Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1214/11.3TAFAR.E1
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: CRIME
PATRIMÓNIO
HIPOTECA
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 12/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O Crime de infidelidade previsto no nº1 do art.224º do C. Penal é um crime contra o património. Trata-se também de um crime de resultado.
2 - Assim, constituem elementos do tipo:
- A atribuição da confiança a alguém, por lei ou acto jurídico;
- Do encargo de dispor, administrar ou fiscalizar interesses patrimoniais alheios;
- Que intencionalmente e com grave violação dos deveres;
- Se cause prejuízo patrimonial importante.
3 - Para efeitos penais a noção de património é mais ampla do que a que normalmente é usada em termos civilistas, onde é restrita ao complexo de direitos e obrigações avaliáveis em dinheiro, devendo englobar não só a vertente corpórea, mas também os direitos patrimoniais ou as prestações com valia patrimonial.
4 - Deste modo, o património engloba a propriedade material (sobre coisas físicas) e os direitos reais em geral, a propriedade imaterial (direitos de autor, direitos de marca e patentes, etc.), a posse e os direitos de crédito ou obrigacionais.
5 - A extinção da hipoteca, sem a concomitante extinção do crédito garantido, importa uma diminuição daquele património.
6 - Não pode, para efeitos de integração no crime de infidelidade, pp. no art. 224º, n 1, do C. Penal, deixar de ser qualificado de importante o prejuízo patrimonial de €543.382,71, causado ao lesado como consequência directa e necessária da conduta da arguida.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo comum nº1214/11.3TAFAR da Comarca de F – Instância Central – 1ª Secção Criminal – J1, a arguida CSFL, devidamente identificada nos autos, sob acusação deduzida pelo Ministério Público, foi submetida a julgamento perante tribunal colectivo, vindo por acórdão proferido em 25-02-2013, para o que aqui releva, a ser decidido o seguinte:
- Absolver a arguida CSFL da acusação da prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º n.º1 al. b) do CP;
- Condenar a arguida CSFL pela prática de um crime de infidelidade, p. e p. pelo art. 224º n.º 1 do CP, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período;
- Condenar a demandada CSFL a pagar ao demandante Banco S SA a quantia a de 543.382,71 (quinhentos e quarenta e três mil trezentos e oitenta e dois euros e setenta e um cêntimos), a que acrescem juros de mora contados desde a data da sua notificação, e ainda a pagar a quantia a apurar em subsequente liquidação.

Recurso.

Inconformado com essa decisão dela a arguida interpôs o presente recurso, pugnando pela sua absolvição, rematando a motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. Os factos dos autos não permitem que se dê por verificado o preenchimento do ELEMENTO OBJECTIVO DO TIPO DE ILÍCITO: PREJUÌZO PATRIMONIAL IMPORTANTE.
2ª. Dos elementos dos autos não resulta que a Recorrente tenha causado, com a sua conduta, prejuízo ao banco, muito menos não causou um prejuízo patrimonial importante.
3.ª A hipoteca não se confunde com o crédito que garante. É o crédito, esse sim, garantido ou não, que constitui ativo no património do credor e, mesmo assim, apenas como uma expectativa.
4ª. O Tribunal a quo trata a hipoteca corno um expediente que assegura ao credor, com certeza absoluta, a recuperação do seu crédito. Faz equivaler a garantia ao crédito e a perda da garantia à perda do crédito.
5ª. Mas essa é uma conclusão perfeitamente errada e completamente desautorizada pela lei.
6ª. A conduta da Recorrente, ao contrário do que parece entender o Tribunal a quo não significou o perdão da dívida ao banco, não revê o condão de fazer desaparecer o crédito do banco.
7.ª O credor, quando concede um crédito, nenhuma certeza tem de que o vai recuperar. E isto sucede, haja ou não garantia, que serve não para assegurar o pagamento, mas apenas e só para conferir ao credor uma preferência no pagamento pelo produto da venda do bem sobre que incide.
8ª. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago "pelo valor de certas coisas". Ou seja, a hipoteca só releva no momento em que o devedor não paga voluntariamente e o credor tem que lançar mão de meios coercivos de cobrança.
9ª. Preferência que, de todo o modo, "cai" quando preferem à hipoteca outros privilégios e garantias anteriores, ou até mesmo posteriores - veja-se o caso do direito real de retenção e o privilégio imobiliário especial inerente ao Imposto Municipal Sobre Imóveis (IMI).
10ª. No presente caso, não temos notícia de que o credor tenha demandado judicialmente as empresas "." e "RAS, S.A." (o que se justificaria tendo em conta a situação de insolvência entretanto declarada) e de que, nessa sede, se tenha deparado com a impossibilidade de, por virtude da conduta da Recorrente, ver ressarcido o seu crédito por lhe terem preferido créditos que, de outro modo, não prefeririam.
11.ª Também não temos notícia de que o valor de mercado dos imóveis, que seria o valor pelo qual os bens iriam à venda em sede judicial (ou o valor patrimonial dos mesmos, caso este fosse mais elevado, de acordo com os recentes critérios de fixação do valor base de venda previstos no artigo 812.º do CPC), era suficiente para expurgar a hipoteca que incidia sobre cada bem.
12.ª Com o cancelamento parcial das hipotecas operado pela Recorrente, o banco não deixou de ser credor. Ficou credor comum do remanescente das verbas que recebeu (muitas delas superiores aos valores de distrate relativo a cada fração!), tal como ficaria em sede de venda judicial.
13ª. E nada garante, sequer, que, em sede judicial, seriam diferentes (e, muito menos, que fossem mais elevadas), para não dizer que nada assegura que seria, sequer, possível, obter as quantias recuperadas pelo produto da venda.
14ª. Contrariamente ao que o Tribunal a quo quer fazer crer, a hipoteca não faz parte do atívo patrimonial do credor, nem assegura que este seja ressarcido do seu crédito. Dá-lhe apenas uma preferência no pagamento pelo produto da venda (judicial) dos bens sobre que incide. E, mesmo assim, só na medida em que outros direitos reais não lhe prefiram e que o produto da venda seja suficiente para o ressarcir.
15ª. Não pode, pois, o Tribunal a quo afirmar que o banco teve um prejuízo com a conduta da Recorrente.
16ª. A conduta da Recorrente não impediu o credor de recuperar o seu crédito; o "S, S.A.': se ainda não o fez, poderá a todo o tempo faze-lo.
17ª. Não existe qualquer relação de causalidade direta entre o cancelamento parcial da hipoteca e uma qualquer eventual impossibilidade de recuperação do crédito.
18ª. Não foi, sequer, apurado qual o património dos devedores que obtiveram o distrate da hipoteca entregue pela Recorrente de forma a poder afirmar-se que o ressarcimento do crédito ficou em perigo. Imaginemos que o património de tais devedores era manifestamente superior ao volume de dívidas que tinham. Imaginemos que a sua atividade era altamente lucrativa, nada fazendo perspectivar o incumprimento do pagamento das prestações acordadas para pagamento do crédito. Que prejuízo decorreria da conduta da Recorrente? Nenhum.
19ª. Por outro lado, são inúmeras as circunstâncias que podem inutilizar a garantia: insolvência do devedor, créditos preferentes à hipoteca, desvalorização comercial do bem, desaparecimento do bem ...
20ª. Para além de ser absolutamente superficial a análise jurídica que na decisão recorrida ao instituto da hipoteca, o Tribunal a quo parece olvidar o facto de cada uma das empresas ter entregue ao banco as verbas que recebeu com a alienação das frações. Tais verbas entraram no património do banco!
21ª. E se alguns movimentos de conta não permitem tal conclusão, outros há (vide, designadamente, as alíneas iii), iv], v) e vi) do ponto 4 da Decisão de que se recorre) que nos permitem concluir que os valores recebidos pela venda de algumas frações são superiores aos que seriam necessários para distrate parcial da hipoteca.
22ª. Esses montantes entraram na esfera patrimonial do credor (!), ainda que não tenham sido vinculados ao empréstimo no âmbito do qual foi a hipoteca registada.
23ª. Nenhuma certeza existe de que as verbas recebidas em sede de venda judicial seriam diferentes (e mais elevadas ou, sequer, possíveis) das que foram efetivamente recebidas. Poderia até surpreender-nos a conclusão de que, se não fosse a atuação da Recorrente, o banco nenhuma quantia receberia daqueles devedores!! Não se vê, aliás, motivo nem prova nos autos que permita pensar o contrário.
24ª. O Tribunal a quo não tinha, pois, quaisquer elementos para afirmar que da conduta da Recorrente resultou um prejuízo patrimonial para o banco seu empregador e, muito menos, para quantificar tal prejuízo.
25ª. Menos, ainda, para qualificar tal "prejuízo" como "importante".
26ª. O Tribunal a quo limita-se a afirmar que é notório que a grandeza dos valores em causa, dos créditos associados às hipotecas canceladas, torna manifesta a relevância do prejuizo. O que é inaceitável.
27ª. Desde logo, não podem ser para aqui convocados conceitos que a lei punitiva (tal como anui o Tribunal a quo, ainda que os utilize) claramente não quis utilizar, quais sejam os critérios estabelecidos nas alíneas a) e b) do artigo 2ü2.º do Cp, que estabelecem um quantitativo certo e determinado para qualificar "Valor "Elevado" e "Consideravelmente Elevado".
28ª. Nem sequer é apontado um valor exato para justificar que o "prejuízo" (que não fundamentou) é "importante" porque é de "€ x" e como tal, segundo os critérios das alíneas a) ou b) do artigo 202.º do CP, é de valor elevado ou consideravelmente elevado e por isso há-de ser "importante".
29ª. No artigo 224.º do CP, o legislador deixou propositadamente na mão do julgador o preenchimento do conceito indeterminado "importante", o que bem se compreende à luz da justiça material que serve de corolário à justiça penal. Se quisesse utilizar aqueles critérios, teria reproduzido no artigo 224.º do CP as formulações das alíneas a) e b) do artigo 202.º do CP, ou remetido para lá, e não o fez!
