Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
| Descritores: | ACÇÃO POPULAR LEGITIMIDADE ACTIVA INTERESSES DIFUSOS ISENÇÃO DE CUSTAS | ||
| Data do Acordão: | 11/13/2025 | ||
| Votação: | RELATORA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I. Resulta dos artigos 52.º e 60.º da CRP que, entre nós, a tutela do consumidor se faz – também – através da acção popular. II. Podendo as ações populares ter por objeto os interesses difusos em sentido restrito – relativos a bens públicos que, sendo insuscetíveis de apropriação individual, só podem ser gozados numa dimensão coletiva, ou seja, “são de todos e não são de ninguém” – interesses coletivos, incidentes sobre bens privados, mas comuns a grupos ou classes, ou ainda interesses individuais homogéneos, nestes dois últimos casos tem de ser identificado um interesse público que justifique a propositura da ação, sendo, pois, necessário que o autor prossiga também e ainda o interesse público. III. Esta exigência afigura-se amplamente justificada quando se considere a particular fisionomia das ações populares, desenhadas para defesa de interesses meta individuais e meta categoriais, abstraindo de posições jurídicas subjetivas. IV. A legitimidade ativa para o exercício da ação popular afere-se à luz da natureza dos bens e interesses difusos, nas suas várias modalidades, cuja tutela se reclama, tendo em atenção o pedido e a causa de pedir. V. Tendo presente a classificação tripartida dos interesses difusos, falece legitimidade às associações de defesa dos consumidores para formularem em juízo pedidos clássicos da tutela individual. VI. A associação de defesa dos direitos dos consumidores autora não tem legitimidade para vir a juízo formular pedido de condenação da ré seguradora a pagar a um seu associado a quantia por este entregue a título de sinal no âmbito de contrato promessa que alegou ter sido culposamente incumprido pelas restantes demandadas, mediadoras imobiliárias, e estas a pagarem as demais quantias destinadas à reparação dos prejuízos por aquele sofridos em consequência de tal incumprimento. VII. A procedência da ação instaurada apenas satisfaria o interesse muito particular daquele associado da autora, sem que da decisão proferida irradiasse proteção do direito de qualquer outro indivíduo, classe ou colectividade no que respeita à qualidade dos serviços prestados ao consumidor, proteção dos seus interesses económicos ou garantia da reparação do dano. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3548/24.8T8FAR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo Central Cível de Faro – Juiz 1 * O recurso é o próprio, tendo sido recebido no modo e com o efeito devidos. Nada obsta ao conhecimento do mérito respetivo. Considerando que a questão suscitada vem sendo decidida de modo uniforme pelos tribunais superiores, ao abrigo do preceituado no artigo 656.º do CPCiv., passo a proferir decisão sumária. Notifique. * I. Relatório A associação “(…) – Associação Para a (…)”, associação sem fins lucrativos com o NIPC (…), sediada no Centro de Serviços (…), (…), em Loulé, veio, em alegada representação do seu associado (…), instaurar contra “(…) – mediação imobiliária, Lda.”, (…) e (…) – Companhia de Seguros, S.A.”, a presente ação declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final: a) a condenação da Ré (…) a pagar ao seu dito associado a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), por este entregue a título de sinal, em cumprimento do contrato promessa junto como doc. 2, bem como o montante dos juros por aquela suportados e demais encargos, como imposto de selo e comissões, a liquidar em execução de sentença; b) a condenação solidária dos demais RR no pagamento ao mesmo (…) da quantia de € 25.000,00 a título de compensação pelos danos de natureza não patrimonial. Em fundamento alegou, em síntese, que o seu identificado associado, pretendendo adquirir um apartamento, recorreu aos serviços da agência imobiliária (…), em Faro, a qual se encontra identificada como agência da 1ª Ré, (…), a qual lhe mostrou uma fração que se encontrava à venda na agência imobiliária do Réu (…), filho de (…), que o representava no negócio. Tendo chegado a acordo quanto ao preço, no dia 23/11/2023 o (…) e (…), esta agora na qualidade de mandatária do promitente vendedor, (…), subscreveram nas instalações da agência (…) o contrato promessa de compra e venda que a autora fez juntar aos autos como doc. n.