestação de declarações por parte da criança.
É clara a intenção do legislador que na recolha da prova se protejam as vítimas, nomeadamente as crianças de tenra idade, sendo que a sua capacidade limitada de contextualizar factos no espaço e no tempo e de produzir relatos detalhados e coerentes implica que as suas declarações têm uma utilidade mais limitada como meio de prova.
Por outro lado, a sujeição de uma criança desta idade a esta diligência, no âmbito de um conflito que opõe os seus pais, é suscetível de causar na mesma trauma considerável.
Assim sendo, o mais elementar bom senso leva a que só se recorra ao testemunho de crianças neste tipo de situações traumáticas quando seja absolutamente necessário à obtenção da prova e a realização das finalidades do processo penal, o que, como vimos, não é o caso dos autos.
Pelo exposto, indefiro o requerido.
Notifique e devolva.
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Apreciando e decidindo:
Está em causa a tomada de declarações para memória futura de alegada vítima de violência doméstica menor de idade, (B), filho do arguido e da ofendida.
Para análise e decisão do recurso há que ter em conta que os actos denunciados consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo art.º 152.º do CP, o que impõe desde logo que se tenha em conta toda a legislação vigente sobre este flagelo que constitui a prática deste crime. Seguiremos de perto o nosso Acórdão proferido no TRL, em 25-05-2023, proferido no Proc. 108/23.4PXLSB-A.L1-9, in www.dgsi.pt.
Assim e desde logo, para melhor se interpretarem as normas vigentes em Portugal, nomeadamente as que respeitam aos direitos das vítimas, entre os quais se inclui a prestação de declarações para a memória futura (art.º 21.º e 22.º do Estatuto da Vítima) há que ter em conta a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, conhecida como Diretiva das Vítimas; Como é sabido, esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro.
São estes diplomas e respetivas normas, complementadas pela Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, maxime o seu art.º 28.º (por força do que se dispõe no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009), e a Lei 112/2009 de 16 setembro, concretamente no seu art.º 33, que regem esta temática, porquanto constituem normas especiais relativamente à regra geral vertida no art.º 271.º do CPP, que regulam a prestação de declarações para memória futura das vitimas de violência doméstica.
Por força do disposto no art. 14.º, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima.
A atribuição deste estatuto determina a aquisição por parte da vítima vários direitos de natureza processual[2], a que não é alheio o conhecimento científico sobre as fragilidades emocionais das vítimas de violência doméstica, que determinou, aliás, que a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgo Convenção de Istambul, a Diretivas da União Europeia a que já se fez referência e bem assim a recente Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Estrasburgo, 8.3.2022, COM(2022) 105 final, 2022/0066 (COD).
Uma vez que o crime de violência doméstica, tendo em conta a sua natureza, preenche a previsão legal de criminalidade violenta ou especialmente violenta, como definidas no art.º 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n° 1 al. a) i) e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo diploma.
Ora, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, e no caso das crianças expressamente consagrado no art.º 22.º do mesmo Estatuto.
Para além de um direito seu, as declarações para memória futura constituem meio de prova e por isso pode revelar-se essencial para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz, ao mesmo tempo que constituem um meio de proteção da própria vítima.
Vejamos:
A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, conhecida por Lei da Violência Doméstica, tem entre outras como Finalidades, definidas no art.º 3.º:
A presente lei estabelece um conjunto de medidas que têm por fim:
a) Desenvolver políticas de sensibilização nas áreas da educação, da informação, da saúde, da segurança, da justiça e do apoio social, dotando os poderes públicos de instrumentos adequados para atingir esses fins;
b) Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz;
c) Criar medidas de protecção com a finalidade de prevenir, evitar e punir a violência doméstica[3];
Determinando o art.º 16.º da mesma LVD, que consagra o direito à audição e à apresentação de provas, no seu n.º 2 que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Por sua vez o art.º 20.º, ainda da LVD, sobre o direito à proteção, nomeadamente que 3 - Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública. Donde se retira, sem qualquer margem para dúvidas que as declarações para memória futura constituem em si mesmas um meio de prova e um meio de proteção da vítima.
A preocupação do legislador de proteção da vítima contra a vitimização secundária, estende-se inclusivamente ao modo como a mesma deve ser ouvida/inquirida e para evitar que sofra pressões, o que expressamente consagrou no art.º 22.º da LVD, Condições de prevenção da vitimização secundária, tendo consagrado de forma expressa, no seu n.º 1 que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.