30ª. Pretendeu, assim, o legislador que, apenas no momento da aplicação da lei, perante o caso concreto, se indagasse se houve prejuízo e se o mesmo foi "importante". E tal indagação deverá fazer-se recorrendo a critérios absolutos, isto é, quantitativos, mas também subjetivos, atendendo à situação patrimonial da vítima (assim entende Jorge de Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense ao Código Penal).
31ª. Do ponto de vista quantitativo, a decisão é omissa. Refere apenas que o prejuízo é importante porque é notória a grandeza dos valores envolvidos (7!) Ora, mesmo que tivéssemos por referência o valor da indemnização cível a que a Recorrente foi condenada - € 543.382,71 - tendo em conta outros circunstancialismos, designadamente a posição económica em que a vítima ficou colocada, chegar-sé-ia à conclusão que não estaríamos em presença de um prejuízo que, no caso concreto, pudesse ser considerado "importante".
32ª. Com efeito, a "vítima': no presente caso, é o banco "S, S.A.", entidade bancária com o capital social de € 656.723.284 (seiscentos e cinquenta e seis milhões, setecentos e vinte e três mil, duzentos e oitenta e quatro euros)!!
33ª. Para que o prejuízo pudesse ser considerado "importante': seria necessário, que a atuação do agente (a Recorrente) deixasse a vítima (S, S.A.!) numa situação económica frágil, o que não sucedeu, sendo para isso, aliás, totalmente inapta.
34ª. Aliás, como ficou evidenciado, a Recorrente não privou o banco do seu crédito, nem da possibilidade de o cobrar. E mesmo que assim fosse, é notória a reduzida importância das quantias em causa para o banco.
35ª. A "importância" sempre terá que reporta-se à situação económica da vítima, sob pena de se gerarem situações de injustiça material. É à situação patrimonial da vítima que temos que atender no momento de preenchimento do conceito indeterminado "importante". Mesmo que a Recorrida tivesse prejudicado o "S" em € 500.000,00 - que não prejudicou -, é notório que o mesmo não ficou economicamente fragilizado ...
36ª. As quantias correspondentes à alienação de (10) [rações (negócio que pressupunha o cancelamento prévio do ónus) entraram no património do banco, sendo que a circunstância de não terem sido associadas aos empréstimos garantidos apenas sustenta a violação de deveres no âmbito da relação laboral e nunca, da forma imediata e indissociável que o Tribunal a quo sugere, o preenchimento do elemento típico: causação de um prejuízo patrimonial importante.
37ª. Para além de a conduta da Recorrente não ter causado prejuízo no património do credor (pois que incidiu - e apenas parcialmente e sem esquecer os montantes recebidos - sobre a garantia e não sobre o crédito de que é acessória), este nunca poderia considerar-se "importante", atenta a sua impossibilidade objetiva de debilitar gravemente a situação económica do S, S,A.
38ª. Falha, pois, o preenchimento de um dos elementos típicos do crime. Pelo que, a decisão recorrida viola, por erro de interpretação, o disposto no n. 1 do artigo 224.º do Cp, na medida em que a conduta da arguida não provocou, nem era apta a provocar (1) prejuízo patrimonial (2) importante ao credor.
39ª. Foram, pois, incorretamente julgados os factos dados como provados nos números 7 e 8, na medida em que não é verdade que o banco ficou "sem garantia bastante para assegurar o pagamento dos empréstimos que concedeu às referidas empresas, vendo-se impossibilitado de cobrar parte dos seus créditos", nem é verdade que "ao atuar como descrito a arguida sabia que iria causar um prejuizo patrimonial avultado à denunciante, o que previu e quis concretizar".
40ª. O dolo, no caso dos autos, traduz-se numa especial atenção de provocar um prejuízo patrimonial importante e, nos presentes autos, ficou longe de ser demonstrado.
41ª. Não se encontra preenchido o ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO DE ILÍCITO, o dolo específico; a especial INTENÇÃO de provocar um prejuízo patrimonial importante.
42ª. O crime de infidelidade exige o dolo direto ou necessário, excluindo-se, portanto, a suficiência do dolo eventual, ou seja, há exclusão da imputação subjetíva, quando o agente apenas representa como possível a causação de determinado resultado típico (no caso do crime de infidelidade, o prejuízo patrimonial importante para o titular dos interesses que o agente tem o dever de administrar).
43ª. Exige-se que o agente represente e atue com a intenção e com a certeza de que produzirá o resultado típico (prejuízo patrimonial importante). Donde que, não haverá o crime de infidelidade, quando o agente pratica uma ação que contém riscos (poderá trazer prejuízos, mas também há algumas hipóteses de ser proveitosa), conformando-se em sujeitar o património alheio à concretização desses riscos.
44ª. Nos presentes autos, não se pode ter por provado que a Recorrente tenha atuado com a intenção de causar um qualquer prejuízo patrimonial ao banco, muito menos um prejuízo patrimonial importante.
45ª. Pelo contrário, a Recorrente não emitiu, sem mais, documentos de distrate ­o que seria de esperar se tivesse alguma intenção de prejudicar o património do banco; a Recorrente obteve, para o banco, pagamentos por parte dos devedores; a Recorrente, ao cancelar parcialmente a hipoteca sobre determinadas frações, exigiu da "AH." a constituição de uma hipoteca adicional para garantir o pagamento do empréstimo concedido; relativamente à empresa R, S.A, a circunstância de o administrador da insolvência ter resolvido o contrato de dação em cumprimento é situação que, naturalmente, não estava ao alcance da Recorrente prever. Além disso, se foi resolvido, sanada ficou a atuação da Recorrente ...
46ª. A motivação da Recorrente era tão só facilitar aos clientes do banco a alienação dos imóveis e com isso agilizar a obtenção, para o banco, de pagamentos. A conduta da Recorrente foi arriscada mas pretendia ser proveitosa para o banco.
47ª. Os riscos assumidos pela Recorrente revelam tão só a maior ou menor gravidade da violação dos deveres a que estava vinculada, o que é necessariamente distinto de uma específica "intenção danosa" que teria que a mover para que pudesse subsumir-se a sua conduta ao tipo subjetívo aqui em causa.
48ª. Uma coisa são os riscos que a Recorrente decidiu assumir com uma conduta que sabia ser contrária aos seus deveres; coisa diversa é a específica intenção com que o fez. A intenção do agente autonomiza-se da violação grave dos deveres que lhe incumbiam; são requisitos distintos e cumulativos que carecem de tratamento autónomo.
49ª. O facto de a Recorrente ter violado os deveres inerentes às funções que exercia, não significa necessariamente que pretendia prejudicar o banco! O Tribunal a quo não apoia a sua convicção em qualquer elemento de prova mas antes no errado raciocínio de que "a prática de um crime, mormente doloso, implica sempre a violação de um dever; ora, a existência daquela intenção, na prática do crime, torna necessariamente grave a violação do dever em causa; por isso se refere amiúde a redundância desta exigência típica)" - Vide ponto 5 da decisão.
50ª. O Acórdão de que se recorre viola, por erro de interpretação, o disposto no artigo 224.º, n.º 1,º do CP, aqui concretamente no que respeita ao tipo subjetivo.
51ª. Não pode permanecer a condenação da Recorrente a indemnizar o banco, porquanto não estão reunidos os pressupostos da responsabilização civil da Recorrente nestes autos, desde logo porque não cometeu o crime que lhe é imputado.
52ª. Como se demonstrou a conduta da recorrente não é subsumível no ilícito que lhe foi imputado (crime de infidelidade).
Como se demonstrou a conduta da Recorrente não é subsumível no ilícito
53ª. Mas mesmo que assim não se considerasse, a verdade é que não se apurou o dano da demandante para que fosse possível funcionar o instituto da responsabilidade civil.
54ª. À cautela, sempre se dirá que o dano jamais poderia ser de € 543.381,71, não tendo ficado demonstrado de quanto, mesmo putatívamente, poderia ser.
55ª. A decisão recorrida, viola, nesta parte, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos artigos 483.º, 562.º, 563.º e 564.9 do CC, impondo-se a absolvição da Recorrente quanto ao pedido de indemnização civil.
Admitido o recurso contra-motivou o Ministério Público na 1ªInstãncia pugnando pela improcedência do recurso com a consequente manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
1. Não se conformando a arguída CSFL com o douto Acórdão, proferido a 25.02.2013, no qual o Tribunal condenou a arguida pela prática de um crime de infidelidade, p. e p. nos termos do art.224°, n.011 do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, veio a mesma interpor o competente recurso para o Tribunal da Relação de Évora.
2. Alega a recorrente, muito sucintamente, que os factos não são susceptíveis de integrar a qualificação jurídica do crime de infidelidade, uma vez que não se estão reunidos quer os elementos objectivos; quer os elementos subjectivos do referido tipo.
3. Na senda desse entendimento, e quanto aos elementos objectivos do tipo, sustenta a arguida que não resultou provado que tenha a arguida causado, com a sua conduta, prejuízo ao banco.
4. Segundo sustenta a recorrente: «a hipoteca não se confunde com o crédito que garante. É o crédito, esse sim, garantido ou não, que constitui ativo no património do credor e, mesmo assim apenas como uma expectativa».
5. Considera a recorrente que não pode, pois, o Tribunal a quo afirmar que o banco teve um prejuízo com a conduta da Recorrente, uma vez que a conduta da Recorrente não impediu o credor de recuperar o seu crédito; o "S, S.A:: se ainda não o fez, poderá a todo o tempo fazê-lo.
6. Não existe qualquer relação de causalidade directa entre o cancelamento parcial da hipoteca e uma qualquer eventual impossibilidade de recuperação do crédito.
7. Sustenta igualmente a recorrente e no que toca ao elementos subjectivo não se ter verificado o dolo especifico concretizado na especial intenção de provocar um prejuízo patrimonial importante».
8. Nos presentes autos, não se pode ter por provado que a Recorrente tenha atuado com a intenção de causar um qualquer prejuízo patrimonial ao banco, muíto menos um prejuízo patrimonial importante, uma vez que a motivação da Recorrente era tão só facilitar aos clientes do banco a alienação dos imóveis e com isso agilizar a obtenção, para o banco, de pagamentos. A conduta da Recorrente foi arriscada mas pretendia ser proveitosa para o banco.
