Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
234/21.4T8STR.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
EQUIDADE
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - No cálculo da indemnização em dinheiro do dano futuro de incapacidade parcial permanente – dano biológico – importa seguir o entendimento, que ultimamente vem prevalecendo na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, mas que se extinga no final do período provável de vida, tendo-se sempre presente o princípio da equidade que deverá presidir à fixação do valor em causa.
- Por outro lado, a indemnização por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico para que possa, de forma efectiva, satisfazer a finalidade a que se destina.
- Assim, temos como perfeitamente adequada e equilibrada, mostrando-se equitativamente ajustada, face às lesões sofridas pelos AA. no acidente, a atribuição aos lesados de uma indemnização no valor de € 25.000,00 para o A. e de € 37.500,00 para a A., a título de danos não patrimoniais, onde se já inclui o dano biológico.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 234/21.4T8STR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) e (…) instauraram a presente acção contra (…) Seguros Gerais, S.A., pedindo que a condenação desta a pagar aos AA. a quantia global de € 97.086,80, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por eles sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegaram, em síntese, terem sido vítimas de um acidente de viação, ocorrido no dia 10/7/2019, o qual foi provocado por uma viatura segurada na R., sendo que do referido sinistro resultaram danos não patrimoniais e patrimoniais, melhor descritos na petição inicial, os quais deverão ser ressarcidos pela R., atenta a transferência de responsabilidade decorrente do respectivo contrato de seguro.
Devidamente citada veio a R. contestar, aceitando a responsabilidade pela ocorrência do sinistro a que os autos se reportam e impugnando, parcialmente, a factualidade alegada pelos AA., considerando exagerados os valores por eles peticionados, a título de indemnização pelos danos sofridos.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sendo que, posteriormente, veio a ser realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais e, de seguida, foi proferida sentença pelo Julgador a quo, a qual julgou a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, decidiu:
a) Condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 55.000,00, a título de indemnização global por todos os danos não patrimoniais por ela sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento;
b) Condenar a R. a pagar ao A. a quantia de € 40.000,00, a título de indemnização global por todos os danos não patrimoniais por ele sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento;
c) Absolver a R. do pedido de condenação reportado à quantia de € 1.760,30, a título de danos patrimoniais, e respectivos juros moratórios.

Inconformada com tal decisão dela apelou a R., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1ª – Surgem as presentes alegações no âmbito do recurso da sentença proferida nos autos, nos termos da qual decidiu o Tribunal a quo julgar a ação parcialmente procedente, por provada, e, por conseguinte, «condenar a ré a pagar à autora (…) a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), a título de indemnização global por todos os danos discriminados nesta sentença, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento» e «a pagar ao autor (…) a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização global por todos os danos discriminados nesta sentença, acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento», e com a qual a Recorrente se não pode conformar.
2ª – No presente recurso, a Apelante não põe em causa a decisão proferida no que respeita à matéria de facto, que aceita nos precisos termos em que ficou consignada, quer relativamente ao acidente, quer relativamente às consequências dele resultante para os Apelados, não aceitando, porém, o arbitramento do quantum indemnizatório dos danos dos Apelados, tal como foi decido pelo douto Tribunal a quo, não só por carecer tal decisão de qualquer fundamentação e como também por serem os valores fixados totalmente desfasados dos critérios jurisprudenciais vigentes.
3ª – O douto Tribunal a quo em sede de sentença concluiu pela procedência do peticionado pelos Apelados, ainda que parcialmente e fá-lo depois de enquadrar a questão tal como as partes a apresentam, escrutinar o instituto jurídico em causa e os seus pressupostos de aplicação, pelo que se impunha que, de seguida, aplicasse o direito ao caso concreto, tendo presente a factualidade dada como provada, donde se retiraria, então a ratio dos valores indemnizatórios arbitrados, sendo que, quanto a este segmento decisório pouco ou nada é dito, apenas focando em termos amplos, conclusivos e conjuntos os parâmetros valorados na determinação do montante indemnizatório, ficando a Apelante sem perceber porque é que a decisão tomada vai no sentido de fixar o valor indemnizatório de € 55.000,00 para a Apelada (…) e de € 40.000,00 para o Apelado (…) e não outro.
4ª – Nos termos do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, cumprindo a fundamentação uma dupla função: de carácter objetivo – pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e de carácter subjetivo – garantia do direito ao recurso e controlo da correção material e formal das decisões pelos seus destinatários, pelo que deve permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo.
5ª – O dever de fundamentação para as decisões judiciais em geral encontra-se previsto e fundamentado no artigo 158.º do CPC, não se alcançando o cumprimento da mesma pelo Tribunal, já que não se sabe que premissas partiu para chegar à conclusão a que chegou e em que base legal se apoiou, dúvidas que a Apelante tem e não consegue superar porque não é explicado o caminho percorrido para lá chegar.
6ª – No caso em apreço não se trata de uma mera insuficiência ou incompletude da motivação, o que aqui se constata é uma inexistência de fundamentação ou uma fundamentação gravemente insuficiente (equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos), em termos tais que não permite à Apelante a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial proferida, não explicitando o Tribunal a quo, na designada fundamentação da decisão, o raciocínio que presidiu à subsunção dos factos (e quais factos) ao direito, socorrendo-se de considerações abstratas e conclusivas.
