Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
240/18.6T8BJA.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: CAUSA DE PEDIR
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A causa de pedir é o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido e exerce uma função individualizadora deste último para o efeito da conformação do objecto do processo.
2 – Sendo dentro dos limites fixados pela causa de pedir que o tribunal exerce os seus poderes de cognição, a sentença não pode basear-se em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
3 – Alegando o autor, como causa de pedir, a celebração de um contrato de compra e venda com o réu e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por parte deste, se não se provar a celebração daquele contrato nem, logicamente, o referido incumprimento, está vedado, ao tribunal, condenar o réu no pagamento da quantia peticionada a título de restituição de quantia emprestada pelo autor em consequência da nulidade de contrato de mútuo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 240/18.6T8BJA.E1

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(…) propôs a presente acção declarativa comum contra (…), pedindo a condenação deste último a pagar-lhe a quantia de € 16.000,00 acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor para as operações civis, desde a citação até à data do integral pagamento. Como fundamento, o autor alegou, em síntese, que, em Maio de 2013, vendeu, ao réu, um tractor que comprara cerca três meses antes; ficou acordado que o preço, de € 30.000,00, seria pago pelo réu em prestações de montantes variáveis em função das receitas que este obtivesse através da prestação de serviços a terceiros mediante a utilização do tractor; por conta do preço, o réu pagou a quantia de € 14.000,00; no Verão de 2017, o réu vendeu o tractor a terceiro, assim se colocando na posição de não mais poder cumprir o acordado.

O réu contestou, alegando, em síntese, que comprou o tractor, não ao autor, mas à pessoa a quem este último alegou tê-lo comprado; essa compra realizou-se em Março de 2013, pelo preço de € 11.000,00, o qual se encontra pago; o autor emprestou ao réu os referidos € 11.000,00; o réu já restituiu esta quantia ao autor, acrescida de juros no montante de € 3.000,00. O réu concluiu que a acção deverá ser julgada improcedente.

Teve lugar audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente, condenou o réu a restituir ao autor a quantia de € 16.000,00, acrescida de juros contados desde a citação (22.02.2018) até efectivo e integral pagamento.

O réu recorreu da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.ª – A instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, vide princípio da estabilidade da instância (artigo 260.º do Código de Processo Civil), sendo que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (vide n.º 1 do artigo 609.º do mesmo diploma), isto em ordem e em função do ónus de alegação das partes (em especial, do autor), vide n.º 1 do artigo 5.º do mesmo diploma.

2.ª – Consagra o nosso direito processual civil a teoria da substanciação –vide n.º 4 do artigo 581.º, n.º 1 do artigo 5.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do Código de Processo Civil – para a qual a causa de pedir será o facto gerador do direito, isto é, o acontecimento concreto correspondente a qualquer fatispécie jurídica que a lei admita como criadora de direitos, com o que estaremos perante acções diferentes sempre que seja diferente o facto constitutivo invocado.

3.ª – A única questão essencial decidenda em causa, é saber se, perante os factos apurados, ao autor assistia, ou não, direito ao pagamento do remanescente do preço do tractor, no âmbito de um alegado contrato de compra e venda.

4.ª – Não se provando compra e venda, o tribunal a quo não podia “repristinar” aquele montante, “fosse a que título fosse” condenando o réu a restituí-lo.

5.ª – Sendo a compra e venda a única causa de pedir invocada pelo autor, vedado estava ao tribunal convolá-la para outra qualquer, designadamente, a respeitante ao mútuo nulo, por inobservância de forma – cfr. art.º 5.º, n.º 2, al. b), do CPC de 2013.

6.ª – Ao tê-lo feito, tendo conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento e tendo condenado em objecto diverso do pedido, o tribunal a quo violou os princípios do dispositivo e da substanciação, e o disposto no n.º 4 do artigo 581.º, n.º 1 do artigo 5.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do Código de Processo Civil.

7.ª – O que acarreta necessariamente a nulidade da sentença – artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC – que se deve declarar com todas as legais consequências.

8.ª – Se assim se não decidir, sempre ocorre erro de julgamento na decisão sobre a matéria de facto, a justificar a reapreciação da prova gravada no confronto com a prova documental.

9.ª – Foi incorretamente julgado, e impugna-se, o ponto 2 do elenco dos factos provados, na parte em que deu por provado que o réu prestava serviços agrícolas esporádicos ao autor e solicitou-lhe que adquirisse para si o veículo identificado em 1.