9. Examinada a exposição da recorrente e que melhor se encontra explicitada no recurso, e analisado o douto acórdão recorrido, desde já consignamos que, em nosso modesto entender, não assiste razão à mesma, nem os argumentos por si aduzidos podem fundamentar a revogação do acórdão.
10. Analisando os factos dados como provados no acórdão recorrido; a respectiva fundamentação e a qualificação jurídica e no que respeita ao "prejuízo", considera-se que fez o "Tribunal a quo" uma interpretação correcta do conceito de prejuízo importante, tendo justificado devidamente em que critérios se baseou para o efeito.
11. Com efeito, sustentou o Tribunal que: «No que concerne à produção de um prejuízo patrimonial, é preciso atender, de um lado, ao carácter patrimonial da garantia real. Não se torna sequer necessário elaborar a propósito de um específico conceito jurídico-criminal de património [que. na acepção económico-jurídica dominantemente aceite, compreende «(O conjunto de utilidades económicas detidas pelo sujeito cujo exercício ou fruição a ordem jurídica não desaprova», à luz da particular teleologia do direito criminal».
12. «Assim é em geral, do ponto de vista da expectativa jurídica, que encerra, de assegurar uma entrada patrimonial futura na esfera jurídica do credor (um incremento patrimonial futuro). Mas também assim é na perspectiva da extinção parcial ímediata de um direito do lesado e, assim, uma diminuição do seu activo, sendo ainda que a eliminação daquele direito também diminui a consistência do crédito - como o direito de crédito se traduz apenas numa expectativa de pagamento, a eliminação da sua garantia real torna menos consistente aquela expectativa, que, no /imite, passa a depender apenas do arbítrio (da vontade) do devedor.
13. Acresce ainda, mas de forma essencial, que a aferição desta perda prejudicial não pode ser autonomizada das concretas circunstâncias presentes no caso e, em especial, do procedimento implementado pelo banco que deveria ser adoptado: como a disponibilização do título de cancelamento da hipoteca apenas deveria ser realizada mediante o simultâneo pagamento do crédito hipotecário correspondentes, a conduta da arguida permite associar ao cancelamento da hipoteca uma perda efectiva imediata para o banco, traduzida na falta de pagamento do correspondente crédito.
14. «É certo, este crédito não se extinguiu e persiste como um activo no património do banco, mas, com a conduta da arguida, o banco viu-se logo privado dos valores que deveria receber aquando do cancelamento e, nessa medida, sofre uma imediata perda patrimonial.
15. Quanto à qualificação desse prejuizo (como importante), invocou o Tribunal que o mesmo é: «notório que a grandeza dos valores em causa, dos créditos associados às hipotecas canceladas, torna manifesta a relevância do prejuízo: trata-se de prejuízo importante [mesmo à luz dos critérios do art. 2020 aI. a) ou, especialmente, aI. b) do CP, por vezes invocados nesta sede - embora se julgue que foi intenção do legislador não vincular o tipo penal em causa àqueles critérios, como decorre quer da letra da norma punitiva (que usa conceito diverso daquele que surge naquelas normas), quer de um elemento sistemático (decorrente da comparação com os demais tipos penais vinculados ao art. 2020 aI. a) ou b), onde se utiliza sempre o conceito que estas normas contêm) quer da ratio da norma (que se julga se não quedar por um economicismo estrito e objectivista, vinculado a valores pré-determinados)]».
16. Analisados, pois, os argumentos supra explanados, constata-se que não padece a referida decisão de qualquer omissão, uma vez que foi analisada a questão do prejuízo de forma exaustiva e devidamente fundamentada, posição com a qual concordamos.
17. No que concerne ao elemento subjectivo, considerou o Tribunal: «estar demonstrada uma actuação dolosa, e com a específica intenção danosa pressuposta pelo tipo legal),.
18. Com efeito, a arguida, tendo em conta os conhecimentos de que era portadora; conhecendo a forma de funcionamento e as regras a que estava sujeita, tinha a obrigação de saber quais os resultados da sua conduta e os prejuízos que daí decorriam.
19. Deste modo, tendo em conta os factos que praticou; o modo de cometimento; as regras que incumpriu e os conhecimentos que tinha decorrentes das funções que exercia, não restam pois dúvidas que agiu a arguida pelo menos com dolo necessário.
20. Em face do supra plasmado, resta-nos concluir que os argumentos aduzidos pelo recorrente não nos convencem, sendo pois o acórdão irrepreensivel na sua argumentação e decisão, não merecendo qualquer reparo.
Nesta Instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta é também de parecer que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença impugnada.
Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP respondeu a assistente reiterando o que alegou na contra-motivação apresentada.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

No acórdão recorrido foi dado como provado a seguinte factualidade:
1) Pelo menos durante os anos de 2009 e 2010, a arguida prestou serviço na Direcção Comercial de Empresas de F, do Banco S, SA, como gestora de empresas.
2) Para além do mais, competia à arguida solicitar à Direcção de Coordenação de Crédito Hipotecário do banco a emissão de títulos de cancelamento do registo (também designados títulos de distrate) das hipotecas constituídas pelos seus clientes como garantia dos empréstimos concedidos pelo banco, quando aqueles pretendiam amortizar os referidos empréstimos ou vender fracções hipotecadas.
3) De acordo com os seus deveres, a arguida apenas deveria entregar os referidos títulos aos clientes do banco depois de assegurado o pagamento do crédito que as hipotecas a cancelar (distratar) garantiam.
4) A arguida entregou de forma propositada e voluntária títulos de cancelamento (distrate) de hipotecas a clientes do banco, sem que os créditos a que as hipotecas se reportavam fossem satisfeitos.
5) Assim, em datas não apuradas mas pelo menos entre data próxima a 17.08.2009 e até 16.12.2009, a arguida entregou aos responsáveis da sociedade denominada AH, nas referidas condições, os seguintes:
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “A” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito em P, descrito na Conservatória do Registo Predial de P sob o n.º 0000 da freguesia de P, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 117.774,65 referente a um empréstimo concedido pelo banco à referida empresa. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 20.08.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “D” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 123.764,87. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 16.11.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “F” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 99.616,13. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 27.11.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “G” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 123.784,87. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 12.11.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “I” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 99.616. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 26.08.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “J do mesmo prédio, o qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 119.181,30. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 16.12.2009.
6) E em datas não apuradas mas pelo menos entre data próxima a 03.07.2009 e até 25.03.2010, a arguida entregou aos responsáveis da sociedade denominada RAS, SA, nas referidas condições, os seguintes:
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “D” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito em S, descrito na Conservatória do Registo Predial de S, sob o n.º 0001, da freguesia de S, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 134.498,42 referente a um empréstimo concedido pelo banco à referida sociedade. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 11.02.2010;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “L” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito em S, descrito na Conservatória do Registo Predial de S, sob o n.º 0101 da freguesia de S, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 134.264,70 referente a um empréstimo concedido pelo banco à referida sociedade. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 26.03.2010;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “H” do mesmo prédio, o qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 134.264,70. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 23.05.2011;
7) Em resultado da conduta da arguida, ficou o banco sem garantia bastante para assegurar o pagamento dos empréstimos que concedeu às referidas empresas, vendo-se impossibilitado de cobrar parte dos seus créditos.
8) Ao actuar como descrito a arguida sabia que iria causar um prejuízo patrimonial avultado à denunciante, o que previu e quis concretizar.
9) A Direcção de Coordenação de Crédito Hipotecário do banco, tendo detectado que a emissão dos títulos de cancelamento (distrate) de várias hipotecas referentes ao empréstimo concedido à empresa Área H não havia dado lugar à respectiva amortização, solicitou em 18.10.2010 à agência de F a devolução dos títulos de cancelamento (distrate) das hipotecas não amortizadas.
10) Em data anterior a essa solicitação, a arguida, para não ser descoberta e como tinha em seu poder cópias dos mencionados títulos, colocou-lhes o selo branco da mencionada instituição de crédito, para criar a aparência que se tratava dos originais
11) Na sequência daquela solicitação, funcionário da agência deF enviou esses documentos à referida Direcção.
12) A arguida actuou da forma descrita visando obter vantagens que sabia não lhe serem devidas, designadamente não ser descoberta e não lhe ser instaurado um processo disciplinar.
13) Sabia a arguida que da sua conduta resultaria um prejuízo para o banco, porquanto retardaria a sua reacção à perda de garantias dos seus créditos, agravando, deste modo, o risco de os satisfazer.
14) A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas relativas à entrega dos títulos de cancelamento (distrate) eram proibidas e criminalmente censuráveis e, mesmo assim, não se absteve de as concretizar.
15) A decisão da arguida correspondente à sua descrita actuação foi tomada sem o aval dos seus superiores hierárquicos.
16) Foi durante a licença de parto da arguida que ocorreu a solicitação referida em 9) e ocorreu a devolução referida em 11).
17) A Área H Lda constituiu uma hipoteca adicional para garantir o pagamento do empréstimo concedido, hipoteca esta constituída sobre imóveis já hipotecados para garantir outro empréstimo, sendo o valor dos bens hipotecados suficiente para pagar apenas o crédito hipotecário inicial.
18) A R SA efectuou dação em cumprimento para extinguir o empréstimo concedido, dação que, na sequência da declaração da sua insolvência, foi resolvida pelo administrador da insolvência.
19) Parte não apurada do valor recebido pelas sociedades Á H Lda e R SA na venda das fracções referidas em 5) e 6), que deveria ser usado no pagamento do crédito hipotecário, foi usado para pagar valores em dívida perante o banco demandante (dívidas distintas das dívidas de capital dos empréstimos garantidos pelas hipotecas) – mas essa parte usada no pagamento era muito inferior (menos de metade) ao valor que deveria ser usado no pagamento parcial dos créditos hipotecários.
20) A arguida vive com a mãe e os seus três filhos, respectivamente de 12, 11 e 3 anos de idade. Separou-se do marido, com quem estava casada desde o ano 2000, em meados de 2013, estando a decorrer processo de divórcio, tendo deixado a residência do casal e passado a viver em casa da mãe. As relações familiares são recompensadoras e satisfatórias, beneficiando do apoio consistente da mãe e da irmã.