Ora, é conhecimento público e comum, decorrente da investigação científica sobre as vítimas de violência doméstica, que estas vítimas sofrem pressões por parte dos agressores, para que alterem os seus depoimentos, o que logram conseguir atentas as sabidas fragilidades emocionais da vítima, caracterizadas por uma igualmente conhecida dependência emocional, psicológica e afetiva relativamente à pessoa do agressor, o que no caso concreto se verifica com particular acuidade dada a relação de pai e filho.
As declarações para memória futura constituem, assim, um meio de proteção da vítima[4], pelo que entendemos ser-lhe de aplicar o disposto no art.º 29.º-A da LVD, medidas de proteção à vítima, e por conseguinte as mesmas devem ser prestadas no prazo de 72 horas a que alude o n.º 1 deste normativo:
1 - Logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia já adotadas, o Ministério Público, caso não se decida pela avocação, determina ao órgão de polícia criminal, pela via mais expedita, a realização de atos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido[5].
Esta interpretação sai reforçada se tivermos em conta o elemento histórico e já consagrado no art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que institui a Lei de Proteção de Testemunhas, aplicável ao caso atento o disposto no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009, o qual dispõe, sobre a Intervenção no inquérito, que:
1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
Quer garantir-se que a testemunha especialmente vulnerável preste depoimento o mais rapidamente possível a seguir à prática factos para garantir a sua memória mais viva e próxima da ocorrência e bem assim garantir a obtenção de prova, já que nas situações como a presente como já dissemos e repetimos, as vítimas estão ligadas ao agressor por laços afetivos e sofrem pressões para alterar os seus depoimentos ou não os produzirem de todo.
Por outro lado, nestes actos processuais urgentes de aquisição de prova têm que necessariamente se incluir a tomada de declarações à vítima, já que estas se revelam imprescindíveis como meio de prova[6] e ponto de partida para a realização de outros meios de prova, constituindo, para proteção da vítima a inquirição do arguido um acto posterior às declarações (exceto em situações de detenção em flagrante delito) e aplicação de medidas de coação, caso se recolham indícios sérios da prática dos factos denunciados consubstanciadores do crime de violência doméstica[7].
Este nosso entendimento colhe demonstração na própria estrutura da Lei 112/2009, LVD, uma vez que o Artigo 33.º, que prevê a tomada de declarações para memória futura, se encontra inserido na SECÇÃO II, Proteção policial e tutela judicial, do CAPÍTULO IV, sob o título Estatuto de vítima.
Assim, repita-se, da inserção sistemática das declarações para memória futura na Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que instituiu o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência suas Vítimas (LVD), resulta sem qualquer dúvida que as mesmas constituem, para além de por natureza um acto judicial que consubstancia uma antecipação da audiência de julgamento, sujeito à observância do seu formalismo dentro do possível, um meio de proteção da vítima, constituindo mesmo um direito seu, já que estas vítimas são vítimas especialmente vulneráveis (cf. art.º 67.º A, n.º 3, 1.º al. j) e l) do CPP e art.º Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima).
Aqui chegados, tendo em conta o disposto no art.º 33.º da LVD, Lei 112/2009 16 de setembro, e no art.º 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, sendo o (B) vítima especialmente vulnerável porque vítima de violência doméstica e em razão da sua condição de criança, pois é menor de 18 anos, (art.º 67.º A, n.º 1, al. d) não tendo qualquer fundamento legal o invocada excecionalidade da prestação de declarações para memória futura. Serem ouvidas em declarações para memória futura, o mais próximo possível a seguir aos factos, no prazo de 72 h, nos termos já explicitados, para que consigam contar o que se passou da forma menos traumática possível, é um direito das vítimas, sejam maiores ou menores de idade, quando vítimas de determinados crimes como o de violência doméstica aqui em causa.
A proteção da criança invocada na decisão não tem cabimento neste âmbito. Na verdade, o objetivo do processo crime não é a proteção da vítima, mas sim a reposição da validade da norma jurídica violada, embora esta não seja nem possa ser esquecida. Com efeito, a vítima deve ser protegida no decurso de todo o processo, por razões de humanidade, para que, protegendo-se e facultando-se-lhe as melhores condições para participar na realização da justiça se alcancem os objetivos desta.