10.ª – Ponto que deverá ser reformulado após reapreciação da prova gravada, de maneira a que passe a constar o seguinte: “O réu foi, durante muitos anos trabalhador agrícola do autor e solicitou-lhe que adquirisse o veículo identificado em 1, uma vez que não dispunha de verba para esse efeito, mas pretendia obter um subsídio estatal de apoio à criação do próprio emprego.”

11.ª – Os concretos meios probatórios que impõem decisão no sentido propugnado pelo recorrente, que não foram devidamente valorados na sentença recorrida, são:

- As declarações de parte do réu, prestadas no dia 29.11.2018 (ficheiro 20181129102509_997310_2870366) registadas através do sistema integrado de gravação digital, cujo início ocorreu pelas 10:25:10 horas e o seu termo pelas 11:17:12 horas, designadamente as passagens 05:50 a 06:10, e 42:23 a 42:41;

- O depoimento da testemunha (…), do dia 29.11.2018 (ficheiro 20181129111819_997310_2870366), cujo início ocorreu pelas 11:18:19 horas e o seu termo pelas 11:42:23 horas, com relevo para as passagens 06:16 a 6:35, 07:10 a 08:44;

- O depoimento da testemunha … (ficheiro 20181129115009_997310_2870366) prestado no dia 29.04.2019, cujo início ocorreu pelas 11:50:10 horas e o seu termo pelas 12:03:09 horas, designadamente as passagens 10:52 em diante;

12.ª – Também foram incorretamente julgados, e impugnam-se, os pontos 8 e 9 do elenco dos factos provados (este último na parte em que refere que a entrega dos 14 mil euros foi por conta do preço pago pelo autor pela aquisição do tractor identificado em 1).

13.ª – Impõem decisão diversa da recorrida o teor do depoimento da testemunha (…), do dia 29-11-2018 (ficheiro 20181129111819 _997310_2870366, cujo início ocorreu pelas 11:18:19 horas e o seu termo pelas 11:42:23 horas), com relevo para as passagens 06:16 a 6:35, 07:10 a 08:44, transcritas no corpo das alegações, e o depoimento da testemunha … (ficheiro, 20181129115009 _997310_2870366), dia 29-04-2019, cujo início ocorreu pelas 11:50:10 horas e o seu termo pelas 12:03:09 horas, designadamente as passagens 03:25 a 04:24 e 4:50 a 4:60, transcritas no corpo das alegações.

14.ª – Reapreciada que seja a prova, o ponto 8 do elenco dos factos provados deve, ao invés, julgar-se não provado, passando ao elenco dos factos não provados.

15.ª – Quanto ao ponto 9, dele deve passar a constar que “Até final de 2016, o réu entregou ao autor o valor total de € 14.000,00 (catorze mil euros).”

16.ª – Impõe-se aditar ao elenco dos factos provados, os seguintes pontos, que resultaram da discussão da causa:

16. O réu trabalhou associado ao autor, pretendiam fazer uma sociedade, até para obterem subsídios.

17. Era o réu quem manobrava a máquina, mas era o autor quem tinha o poder de decisão sobre ela.

18. Existia um acordo entre ambos, também quanto a pagamentos, cujos exactos termos se desconhecem.

16.ª – Dando-se provimento às alterações propugnadas na matéria de facto, estas ditam que não possa subsistir a decisão de condenação do réu a restituir ao autor a quantia de € 16.000, acrescida de juros contados desde a citação (22.02.2018) até efectivo e integral pagamento, impondo-se absolver o réu do pedido.

17.ª – Ainda que se decida manter inalterada a matéria de facto, ou parte dela, no âmbito do recurso sobre a matéria de direito, verifica-se que os factos provados enquadram-se na existência de um acordo de índole societária (“sociedade irregular”) entre autor e réu.

18.ª – Assim se compreende a razão porque o autor realizou outras despesas com o tractor (no seu transporte e manutenção), até quando o mesmo já estava entregue ao réu – v.d. pontos 6. e 7. do elenco dos factos provados.

19.ª – A circunstância do réu ter pago ao autor até final de 2016 a quantia de € 14.000,00, quando era ele quem trabalhava com o tractor, não obsta ao reconhecimento da existência da sociedade irregular, pois tal pagamento pode inserir-se, perfeitamente, no âmbito da repartição de lucros da referida actividade societária.