7ª – Da justificação da decisão supra apreende-se que o Tribunal valorou na determinação do montante indemnizatório um défice funcional da integridade físico-psíquica que não é reduzido para a autora e mediano para o autor, sendo que dos factos dados como provados sob os pontos 15 e 21 resulta que o Apelado, ficou a padecer de sequelas que determinam um défice de 3,97 pontos e que a Apelada, ficou a padecer de sequelas que determinam um défice de 6,88 pontos, sendo evidente a contradição da matéria constante dos factos dados como provados e a conclusão que o douto Tribunal dela retirou.
8ª – Primeiro porque o défice funcional fixado para a autora é superior ao do autor, resultando da “fundamentação”, precisamente o inverso: que o défice funcional da Apelada é inferior ao do Apelado (a expressão mediano é mais forte que a expressão não é reduzido), segundo porque a expressão «mediano» significa “aquilo que está colocado no meio”, e tendo presente que a escala de medição aplicada ao défice funcional, que vai dos 0 aos 100 pontos, indica que a valoração foi feita com base no facto do Apelado apresentar um défice funcional na ordem dos 50 pontos (mais coisa, menos coisa) e terceiro porque um défice funcional não ser reduzido é uma expressão que engloba tudo e nada, pois, mais uma vez partido da escala de 0 a 100 pontos, verifica-se que um défice funcional de 6,88% objetivamente analisado deve ser considerado reduzido ou mesmo muito reduzido.
9ª – Assim, a valoração do quantum indemnizatório partiu de factos distintos dos dados como provados e, para além da ausência de fundamentação do caso concreto, também as considerações de que terá partido o douto Tribunal a quo se revelam contraditórias, existindo uma divergência entre os factos provados e a solução jurídica, pelo que estamos perante uma nulidade da sentença, tal como prevista nas alínea b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
10ª – Acresce que, devidamente analisada a factualidade demonstrada nos autos e esta devidamente subsumida ao direito, aos critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, os critérios da equidade, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, resultará inevitavelmente a fixação de montantes indemnizatórios, em valores inferiores aos fixados pelo tribunal a quo.
11ª – Não existindo dúvidas de que o dano biológico – o dano corporal – pode acarretar danos patrimoniais e não patrimoniais e que os danos patrimoniais são as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais, isto é, de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, e são qualificados como uma perda da capacidade geral de ganho é esta assim definida: A “perda da capacidade geral de ganho – quando não for, ou não for só, a perda concretizada de rendimentos da profissão (por a pessoa não estar a trabalhar, no caso de estar desempregado, ainda não trabalhar por ser estudante, já não trabalhar por ser aposentado/desempregado, ou não se verificar incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual, apesar de o lesado ter de fazer esforços suplementares/acrescidos para o efeito – é indeterminável”.
12ª – Não podendo, pois, o seu cálculo ser feito por referência a lucros cessantes (no sentido dos rendimentos que deixou de obter por causa da lesão) ou de danos futuros (no sentido da perda de rendimento expectável em consequência da lesão) em virtude de, em bom rigor, inexistirem esses danos por impossibilidade legal, sendo totalmente irrelevante para este efeito os rendimentos dos Apelados auferidos no anterior ao do acidente, que se encontram refletidos no ponto 23 e 24 dos factos provados.
13ª – Não sendo possível determinar o valor exato deste dano, tal avaliação terá de ser efetuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do CC, que é um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial.
14ª – Não havendo dúvidas de que o défice funcional permanente na integridade físico-psíquica dos Apelados é, apesar destes estarem já na situação da reforma, um dano que deve ser indemnizado, a questão que aqui se suscita é se o valor indemnizatório fixado pelo douto Tribunal a quo em função das circunstâncias do caso concreto é adequado, atentos os critérios subjacentes ao juízo de equidade e as decisões jurisprudenciais semelhantes.
15ª – Ainda que o Tribunal a quo tenha arbitrado uma indemnização global de € 40.000,00 para o Apelado, sem a ter discriminado pelos danos indemnizáveis peticionados – o dano biológico e o dano não patrimonial – resulta do teor da decisão a total procedência da ação quanto a estes, porquanto apenas dos danos patrimoniais foi a Apelante absolvida, assumindo-se que aquele valor seja correspondente à indemnização do dano biológico, no valor de € 15.000,00 e à indemnização do dano não patrimonial no valor de € 25.000,00.
16ª – Da mesma forma que a condenação da Apelante a pagar à Apelada o valor total de € 55.000,00 é correspondente à indemnização do dano biológico no valor de € 30.000,00 e à indemnização do dano não patrimonial no valor de € 25.000,00.
17ª – Resultando da matéria de facto provada que o autor, à data do acidente tinha 74 anos de idade; estava reformado e ficou com sequelas físicas que lhe conferem um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3,97 pontos, entende a Apelante que o douto Tribunal a quo não ponderou devidamente as circunstâncias do caso concreto, ao fixar um valor de € 15.000,00, extravasando, salvo o devido respeito, a margem de discricionariedade consentida que legitima o recurso à equidade.
18ª – E também no que respeita à Apelada, resulta da matéria de facto dada como provada que a autora, à data do acidente tinha 72 anos de idade, estava reformada e ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6,88 pontos, entende a Apelante que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente as circunstâncias do caso concreto, ao fixar um valor de € 30.000,00, extravasando, salvo o devido respeito, a margem de discricionariedade inerente ao recurso à equidade.