Ora, no caso tendo em conta a prova já recolhida não podemos afirmar que estamos perante falsas denúncias e que por isso a criança esteja a ser utilizada numa contenda entre os pais. A criança é vítima. Direta e indireta, como os factos impõem que se conclua. Não é meio de prova de um dos progenitores contra o outro. É ela própria titular de direitos que foram ofendidos com a imputada atuação de seu pai e por isso, é uma verdadeira vítima de atos sobre si praticados e não mera testemunha de atos praticados de um contra o outro.
A prestação de declarações de crianças em Tribunal tem sido alvo de estudos das mais diversas áreas, tendo a psicologia concluído que este acto, enquanto manifestação e consubstanciação da participação da criança no processo conducente à reposição da legalidade, à feitura da justiça, não constitui em si mesmo qualquer acto traumático ou que importe vitimização secundária, podendo ao contrário ser reparador ou organizador [8]se devidamente realizado; por isso deve ser levado a cabo com a colaboração e assistência de profissional especializado que consiga capaz de transmitir confiança e à vontade à criança para que conte o que se passou, o que têm necessariamente que ser feito de forma tranquila, em local, traje e modo informal, sem sugestões, com recurso a perguntas abertas e sem juízos de valor, sempre adequado ao grau de maturidade da criança. Este acto deve ser precedido de uma avaliação por parte do juiz incidente sobre a idade e grau de maturidade da criança para perceber o alcance da sua participação e de descrição do que passou, viu e ou ouviu, de modo a que possa diligenciar pela colaboração e assistência de um profissional com formação em psicologia e conhecimentos em audição/inquirição da criança em contexto forense, nos termos do art.º 24.º, n.º 5 do Estatuto da Vítima, última parte, que prescreve que deve a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal).

Estes princípios estão enunciados nas Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a Justiça Adaptada às Crianças (https://rm.coe.int/16806a45f2), respeitantes a todos os processos em que a criança deva participar, quer no exercício do seu direito a ser ouvida, como sejam nos processos Tutelares Cíveis, de que constitui maior exemplo o processo de Regulação sobre o Exercício das Responsabilidades Parentais, quer de Promoção e Proteção, Tutelar Educativo ou de outra natureza, nomeadamente Penal em que deva ser ouvida como testemunha.
E tanto assim que, o RGPTC prevê, no seu art.º 5.º, n.º 7, al. d) que as declarações para memória futura da criança prestadas em processo crime podem ser utilizadas meio probatório no processo tutelar cível, de modo a evitar a retomada de declarações à criança e a eventual revitimização decorrente do reviver inerente à revisitação de memórias de situações dolorosas e traumáticas.
Não é a audição ou inquirição da criança em Tribunal que é em si mesma traumática mas sim a revisitação de memórias dolorosas ou traumáticas que ocorre necessariamente quando a criança é inquirida mais do que uma vez sobre o mesmo assunto[9].
Por outro lado, evita-se a contaminação da memória, como defendido pelo MP, e o filling the blanks que o nosso cérebro automaticamente realiza sempre que tentamos recordar algo passado. Não se guardam na memória imagens fotográficas nem gravações áudio, mas apenas excertos dos acontecimentos vivenciados, de modo que ao contar, ao reviver, tudo é reordenado pelo cérebro de forma automática de forma lógica, preenchendo espaços entre os fragmentos de memória de forma totalmente inconsciente e automática[10].
É ainda necessário ter em conta que as declarações da criança, neste caso em particular podem ser altamente importantes para a definição do estatuto processual do arguido, como se vê do disposto no art.º 200.º, n.º 1, al.s a) e d), e n.º 6 do CPP.
De todo o exposto, não distinguindo o legislador a atribuição do direito de prestar declarações para memória futura que consagrou a favor das vítimas especialmente vulneráveis entre as maiores ou menores de idade também o interprete o não deve fazer, sendo certo que na decisão recorrida nem tão pouco isto se verifica já que na mesma se parte de um pressuposto sem qualquer apoio legal qual seja o que que estas declarações têm carácter excecional, quando o não têm. Constituem um direito das vítimas especialmente vulneráveis, condição que o (B) acaba por preencher por verificação de duas previsões legal – a decorrente da natureza do crime de que terá sido vítima e a decorrente da sua idade.