20.ª – O que indubitavelmente se verifica dos elementos probatórios produzidos, é a existência de acordo diverso entre as partes aquele que, cada uma delas, alegou nos respectivos articulados, sem que possa qualificar como tratando-se de um contrato de mútuo, por inverificação dos respectivos pressupostos.

21.ª – Acresce que a sentença recorrida desvalorizou totalmente, e não explica, o facto do vendedor (…) ter emitido uma “declaração”, através da qual declara que vendeu um tractor da marca KOMATSU, usado, do ano 1999, quadro n.º (…), modelo (…), equipado com buldozer, ripper louritex, ao autor, pelo valor de € 30.000,00.

22.ª – A ter havido um qualquer empréstimo, então ele terá que ter sido feito à “sociedade” irregular (meramente verbal) constituída entre autor e réu, e, corresponde à entrada do autor no capital social, na qualidade de sócio de capital.

23.ª – O certo é que, não ficou demonstrado que o autor “emprestou” ao réu a aludida quantia de 30 mil euros.

24.ª – Não pode dar-se como provado qualquer facto que permita concluir que o réu se obrigou a restituir o montante de 30 mil euros ao autor.

25.ª –A sentença recorrida fez errada aplicação aos factos do disposto no artigo 1142.º e seguintes do Código Civil, não podendo manter-se na ordem jurídica.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.


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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade da sentença;

2 – Reapreciação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Existência de uma sociedade irregular entre autor e réu.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Em data não concretamente apurada, o réu pretendeu adquirir um tractor para iniciar actividade de exploração agrícola em nome individual, tendo para o efeito realizado pesquisas na internet e encontrado um que era do seu agrado, propriedade de (…), da marca KOMATSU, usado, do ano 1999, quadro n.º (…), modelo (…), equipado com buldozer, ripper louritex e uma grade de discos.

2. O réu prestava serviços agrícolas esporádicos ao autor e solicitou-lhe que adquirisse para si o veículo identificado em 1, uma vez que não dispunha de verba para esse efeito, mas pretendia obter um subsídio estatal de apoio à criação do próprio emprego.

3. Acedendo ao pedido do réu, as partes deslocaram-se a Rio Maior, em 07 Fevereiro de 2013, tendo o autor entregado a (…), para pagamento do preço devido pelo tractor identificado em 1, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros).

4. Através de cheque emitido à ordem deste, com o n.º (…), sacado sobre a conta de depósitos à ordem, titulada pelo autor, da Caixa de Crédito Agrícola de Beja e Mértola CRL, n.º (…).

5. Na data referida em 3, (…) emitiu uma “declaração”, através da qual declara que vendeu um tractor da marca KOMATSU, usado, do ano 1999, quadro n.º (…), modelo (…), equipado com buldozer, ripper louritex, ao autor, pelo valor de € 30.000,00.

6. Na data referida em 3, o autor pagou a (…), Lda. a quantia de € 120,00 (cento e vinte euros) relativamente a um Kit bomba gasóleo 12V c/ acessórios; a (…), Acessórios Automóveis, Lda. a quantia de € 158,26 (cento e cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos), relativa a filtro de combustível, motul Tekma Mega e Ecolub; em 11.02.2013 pagou a (…) Sociedade de Máquinas e Equipamentos, SA, € 20,01 (vinte euros e um cêntimos) relativo a filtro de óleo e, em 24.02.2013, pagou a (…) Progresso (…), Lda. o valor de € 144,72 (cento e quarenta e quatro euros e setenta e dois cêntimos), tudo para o veículo identificado em 1.

7. Em 13.02.2013 a Transportadora (…), Lda. realizou a deslocação do veículo identificado em 1, de (…) para (…), tendo o autor pago a quantia de € 369,00 (trezentos e sessenta e nove euros).

8. Autor e réu acordaram que este pagaria o montante que o primeiro entregou ao vendedor do veículo identificado em 1, em prestações de montantes variáveis, dependentes dos ingressos financeiros que obtivesse através dos serviços que iria prestar a terceiros com o veículo identificado em 1.

9. Até final de 2016, o réu entregou ao autor o valor total de € 14.000,00 (catorze mil euros) por conta do preço pago por este para aquisição do tractor identificado em 1.