º 2. (…) fez entrega à mesma (…) da quantia de € 25.000,00 a título de sinal, sendo € 1.352,76 em dinheiro e o restante mediante transferência bancária, esgotando para o efeito o saldo de dois cartões de crédito e tendo ainda contraído empréstimo pessoal no valor de € 7.387,77, que se encontra a pagar. O associado da A. encetou negociações com o Banco (…), tendo em vista obter empréstimo para proceder ao pagamento do resto do preço, as quais se arrastaram até Julho também por via da falta de colaboração das duas agências envolvidas, que não disponibilizavam os documentos necessários, tendo entretanto chegado ao seu conhecimento que o apartamento objeto do contrato promessa havia sido vendido a um terceiro. Em conversa mantida com o lesado a (…) prometeu devolver os € 25.000,00, o que, todavia, nunca fez. Tendo sido desencadeada a intervenção da ré seguradora, até ao momento não efetuou esta qualquer reembolso, mantendo-se (…) desembolsado da aludida quantia de € 25.000,00, para além de ter de continuar a suportar uma prestação mensal no montante de € 233,80 para amortização do empréstimo contraído, que inclui juros e comissões, o que, atendendo a que dispõe como único rendimento do seu salário como entregador de comida por conta da (…), o deixa numa situação económica muito difícil. Indicando como violadas as disposições legais contidas no artigo 17.º, n.º 1, alíneas a) e d) e o artigo 7.º da Lei 15/2013, de 8 de Fevereiro, alega ser a Ré (…) responsável pelo reembolso da quantia de € 25.000,00, respondendo os restantes demandados pelos demais prejuízos reclamados, incluindo a pedida compensação pelos danos de natureza patrimonial sofridos. Por despacho proferido em 14/11/2024 [Ref.ª134253397] foi determinada a notificação da A. para exercer o contraditório, atenta a possibilidade de indeferimento da petição por falta de legitimidade da A. para prosseguir um interesse individual “e, consequentemente, para os pedidos formulados através da presente ação”. Respondeu a autora, esclarecendo ser uma associação de direito privado, sem fins lucrativos, tendo-se constituído tendo em vista, nomeadamente, “o exercício em nome dos cidadãos, dos direitos previstos no n.º 1 do artigo 52.º da Constituição e defender os interesses dos cidadãos, propondo as ações judiciais necessárias ou convenientes a essa defesa, nos termos da Lei” e, defendendo estar em causa “para além da resolução do problema do cidadão estrangeiro identificado na PI, talvez o mais geral e o mais difuso, de todos os cidadãos a que Portugal seja um Estado de Direito Democrático, tal como a Constituição da República Portuguesa consagra”, afirmou ser parte legítima. Foi de seguida proferida a decisão, ora recorrida, que, na consideração de que a autora não demonstrou encontrar-se mandatada para representar o lesado, e não sendo caso de considerar preenchida a previsão da alínea f) do artigo 4.º do RCP, “(…) por força do disposto no artigo 558.º, alínea f), do CPCiv. porquanto, não comprovada isenção de que a autora beneficie, nem o prévio pagamento da taxa de justiça (…)”, ao abrigo do disposto no artigo 590.º do mesmo diploma legal, foi a petição inicial liminarmente indeferida e aquela condenada nas custas. Inconformada, apelou a autora e, tendo desenvolvido na alegação apresentada os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões: 1.ª A Autora é uma pessoa coletiva de direito privado, de âmbito nacional, independente, e que tem como fins, exclusivamente não lucrativos, entre outros, defender os interesses dos cidadãos, propondo as ações judiciais necessárias ou convenientes a essa defesa, nos termos da Lei e defender os interesses dos consumidores, em geral, perante quaisquer fornecedores de bens ou serviços públicos ou privados. 2.ª A Autora preenche na perfeição a definição de associações de consumidores contida no n.º 1 do artigo 17.º da Lei de defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho: As associações de consumidores são associações dotadas de personalidade jurídica, sem fins lucrativos e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados. 3.ª A legitimidade da Autora para a presente ação decorre diretamente da Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 60.º, no seu n.º 4, estabelece que as associações de consumidores têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos. 4.ª O associado da Autora, (…), é um consumidor, nos termos do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor – foi-lhe prestado um serviço por agentes imobiliários, para compra de um apartamento para habitação própria, agentes habilitados para o exercício de atividade profissional devidamente licenciados pela entidade competente, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P. (IMPIC, I.P.). 5.ª A Autora goza de isenção do pagamento de custas, preparos e de imposto do selo. É o que resulta da alínea n) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei de defesa do Consumidor. 6.ª O direito de livre associação garantido pelo artigo 46.