19ª – É que «o recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios…» – Acórdão do STJ de 24.09.2009, atentando-se às deliberações do Acórdão do STJ de 07/04/2016 (proc. 237/13.2TCGMR.G1.S1), do Acórdão do STJ de 03/12/2015 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), do Acórdão da RP de 17/9/2013 (relator Pinto dos Santos), do Acórdão da RP de 7/04/2016 (relator Rodrigues Pires), realçando-se que o douto Tribunal a quo fixou à Apelada, que tinha à data do sinistro 72 anos, e um défice funcional de 6,88 pontos, um valor indemnizatório idêntico ao que o Supremo Tribunal de Justiça arbitrou para uma autora com 22 anos (menos 50 anos) e um défice funcional de 8 pontos (menos 1,12 pontos), e fixou ao Apelado uma indemnização idêntica à fixada a um autor que tinha 73 anos (menos um ano) e uma incapacidade de 10% (mais 6,03 pontos).
20ª – Em bom rigor, e sem prejuízo do dano corporal que têm, o défice funcional de que ficaram a padecer os Apelados é em termos objetivos reduzido e, quer se queira, quer não, o facto da esperança média de vida do Apelado, fixada em 5 anos, e da Apelada, fixada em 9 anos, têm um peso preponderante na valoração do quantum indemnizatório a arbitrar, pois, a mesma visa precisamente compensar a fruição dos “dos benefícios de uma razoável vivencia a nível social e hedonístico, a qual, e por virtude das lesões do acidente, naturalmente que sofreu afetação”.
21ª – Também a determinação da indemnização dos danos não patrimoniais é feita com recurso à equidade ao abrigo dos artigos 496.º/4 e 494.º do CC, e em função dos parâmetros nele definidos, cumprindo, nesta sede, apreciar a matéria dada como provada nos autos descrita nos pontos 9, 10, 11, 14, 16, 22, 26, 27, 28 e 29, donde resulta que Apelado e Apelada apresentam situações clínicas distintas e consequências também elas distintas, tratando o douto Tribunal a quo a realidade de ambos de forma igualitária, o que desde logo não pode deixar de causar alguma perplexidade.
22ª – Verifica-se, que os Apelados foram socorridos no Hospital de Vila Franca de Xira e apresentavam ambos traumatismo torácico, sendo que o Apelado também sofreu de traumatismo da tíbio társica esquerda e a Apelada traumatismo da bacia, tendo o acidente ocorrido no dia 10.07.2019 e que, decorridos aproximadamente 5 meses, em 05.12.2019, foi-lhes dada alta clínica, assumindo-se os défices funcionais atribuídos a cada um deles, estando em situação de incapacidade temporário cerca de 150 dias.
23ª – Sendo que apenas para a Apelada está fixado um quantum doloris durante o período de recuperação de 4/7, nada estando determinado quanto ao Apelado, havendo ainda repercussões psíquicas a valorar e quanto à Apelada a impossibilidade de continuar a realizar hidroginástica, havendo, no campo de fixação da indemnização por danos não patrimoniais, que ponderar o sofrimento físico e demais consequências do acidente dadas como provadas e, estando já o dano biológico valorado, o défice funcional da integridade físico-psíquica não poderá ser tido em consideração, sob pena de se arbitrar duas indemnizações pelo mesmo dano, o que não pode, em justiça, ocorrer.
24ª – No caso em apreço não houve necessidade de permanência no hospital, da mesma forma que não houve necessidade de intervenções cirúrgicas, ocorrendo apenas a necessidade de tratamentos ambulatórios, sendo que o período de recuperação é curto, cerca de 5 meses, e o fenómeno doloroso da Apelada é mediano (ainda que o Tribunal o considere elevado), sendo que o do Apelado apesar de não medido é, por comparação com o da sua mulher, necessariamente reduzido.
25ª – Ao que acresce as consequências a nível psíquico, circunscritas ao medo de conduzir e a dificuldade em dormir, que são mais gravosas na Apelada, sendo certo que, entende a Apelante, que no que toca ao sono, às dificuldades em dormir dadas como provadas, não é seguramente alheia a redução e maior leveza das horas de sono aquando do avançar da idade, facto que não poderá deixar de pesar na determinação da medida da indemnização, não havendo dano estético e repercussões de outra natureza que as já identificadas.
26ª – Pelo que reputa a Apelante excessivo e desproporcional o montante fixado pelo Tribunal a quo a título de danos não patrimoniais no montante de € 25.000,00 para cada um dos Apelados, sendo claro que o montante indemnizatório a atribuir a cada um tem necessariamente de ser diferenciado porque a situação clínica é, e sempre foi, diferenciada.
27ª – Violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 483.º, 496.°, n.°s 1 e 3, 562.°, 563.°, 564.° e 566.° do Código Civil e os artigos 158.º e 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC.
28ª – Nestes termos e nos demais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e provado, e por via dele ser revogada a sentença recorrida de facto e de direito, substituindo-a por outra que considere totalmente procedente o peticionado pela Apelante, com o que se fará a costumada Justiça.
Pelos AA. foram apresentadas contra alegações, nas quais pugnam pela manutenção da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos juntos das Ex.mas Juízes Adjuntas – cfr. artigo 657.º, n.º 2, do C.P.C..