10. Para que o réu pudesse obter o subsídio a que se candidatou no Instituto de Emprego e Formação Profissional e com esse montante pagar ao autor o tractor identificado em 1, (…) emitiu declaração de venda datada de 02.04.2013, onde o réu consta como comprador do veículo identificado em 1, equipado com buldozer, ripper louritex e grade florestal pelo preço de € 11.000,00 (onze mil euros).

11. Em 30.09.2013, o réu candidatou-se ao benefício do cartão de gasóleo colorido e marcado, tendo pago o montante de € 31,60 pela emissão de dois cartões gasóleo – (…) e (…), onde fez constar o tractor identificado em 1.

12. O réu declarou à Autoridade Tributária o início de actividade agrícola em 22.03.2013.

13. Em 31.12.2013, o réu inventariou o mesmo veículo nos activos da actividade e em 31.05.2016 fez constar o mesmo na rubrica dos activos tangíveis do Balancete Geral.

14. Em Julho de 2017, o réu vendeu o veículo referido em 1, equipado com buldozer, ripper louritex, à sociedade “(…) e Gonçalves, Lda.”, pelo valor de € 15.000,00.

15. O réu trabalha como operador de máquinas na sociedade “(…) e Gonçalves, Lda.”.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

16. O autor vendeu ao réu a máquina identificada em 1.

17. Em 02.04.2013 o réu adquiriu a (…) o veículo identificado em 1, pelo preço de € 11.000,00 (onze mil euros).

18. O réu pagou ao autor a quantia que este lhe emprestou e os juros ajustados.


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Nulidade da sentença:

Nas conclusões 1 a 7, o recorrente sustenta que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, porquanto o condenou com fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou. Mais precisamente, o recorrido alegou ter vendido um tractor ao recorrente e que este incumpriu parcialmente a obrigação de pagamento do preço, sendo essa a causa de pedir; consequentemente, estava vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com fundamento na nulidade de um contrato de mútuo cuja celebração, entre aquele e o recorrido, julgou provada.

Antecipando esta crítica, o tribunal a quo, na sentença recorrida, considerou-se livre para proferir aquela condenação argumentando que, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Em momento posterior da sentença recorrida, o tribunal a quo acrescentou que o próprio recorrente alegou a celebração de um contrato de mútuo com o recorrido.

Sendo estes os termos em que a questão se encontra colocada, mostra-se necessário revisitar o conceito de causa de pedir.

Esta é, segundo ALBERTO DOS REIS, “o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido.”[1] O autor tem de especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte do direito que pretende fazer reconhecer, “o facto ou acto de que, no seu entender, o direito procede”.[2]. O autor que vimos citando exemplifica: “O direito deriva, por exemplo, de um contrato? O autor há-de invocar esse contrato, reproduzindo as suas cláusulas essenciais, para que possa saber-se, com precisão, qual foi o negócio jurídico celebrado pelas partes.”[3]

Acerca da função da causa de pedir, ensina JOSÉ LEBRE DE FREITAS: “(…) a identificação da causa de pedir com o facto constitutivo (ou os factos constitutivos) da situação jurídica que o autor quer fazer valer ou negar (ou com os elementos constitutivos do facto jurídico cuja existência ou inexistência afirma) é, fundamentalmente, correcta. Através da alegação desse facto constitutivo, a causa de pedir exerce a sua função delimitadora do pedido ou pretensão, individualizando-o, e, por outro lado, ainda quando não simultaneamente, exerce essa sua outra função, que o fundamenta.”[4] “A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objecto do processo.”[5]

No caso dos autos, a causa de pedir é constituída pelo contrato de compra e venda que o recorrido alegou ter celebrado com o recorrente e pelo incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço a cargo deste último. Foi assim que o recorrido configurou a causa de pedir na petição inicial e não a alterou no decurso da acção. Note-se, a propósito, que a circunstância de o recorrente não se ter limitado a negar pura e simplesmente a veracidade dos factos integradores da causa de pedir e, em vez disso, se ter defendido através de impugnação motivada[6], contextualizando as entregas de dinheiro alegadas pelo recorrido à luz de um contrato diverso, em nada alterou a causa de pedir. Esta última resulta exclusivamente da alegação do autor e não também da impugnação levada a cabo pelo réu.