º da Constituição da República Portuguesa integra a faculdade jurídica primária de constituir ou não constituir uma associação a de aderir ou não aderir a uma associação já constituída e o direito de se desvincular sem necessidade de justificação. 7.ª Como associação de consumidores, a Autora goza da presunção de boa-fé prevista na alínea j) do n.º 1 do artigo 18.º da Lei de Defesa do Consumidor: As associações de consumidores gozam dos seguintes direitos: j) Direito à presunção de boa fé das informações por elas prestadas. 8.ª A sentença recorrida manifesta uma dúvida metódica, excessiva e ilegal relativa à qualidade de associado de (…). Face ao disposto na referida alínea j) do n.º 1 do artigo 18.º da Lei de Defesa do Consumidor, a Autora não tinha de fazer a prova exigida pela sentença recorrida. 9.ª O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito. Nada justifica que o Tribunal a quo ponha em causa a boa-fé subjetiva ou psicológica da Autora, isto é, de que ela age com a consciência ou convicção justificada de adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas. 10.ª Do princípio da dignidade da pessoa humana, em que se baseia o Estado de Direito que Portugal deve ser (artigo 1.º da CRP), deveria resultar uma presunção generalizada de que os cidadãos, porque dignos, agem de boa-fé. A dúvida metódica excessiva expressa na sentença recorrida é ilegal, violadora dos artigos 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa. 11.ª O princípio da boa-fé assume-se como um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico e um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da proteção da confiança legítima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança. O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se deve alhear. 12.ª O princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma presunção de boa-fé dos cidadãos que recorrem aos tribunais para defesa dos seus direitos e, simultaneamente, uma presunção de confiança, destes cidadãos, em que os tribunais não dificultam, desnecessária e ilegalmente, o exercício desses direitos e o do aceso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da CRP”. Termina a pedir a anulação da sentença recorrida. Com as alegações procedeu ainda a Autora à junção de uma procuração subscrita por (…) a favor de (…), Il. Advogado. Recebido o recurso, foram os Réus notificados para os termos do recurso e da causa, tendo a Ré (…) apresentado contestação. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui questão a decidir determinar se a autora tem legitimidade para a causa e, em função da resposta dada e como consequência dela, se goza ou não da isenção prevista na alínea f) do artigo 4.º do RCP. * II. Fundamentação De facto Relevam para a decisão os factos que constam do relato feito em I e ainda os seguintes, que resultam do documento autêntico junto aos autos: 1. No dia 13 de Julho de 2013, no cartório Notarial sito na Rua (…), lote F, rés do chão, Esq., , em Faro, na presença do sr. Notário (…) compareceram, entre outros, (…), os quais declararam constituir uma associação sem fins lucrativos denominada “(…) – Associação para (…)”, a qual se regerá pelo disposto no CC e estatutos que se seguiram. 2. Consta do artigo 2º dos Estatutos, epigrafado de “Fins”, que a associação é uma pessoa coletiva de direito provado, de âmbito nacional, independente e que tem como fins, exclusivamente não lucrativos, para além do mais que ali consta, “(…) 5. Exercer, em nome dos cidadãos, os direitos previstos no n.º 1 do art.º 52.º da Constituição. 6. Exercer o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, nomeadamente no âmbito da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, da protecção do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público. 7. Defender os interesses dos cidadãos, propondo aa acções judiciais necessárias ou convenientes a essa defesa, nos termos da Lei; 8. Defender os interesses dos consumidores, em geral, perante quaisquer fornecedores de bens ou serviços públicos ou privados, nos termos da Lei n.º 23/97, de 31 de Julho.” * Da legitimidade da autora Como se vê do teor das conclusões, a autora e agora apelante defende ter legitimidade para instaurar a presente ação, do que decorre, ao invés do que foi decidido, beneficiar da isenção prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP. A sua legitimidade decorre diretamente, alega, “da Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 60.º, no seu n.º 4, estabelece que as associações de consumidores têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos”. Não tem, porém, razão, ainda sem discutir a sua natureza de associação de defesa dos consumidores e que nas relações estabelecidas com a agência 1ª ré e com o mediador 2º réu, o lesado (…) tem a qualidade de consumidor, como resulta do alegado. Estando em causa, conforme foi corretamente entendido pela apelante, a sua legitimidade para a causa[1], importa começar por referir que, conforme se apontou no acórdão do STJ de 14/3/2024 (processo n.