Encontra-se desempregada, tendo nos últimos 2 anos trabalhado apenas cerca de três meses. Após o seu despedimento em 2011 optou por se dedicar em exclusivo aos filhos, só tendo posteriormente, com o agravamento da sua relação conjugal, decidido voltar a trabalhar. Está inscrita no Centro de Emprego de L e tem procurado activamente emprego, mas sem sucesso.
Licenciada em Gestão Hoteleira pela Escola Superior de Hotelaria do Estoril, o seu percurso profissional desenvolveu-se no sector bancário durante dez anos, até 2011, altura em que foi despedida na sequência dos factos em causa. Não obstante mostrar agrado pela área em que trabalhava, reconhece que existem reduzidas possibilidades de voltar a trabalhar no sector bancário.
A situação económica do agregado é descrita como adequada à satisfação das necessidades mínimas, assentando neste momento no apoio da mãe e nas pensões de alimentos pagas aos menores.
Revelou uma atitude assertiva, colaborando activamente com o técnico e dando um registo honesto da sua vida e da sua condição social.
Demonstrou atitudes negativas face ao crime bem como reconhecer e respeitar o sistema legal em geral. A sua separação, ainda que com causas próprias, precipitou-se devido ao sucedido, tendo a arguida, após o seu despedimento, beneficiado de apoio médico e medicamentoso devido a um quadro depressivo que apresentou durante cerca de um ano.
É tida como pessoa séria, dedicada ao trabalho, pronta a ajudar os clientes, e prestável.
Não tem condenações registadas no seu CRC.
Foi dado como não provado a seguinte materialidade:
Não se logrou provar que:
a) no exercício das suas funções, competia à arguida gerir os activos do banco, mais concretamente as contas dos seus clientes.
b) a arguida entregou, nos termos imputados nos factos provados, outros títulos de cancelamento (distrate) do registo de hipotecas para além dos descritos em 5) e 6) dos factos provados [segundo o despacho de acusação, esse elenco era exemplificativo («designadamente», dizia-se, sem aditar outros factos), dando pois como assente a entrega de outros títulos, nas mesmas condições imputadas, embora sem os elencar]
c) os factos descritos em 5) ocorreram entre 12.06.2009 e 20.08.2009, e os factos descritos em 6) ocorreram entre 03.02.2010 e 10.03.2010.
d) (…)
x) a utilização de valores destinados ao pagamento de créditos hipotecários, aquando da autorização do cancelamento da respectiva hipoteca, em outras responsabilidades do devedor perante o banco credor já tinha ocorrido, por instruções da hierarquia.
O tribunal fundamentou a formação da sua convicção da seguinte forma:
(…)

Eliminaram-se:
- o adjectivo «funcionais» por conclusivo: envolve uma qualificação e não um facto.
- o advérbio de exclusão «só» por redundante, face ao advérbio de exclusão «apenas» que o precede (a figura de estilo decorrente da redundância, visando sublinhar uma certa ideia, não é adequada a uma acusação, que deve estar despida de juízos de valor)
- os advérbios de modo, por conclusivos: traduzem valorações do acusador.
- a menção «violando gravemente os seus deveres funcionais» por conclusiva: constitui o resultado de uma qualificação (e qualificação com carácter normativo, sendo aliás a menção em causa uma reprodução de um segmento da norma incriminadora), a efectuar a partir de factos concretos.
Nota-se que se a descrição factual objectiva deve evitar conclusões/qualificações, estas já podem constar da descrição factual subjectiva: os conhecimentos e representações da arguida podem incluir valorações ou qualificações que esta efectue.

O tribunal “ a quo” procedeu à subsunção legal da factualidade supra descrita, à escolha da espécie e determinação da medida da pena e à avaliação da indemnização arbitrada do seguinte modo:
Imputa-se à arguida a prática de um crime de infidelidade, p. e p. pelo art. 224º n.º 1 do CP, e de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º n.º1 al. b) do CP.
Segundo o n.º1 do art. 224ºdo CP, incorre em responsabilidade criminal quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante.
São assim elementos típicos objectivos do tipo de ilícito:
- a atribuição do encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar
- por força da lei ou de acto jurídico
- causação de prejuízo patrimonial importante
- com grave violação dos deveres que incumbem ao agente.
Atendendo aos factos provados, verifica-se que a intervenção da arguida, no quadro dos procedimentos internos adoptados, é limitada e vinculada, com pouca autonomia. Mas esses procedimentos justificam-se justamente na óptica do controle e fiscalização da disponibilização dos títulos de cancelamento do registo da hipoteca, fiscalização essa que cabia precisamente à arguida. Com efeito, cabia-lhe assegurar que o título era disponibilizado para o acto de alienação mas com simultânea garantia do pagamento da parte do empréstimo que se considerava estar garantido pela fracção alienada (rectius, pela hipoteca que também incidia sobre a fracção alienada). Neste sentido, é evidente que sobre a arguida recaía um claro e preciso encargo fiscalizador. A autonomia, que se tende a exigir como elemento caracterizador da administração (em sentido amplo, aqui considerada na vertente da actividade de fiscalização) pressuposta na incriminação, manifesta-se no controlo autónomo das operações inerentes à disponibilização do título de cancelamento e pagamento do crédito hipotecário.
De outra banda, aquele encargo fiscalizador fora-lhe atribuído por acto jurídico: era decorrência da relação laboral existente e, assim, do contrato de trabalho. Estão assim verificados os dois primeiros elementos objectivos do tipo de ilícito – que configuram a denominada relação de confiança, derivada de uma obrigação de fidelidade, subjacente à incriminação.
Do ponto de vista dos deveres, monta imediatamente a circunstância de não ter respeitado o encargo imposto: tendo o dever de assegurar o pagamento da parte do crédito garantido por cada fracção, desrespeitou tal dever frontalmente: pura e simplesmente deixou de o prosseguir, omitindo completamente a conduta devida É obviamente irrelevante que a conduta da arguida fosse lícita se existisse autorização superior, ou que o banco admitisse em certos casos essa actuação, pois isso não ocorreu na situação vertente. Nessa medida, é muito grave a violação desses deveres (embora a violação destes deveres seja inerente à actuação descrita quando presidida, como é o caso, por uma intenção danosa: a prática do crime, mormente doloso, implica sempre a violação de um dever; ora, a existência daquela intenção, na prática do crime, torna necessariamente grave a violação do dever em causa; por isso se refere amiúde a redundância desta exigência típica).
No que concerne à produção de um prejuízo patrimonial, é preciso atender, de um lado, ao carácter patrimonial da garantia real. Não se torna sequer necessário elaborar a propósito de um específico conceito jurídico-criminal de património [que, na acepção económico-jurídica dominantemente aceite, compreende «o conjunto de utilidades económicas detidas pelo sujeito cujo exercício ou fruição a ordem jurídica não desaprova», à luz da particular teleologia do direito criminal (A. Costa)] pois é evidente que a hipoteca constitui um direito (subjectivo) real, de natureza patrimonial (dada a sua função e a sua acessoriedade face ao crédito garantido), incrustado no património do credor, e cuja extinção, sem a concomitante extinção do crédito garantido, importa uma diminuição daquele património. Assim é em geral, do ponto de vista da expectativa jurídica, que encerra, de assegurar uma entrada patrimonial futura na esfera jurídica do credor (um incremento patrimonial futuro). Mas também assim é na perspectiva da extinção parcial imediata de um direito do lesado e, assim, uma diminuição do seu activo, sendo ainda que a eliminação daquele direito também diminui a consistência do crédito – como o direito de crédito se traduz apenas numa expectativa de pagamento, a eliminação da sua garantia real torna menos consistente aquela expectativa, que, no limite, passa a depender apenas do arbítrio (da vontade) do devedor. Acresce ainda, mas de forma essencial, que a aferição desta perda prejudicial não pode ser autonomizada das concretas circunstâncias presentes no caso e, em especial, do procedimento implementado pelo banco que deveria ser adoptado: como a disponibilização do título de cancelamento da hipoteca apenas deveria ser realizada mediante o simultâneo pagamento do crédito hipotecário correspondente Correspondente à fracção em relação à qual a hipoteca iria ser cancelada, a conduta da arguida permite associar ao cancelamento da hipoteca uma perda efectiva imediata para o banco, traduzida na falta de pagamento do correspondente crédito. É certo, este crédito não se extinguiu e persiste como um activo no património do banco, mas, com a conduta da arguida, o banco viu-se logo privado dos valores que deveria receber aquando do cancelamento e, nessa medida, sofre uma imediata perda patrimonial. A subsistência do direito de crédito apenas releva no futuro, e na medida em que o banco ainda dispõe de título que pode futuramente (e eventualmente) permitir atenuar o prejuízo sofrido, mas não o elimina à data dos factos. Ou seja, não evita a consumação do crime (com a ocorrência do prejuízo), relevando apenas para efeitos subsequentes. Existe, pois, a produção de um prejuízo patrimonial, na medida em que ocorre uma diminuição do valor económico presente no património do lesado, por referência à posição em que se encontraria se o agente não tivesse realizado a conduta descrita - levando em conta, de um lado, que esse prejuízo se actualiza logo na falta de liquidação dos empréstimos hipotecários com a respectiva parte do preço da venda das fracções em causa; e, de outro lado, que se apura que a parte do valor recebido aplicada em responsabilidades perante o Banco era muito inferior (menos de metade) ao valor que deveria ser usado no pagamento parcial dos créditos. Acresce que a constituição de nova hipoteca e a realização de dação (para além de, no caso, serem inconsequentes: a hipoteca não garante nenhum pagamento adicional, por o valor dos bens se esgotar no pagamento do empréstimo associado à hipoteca original; a dação foi resolvida) apenas relevariam como forma de atenuação subsequente do prejuízo, não obviando à sua produção já consumada.