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrentee, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões de recurso apresentadas pela R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se a sentença enferma das nulidades previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.;
2º) Saber se as indemnizações fixadas aos AA. (a título de danos não patrimoniais, aí se incluindo o dano biológico), deverão ser reduzidas para o montante de € 10.000,00, relativamente ao A. e para o montante de € 18.000,00, quanto à A..

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal a quo e que, de imediato, passamos a transcrever:
1 – No dia 10/07/2019 pelas 10:50 horas, na E.N. 118, ao Km. (…), na localidade de (…), distrito de Santarém, concelho de Benavente, freguesia de (…), ocorreu um acidente de viação entre os veículos ligeiros de modelo e matrícula Citroen C4 (…), e BMW Serie 3, (…), e ainda um veículo pesado SCANIA (…) (art. 1º da petição inicial).
2 – O autor circulava no seu veículo de matrícula (…), ao volante do mesmo, no sentido (…), acompanhado da sua esposa, ora autora, que era transportada no lugar do passageiro, ao lado do seu marido (art. 2º da petição inicial).
3 – Por seu turno, o (…), conduzido por (…), circulava na mesma estrada, mas em sentido contrário ao dos autores (art. 3º da petição inicial).
4 – À frente do (…) e no mesmo sentido, circulava o veículo pesado (…), conduzido por … (art. 4º da petição inicial).
5 – Na dita estrada, ao chegar ao Km. (…), o veículo ligeiro de matrícula (…) invadiu a fila de trânsito destinada aos veículos que circulavam no sentido contrário ao da sua marcha, e embateu, com a frente, na parte frontal do veículo dos autores, ou seja, o … (art. 5º da petição inicial).
6 – O autor não conseguiu evitar o embate, por consequência da manobra de ultrapassagem que o (…) realizou ao veículo pesado, dando-se o embate frontal entre os dois veículos ligeiros (art. 6º da petição inicial).
7 – A violência do embate causou a destruição total dos veículos ligeiros (art. 7º da petição inicial).
8 – E, consequentemente, causou danos corporais em ambos os autores (art. 8º da petição inicial).
9 – Os autores foram transportados para o Hospital de Vila Franca de Xira, onde foram assistidos (art. 9º da petição inicial).
10 – Devido à violência do embate, o autor sofreu traumatismo torácico e traumatismo da tíbio társica esquerda (art. 10º da petição inicial).
11 – A autora sofreu traumatismo torácico e da bacia (art. 10º da petição inicial).
12 – Os autores foram observados nos serviços médicos da ré em 01.08.2019, onde realizaram exames que confirmaram as lesões traumáticas (art. 11º da petição inicial).
13 – Por determinação da ré, os autores realizaram tratamentos de fisioterapia e foram acompanhados em consultas (art. 12º da petição inicial).
14 – O autor ficou a padecer de sequelas no tornozelo esquerdo, nomeadamente de edema residual naquele membro e toracalgia ao esforço desencadeada à palpação. Objectivamente discreto edema maleolar esquerda com mobilidades mantidas, com dor após o esforço (art. 13º da petição inicial).
15 – A autora ficou a padecer de sequelas enquadráveis na TNI em direito civil fixáveis em 6,88 pontos (capacidade restante) (art. 14º da petição inicial).
16 – Ambos os autores tiveram atribuída alta em 05.12.2019 (125 dias após o acidente) – (art. 15º da petição inicial).
17 – O autor à data do acidente tinha 74 anos e a autora 72 (art. 16º da petição inicial).
18 – O proprietário do veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…) transferiu a responsabilidade civil emergente de acidente de viação para a ré, através da apólice n.º … (art. 17º da petição inicial).
19 – A ré assumiu a responsabilidade emergente do acidente supra descrito, liquidando inclusivamente os danos do veículo dos autores, o qual foi considerado perda total (art. 18º da petição inicial).
20 – Em consequência do acidente dos autos, o autor teve que realizar tratamento de fisioterapia (art. 24º da petição inicial).
21 – O autor, em consequência do acidente, sofreu lesões das quais resultam sequelas que determinam um défice de 3,97 pontos, sendo que a autora, também em resultado do acidente, sofreu lesões e consequentes sequelas que determinam um défice de 6,88 pontos (arts. 30º, 31º, 32º, 33º e 37º da petição inicial).
22 – Apresentando a autora um quantum doloris de grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente (art. 37º da petição inicial).
23 – O autor é reformado e no ano anterior ao do acidente auferiu uma pensão anual de reforma no montante de € 9.632,28 (nove mil, seiscentos e trinta e dois euros e vinte e oito cêntimos) – (art. 34º da petição inicial).
24 – A autora auferia no ano anterior ao do acidente o montante anual de € 10.391,64 (dez mil, trezentos e noventa e um euros e sessenta e quatro cêntimos), o que perfaz um montante mensal de € 865,97 (oitocentos e sessenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos) – (art. 38º da petição inicial).
25 – A violência do embate (embate frontal) acarretou que os autores ficassem a padecer de medos (art. 41º da petição inicial).
26 – A autora nunca mais conseguiu conduzir, porque ficou traumatizada com o acidente que sofreu (art. 48º da petição inicial).
27 – A autora não consegue dormir, pois revive o acidente com muita intensidade, como se voltasse a sofrê-lo vezes sem conta (art. 49º da petição inicial).
28 – A autora fazia hidroginástica nas piscinas de Sesimbra e deixou de fazer, em consequência do acidente (art. 50º da petição inicial).
29 – O autor, para além de padecer de dores, ficou igualmente assustado, dorme mal e tem receio de conduzir (art. 51º da petição inicial).