º 30755/22.5TBLSB.S1, acessível em www.dgsi.pt), aqui em citação de Aroso de Almeida e Carlos Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2021, 5.ª edição), “(…) a legitimidade ativa para o exercício da ação popular afere-se em função dos bens e interesses cuja tutela se pretende, na medida em que, adiantam aqueles autores (ob. cit. pág. 97) “a ação popular não é, pois, um meio processual, mas uma forma de legitimidade que permite desencadear os diversos tipos de ações ou providências cautelares que se tornem necessárias à defesa de interesses difusos” – sublinhado nosso. Isto dito, cumpre deixar expresso que a apreciação liminar – por se debruçar tão-só sobre o teor da petição inicial – deve ater-se ao objeto do processo tal como configurado pelo autor, o mesmo é dizer, a apreciação da natureza dos interesses cuja tutela se reclama deve partir sempre do objeto do processo, tal como configurado pelo autor, com total desconsideração, neste âmbito, do eventual mérito ou demérito da pretensão em análise”. Numa outra formulação, “Procurando aferir-se da legitimidade ativa para o exercício da ação popular, importa ponderar a natureza dos bens e interesses difusos, nas suas várias modalidades, cuja tutela se reclama, e se tais interesses se revelam efetivamente carenciados de tutela popular, tal significando que essa ponderação deve partir sempre o objeto do processo, tal como configurado pelo autor, na consideração do pedido e da causa de pedir” (acórdão do STJ de 16/11/2023, processo n.º 6390/22.7T8VNG.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt). Fixado o critério de aferição da legitimidade do autor para instaurar ação popular, importa ter presente o convocado artigo 52.º da CRP, impressivamente epigrafado de “Direito de petição e direito de acção popular”. Estatui-se no n.º 3 deste preceito que “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”. O artigo 60.º, por seu turno, confere proteção constitucional ao direito dos consumidores “à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação dos danos” (vide n.º 1 do preceito), reconhecendo às associações de consumidores e às cooperativas de consumo “legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos” (n.º 3). Nele se reconhece, pois, o direito dos consumidores à qualidade daquilo que é objeto do seu consumo, bem como à proteção da sua saúde, segurança dos seus interesses económicos e reparação lato sensu do dano sofrido, incluindo a atribuição de uma indemnização. Estão em causa, faz-se notar, a saúde pública, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural e histórico e a proteção do consumo, todos eles interesses difusos, e à defesa de todos eles, encarados na sua dimensão supra individual, a lei faculta a tutela da ação popular, atribuindo para o efeito legitimidade a todo e qualquer cidadão, e ainda às associações constituídas com a finalidade de defender os interesses em causa. Dando expressão à tutela dos referidos interesses, a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, veio regular o “Direito de Participação Procedimental e de Ação Popular”, dispondo logo no artigo 1.º, sob a epígrafe “Âmbito da presente lei”, que: “1. A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição. 2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”. O n.º 1 do artigo 2.º, que se ocupa da “titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, declara serem titulares “quaisquer cidadãos no gozo dos seus interesses civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”, e ainda, segundo a previsão do n.º 2 , as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição. Ainda com relevância para o caso que nos ocupa, dispõe o artigo 3.º sobre a “Legitimidade activa das associações e fundações”, que “Constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações: a) A personalidade jurídica; b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate; c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais”. Considerando o objeto da presente ação, interessa por último convocar o regime legal de defesa dos consumidores que resulta da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que enumera no artigo 3.º os direitos do consumidor e, com direta incidência no caso que nos ocupa, também o artigo 13.º, que confere legitimidade “para intentar as ações previstas nos artigos anteriores”, aos consumidores diretamente lesados (alínea a); aos consumidores e associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto” (vide alínea b), assim remetendo para os pressupostos da ação popular; e, finalmente, ao Ministério Público e Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos (alínea c). À luz do transcrito artigo 52.