Por fim, e quanto à necessária qualificação desse prejuízo (como importante), é notório que a grandeza dos valores em causa, dos créditos associados ás hipotecas canceladas, torna manifesta a relevância do prejuízo: trata-se de prejuízo importante [mesmo à luz dos critérios do art. 202º al. a) ou, especialmente, al. b) do CP, por vezes invocados nesta sede – embora se julgue que foi intenção do legislador não vincular o tipo penal em causa àqueles critérios, como decorre quer da letra da norma punitiva (que usa conceito diverso daquele que surge naquelas normas), quer de um elemento sistemático (decorrente da comparação com os demais tipos penais vinculados ao art. 202º al. a) ou b), onde se utiliza sempre o conceito que estas normas contêm) quer da ratio da norma (que se julga se não quedar por um economicismo estrito e objectivista, vinculado a valores pré-determinados)].
Do ponto de vista do tipo subjectivo, está demonstrada uma actuação dolosa, e com a específica intenção danosa pressuposta pelo tipo legal.
Vê-se ainda que a arguida é imputável, sendo que os factos em causa reflectem uma sua atitude pessoal desvaliosa, por contrária ás exigências postas pelo direito.
Cometeu, pois, este crime.

Imputa-se ainda à arguida a prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256º n.º1 al. b) do CP.
Nos termos deste artigo, incorre em responsabilidade criminal quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (…) b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram.
Para a apreciação desta imputação, importa começar por atentar em que, por força do art. 255º al. a) do CP, o documento, para efeitos penais, é a declaração corporizada em escrito (ou registada em certos meios), e não o próprio elemento corporizador, o objecto onde se incorpora a declaração.
Considerando a conduta da arguida, verifica-se que esta envolve dois momentos materiais. Primeiro, a arguida tira uma fotocópia do documento que permite o cancelamento parcial da hipoteca. Este acto é obviamente inócuo sob qualquer ponto de vista penal. Nada adita ou retira quer ao documento físico original, quer ao documento em sentido penal (ou seja, à declaração corporizada). Depois, a arguida apõe nessa fotocópia um selo branco do banco. O selo branco tem uma função autenticadora: visa assegurar a autoria/origem e idoneidade do documento (nesse sentido tem valor identificativo e também distintivo). Em si, não altera a declaração contida no documento material, ou seja, não altera o documento, entendido este em sentido penal. E mesmo aquela função autenticadora não tem reflexos na declaração corporizada, pois a autoria e idoneidade do documento em sentido penal (atinentes à declaração autorizadora do cancelamento) é indubitavelmente correcta: aquela declaração foi emitida, nos exactos termos em que consta da fotocópia, e por quem nela consta como sendo o seu autor. A aposição do selo branco não afecta a declaração (o documento em sentido penal).
Logo, a conduta da autora não criou nenhuma declaração nova, nem alterou a declaração pré-existente. Ela não cabe, pois, na previsão penal imputada - nem em nenhuma outra. É tipicamente irrelevante ou, com mais rigor, atípica [e por assim ser nem importa discutir a questão da tentativa de falsificação, justamente por a actuação em causa ser penalmente irrelevante]. É certo que a arguida visava, com a sua conduta, enganar o banco, mas essa motivação, e a conduta que adoptou, não têm relevo penal (esse relevo fica restrito a outras sedes).
Não pode ser ela, pois, responsabilizada penalmente por tal conduta [o que também dispensa a discussão em torno da (in)admissibilidade da qualificação de fotocópia (simples) como documento para efeitos penais].
Determinação da sanção aplicável
A arguida fica sujeita à aplicação de pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Atendendo à cominação de penas alternativas, importa proceder à escolha da espécie de pena a aplicar. Tendo em conta a gravidade dos factos (revelada na sua reiteração e nos valores económicos em causa), e o contexto em que surgem, as exigências de prevenção, geral e especial, não seriam cabalmente satisfeitas com a aplicação de pena não detentiva. Assim, justifica-se a inversão da preferência legal que o art. 70º do CP consagra, impondo-se desta forma a opção pela pena detentiva.
A pena concreta a aplicar será determinada, dentro da moldura referida, em função da culpa do agente enquanto limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço (art. 40º do CP) – em cuja valoração se atenderá a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor do agente (art. 71º n.º 2 do CP), designadamente:
- o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente [releva a reiteração de condutas e o seu número, os valores económicos em causa, o lapso de tempo em que os factos ocorrem, e o grau, elevado, de violação do dever imposto];
- a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo e intenso];
- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [nada se apurou nesta sede];
- as condições pessoais do agente e a sua situação económica [tem uma situação pessoal e social normalizada];
- a conduta anterior ao facto e posterior a este [não tem condenações registadas no seu CRC; procurou ocultar a ocorrência dos factos];
- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [nada se apurou com relevo nesta sede].
Neste quadro, é sensível a culpa da arguida, e também sensíveis as exigências de prevenção geral e especial (apesar de menos sensíveis em sede de prevenção especial, dado o distanciamento da arguida face à actividade bancária - embora como decorrência dos factos imputados).
Tendo em conta estes dados, julga-se ajustada a fixação da pena em 2 anos e 6 meses de prisão.
Por força do art. 50º n.º1 do CP, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, finalidades estas que correspondem à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade (v. art. 40º do CP).
Como é sabido, à opção pela suspensão da execução da pena de prisão, enquanto medida de reacção criminal autónoma, são alheias considerações relativas à culpa do agente, valendo exclusivamente as exigências postas pelas finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização (art. 40º n.º1 do CP). De molde que a opção por esta pena deverá assentar, em primeira linha, na formulação de um juízo positivo ou favorável à recuperação comunitária do agente através da censura do facto e da ameaça da prisão, sem a efectiva execução desta prisão, que ficaria suspensa, mas desde que esta opção não prejudique ou contrarie a necessidade de reafirmar a validade das normas comunitárias, ou seja, desde que o sentimento comunitário de crença na validade das normas infringidas não seja contrariado ou posto em causa com tal suspensão.
A arguida apresenta um contexto pessoal e social normalizado. Os factos em causa constituem um episódio único na sua vida. Está já desligada da actividade bancária, no âmbito da qual praticou os factos. Neste contexto, pode aceitar-se que a ameaça da prisão e a censura do facto serão suficientes, a um tempo, para evitar a sua recidiva criminosa e para recuperar a confiança comunitária na validade das regras jurídicas. Sendo, pois, possível formular um juízo de prognose favorável à recuperação da arguida em liberdade, com a suspensão da execução da pena de prisão aplicada - suspensão que tem duração equivalente à da pena aplicada, por imperativo legal. A imposição de especial obrigação de efectuar pagamentos por conta dos prejuízos causados é, neste momento, inviável dada a situação económica da arguida – que não dispõe de rendimentos próprios (art. 51º n.º2 do CP).
Apreciação do pedido de indemnização
Pretende o demandante obter a reparação dos danos produzidos pelos factos descritos. Esta pretensão acolhe-se, naturalmente, ao domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, de cujos requisitos em primeira linha depende (cfr. arts. 483º CC e 129º CP). Verificada, porém, a responsabilidade penal da arguida, facilitada fica a constatação desses requisitos pois a prática de factos ilícitos e culposos decorre já, nos termos expostos supra, do enquadramento criminal do comportamento daquele arguido, sendo, em particular, que, estando em causas danos patrimoniais puros, a ilicitude civil se revela pela violação da regra penal, que funciona como norma de protecção para os termos da cláusula de ilicitude contida no art. 483º n.º1 citado.
Quanto aos danos, já se deixou dito que, na específica configuração das obrigações impostas à arguida e da sua concreta conduta, eles se medem por aquilo que o banco deveria ter recebido com a disponibilização do documento de cancelamento (parcial) das hipotecas, e deixou de receber, ou seja, pelo «valor do distrate» de cada fracção.
Também não relevam aqui as mencionadas segunda hipoteca e dação: esta por estar resolvida, aquela por constituir uma garantia e não uma forma de pagamento, pelo que se mantém o dano (para além de também estar assente que esta hipoteca não terá relevo útil).
Sucede que ainda se apurou (como decorre dos factos assentes), que parte dos preços recebidos pelas sociedades vendedoras foi usado para realizar entregas ao banco, por conta de outras responsabilidades das sociedades vendedoras. Ora, trata-se aqui de um ganho do demandante, obtido ainda em virtude do facto ilícito (não fora a conduta da arguida, permitindo que parte significativa dos valores recebidos fossem desviados do seu uso esperado, o pagamento dos créditos hipotecários, aqueles pagamentos ao banco não seriam possíveis), que deve ser usado como compensação do prejuízo sofrido.
Com efeito, o princípio compensatio lucri cum damno postula, por razões de congruência e equidade, que ao prejuízo causado pelo facto ilícito devem ser abatidas as vantagens que são produzidas no património do lesado através do mesmo facto ilícito (identidade do facto ilícito, requisito específico da figura). O seu suporte legal, e lógico, decorre da teoria da diferença que, por força do art. 566º n.º2 do CC, condiciona o cálculo da indemnização: se se deve atender à diferença existente entre a situação actual do património do lesado e a situação desse património se não tivesse ocorrido o facto ilícito, daqui decorre que as vantagens decorrentes do ilícito constituem um acréscimo actual que não existiria não fora o facto ilícito e, assim, devem ser abatidas no cálculo da indemnização.
Não é possível fixar nesta sede o valor preciso do «lucro» efectivamente obtido e, assim, o valor do prejuízo subsistente. Sabe-se que aquele lucro será inferior a metade do valor que deveria ser usado no pagamento parcial dos créditos e, nessa parte, o dano está quantificado (valor dos «distrates» : 2 = 543.382,71 euros). Na parte restante, deverá a liquidação do dano ser relegada para momento posterior, nos termos do art. 82º n.º1 do CPP [esta norma prevê solução semelhante à constante do art. 609º n.º2 do CPC mas, pela sua letra e pela sua ratio (impedir o protelamento da decisão criminal), surge nela mais marcada a ideia de que a circunstância de o pedido ter sido deduzido em termos líquidos não impede a condenação genérica; de todo o modo, é essa a solução que sempre deveria valer porque se entende que, mesmo quando tenha sido deduzido pedido específico e se não apure o valor alegado, a articulação entre os regimes dos arts. 566º n.º3 do CC e 82º n.º1 do CPP, os quais apontam para soluções distintas (o primeiro sugerindo desde logo o uso da equidade, o segundo propondo ainda posterior liquidação), se realizaria sempre fazendo a equidade intervir apenas quando, mesmo em posterior liquidação, não seja possível fixar o valor da reparação do dano – Ver, para os termos processuais civis, V. Serra, RLJ 114/287 e ss., Ac. STJ de 19.01.2004, proc. 04B2877, ou de 17.06.2008, proc. 08A1700, in www.dgsi.pt].