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela R., ora apelante – saber se a sentença enferma das nulidades previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C. – importa referir a tal propósito que, como é sabido, “a lei não traça um conceito de nulidade de sentença, bastando-se com a enumeração taxativa de várias hipóteses de desconformidade com a ordem jurídica que, uma vez constatadas na elaboração da sentença, arrastam à sua nulidade” – cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., págs. 46/47.
Esse elenco taxativo das causas de nulidade da sentença consta das alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C..
Ora, a alínea b) deste normativo comina a sentença de nula “quando [ela] não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas: assim o impõem, desde logo, o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o artigo 154.º, n.º 1, do C.P.C..
Especificamente no que à sentença diz respeito, o artigo 607.º, n.º 3, do C.P.C., ao ocupar-se daquela parte da sentença que designa por “fundamentos”, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Porém, «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, pág. 669; Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., 1985, pág. 687; cfr., igualmente no sentido de que «a falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito», cfr. Amâncio Ferreira, obra citada, pág. 48.
Por isso, «a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso» – cfr. Amâncio Ferreira, ibidem.
Para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados e não provados, de harmonia com o que se estabelece no n.º 3 do artigo 659.º, e que suportam a decisão – cfr. Amâncio Ferreira, ibidem e Antunes Varela, obra citada, pág. 688.
Assim sendo, nos termos da referida alínea b), resulta claro que a sentença só estará ferida de nulidade se estiver total e absolutamente desprovida de fundamentação, quer ao nível da descrição da factualidade provada e não provada, quer ao nível do direito aplicado (cfr., nesse sentido, entre outros, o Ac. da R.C. de 14/4/1993, BMJ 426, pág. 541 e o Ac. da R.L. de 1/7/1999, BMJ 489, pág. 396).
Ora, da análise da sentença recorrida, verifica-se que consta expressamente da mesma, quer a factualidade dada como provada, quer a não provada, encontrando-se tal factualidade devidamente fundamentada na respectiva motivação e, no que respeita à fundamentação de direito, entendemos que a mesma não é, de todo, inexistente, no que tange à quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelos AA., apesar de ser nosso dever acrescentar que essa fundamentação será, quando muito, deficiente e até incompleta.
Como afirma Alberto dos Reis, a este propósito, “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade – cfr. Código de Processo Civil Anotado, volume V, pág. 140.
Por isso, embora a sentença recorrida não seja nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), sujeita-se ao risco de poder ser revogada ou alterada em sede recursiva, cuja análise irá continuar a decorrer no presente aresto.
Por sua vez, a alínea d) do citado artigo 615.º comina a sentença de nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Daqui resulta que o juiz tem de apreciar todas as questões que lhe são submetidas e apenas essas, não estando porém obrigado a apreciar todos os argumentos invocados pelos recorrentes, desde que, sem necessidade de apreciar tais argumentos, tome posição sobre o núcleo essencial daquelas questões. Por outro lado, apenas pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.
«Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 660.º-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado. Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes (artigo 660.º-2), é nula a sentença que o faça» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2°, 2001, pág. 670.
Com efeito, é entendimento na jurisprudência dos nossos tribunais superiores que a nulidade por omissão de pronúncia há-de incidir apenas sobre “questões” que tenham sido submetidas à apreciação do tribunal, com elas não se confundindo as considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 19/3/2002, Rev. n.º 537/02, 2ª Sec., Sumários, 3/2002). Na verdade, a omissão de pronúncia a que alude a alínea d) do n.º 1 do citado artigo 615.º respeita apenas a questões e não a factos, sendo que a omissão de factos só integra a nulidade prevista na alínea b) do referido preceito legal se se traduzir na falta absoluta da respectiva fundamentação o que, como é evidente, não se verifica no caso dos presentes autos.
A este propósito pode ver-se, entre outros, o Ac. do STJ de 10/1/2002, Rev. n.º 3196/01, 2ª sec., Sumários 1/2002.
No caso em apreço, a recorrente sustenta a nulidade da sentença, não por excesso ou omissão de pronúncia, mas numa eventual oposição entre os fundamentos e a decisão, nulidade essa que se enquadra, já não na dita alínea d), mas sim na alínea c) do n.º 1 do citado artigo 615.º.
Com efeito, a alínea c) do n.º 1 do referido artigo 615.º comina a sentença de nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Na verdade, «entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, obra citada, pág. 670.
Porém, «esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, ibidem; cfr., igualmente no sentido de que, «nos casos abrangidos pelo artigo 668.º, n.º 1, c), há um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente»», Antunes Varela in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., 1985, pág. 690.
«Apenas ocorre a nulidade da sentença prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier expresso na sentença» – cfr. Ac. da R.P. de 13/11/1974 (sumariado in BMJ n.º 241, pág. 344) e Ac. do S.T.J. de 21/10/1988 (in BMJ n.º 380, pág. 444). «A nulidade da sentença, por oposição entre os fundamentos e a decisão, só ocorre quando a decisão seguiu caminho diferente do sentido apontado pelos fundamentos» (Ac. da R.P. de 12/4/1999 in Col. Jur., 1999, tomo II, pág. 251). «Tal vício não existe quando a decisão se apresenta como consequência lógica dos fundamentos realmente invocados» (ibidem).
