Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | RENATO DAMAS BARROSO | ||
Descritores: | ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL PARTIDO POLÍTICO PECULATO DE USO LEGITIMIDADE | ||
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Data do Acordão: | 07/14/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Um partido político não tem legitimidade para se constituir assistente em processo instaurado por crime de peculato de uso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. 30/10.4TABJA.E1 1ª Sub-Secção ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA 1. RELATÓRIO A – Decisão Recorrida No processo comum singular nº 30/10.4TABJA, que corre termos na Comarca de B, Instância Local, Secção Criminal, J1 o M.P. deduziu acusação contra os arguidos RJSPM, MASA e AJCG, pela prática, por cada um deles, em autoria material, de um crime de peculato de uso, p.p., pelo Artº 376 nº1 do C. Penal. O Partido X – Partido Político, em representação da Comissão Política da Concelhia de B e do seu Presidente, por carecerem de capacidade jurídica para estarem em juízo, requereu a sua constituição como assistente, nos termos do Artº 68 do CPP, não fazendo o pagamento da taxa de justiça, ao abrigo da isenção prevista no Artº 4 al. c) do CCJ. O M.P. opôs-se a tal pedido, vindo o mesmo a ser deferido por despacho judicial que considerou ter o requerente legitimidade para se constituir assistente e determinou a sua notificação nos termos e para os efeitos previstos no nº4 do Regulamento das Custas Processuais. B – Recurso Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P, concluindo da seguinte forma ( transcrição ) : 1.º Vem o recurso interposto do despacho proferido a fls. 767 a 769 do Processo Comum Singular n.º 30/10.4 TABJA, que corre termos na actual Instância Local – Secção Criminal – J1 do Tribunal de B, no qual a Mm.ª Juiz reconheceu que o “Partido X – Partido Político” tem legitimidade para se constituir como assistente nos autos em referência, ainda que condicionada ao pagamento da correspondente taxa de justiça, uma vez que não se lhe aplica a isenção prevista no art. 4º, n.º 1, alínea e) do Regulamento das Custas Judiciais.2.º A questão que se coloca à cognição de V. Ex.ªs prende-se com a legitimidade para a constituição como assistente, num processo que tem por objecto factos passíveis de integrar o crime de Peculato de Uso, p. e p. pelo art. 376º, n.º 1 do Cód. Penal. 3.º O assistente, enquanto sujeito processual, assume no processo penal português relevância, sendo um colaborador do Ministério Público, com direitos e deveres próprios, que tem um poder constitutivo e conformador do próprio processo, ainda que a sua actuação esteja subordinada à intervenção processual daquele, como titular da acção penal.4.º A figura do assistente, embora sustentada de alguma forma no conceito de ofendido, não pode ser com este confundido. Daí que para além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, podem constituir-se assistentes no processo penal todos aqueles que se possam incluir nas diferentes alíneas do n.º 1, do referido art. 68º.5.º No caso em apreciação, como resulta do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, a factualidade suficientemente indiciada reconduz-se ao crime de Peculato de Uso, p. e p. pelo art. 376º, n.º 1 do Cód. Penal, que protege, como bens jurídicos, a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, o património alheio (público ou privado). Nestes crimes não são visíveis quaisquer bens jurídicos de natureza particular. 6.º Esses bens jurídicos assumem uma dimensão pública tal cujo interesse jurídico-penal protegido não foi pelo legislador excepcionado em termos de ser admitida a intervenção como assistente de outros que não o próprio Estado, por serem os interesses deste que estão directa e indirectamente em causa. 7.º Não é por acaso que na referida alínea e), do n.º 1 do art. 68º do Cód. Proc. Penal, quando se elenca um conjunto de crimes em relação aos quais qualquer pessoa se pode constituir como assistente, o legislador não previu deliberadamente o crime de Peculato de Uso, mas tão-só o de Peculato. 8.º Nem se pense que ao fazer essa referência ao crime de Peculato, enquanto crime base, o legislador também quis abarcar no espírito da norma o Peculato de Uso, enquanto tipo derivado. 9.º De acordo com o disposto no art. 68º, n.º 4 e 68º, n.