Quanto aos juros, são devidos, na parte ora liquidada, nos termos peticionados – art. 805º n.º3, 2ª parte, do CC.
Quanto à parte ilíquida, os juros serão considerados na subsequente liquidação pois o momento em que se tornam exigíveis depende da forma como se vierem a liquidar os danos (tendo em conta que, apesar de estarem em causa danos patrimoniais, o seu valor pode, a final, acabar por ser fixado através da equidade e esta pode fixar de forma variada o momento a que se reporta a liquidação).».

Apreciando.

Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar.

Como é sobejamente sabido e constitui jurisprudência uniforme, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação (art.412º, nº1 do CPP), sem prejuízo de outras que sejam de conhecimento oficioso.
A recorrente funda o recurso, essencialmente, na invocação de erro de interpretação do art.224º, nº1, do C. Penal, norma que tipifica o crime de infidelidade pelo qual foi condenada no acórdão recorrido e arts.483º, 562º, 563º e 564º, do C. Civil, sustentando que a sua apurada conduta não causou prejuízo patrimonial, tão pouco importante ao assistente/demandante Banco S, SA, pelo que falecendo esse elemento do tipo (causar prejuízo patrimonial importante) deveria a arguida/demandada ser absolvida quer da prática desse crime, quer do pedido de indemnização civil contra si formulado.
Essencialmente com base nessa mesma fundamentação em que alicerça o alegado erro de interpretação daquelas normas, a recorrente afirma também que foram incorrectamente julgados os factos dados com provados nos nºs 7 e 8 da materialidade dada como assente no acórdão recorrido.
Uma vez sem exemplo, comecemos pelo fim.
Se com essa alegação a recorrente pretendia impugnar amplamente a mencionada matéria de facto, o certo é que, desde já antecipamos, não observou minimamente o disposto naquele dispositivo legal [art.412º, nº3, al.b) do CPP].
Vejamos.
Tendo sido documentadas, ao que se supõe, através de gravação áudio as declarações e depoimentos prestadas oralmente na audiência de julgamento, este Tribunal em princípio, pode conhecer de facto e de direito (arts.363º, 364º e 428º do CPP com as alterações introduzidas sucessivamente pela Lei nº48/2007 de 29/8 e Lei nº27/2015, de 14/04).
Todavia, o erro de julgamento e o consequente reexame da matéria de facto não é de conhecimento oficioso.
Com efeito, quando o recorrente pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos prescritos no nº3 do art.412, do CPP, deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
c) As provas que devem ser renovadas.
Acrescenta o nº4 desse preceito, com as alterações introduzida à norma supracitada pelas mencionadas Lei nº48/2007, de 29/8 e Lei nº27/2015, de 14/04, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações nas previstas nas alíneas a) e b) do nº3 do art.412º, fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº3 do art.364º (indicação do início e termo de cada depoimento e declaração), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Com efeito, quer da fundamentação, quer das conclusões do recurso não consta minimamente aquela especificação, pois é incontornável que em parte alguma individualize quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa da adoptada no que concerne aqueles pontos da matéria de facto (nºs7 e 8 dos factos dados como provados), que reputa incorrectamente julgados.
É que o recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, não constitui um segundo julgamento mas, apenas, a detecção e correcção de erros de julgamento, incidindo sobre concretos pontos da matéria de facto, que os recorrentes devem identificar, bem como especificar as concretas provas que demonstram a existência do erro.
No caso concreto, resulta à evidência da minuta do recurso, que a recorrente, não impugna de forma válida, amplamente a matéria de facto.
Na verdade, como se disse, a recorrente em parte alguma da sua peça recursiva individualiza especificando quais as concretas provas produzidos e examinados na audiência de julgamento que em seu entender imporiam decisão diversa relativamente aqueles mencionados factos.
Nestas circunstâncias, na esteira do douto acórdão da Relação do Porto, de 28/05/2003, acessível em www.dgsi.pt entendemos que este Tribunal só pode sindicar a decisão em matéria de facto no âmbito do art. 410º, nº2 do CPP, e não amplamente, não havendo sequer lugar a convite aos recorrentes para apresentarem as especificações em falta.
Na verdade, como lapidarmente se afirma nesse aresto e no acórdão do Tribunal Constitucional nº259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, que aí se cita, quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do nº3 do art.412º, do CPP, reside tanto na fundamentação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.
Como aí se afirma com toda a propriedade, a existência de um despacho de aperfeiçoamento quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
Seguindo esta orientação, que também perfilhamos, o Tribunal Constitucional posteriormente no acórdão nº140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, nº91 de 17/4/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art.412º, nºs 3, al.b), e nº4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Não invalida este entendimento as alterações introduzidas ao art.417º, do CPP primeiramente pela Lei nº48/2007, de 29/8 e mais recentemente pela Lei nº20/2013, de 21-02.
Neste sentido decidiu o STJ no douto aresto proferido no proc.nº08P1884, de 05-06-2008, relatado pelo Exmº Conselheiro Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt onde se afirma que se as mencionadas especificações não constam do texto da motivação, não deve o recorrente ser convidado a corrigir as conclusões da motivação, acrescentando que a recente Lei nº48/2007 de 29 de Agosto, veio, aliás, consagrar esta posição na nova redacção dada ao art.417º do CPP, pois estabelece no seu nº3 que, se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art.412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. Mas logo esclarece, no nº4, que tal aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação. Ou seja, que o texto da motivação constitui o limite da correcção possível das conclusões.
É, pois, manifesto que o recorrente não cumpriu com aquele ónus, pelo que este tribunal não pode reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido e deste modo não pode sindicar a existência ou não de supostos erros de julgamento.
Ainda assim, para dissipar alguma dúvida que possa subsistir sobre aqueles pontos (nºs 7 e 8) da matéria de facto dada como provada, sempre se dirá que a recorrente limita-se a «impugnar» em termos genéricos a valoração da prova feita pelo tribunal “ a quo”, pretendendo em última análise substituir a convicção alcançada pelo tribunal devidamente justificada no acórdão recorrido, pela que é supostamente a sua.
Ora, impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo. No sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É sem dúvida, este o sentido da expressão "provas que impõem decisão diversa da recorrida'', constante da al. b) do n°3 do art.412 do Código de Processo Penal. Que consubstancia um ónus imposto ao recorrente, no sentido de ter de demonstrar que as provas produzidas impõem uma decisão diferente da que foi proferida. "'Impor" decisão diferente não significa "admitir" uma outra decisão diferente. É mais do que isso e quer dizer que a decisão proferida, face às provas, não é possível ou não é plausível.
Mas a recorrente, como já dissemos, limita-se a confrontar a convicção formada pelo tribunal recorrido com a sua própria convicção.
Porém, como pode constatar-se da simples leitura da fundamentação do acórdão recorrido, é evidente que o Tribunal “a quo” não teve dúvidas sobre os factos que deu como assentes, dúvidas que este Tribunal de recurso, a quem está vedado, por um lado, sindicar amplamente a matéria de facto e, por outro, a oralidade e a imediação com as provas, também não nos assalta.
Aliás, da fundamentação do acórdão recorrido consta devidamente explicitados os motivos por que o tribunal em resultado da avaliação das provas produzidas e examinadas na audiência de julgamento, considerou provados e não provados os factos que em conformidade com essa valoração assim julgou.
Dos pontos 7 e 8 dos factos dados como provados consta a seguinte materialidade: «7) Em resultado da conduta da arguida, ficou o banco sem garantia bastante para assegurar o pagamento dos empréstimos que concedeu às referidas empresas, vendo-se impossibilitado de cobrar parte dos seus créditos (sublinhado nosso), sendo de salientar que no nº19 dos factos provados o julgador considerou estar assente que parte não apurada do valor recebido pelas sociedades Área H Lda e R SA na venda das fracções referidas em 5) e 6), que deveria ser usado no pagamento do crédito hipotecário, foi usado para pagar valores em dívida perante o banco demandante (dívidas distintas das dívidas de capital dos empréstimos garantidos pelas hipotecas) – mas essa parte usada no pagamento era muito inferior (menos de metade) ao valor que deveria ser usado no pagamento parcial dos créditos hipotecários (sublinhados nosso).
8) Ao actuar como descrito a arguida sabia que iria causar um prejuízo patrimonial avultado à denunciante, o que previu e quis concretizar.»
Concomitantemente foi dado como não provada a versão oposta destes factos relatada pela arguida na sua contestação, vertida agora nas alíneas m) a o) e i) dos factos dados como não provados.
Assim foi dado como não provado que:
«i) a arguida não teve intenção de ofender o património do banco.
«m) todas as verbas originadas nas compras e vendas realizadas (e na entrega dos documentos de distrate) foram integralmente depositadas no banco e afectas a encargos dos clientes.
n) a arguida, na escritura, entregou o documento de distrate e recebeu o meio de pagamento destinado a libertar esse distrate e depositou-o na conta indicada pelo banco.
o) em vez de esse valor ser destinado integralmente ao pagamento daquele crédito em concreto, foi imputado a créditos anteriores já vencidos e porventura em mora, não tendo sido usados pelo cliente ou terceiros noutras realidades».