Por isso, «a inexactidão dos fundamentos de uma decisão configura um erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão» – cfr. Ac. do S.T.J. de 21/1/1978 (in BMJ n.º 281, pág. 241).
«Se a decisão em referência está certa ou não, é questão de mérito, que não de nulidade da mesma» – cfr. Ac. do S.T.J. de 30/5/1987 (in BMJ n.º 387, pág. 456).
«Não se está perante nulidade de sentença se se configura erro de julgamento» – cfr. Ac. do S.T.J. de 13/2/1997 (in CJSTJ, 1997, tomo I, pág. 104).
Ora, no caso em apreço, e no que tange à alínea c) do mencionado preceito legal apenas se dirá que não se vislumbra qualquer contradição entre os fundamentos (fácticos) e a respectiva decisão (jurídica), sendo certo que a acção foi julgada parcialmente procedente e a R. condenada a pagar a cada um dos AA. uma indemnização por danos não patrimoniais (aí se incluindo o dano biológico), sendo certo que o valor indemnizatório fixado à A. foi superior ao do A., atendendo a que o défice funcional daquela (6,88) também é maior (3,97) do que o deste último.
Assim sendo, forçoso é concluir que não existe qualquer omissão ou excesso de pronúncia na decisão sob censura proferida na 1ª instância, nem, tão pouco, qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, pelo que a sentença recorrida não padece das nulidades previstas nas alíneas d) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC que, erroneamente, lhe são imputadas pela R., ora apelante.
Isto não implica que não possa existir eventual erro de julgamento e que a decisão em causa seja a correcta e a adequada ao caso em apreço, perante a factualidade carreada para os autos e o direito aplicável, mas nunca as nulidades da decisão invocadas pela recorrente.
Analisando agora a segunda questão levantada pela R., ora apelante – saber se as indemnizações fixadas aos AA. (a título de danos não patrimoniais, aí se incluindo o dano biológico), deverão ser reduzidas para o montante de € 10.000,00, relativamente ao A. e para o montante de € 18.000,00, quanto à A. – haverá que dizer a tal respeito que, nas indemnizações que foram atribuídas aos AA. pelo Julgador a quo, estão em causa os valores indemnizatórios relativos, quer ao dano biológico (ou dano futuro como também é apelidado), quer aos danos não patrimoniais por aqueles sofridos, os quais foram fixados na sentença recorrida no valor global de € 55.000,00 para a A. e de € 40.000,00 para o A..
Quanto ao dano biológico, importa ter presente que a nossa lei não contém regras precisas com vista à fixação do “dano futuro”, pelo que tais danos devem calcular-se com recurso à equidade, segundo critérios de verosimilhança e de probabilidade, de acordo com o que é normal acontecer, segundo o curso normal das coisas.
O que se exige é uma comparação entre duas situações patrimoniais presentes, uma real e outra hipotética, que impõe considerar eventuais evoluções hipotéticas do património do lesado, se não tivesse ocorrido a lesão, critério que sempre terá de ser completado por sãos juízos de equidade – artigo 566.º, nºs 2 e 3, do Código Civil.
Na valoração desse dano deve ter-se em conta todos os prejuízos que ocorrerão, com grande probabilidade, incluindo os relacionados com as dificuldades de ingresso (ou de progressão) na carreira profissional e os resultantes da vida quotidiana.
O lesado não tem de alegar perda de rendimentos laborais para o tribunal lhe atribuir indemnização por ter sofrido incapacidade parcial permanente.
Apenas tem de alegar e provar que sofreu incapacidade permanente parcial, dano cujo valor deve ser apreciado equitativamente (cfr., nesse sentido, entre outros, o Ac. do S.T.J. de 11-2-99, BMJ. 484, pág. 352, o Ac. do S.T.J. de 17-11-05, C.J., Tomo 3º, pág. 127 e o recente Ac. do STJ de 22/6/2017, disponível in www.dgsi.pt).
Ora, o Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 6,88 pontos em 100 e de 3,97 em 100, de que a A. e o A., respectivamente, ficaram afectados produz um dano futuro, que se traduz, in casu, nos AA. terem ficado a padecer das sequelas descritas nos pontos 14), 15) e 21) dos factos provados, sendo que a indemnização de tais danos tem por objectivo compensar as limitações funcionais, decorrentes do exercício de todas as actividades da vida quotidiana dos AA. (ambos reformados e já septuagenários).
A este propósito pode ver-se, entre outros, o Ac. do S.T.J. de 9/11/2006, in www.dgsi.pt, onde, a dado passo, é afirmado o seguinte:
- Atentemos agora no critério legal de cálculo da indemnização por danos patrimoniais decorrente de incapacidade permanente.
O ressarcimento dos danos futuros, como é o caso vertente, por cálculo imediato, depende da sua previsibilidade e determinabilidade (artigo 564.º, n.º 2, 1ª parte, do Código Civil).
Assim, na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos futuros – sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes – desde que previsíveis.
No caso de os danos futuros não serem imediatamente determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (artigo 564.º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil).
Os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente prováveis, como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente, por virtude de lesão corporal.
A regra é no sentido de que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que se verificaria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação, a fixar em dinheiro, no caso de inviabilidade de reconstituição em espécie (artigos 562.º e 566.º, n.º 1, do Código Civil).
A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ele teria então se não tivesse ocorrido o dano, e, não podendo ser determinado o seu valor exacto, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).
A incapacidade permanente é susceptível de afectar e diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.