º 1, alínea e), este último a contrario, ambos do Cód. Proc. Penal, que o despacho recorrido violou, conclui-se que o requerente “Partido X – Partido Político” não tem legitimidade para se constituir como assistente nestes autos, razão pela qual aquele deverá ser revogado e substituído por outro que indefira o requerimento de fls. 653.Assim decidindo, farão V. Ex.ªs a costumada Justiça! C – Resposta ao Recurso O requerente respondeu ao recurso, concluindo assim ( transcrição ) : 1 - O Ministério Público recorreu do despacho que admitiu o ora Alegante como Assistente, por entender não haver lugar a essa figura nos crimes de peculato de uso. 2 – O art.º 68º nº 1 alínea e) do Código de Processo Penal, menciona espécies de crimes e não todos os tipos de cada espécie, segundo o Alegante. 3 – Assim, o facto de não constar no referido artigo a menção ao crime de peculato de uso não implica que este não seja passível de ter Assistentes constituídos, já que este prevê a espécie de crime peculato. 4 – O crime de peculato de uso está estatuído na Secção II do Título V do Código Penal, ou seja na Secção Peculato do Título dos Crimes contra o Estado. 5 – O facto de existirem dois tipos de crime da espécie peculato prende-se também com as circunstâncias históricas e com a evolução do sistema jurídico, nomeadamente o penal, existindo assim o crime de peculato lato sensu e depois o peculato em sentido restrito. 6- Contudo os dois tipos de crime têm duas molduras penais diferentes mas isso prende-se com os bens concretos que cada um visa proteger, mais concretamente com o uso dos bens públicos. 7 – Enquanto o crime de peculato prende-se com a apropriação do bem público por parte do funcionário que tem acesso a este por força da sua função; 8 – No crime de peculato de uso o funcionário que tem o bem ao seu dispor por força das suas funções, usa-o ou permite que alguém o use. 9 – Assim sendo o crime de peculato visa uma dupla proteção do bem público, ou seja, protege-se a propriedade dos bens e a probidade e fidelidade dos funcionários. E, 10 – Para que se possa dizer que existir o tipo de crime de peculato têm que existir conjuntamente o crime patrimonial e o abuso de confiança de um funcionário público ou equiparado. 11- No caso do crime de peculato de uso estamos, na mesma, em face de uma proteção do bem público, através da garantia da legalidade e transparência. 12 – Enquanto no crime de peculato se pune a posse dos bens públicos por parte do funcionário, no crime de peculato de uso pune-se a utilização que este faz ou deixa fazer dos bens. 13 – No crime de peculato o objeto é dinheiro ou coisas móveis, que a doutrina diz serem equiparadas a dinheiro. 14- No crime de peculato de uso o objeto é o uso de coisas móveis de valor apreciável. 15- Apenas aqui há uma diferença entre os dois artigos que punem estas duas modalidades do crime de peculato, mas não é suficiente para que tenham regimes jurídicos diferentes. Aliás, 16 - Em ambos os tipos de crime o objeto é o bem público. 17- No crime de peculato existe uma conduta que conduz à apropriação ilegítima do bem, enquanto no crime de peculato de uso, o agente usa ou permite que usem o bem. 18- Para além destes aspetos e por equiparação a outras situações previstas no Código Penal, como é o caso do crime de corrupção (Titulo V, Secção I), em que igualmente não consta do art.º 68º nº 1 e) todos os tipos daquela espécie de crime, em que é possível a constituição de assistente, também aqui é possível. 19 - Assim sendo nada resulta da lei que no crime de peculato de uso não possa haver Assistentes. E, 20 - A verdade é que no caso concreto, em que estamos em face de um crime em que o objeto deste são bens de uma autarquia, são os seus munícipes e os seus representantes, quem devem zelar por estes. 21 – Assim sendo o ora Alegante, na qualidade de partido político com representação no Município de B, integra a definição de interessado no presente processo e como tal tem direito a estar em juízo, como Assistente, coadjuvando o Ministério Público na descoberta da verdade dos factos. 22 - O Alegante não entende a postura do Ministério Público no presente processo, contudo a sua atuação não o surpreendeu em face de outras situações em que o tratou como um adversário e não como um aliado. 23- Deste modo não assiste razão ao Ministério Público no presente recurso, devendo o mesmo ser rejeitado. NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado por improcedente e em consequência manter-se o despacho que admite a constituição de Assistente do ora Alegante. Deste modo V. Exa. farão JUSTIÇA! D – Tramitação subsequente Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso e consequente revogação do despacho recorrido. Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta. Tendo, pelo primeiro signatário, sido solicitada escusa para a tramitação do recurso, não lhe foi a mesma concedida, por decisão do STJ. Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO A – Objecto do recurso De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 ( neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria ) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente retira das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação. Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente na questão que suscita, ou seja, de não ser admissível a constituição como assistente em processo que tem por objecto a prática de um crime de peculato de uso, p.p., pelo Artº 376 nº1 do CPP. B – Apreciação Definida a questão a tratar, cuja simplicidade de pressupostos não demanda aprofundadas considerações jurídicas, parece-nos e salvo o devido respeito por opinião contrária, que a razão não pode deixar de assistir ao recorrente. O despacho em crise é do seguinte teor ( transcrição ) : Por requerimento de fls, 653, o Partido X - Partido Político, em representação da Comissão Política da Concelhia de B e do seu Presidente, por carecerem de capacidade jurídica para estarem em juízo, requereu a sua constituição como assistente, não fazendo o pagamento da taxa de justiça ao abrigo da isenção prevista no artigo 40, alínea c) do Código das Custas Judiciais. A Digna Magistrada do Ministério Público veio, a fls. 686 a 688 dos autos, opor-se ao pedido efectuado, porquanto, o requerente não se integra em nenhuma das situações previstas no n° 1 do artigo 68° do Código de Processo Penal, logo, não tem legitimidade para se constituir assistente. Notificado nos termos do artigo 68°, n° 4 do Código de Processo Pena, o arguido AJCG, por sua vez, pugna pelo indeferimento do requerido porquanto não está constituído mandatário nem foi paga a taxa de justiça devida. Cumpre decidir. Inexistem dúvidas de que o requerimento de constituição de assistente foi apresentado tempestivamente (cfr. data aposta no requerimento de fls. 653) e que o requerente se encontra devidamente representado (cfr. procuração forense junta a fls. 657), pelo que, se impõe verificar se este tem legitimidade e se pagou a taxa de justiça devida (ou se dela se encontra isento). No que concerne à legitimidade, e no que ao presente importa, dispõe o artigo 68°, n° 1, alínea e) do Código de Processo Penal que: "I - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: (. . .) e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção; " (sublinhado nosso). Como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público na sua oposição, o legislador, quando, na supra referida alínea e) elenca um conjunto de crimes em relação aos quais qualquer pessoa se pode constituir como assistente, se referiu ao crime de peculato e ao crime de participação económica em negócio excluiu o crime de peculato de uso, o que no seu entendimento fez de modo deliberado. Ora, embora decorra do artigo 9°, nº 3 do Código Civil que, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados", no caso presente, entendemos que, o legislador não omitiu a referência ao peculato de uso de modo deliberado, mas que resulta sim do pensamento legislativo subjacente ao normativo em análise que, a admissão de constituição de qualquer pessoa como assistente deve ser admitida também quando está em causa o crime de peculato de uso. Por um lado, importa considerar que a alínea e) do n° 1 do artigo 68° do Código de Processo Penal, pretendeu alargar a possibilidade de qualquer cidadão se constituir assistente quando estão em causa crimes que respeitam às mais graves violações de bens jurídicos comuns. Por outro lado, verificando-se que o crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375° do Código Penal, visa proteger a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente o património alheiro, seja este público ou privado, não se pode ignorar, que o crime de peculato de uso, visa proteger os mesmos bens jurídicos, constituindo além do mais, tal como o crime de peculato um crime de dano e de resultado, apenas se distinguindo do primeiro quanto à forma de consumação, o crime de peculato exigindo a acção de apropriação e o crime de peculato de uso bastando-se com o uso da coisa. Assim sendo, mal se compreenderia que se admitisse a constituição de qualquer pessoa como assistente em crimes que visam