Sendo a causa de pedir a acima referida, é dentro dos limites dela decorrentes que o tribunal tem de exercer os seus poderes de cognição. “Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 608-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615-1-d)”[7]. “Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, (…) que haja identidade entre a causa de pedir (causa petendi) e a causa de julgar (causa judicandi). Já Mattirolo advertia: Deve anular-se, por vício de ultra petita, a sentença em que o juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que as partes, por via de acção ou de excepção, puseram na base das suas conclusões (…).”[8] E “(…) quando o juiz julga procedente a acção com fundamento em causa de pedir diversa da alegada pelo autor, conhece de questão que o autor não submeteu à sua apreciação, isto é, de questão de que não devia tomar conhecimento, atento o disposto no artigo 660.º; a sentença incorre, portanto, na nulidade prevista na 2.ª parte do n.º 4 do art. 668.º.”[9] “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes (…), é nula a sentença em que o faça.”[10]

Identificada da forma descrita a causa de pedir desta acção e esclarecidos os limites que a mesma impõe aos poderes de cognição do tribunal, bem as consequências legais da violação desses limites, importa analisar se a sentença recorrida se conteve dentro dos mesmos limites ou, ao invés, os ultrapassou.


O tribunal a quo entendeu que a condenação do recorrente com fundamento, não no parcial incumprimento da obrigação de pagamento do preço decorrente do contrato de compra e venda alegado pelo recorrido, mas na obrigação de restituição do dinheiro ainda não reembolsado pelo recorrente ao recorrido, obrigação esta decorrente da nulidade de um contrato de mútuo entre estes celebrado, se traduz numa mera diferença de enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, legalmente admissível porquanto o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.


Discordamos.


É indiscutível que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Di-lo expressamente o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, à semelhança do artigo 664.º, 1.ª parte, do CPC anterior. Ensinava, a propósito, ALBERTO DOS REIS que “As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade assinalada na 1.ª parte do art. 664.º.” No entanto, logo advertia: “É livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.[11]


Ora, o fundamento da condenação do recorrente nada tem a ver com a causa de pedir invocada pelo recorrido. Como anteriormente referimos, o recorrido invocou, como causa de pedir, um contrato de compra e venda de um tractor e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço por banda do recorrente. O tribunal a quo condenou o recorrente com fundamento na nulidade de um outro contrato, que qualificou como mútuo. Ao fazê-lo, o tribunal a quo extravasou claramente da causa de pedir invocada pelo recorrido.


Não se tratou de um mero enquadramento jurídico diverso dos factos invocados como causa de pedir. Isso teria acontecido, por exemplo, se o tribunal a quo tivesse julgado provada a celebração do contrato alegado pelo recorrido, mas tivesse qualificado esse contrato, não como compra e venda, mas como pertencendo a outro tipo legal, por exemplo como contrato de mútuo. Então sim, o contrato seria o mesmo e o tribunal a quo, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, ter-lhe-ia dado um enquadramento jurídico diverso. Contudo, aquilo que o tribunal a quo fez foi diferente: julgou não provada a celebração do contrato de compra e venda invocado pelo recorrido (n.º 16), julgou provada a celebração de um outro contrato entre este e o recorrente, qualificando-o como mútuo, julgou que este último contrato é nulo por inobservância da forma legalmente prescrita e condenou o recorrente a restituir ao recorrido o montante mutuado que ainda não fora pago. É evidente que a causa de pedir invocada pelo recorrido não ficou demonstrada e que a condenação se baseou em causa de pedir por aquele não invocada[12].


Afirmámos anteriormente que a circunstância de o recorrente, em vez de se limitar a negar a veracidade dos factos integradores da causa de pedir, se ter defendido através de impugnação motivada, invocando, como justificação para as entregas de dinheiro que fez ao recorrido, a celebração de um contrato de mútuo mediante o qual este último lhe emprestou a quantia de € 11.000,00, não alterou a causa de pedir. Consequentemente, ao contrário daquilo que a propósito se refere na sentença recorrida, é indiferente, para a problemática que vimos analisando, que o recorrente se tenha defendido da forma descrita. Sempre estaria vedado, ao tribunal a quo, condenar o recorrente com fundamento em causa de pedir diversa daquela que o recorrido invocou.