No primeiro caso, procurando atingir a justiça do caso, têm os tribunais vindo a acolher a solução de a indemnização do lesado por danos futuros dever representar um capital que se extinga no fim da sua vida activa e seja susceptível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
Têm sido utilizadas, para o efeito, pela jurisprudência, fórmulas e tabelas financeiras várias, na tentativa de se conseguir um critério tanto quanto possível uniforme.
Mas as referidas fórmulas não se conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, certo que não é possível determinar o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro ou do custo de vida.
Acresce que não existe uma relação proporcional entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício profissional em termos de se poder afirmar que ocorre sempre uma diminuição dos proventos na medida exactamente proporcional à da incapacidade funcional em causa.
Assim, nesse caso, as mencionadas tabelas só podem ser utilizadas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta.
Como se trata de dano futuro, a solução mais ajustada é a de conseguir a sua quantificação imediata, embora, face à inerente dificuldade de cálculo, com a ampla utilização de juízos de equidade.
A partir dos pertinentes elementos de facto, independentemente do seu desenvolvimento no quadro das referidas fórmulas de cariz instrumental, deve calcular-se o montante da indemnização em termos de equidade, no quadro de juízos de verosimilhança e de probabilidade, tendo em conta o curso normal das coisas e as particulares circunstâncias do caso.
Apesar do longo período de funcionamento da previsão, a quantificação deve ser imediata, sob a atenuação da fluidez do cálculo, no confronto da referida previsibilidade, no âmbito da variável inatingível da trajectória futura do lesado, quanto ao tempo de vida e de trabalho e à espécie deste, por via dos referidos juízos de equidade.
Devem, pois, utilizar-se juízos lógicos de probabilidade ou de verosimilhança, segundo o princípio id quod plerumque accidit, com a equidade a impor a correcção dos valores resultantes do cálculo baseado nas referidas fórmulas de cariz instrumental.
No fundo, a indemnização por dano patrimonial futuro deve corresponder à quantificação da vantagem que, segundo o curso normal das coisas, ou de harmonia com as circunstâncias especiais do caso, o lesado teria obtido não fora a acção e ou a omissão lesiva em causa.
No caso dos autos – e no que tange ao cálculo do quantum indemnizatório devido aos AA. por virtude da incapacidade permanente de que ficaram afectados – haverá que frisar, desde já, que é entendimento pacífico na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que a Portaria n.º 377/2008, de 26/5 (respeitante aos critérios e às fórmulas plasmadas para a fixação da indemnização devida pelo dano corporal), apenas tem aplicação para dirimir litígios extrajudiciais, o que, manifestamente, não se verifica no caso em apreço.
Nesse sentido, veja-se, entre outros, o Ac. do STJ de 7/7/2009, disponível in www.dgsi.pt, no qual é afirmado o seguinte:
- No que diz respeito à indemnização devida pelo dano (morte), a Portaria n.º 377/2008, de 26-05, tem um âmbito institucional específico de aplicação extrajudicial, sendo que, por outro lado, e, pela natureza do diploma que é, não derroga Lei ou DL, situando-se em hierarquia inferior, pelo que o critério legal necessário e fundamental, em termos judiciais – como o caso dos autos – é, apenas, o definido no Código Civil.
Assim, atentas as razões e fundamentos supra explanados – e tendo em conta a factualidade relevante apurada nos autos, nomeadamente a extensão das lesões sofridas pelos AA. (cfr. pontos 10) a 16) e 20) a 22) dos factos provados) – haverá que considerar que aqueles, à data do acidente, tinham mais de 70 anos de idade (cfr. ponto 17 dos factos provados), sendo a esperança média de vida para os homens e mulheres em Portugal de cerca de 80 e 82 anos de idade, respectivamente, e, como consequência do acidente, sobreveio para a A. um Défice Funcional Permanente de 6,88 em 100 e para o A. um Défice Funcional Permanente de 3,97 em 100.
Ora, as sequelas de que os AA., ambos já reformados, ficaram a padecer repercutem-se e vão implicar esforços suplementares no domínio da sua vida quotidiana (é um dado da experiência…), sendo, por isso, perfeitamente justa e equilibrada, a atribuição de uma indemnização, a título de danos futuros, na vertente do dano biológico.
Por outro lado – no que tange aos danos não patrimoniais propriamente ditos – háverá que referir a tal propósito que a obrigação de indemnização decorre, neste âmbito, do estipulado no art.496.º, n.º 1, do Código Civil, o qual estabelece que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
No caso dos autos é pacífico que, pela sua gravidade, os danos sofridos pelos AA., merecem ser indemnizados, estando apenas em causa o quantum indemnizatório fixado na sentença a este título.
Ora, estabelece o n.º 3 do citado artigo 496.º que “o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”. Isto é, a indemnização por danos não patrimoniais, deve ser fixada de forma equilibrada e ponderada, atendendo em qualquer caso (quer haja dolo ou mera culpa do lesante) ao grau de culpabilidade do ofensor; à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, como por exemplo, o valor atual da moeda.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, o montante da indemnização «deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas de criteriosa ponderação da realidade da vida» – cfr. Cód. Civil Anotado, vol. I., 3ª ed., pág. 474.
A indemnização por danos não patrimoniais é, mais propriamente, uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos, e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e nessa exacta medida, irreparáveis) é uma reparação indirecta, comandada por um juízo equitativo que deve atender às circunstâncias mencionadas no artigo 494.º” – cfr. Ac. do STJ de 14/9/2010, também disponível in www.dgsi.pt.