Todo o regime do Estatuto da Vítima, mais concretamente dos direitos das vítimas especialmente vulneráveis especialmente o disposto no art. 24º nº 6 da Lei 130/2015 que prevê que só se for indispensável à descoberta da verdade e desde que não ponha em causa a saúde física e psíquica da pessoa, é que a reinquirição em audiência de julgamento poderá ter lugar, impõe que se conclua que nas situações de crimes de violência doméstica, já que as suas vítimas são por força de lei especialmente vulneráveis, a tomada de declarações para memória futura são e devem ser a regra, devendo realizar-se no mais curto espaço de tempo a seguir à prática dos factos, se possível dentro das 72 horas seguintes (para proteção da vítima, melhor recolha de prova, já que o depoimento mais próximo da ocorrência dos factos será o que corresponderá à tradução mais fiel dos acontecimentos, processo tem natureza urgente, evita a revitimização, e protege a vítima contra pressões, represálias ou qualquer forma de intimidação por parte do agressor).
Termos em que procede o recurso apresentado.

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IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Évora, em:
Julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revoga-se o despacho proferido, o qual deve ser substituído por outro que defira o requerido pelo MP e designe data para tomada de declarações para memória futura à criança ofendida, (B), se possível com recurso a profissional com competência para colaborar na inquirição (cf. Art.º 24.º, n.º 5 do Estatuto da Vítima).

Évora, 6 de fevereiro de 2023
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).

Maria Perquilhas
Fernando Pina
Renato Barroso

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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.
[2] V. Relatório do Dossiê ns 3/2018-AM, Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, in https://earhvd.sg.mai.gov.pt/Pages/default.aspx#:
5.1. A vítima como sujeito do processo
A vítima é um sujeito do processo penal. A atribuição do estatuto de vítima não é uma mera formalidade. É um momento em que esta toma conhecimento dos seus direitos e garantias a partir da altura em que é apresentada denúncia por ato punível como crime de violência doméstica. Tais direitos e garantias encontram-se estabelecidos na LVD, que hoje tem de ser complementada com as normas que constam do Estatuto da Vítima em processo penal (EV-aprovado pela Lei n° 130/2015, de 4/9), bem como na Lei de Proteção de Testemunhas (aprovada pela Lei n° 93/99, de 12/7 e alterações de 2008 e 2010). Nos termos do art° 67°, n°1/b) e 3. do Código de Processo Penal, as vítimas de violência doméstica são consideradas vítimas especialmente vulneráveis.
[3] Sublinhado nosso.
[4] Neste sentido também Paulo Dá Mesquita, Anotação ao art.º 271.º, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, § 12, pág. 970.
[5] Note-se que mesmo as medidas de coação devem ser promovidas no mesmo prazo das 72 horas a fim de evitar a escalada de violência que muitas vezes se verifica. Contudo, a promoção das medidas de coação dentro do referido prazo nem sempre é compatível com os elementos probatórios recolhidos nos autos com exceção da situação em que os denunciados são surpreendidos na prática do crime em situações de flagrante ou quase flagrante delito. Na verdade, na maioria das situações a prova a recolher para fundamentar a existência de indícios da prática do ilícito e justificar a aplicação de medidas de coação não é compatível com o curto prazo das 72 horas, o que não se verifica relativamente à promoção e tomada de declarações para memória futura que depende apenas da disponibilidade do Tribunal.
[6] Pese embora não incida sobre caso como o presente, veja-se o que consta do Relatório Final Dossiê ns 3/2018-AM: A disponibilidade demonstrada por A para dar o seu testemunho permitiu obter uma abordagem que deverá, sempre que possível, ser equacionada e valorada - a voz da vítima!
Expomos a perspetiva de quem sente a humilhação num dia, os insultos no outro, o menosprezo na semana seguinte, o puxar de cabelos após dois meses, um empurrão e um murro na face no final do ano, e assim consecutivamente. A violência num crescendo, em perfeita sincronia com o tempo de conjugalidade, enquanto a dignidade da vítima vai no sentido inverso, se instala o medo - o esperado companheiro de vida, paulatinamente, metamorfoseado em inimigo.
[7] E esta estratégia de investigação e juízo sobre a ordem de produção e recolha de meios de prova no decurso do inquérito implica um juízo de oportunidade que apenas ao MP cabe fazer, sob pena de violação do princípio do acusatório.
[8] Catarina Ribeiro, 2009, A criança na Justiça, Almedina.
[9] Catarina Ribeiro, ob cit.
[10] Sobre o tema da Memória, V. Albuquerque, Pedro B., e outro, Os (Des)arranjos da Memória no Testemunho, Natureza Reconstrutiva da Memória, in Psicologia do Testemunho, 2021, Pactor.