º da CRP resulta evidente que, entre nós, a tutela do consumidor se faz – também – através da acção popular. Todavia, e como o STJ tem vindo a afirmar, podendo as ações populares ter por objeto os interesses difusos em sentido restrito – relativos a bens públicos que, sendo insuscetíveis de apropriação individual, só podem ser gozados numa dimensão coletiva, ou seja, “são de todos e não são de ninguém” – interesses coletivos, incidentes sobre bens privados, mas comuns a grupos ou classes, ou ainda interesses individuais homogéneos, nestes dois últimos casos tem de ser identificado um interesse público que justifique a propositura da ação, sendo, pois, necessário que o autor prossiga também e ainda o interesse público (cfr. acórdão do STJ de 7 de Junho de 2023, processo n.º 26412/16.0T8LSB.L2.S1, e também o aresto do TRL de 01/12/2013, processo n.º 3114/22.2T8OER.L1-2, acessíveis em www.dgsi.pt). Esta exigência afigura-se amplamente justificada quando se considere a particular fisionomia das ações populares, desenhadas para defesa de interesses meta individuais e meta categoriais, abstraindo de posições jurídicas subjetivas, e também o regime agora instituído pelo DL 114-A/2023, de 5 de Dezembro, que procedeu à transposição da Diretiva (EU) 2020/1828 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores, submetendo as ações desta natureza a novos e diferentes pressupostos, sob pena de inexplicável sobreposição de regimes, para além do mais, em alguns aspetos, inconciliáveis. Tendo, pois, presente a referida classificação tripartida dos interesses difusos, e reconhecendo embora alguma flutuação de conceitos que dificulta o rigoroso recorte de cada uma das categorias cuja tutela seria garantida pelas ações populares, incontroversa é, porém, a falta de legitimidade das associações de consumidores para formular em juízo pedidos clássicos da tutela individual, como claramente ocorre no caso dos autos. Com efeito, e por mais que a recorrente afirme que pretende defender o direito “mais geral e o mais difuso, de todos os cidadãos a que Portugal seja um Estado de Direito Democrático, tal como a Constituição da República Portuguesa consagra”, a verdade é que, atendendo às pretensões formuladas, apenas um único interesse seria satisfeito pela procedência da presente ação, no caso, o interesse muito particular do identificado (…), que, tendo celebrado um contrato promessa, alega ter sido o mesmo incumprido, com evidentes prejuízos, sem que da decisão proferida irradiasse proteção do direito de qualquer outro indivíduo, classe ou coletividade à conformidade e segurança dos bens de consumo. Em suma, ocorre no caso a exceção dilatória da ilegitimidade da autora, não suprida pelo mandato agora conferido pelo lesado a um sr. Advogado, e que é fundamento de indeferimento liminar, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, alínea e), 578.º e 590.º, n.º 1, todos do CPCiv.. Não são devidas custas, por entendermos beneficiar a Autora, ora apelante, da isenção prevista no artigo 4.º, n.ºs 1, alínea b) e 5, do RCP, atendendo a que não ficou demonstrado que visasse a defesa de interesses distintos daqueles que lhes estão especialmente conferidos. Com efeito, tal como se considerou no acórdão do STJ de 25/5/2023, processo n.º 1572/21.1T8CVL-C.S1, também acessível em www.dgsi.pt), que se debruçou sobre caso idêntico, “ Entre o fim de prossecução do bem comum, ou de prossecução de interesses relacionados com o bem comum, e o meio legitimidade processual activa não há uma coincidência necessária”. Acresce que não foi formulado qualquer juízo de mérito sobre a pretensão formulada. Resulta do exposto a improcedência do recurso, salvo quanto a custas, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que com fundamentação não coincidente. * III. Decisão Julgo o presente recurso parcialmente procedente, em consequência do que: - declaro a autora parte ilegítima, ilegitimidade que constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso, a implicar o indeferimento liminar da petição inicial nos termos dos artigos 577.º, alínea e), 578.º, 278.º, n.º 1, alínea d) e 590.º, n.º 1, todos do CPCiv.; - declaro que a autora beneficia da isenção consagrada na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP. Sem custas, dada a isenção que à apelante foi reconhecida. * Sumário: (…) * Évora, 13 de Novembro de 2025 Maria Domingas Alves Simões __________________________________________________ [1] Ainda que tivesse pago a taxa de justiça, nem por isso a ação prosseguiria, dado não ter legitimidade para a sua instauração. |