Este recurso à equidade não afasta, porém, «a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso» – cfr. Ac. do STJ de 3/2/2011, também disponível in www.dgsi.pt.
Na verdade, como em todas as coisas, na fixação de tais danos, deve imperar o bom senso, sem perder de vista os dados objectivos em que se apoia o juízo de equidade, como sejam a gravidade objectiva das lesões e sua extensão, o tempo de recuperação das mesmas e eventuais sequelas, os sinais externos de sofrimento, etc..
Daí que é entendimento actual e maioritário na jurisprudência que a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496.º do Código Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar, pelo que não pode, de todo em todo, ser meramente simbólica ou miserabilista – cfr., nesse sentido, entre outros, os Acs. do S.T.J. de 16/12/93 e de 8/6/99, in CJSTJ, Ano I, Tomo 3º, pág.183 e BMJ 488, pág. 323, respectivamente e ainda o Ac. do STJ de 19/4/2012, disponível in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido jurisprudencial podem ver-se ainda os Acs. do STJ de 27/1/2005, 8/3/2005 e 3/3/2009, todos disponíveis in www.dgsi.pt, onde foram fixados valores de € 100.00,00 e € 150.000,00 para tais danos.
Também em acórdão recente, datado de 15/6/2023, proferido no Processo 2190/17.4T8FAR.E1 – em que o relator foi o mesmo deste aresto – veio a ser fixado ao lesado uma indemnização por danos não patrimoniais (onde se incluía o dano biológico) no valor de € 85.000,00, tendo o mesmo 18 anos na altura do acidente, sujeito a internamento hospitalar cerca de 3 meses e com a cura das lesões a demorarem cerca de 10 meses, tendo ficado com um défice funcional permanente de 9,84 pontos em 100 e sendo fixado o grau de quantum doloris em 5 pontos numa escala crescente de 1 a 7.
Voltando agora ao caso em apreço (e a propósito dos referidos danos não patrimoniais) constata-se que ficou apurado nos autos que estamos na presença de um acidente que provocou várias lesões no corpo de cada um dos AA., determinando grande sofrimento (atenta a sua idade avançada) e algumas limitações que ainda hoje perduram e que vão acompanhá-los para o resto da sua vida – cfr. pontos 10) a 17) e 20) a 22) dos factos provados.
Por isso, tendo em conta a idade dos AA. quando do acidente (mais de 70 anos), a natureza e as várias lesões sofridas – que, todavia, não necessitaram de internamento ou intervenções cirúrgicas – o período de tempo que as lesões demoraram a curar (cerca de 5 meses) e os tratamentos a que tiveram de se submeter, as sequelas com que ficaram (a A. um défice funcional permanente de 6,88 pontos em 100 e o A. um défice funcional permanente de 3,97 pontos em 100) e a sua repercussão na sua vida quotidiana, o grau de quantum doloris da A. fixado em 4 pontos numa escala crescente de 1 a 7, o sofrimento que, segundo as regras da experiência, tudo isso implica, com tendência a agravar-se à medida que a idade de ambos for avançando, o facto do acidente se ter devido a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na R., sem qualquer parcela de responsabilidade por parte da viatura automóvel conduzida pelo A., temos amplamente por justificada e equitativa uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, sendo que a indemnização atribuída irá minorar todo o sofrimento por que os AA. passaram (e, embora clinicamente possam estar já curados, irão sofrer os AA., pelo resto da vida fora, de dores e desconfortos vários pelas sequelas das lesões sofridas).
Nestes termos, face aos danos sofridos pelos AA., sendo certo que os não patrimoniais são, com frequência, mais difíceis de suportar do que os danos patrimoniais – in casu, alguns nunca se irão extinguir, pois sempre estarão presentes durante a vida dos AA. – ponderando-se ainda que uma indemnização para ser justa tem que ser significativa, mas sem se cair nos exageros do sistema anglo-saxónico, entendemos que os montantes indemnizatórios de € 55.000,00 e de € 40.000,00 fixados à A. e ao A., respectivamente, pelo tribunal a quo, pecam por algum excesso e, por via disso, revoga-se parcialmente a sentença recorrida, reduzindo-se tal montante para o valor € 37.500,00 quanto à A. e de € 25.000,00 relativamente ao A., a título de danos não patrimoniais (onde já se inclui o dano biológico, o qual se fixa em € 12.500,00 para a A. e em € 7.500,00 para o A.), quantias essas que são actualizadas na data da presente decisão, conforme jurisprudência assente (cfr. AUJ n.º 4/2002, de 9/5/2002, in D.R., Série I-A de 27/6/2002), à qual acrescem juros de mora, desde o dia seguinte à data da prolação deste aresto até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis.
***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário: (…)

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela R. e, em consequência, revoga-se parcialmente a sentença recorrida, fixando-se ao A. uma indemnização no valor de € 25.000,00 e à A. uma indemnização no valor de € 37.500,00, a título de danos não patrimoniais por eles sofridos, aí se incluindo já o dano biológico (o qual se fixa em € 7.500,00 para o A. e em € 12.500,00 para a A.).
Custas pelos AA./apelados e pela R./apelante, na proporção do respectivo vencimento.
Évora, 12 de Julho de 2023
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Anabela Luna de Carvalho
__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, págs. 286 e 299).