tutelar os mesmos bens jurídicos comuns. Nessa medida, entende-se que o requerente tem legitimidade para se constituir assistente. Já no que se refere à falta de pagamento de taxa de justiça, diremos que: A alínea e) do nº 1 do artigo 4° do Regulamento das Custas Processuais (e não a alínea c) como certamente por lapso o requerente refere no seu requerimento), na redacção que lhe foi dada pela Lei 7/2002 de 13 de Fevereiro, que se mantém até ao presente, dispõe que, estão isentos de custas "os partidos políticos, cujos benefícios não estejam suspensos, no contencioso previsto nas leis eleitorais". No caso dos autos, uma vez que, nos encontramos perante processo que não respeita ao contencioso eleitoral, forçoso será concluir que, recai sobre o requerente a obrigação de efectuar o pagamento da taxa de justiça prevista no nº 1 do artigo 8° do Regulamento das Custas Processuais. Em face do exposto, determina-se a notificação do requerente, nos termos e para os efeitos previstos no n° 4 do Regulamento das Custas Processuais. Notifique. De acordo com o disposto no artigo 68°, n°1, al. a) do Código de Processo Penal, podem constituir-se como assistentes, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei, especialmente, quis proteger com a incriminação Deste preceito decorre a consagração, para efeitos de constituição como assistente, de um conceito de ofendido entendido em sentido restrito, onde apenas cabe o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime, assim se distinguindo, em termos processuais, do ofendido e do lesado, o qual, nunca pode constituir-se assistente, mas tão só parte civil, para efeitos de dedução do respectivo pedido de indemnização. Por outro lado, se a qualidade de ofendido é condição necessária para a constituição de assistente, poderá todavia não ser, para tanto, suficiente, visto que a lei só considera, para tal efeito o ofendido, que, como se disse, for o titular dos interesses especialmente protegidos pela incriminação. Ficam, deste modo, arredados da amplitude do conceito de ofendido para efeitos de constituição de assistente, todos aquele cujo interesse na causa seja meramente mediato, generalista, ou indirecto, isto é, em que não se configurem perante a mesma com um interesse directo de onde lhes possa advir a aquisição da qualidade de assistente, entendido como um colaborador da acusação pública e subordinado a esta, ainda que seja uma figura com direitos e deveres próprios. Não se confundindo, assim, os conceitos de assistente e de ofendido, a lei atribui ainda a possibilidade de se constituírem assistentes a todos aqueles que se possam incluir nas diferentes alíneas do nº1 do Artº 68 do CPP. Por outro lado, a jurisprudência, gradualmente, veio alargar a possibilidade de constituição de assistente a determinados ilícitos, apesar de neles se protegerem bens eminentemente públicos - desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho e falsificação de documentos - entendendo assim que, nessa aferição, não nos devemos bastar com o critério da natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação. Também a lei, reflectindo, de algum modo, essa tendência, estabelece, na al. e) do nº1 do já referido Artº68, a possibilidade de qualquer pessoa se constituir como assistente « …nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção. » In casu, está na presença de um crime de peculato de uso, p.p., pelo Artº 376 nº1 do C. Penal, alegadamente cometido por três funcionários do Gabinete de Informação e Relações Públicas da Câmara Municipal de B e que estavam na directa dependência do seu Presidente. Como se sabe, neste tipo de crime, os bens jurídicos especialmente protegidos com a respectiva incriminação são a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, o património alheio, público ou privado. Ora, se a legitimação do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, a natureza pública destes interesses é inegável e neles não se vislumbra quaisquer outros de natureza particular que mereçam a consideração do direito, no sentido de se poder admitir a constituição de assistente a outros que não o Estado, porquanto são os interesses deste, directa e indirectamente, que estão, exclusivamente, em xeque. Poderia contudo considerar-se, como o fez o despacho recorrido, que o crime de peculato de uso está incluído no rol dos ilícitos da al. e) do nº1 do Artº 68 do CPP, pelos quais qualquer pessoa se pode constituir como assistente, independentemente dos bens jurídicos protegidos pelas normas