O tribunal a quo fundamenta a formação da sua convicção relativamente a dar como provado e como não provado essa factualidade do seguinte modo:
«Quanto ao descrito em 7, 17 e 18, tal matéria decorreu dos depoimentos, sempre convincentes, das aludidas testemunhas Paulo Jorge do Carmo Godinho Pisa e Paula Cristina Passarinho Gonçalves Silva, e dos documentos de fls. 450 e ss. – sendo que aquelas testemunhas reportaram que os créditos hipotecários ficaram por cobrar [a garantia existente, num dos prédios, ficou limitada a uma fracção; a hipoteca adicional que o Banco obteve não era bastante para satisfazer esse crédito (essa hipoteca foi constituída sobre moradias já hipotecadas, e moradias cujo valor de venda se esgotaria no pagamento do crédito hipotecário preexistente, como se refere em 17), e a dação em cumprimento realizada, além de resolvida pelo administrador da insolvência, envolvia um perdão parcial do crédito (a dação não constitui uma forma de cumprimento mas de extinção do crédito, e por isso pode conduzir a esta extinção sem envolver um cumprimento integral)].
No que concerne à matéria descrita em 8, a arguida recusou a imputação, afirmando que, apesar da conduta adoptada, teria confiado na integral satisfação dos créditos hipotecários do banco. Esta versão não se mostrou porém convincente, nem coerente com os dados disponíveis, pelas seguintes razões:
- a arguida começou por afirmar que a sua actuação se deveu a pressão dos vendedores As duas sociedades vendedoras eram representadas pela mesma pessoa, aquela com quem a arguida sempre contactou (a testemunha Constantino Silva), por o valor da venda das fracções (descontado o sinal já pago) ser inferior ao valor de distrate, afirmando mais tarde que afinal o valor da venda seria pouco superior àquele valor de distrate, não chegando o restante para cobrir outras responsabilidades das vendedoras perante o banco (especialmente juros dos empréstimos e responsabilidades decorrentes de contratos de swap, maxime rendas devidas de 3 em 3 meses ). Ora, os extractos das contas das vendedoras não corroboram esta afirmação: por exemplo, verifica-se que após a venda da fracção L/S foi depositado um cheque de 160.000 euros, igual ao preço declarado na escritura de venda (fls. 498 e 640), e muito superior ao valor de distrate (cerca de 134.000 euros); o mesmo ocorre, por exemplo, com a fracção I/P, com o depósito de um cheque de 160.000 euros após a data da venda, valor este igual ao preço declarado na venda, valendo o distrate cerca de 99.000 euros (fls. 528 e 699/748).
- afirmou também que o valor da venda era depositado na conta e absorvido pelas responsabilidades da sociedade vendedora, explicitando que ou a conta já estava com saldo negativo (absorvendo logo, pois, o valor depositado), ou esperavam uns dias porque sabiam que iam “cair” na conta obrigações pendentes, que esgotavam o valor resultante da venda, depositado. Os extractos das contas em causa (fls. 471 e ss.), em articulação com os dados atinentes ás vendas (documentadas nos autos) não se ajustam a esta afirmação. Assim:
i. na sociedade R SA, a primeira venda data de 03.07.2009 (venda por 158.000 euros) – fracção H; são depositados em 06.07.2009 dois cheques (14.000 e 105.000 euros), pelo que se admite, pelas datas em causa, que teriam relação com aquela venda, ou que pelo menos o maior deles teria relação com aquela venda; o saldo negativo da conta era, à data, de pouco mais de 1.000 euros (valor mínimo, pois, e resultante de movimentos que, ao menos em parte, nada têm a ver com dívidas ao banco); os valores depositados são usados em parte para movimentos vários e em 13.07.2009 ocorre um débito por entrega antecipada no valor de cerca de 91.000 euros, mas permanece, nessa data, um saldo positivo de cerca de 99.000 euros que a sociedade continua a mobilizar livremente; acresce que aquela entrega antecipada nem pode ser directa ou integralmente imputada àqueles dois cheques (que, como se disse, se podem associar à venda realizada), pois foram entretanto depositados dois cheques, no valor respectivamente de 126.000 euros e de 22.613,36 euros, bastantes pois para suportar aquele débito
ii. a segunda venda data de 11.02.2010 (venda por 170.000 euros) – fracção D; apenas surge depositado um cheque em 17.02.2010, e de apenas 70.000 euros (muito inferior ao valor da venda, mesmo considerando eventual sinal previamente pago)
iii. a terceira venda ocorre em 25.03.2010 (venda por 160.000 euros – fracção L), sendo depositado em 29.03.2010 um cheque de igual valor; nessa data a conta já tinha um saldo positivo de 38.000 euros, ficando assim com um saldo de 198.000 euros; o valor do distrate era de cerca de 134.000 euros; o saldo passa a ser livremente usado pela sociedade vendedora (que, de maior dimensão, efectua uma transferência de 60.000 euros em 31.03.2009 (tratando-se de transferência, não seria o banco o beneficiário da operação), e autoriza um débito de 61.000 euros em 20.04.2009)
iv. na sociedade Área H Lda, a primeira venda data de 17.08.2009 (preço: 225.000 euros) – fracção A; em 19.08.2009, quando a conta tem um saldo positivo de 21.000 euros, é depositado cheque no valor de 117.774,65 euros, precisamente o valor do distrate da hipoteca, que não é usado para esse fim
v. em 21.08.2009 é vendida a fracção I por 160.000 euros; em 25.08.2009 é depositado cheque de igual valor (o saldo da conta era de 120.000 euros e passa para 280.000 euros); o valor do cheque fica disponível para utilização pela sociedade vendedora e o saldo da conta (incluindo o valor daquele cheque) é aparentemente esgotado em débitos variados e através de um cheque de 170.000 euros (não sendo, pois, aquele valor usado na liquidação de responsabilidades perante o banco)
vi. em 12 e 13.11.2009 são vendidas duas fracções (D e G) por 195.000 e 220.000 euros; também por essa altura (meados de Novembro) terá ocorrido a venda da fracção F [embora se ignore a data da venda Não foi possível obter cópia do título aquisitivo, as datas do registo de aquisição e do cancelamento da hipoteca (24 e 27.11.2009) sugerem fortemente essa proximidade], por preço não apurado mas, levando em conta a permilagem da fracção (igual à permilagem da fracção I), o preço de venda deveria rondar os 160.000 euros (preço de venda da fracção I); em 16.11.2009 são depositados dois cheques (195.000 e 120.000 euros), data esta na qual aquela conta tinha um saldo positivo de 200.000 euros (!!); em 18.11.2009 é depositado outro cheque, este no valor de 162.000 euros, passando a conta a ter um saldo de 545.000 euros (!!); esse valor é livremente usado pela sociedade vendedora Existem movimentos em 23.02.2009, aparentemente de cobrança, que levam a conta a zero, mas que são imediatamente a seguir anulados; só em 01.02.2010 surge uma «entrega antecipada» de cerca de 293.000 euros – já depois de depositado outro cheque no valor de 120.000 euros (o saldo inicial, ou seja, o saldo anterior ao depósito dos cheques associados ás vendas, somado com o valor deste cheque final até cobre o valor da entrega antecipada – ou seja, esta não depende sequer do valor dos cheques associados ás vendas)
vii. em 16.12.2009 é vendida a fracção J por 230.000 euros; o extracto da conta não indica qualquer depósito relevante a partir dessa data (existe um depósito de 120.000 euros mas em data anterior, 10.12.2009); o valor resultante da venda não foi, pois, sequer depositado; à data da venda o saldo da conta era superior a 400.000 euros.
Estes elementos revelam, pois, que nem sempre os preços obtidos foram efectivamente depositados nem, quando foram, se esgotaram no pagamento de responsabilidades das sociedades vendedoras perante o banco (ou foram sequer relevantemente usados para esse fim) - e também revela que o depoimento da referida testemunha Constantino da Cruz Silva não foi exacto, quando se reportou a esta matéria e sustentou que o acordo visava pagar juros em dívida e já debitados, com o depósito do preço das vendas, como teria efectivamente ocorrido. O que, aliás, esvazia de sentido a afirmação da arguida, quanto à inexistência de um prejuízo do banco; tornando, ao invés, segura a existência deste prejuízo.
- invocou ainda a arguida a confiança que tinha nas sociedades vendedoras, e na sua capacidade de pagar os créditos em causa – quer por serem detidas por pessoas conhecidas (com nome feito), quer por terem outro património apto a satisfazer os créditos, quer por existirem fianças prestadas pelas pessoas ligadas àquelas sociedades. A suficiência de outros bens das sociedades para pagar os créditos foi desmentida pelas testemunhas Paulo Jorge do Carmo Godinho Pisa e Paula Cristina Passarinho Gonçalves Silva – como já referido e consta em parte do descrito em 17. As fianças são irrelevantes pois dependem de factores que a arguida não controla (nem afirmou conhecer, aliás): a existência de bens relevantes nos patrimónios dos devedores, e a sua subsistência nesses patrimónios até ao momento da cobrança. Acresce que a invocada pressão do vendedor, e as suas dificuldades (financeiras), já revelam que este tinha problemas de liquidez e dificuldades no cumprimento de compromissos (nomeadamente perante o banco – não se percebendo por isso que a arguida afirme que os devedores sempre cumpriram com correcção: esta correcção é desmentida pela proposta que lhe fazem), tanto mais relevantes quando, como a arguida admitiu, se estava já em plena recessão do mercado do imobiliário. Sendo que a aludida situação dos saldos das contas das vendedoras, e a utilização dos valores depositados, também tende a revelar que as sociedades vendedoras não estavam a privilegiar o banco credor nos pagamentos devidos (ao invés), o que deveria erodir aquela suposta confiança. O mesmo sucedendo com o avolumar das situações: a sua sucessão teria que ir erodindo aquela suposta confiança. Aliás, a R SA acabou insolvente, e a Área H Lda encontra-se imobilizada pelo seu passivo (testemunha Constantino da Cruz Silva e o já referido documento de fls. 450). Neste contexto, a existência daquela confiança não é plausível nem, por isso, convincente
- por fim, a circunstância de a arguida não comunicar a operação (afirmando aliás conhecer as consequências que a situação provavelmente acarretaria, nomeadamente o seu despedimento) e procurar ocultá-la (como se explicita infra, com as cópias dos títulos de cancelamento em que apõe o selo branco do banco) tende a revelar, também, que a arguida tinha conhecimento dos contornos indevidos e, sobretudo, prejudiciais da operação.