Porém, há mais. O contrato com fundamento em cuja nulidade o tribunal a quo condenou o recorrente também não é aquele que este último invocou na contestação e que qualificou – bem, considerando o conteúdo que lhe atribuiu – como mútuo. Isso resulta do cotejo dos factos alegados nos artigos 2.º, 3.º, 5.º e 6.º da contestação, completamente diversos daqueles que foram julgados provados na sentença recorrida, boa parte deles factos principais não alegados por qualquer das partes (n.ºs 2, 2.ª parte, 3, 8 e 9) e cujo conhecimento estava, por isso, vedado ao tribunal a quo, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do CPC[13]. Aliás, o tribunal a quo nem sequer se pronunciou, em sede de decisão sobre a matéria de facto, acerca da celebração do contrato de mútuo alegado pelo recorrente. Julgou não provados os factos alegados nos artigos 2.º e 6.º da contestação (n.ºs 17 e 18 da sentença recorrida), mas, quanto ao conteúdo dos artigos 3.º e 5.º do mesmo articulado, não o julgou, nem provado, nem não provado.


Portanto, o tribunal a quo julgou provada a celebração, entre recorrente e recorrido, não do contrato de compra e venda que constitui a causa de pedir ou do contrato de mútuo alegado pelo recorrente na contestação, mas de um outro contrato, que descreve na matéria de facto provada e que qualificou como mútuo[14], contrato esse não alegado por qualquer das partes. Com fundamento na nulidade deste último contrato e tendo como pressuposto a sua qualificação como sendo de mútuo, condenou o recorrente nos termos já repetidamente descritos. Por tudo aquilo que anteriormente afirmámos, o tribunal a quo não o podia fazer.


Ao transpor, nos termos expostos, os limites decorrentes da causa de pedir, o tribunal a quo conheceu de questão que lhe estava vedada, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, e condenou o recorrente com fundamento diverso da mesma causa de pedir. Consequentemente, a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do mesmo código.


O artigo 665.º, n.º 1, do CPC, estabelece que, anulada a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação. No caso dos autos, perante aquilo que afirmámos até aqui, pouco mais há a fazer que concluir. Não se provou a celebração do contrato de compra e venda e o incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço que o recorrido invocou como causa de pedir. Consequentemente, a acção terá de improceder.


Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões acima enunciadas como constituindo objecto do recurso.


Em conclusão, o recurso deverá ser julgado procedente, anulando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o recorrente do pedido.



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Sumário:


(…)



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Decisão:


Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, anulando a sentença recorrida e absolvendo o recorrente do pedido.


Custas pelo recorrido.


Notifique.



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Évora, 19 de Dezembro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata



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[1] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 369.

[2] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.

[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, p. 370.

[4] Introdução do Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4.ª edição, páginas 73-74.

[5] A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53.

[6] Sobre esta forma de defesa, leia-se PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, 2.ª edição, p. 184.

[7] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 4.ª edição, p. 53. Este autor explicita o seu pensamento através do seguinte exemplo: “não pode, por exemplo, em acção em que se pretenda o reconhecimento do direito de propriedade adquirido por um contrato de compra e venda, reconhecê-lo com fundamento na aquisição por testamento; ainda que a ocorrência e o conteúdo deste tenham sido introduzidos no processo pelas partes, só a sua elevação a nova causa de pedir (subsidiária ou substitutiva da primeira), nos termos em que a lei a consente, permitiria ao juiz tal decisão.”

[8] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 56.

[9] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), página 58.

[10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 670, em anotação ao artigo 668.º do anterior CPC.

[11] Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), páginas 93-94.

[12] Leia-se, sobre toda esta problemática, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2018, proferido no processo n.º 779/15.5T8PTM.E1.S1 (relator: Sousa Lameira), disponível em http://www.dgsi.pt/, que confirmou acórdão desta Relação proferido em 08.02.2018, cujo relator é o mesmo do presente e que versa sobre uma situação semelhante à deste recurso, acórdão este que seguimos de perto.

[13] Leia-se, sobre esta matéria, RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, páginas 24 a 34.

[14] Qualificação essa em cuja discussão não nos iremos deter, por ser irrelevante para a decisão deste recurso. Sempre adiantaremos, contudo, que, tendo em conta os factos julgados provados na sentença recorrida que são relevantes para aquela qualificação e não obstante a sua insuficiência para tal efeito, nos parece estarmos perante um contrato de mandato sem representação (artigos 1157.º e 1180.º do Código Civil) e não de mútuo, ainda que a forma que recorrente e recorrido estipularam para o cumprimento, pelo primeiro, da obrigação estabelecida na parte final do artigo 1182.º do Código Civil (n.º 8 da matéria de facto provada), acabe por cumprir a função de concessão de crédito típica deste último.