em causa. Todavia, como se vê do que supra se transcreveu, tal assim não sucede, ou seja, o crime de peculato de uso não consta da referida lista, apesar de, como se sabe, proteger o mesmo bem jurídico que o ilícito de peculato e deste apenas se distinguir pela forma de consumação, na medida em que se basta com o uso da coisa, ao contrário do peculato, que exige a sua apropriação. Ora, com o devido respeito por opinião contrária, não se concorda com a interpretação que, no despacho recorrido, se faz a tal omissão, pois, na prática, consubstancia-se em ler, extensivamente, uma norma que tem, crê-se, natureza excepcional. Como se sabe, diz-nos o Artº 9 nº3 do C. Civil, que « na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados ». Ora, nesse processo de interpretação, não parece correcto entender a literal omissão do crime de peculato de uso no elenco dos ilícitos previstos na al. e) do nº1 do Artº 68 do CPP como se a mesma não existisse, traduzindo, incorrectamente, acredita-se, o pensamento legislativo em causa. Nesta parte, concorda-se inteiramente com o recorrente quando afirma : « Aliás, não é por acaso que na referida alínea e), do n.º 1 do art. 68º do Cód. Proc. Penal, quando elenca um conjunto de crimes em relação aos quais qualquer pessoa se pode constituir como assistente, o legislador não previu deliberadamente o crime de Peculato de Uso, mas tão-só o de Peculato. Nem se pense que ao fazer essa referência ao crime de Peculato, enquanto crime base, o legislador também quis abarcar no espírito da norma o Peculato de Uso, enquanto tipo derivado. É que não obstante o crime de Peculato de Uso estar sistematicamente integrado na Secção II, do Capítulo IV, do Título V do Código Penal, intitulada “Do Peculato”, a já mencionada alínea e) só confere legitimidade a qualquer pessoa para se constituir como assistente em relação aos crimes de Peculato e Participação Económica em Negócio, excluindo propositadamente o outro único crime dessa Secção – o de Peculato de Uso. » Na verdade, estando previstos na citada al. e) do nº1 do Artº 68 do CPP, os crimes de peculato e de participação económica em negócio, se o legislador tivesse intenção de incluir, também, nessa panóplia de ilícitos, o de peculato de uso, certamente tê-lo-ia feito, desde logo por o mesmo completar, juntamente com os restantes dois, a Secção II, do Capítulo IV, do Título V do C. Penal. Sendo tal secção constituída, apenas, por estes três crimes e tendo o legislador feito constar do elenco da al. e) do nº1 do Artº 68 do CPP, apenas dois deles – peculato e participação económica em negócio – parece ser inevitável a conclusão que houve uma intenção expressa de excluir dessa lista o outro ilícito que a compunha, o crime de peculato de uso, por entender que este, pela sua menor gravidade em relação aos outros, não justifica a permissão de qualquer pessoa ser admitida a constituir-se como assistente. Ou seja, ao contrário de outros crimes, onde, sendo acautelados, inequivocamente, bens jurídicos com dimensão pública, é contudo possível a intervenção de qualquer pessoa como assistente, no crime de peculato de uso, o legislador, expressamente, não atribuiu essa faculdade de intervenção, pelo que, à contrariu sensu, importa extrair a conclusão que o crime de peculato de uso não foi tido como uma das excepções previstas no referenciada norma. Nessa medida, não sendo reconhecida ao “Partido X- Partido Político” por lei especial - como sucede, por exemplo, no âmbito dos crimes eleitorais, quanto aos partidos políticos em geral - legitimidade para se constituir como assistente, não se integrando a situação em apreço em qualquer uma das alíneas do nº1 do Artº 68 do CPP e tendo o legislador excluído expressamente a possibilidade de qualquer pessoa assumir essa qualidade quanto ao crime de peculato de uso, ter-se-á de concluir que o requerente não pode ser admitido a intervir nestes autos com esse estatuto. Não tem, assim, o Partido X- Partido Político”, legitimidade para se constituir como assistente nos presentes autos, assim se concluindo, sem necessidade de considerações complementares, pela procedência do recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido. 3. DECISÃO Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, não se admitindo a constituição de assistente requerida pelo “Partido X – Partido Político”. Sem tributação. xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário. xxx Évora, 14 de Julho de 2015 ( Renato Damas Barroso ) ( António Manuel Clemente Lima ) |