Assim, a conjugação destes dados – revelando quer a inverosimilhança das explicações da arguida, quer a natureza prejudicial da operação (quando permite ao devedor fazer seu o valor que devia ser afectado ao pagamento do crédito hipotecário, e usá-lo livremente) –, e a ausência de outras motivações relevantes, permitiu fixar, com segurança, a matéria descrita em 8: a arguida sabia que iria causar um prejuízo, e quis agir de modo conforme a essa finalidade (justificando, do mesmo passo, a exclusão da matéria da al. i) dos factos não provados).
As considerações expostas permitiram ainda sustentar o apuramento da matéria descrita em 19 – notando-se, neste último, que a apreciação dos extractos sustenta a asserção, pois, se permite afirmar que parte dos preços das vendas das fracções em causa ainda foi usado em entregas ao banco, também permite afirmar que essas entregas (não sendo já passíveis de quantificar dado nem todos os movimentos serem perceptíveis) seriam seguramente inferiores a metade dos valores a entregar para liquidar os empréstimos hipotecários (pelo já exposto, mas sublinhando, por exemplo, que na fracção J não consta qualquer depósito; que nas fracções D, G e F o saldo da conta anterior aos depósitos que se associam a essa conta e o depósito subsequente de 120.000 euros são suficientes só por si para sustentar a entrega subsequente de 293.000 euros; ou que na fracção I o valor da venda também não é usado em benefício do banco – acresce que só parte do preço deveria ser afecto ao pagamentos dos créditos hipotecários, pelo que a imputação das entregas ao banco deve começar por fazer-se na parte restante do preço, de que as sociedades vendedoras podiam livremente dispor).
O exposto explica ainda, por fim, a exclusão da matéria das al. m) a o) dos factos não provados».
A actuação dolosa da arguida encontra-se não só descrita no nº 8 como também no nº 14 dos factos dados como provados no acórdão recorrido no sentido de que a arguida ao actuar como descrito sabia que iria causar prejuízo um patrimonial avultado à denunciante, o que previu e quis concretizar, agindo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo ser proibida e criminalmente censurável a sua conduta, sendo que não fez vencimento a versão por si alegada na contestação sobre este aspecto, que foi dada como não provada.
Como é sabido, o dolo consiste no conhecimento e vontade da prática de um facto que preenche um tipo ­de ilícito criminal, podendo, o mesmo, analisar-se em dois elementos:
- Elemento intelectual ou cognoscitivo, que consiste na representação dos elementos essenciais - descritivos e normativos - e circunstâncias do facto que preenche o tipo legal de crime, e consciência (conhecimento) da sua ilicitude – que se trata de um facto censurado pelo direito;
- Elemento emocional ou volitivo, traduzido na especial direcção da vontade de realizar o facto representado.
Estes elementos estão, pois, corporizados nos mencionados factos dados como provados a que aludimos.
Mas acresce ainda dizer a este respeito, que pertencendo o dolo, forma mais censurável de culpa no preenchimento de um facto ilícito, à vida interior do agente, não é susceptível de apreensão directa. Não resultando a sua comprovação da confissão da arguida, como é o caso, só pode resultar de presunções naturais ligadas ao princípio da normalidade e regras da experiência comum.
Sendo essa factualidade, como dissemos, insusceptível de apreensão directa, se não for admitida pelo próprio (através da confissão) por pertencer à vida interior do agente, mesmo assim, é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, donde o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, avaliados e apreciados, segundo o princípio da normalidade, fundando-se a convicção do julgador em presunções naturais ligadas ao princípio da normalidade e a regras de experiência comum, como aqui também aconteceu.
Mas como pode ver-se da motivação da decisão impugnada, nomeadamente a que atrás transcrevemos, o Tribunal recorrido teve o cuidado de fazer uma análise criteriosa, completa e crítica da prova produzida e examinada na audiência de julgamento realizada na 1ª Instância, justificando suficientemente o itinerário cognoscitivo que conduziu à convicção alcançada, designadamente no que concerne à actuação dolosa da arguida nos termos dados como provados no acórdão sob censura.
Como assinala o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 204 e ss.), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis [v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova], e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além da dúvida razoável.
Nesta matéria, assume primordial ênfase o princípio da oralidade e da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de tal modo que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só estes princípios permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido e a recolha da impressão deixada pela sua personalidade.
Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.
Em bom rigor, repete-se, a recorrente não aduz mais do que uma divergência quanto à convicção alcançada pelo Tribunal recorrido.
Ora, o tribunal recorrido fixou os factos que a recorrente pretendeu impugnar de harmonia com as provas (como consta da motivação), que valorou, como atrás dissemos, tendo presente o disposto no artigo 127º do CPP, pelo que numa análise ainda que perfunctória nenhum reparo nos merece.
Como atrás dissemos, não tendo a recorrente cumprido com aquele ónus, este tribunal não pode reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, ficando os poderes de cognição deste tribunal limitados à matéria de direito, sem prejuízo, claro está, de conhecer da impugnação da matéria de facto mas restrita aos vícios elencados no nº2 do art.410º do CPP, que são até de conhecimento oficioso, sendo que neste caso a recorrente não os invoca e este tribunal também não descortina a sua existência, pelo que tem-se por definitiva a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª Instância.
Sedimentada a factualidade apurada, cumpre passar a examinar a outra questão que emerge das conclusões do recurso e que consiste em saber se em face dela podemos ou não concluir que a conduta apurada da arguida causou prejuízo patrimonial importante ao assistente/demandante Banco S, SA, verificando-se esse elemento do tipo descrito no art.224º, nº1, do C.Penal (causar prejuízo patrimonial importante) e consequentemente se deve ou não manter a condenação da arguida/demandada quer da prática desse crime, quer relativamente ao pedido de indemnização civil contra si formulado, nos termos em que foi proferida.
Vejamos.
O Crime de infidelidade previsto no nº1 do art.224º do C. Penal é um crime contra o património. Trata-se também de um crime de resultado.
Nos termos desse preceito comete o crime de infidelidade “ Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Assim, constituem elementos do tipo:
- A atribuição da confiança a alguém, por lei ou acto jurídico;
- Do encargo de dispor, administrar ou fiscalizar interesses patrimoniais alheios;
- Que intencionalmente e com grave violação dos deveres; e
- Cause prejuízo patrimonial importante.
Insurge-se a recorrente quanto à verificação no caso concreto deste último elemento, alegando que da conduta da recorrente não ocorreu qualquer prejuízo para o assistente Banco S, SA e muito menos importante.
Como dissemos, estamos perante um crime material ou de resultado, pois que para o seu preenchimento tem de verificar-se um prejuízo, sem o qual não existe crime, devendo este ser consequência da actividade ou omissão do agente.
Dito de outro modo, a conduta activa ou passiva do agente terá de ser a causa adequada do prejuízo patrimonial.
Mas, como bem salienta a recorrente, para que o crime seja preenchido não basta que os interesses patrimoniais alheios sofram um qualquer prejuízo. É necessário que este seja importante.
Tendo sido opção do legislador não definir o que isso seja, esse conceito indeterminado há-de ser preenchido pelo intérprete.
Como é referido pelo Prof. Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao art.224º, do Código Penal, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, a pags.367, o conceito de prejuízo patrimonial importante deve ser aferido recorrendo-se a um duplo critério: objectivo e subjectivo, isto é, deve atender-se à gravidade do prejuízo em termos absolutos, mas também à situação económica em que a vítima ficou colocada.
Como bem salienta a recorrente de acordo com o disposto no art.686º, nº1, do Código Civil, a hipoteca constitui um direito real de garantia que “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
Partindo daqui, sustenta a recorrente que a extinção dessa garantia não importa uma diminuição do património do credor, uma vez que a hipoteca não constitui activo patrimonial do credor e que o crédito, garantido ou não é que constitui activo do património do credor, e mesmo assim, como expectativa, pelo que com o cancelamento parcial das hipotecas aqui em causa operada pela arguida, o banco não deixou de ser credor, ficando credor comum do remanescente, pelo que conclui que tal procedimento não causou prejuízo ao banco/assistente.
Impõe-se, desde logo, uma observação no sentido de precisar o conceito de património.
Assim, para nós, com o devido respeito por opinião diferente, para efeitos penais a noção de património é mais ampla do que a que normalmente é usada em termos civilistas, onde é restrita ao complexo de direitos e obrigações avaliáveis em dinheiro, devendo englobar não só a vertente corpórea, mas também os direitos patrimoniais ou as prestações com valia patrimonial.
Deste modo, o património engloba a propriedade material (sobre coisas físicas) e os direitos reais em geral, a propriedade imaterial (direitos de autor, direitos de marca e patentes, etc.), a posse e os direitos de crédito ou obrigacionais. Neste sentido, Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado (1996), 2ª Volume, pag.416/417 e José António Barreiros, in Crimes Contra o Património, pag.8.
Posto isto, retomemos o caso que aqui nos ocupa.
Sobre este aspecto encontra-se sedimentada a seguinte factualidade:
«1) Pelo menos durante os anos de 2009 e 2010, a arguida prestou serviço na Direcção Comercial de Empresas de F, do Banco S, SA, como gestora de empresas.
2) Para além do mais, competia à arguida solicitar à Direcção de Coordenação de Crédito Hipotecário do banco a emissão de títulos de cancelamento do registo (também designados títulos de distrate) das hipotecas constituídas pelos seus clientes como garantia dos empréstimos concedidos pelo banco, quando aqueles pretendiam amortizar os referidos empréstimos ou vender fracções hipotecadas.
3) De acordo com os seus deveres, a arguida apenas deveria entregar os referidos títulos aos clientes do banco depois de assegurado o pagamento do crédito que as hipotecas a cancelar (distratar) garantiam.
4) A arguida entregou de forma propositada e voluntária títulos de cancelamento (distrate) de hipotecas a clientes do banco, sem que os créditos a que as hipotecas se reportavam fossem satisfeitos.
5) Assim, em datas não apuradas mas pelo menos entre data próxima a 17.08.2009 e até 16.12.2009, a arguida entregou aos responsáveis da sociedade denominada AH, nas referidas condições, os seguintes:
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “A” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito em P, descrito na Conservatória do Registo Predial de P sob o n.º 0000 da freguesia de P, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 117.774,65 referente a um empréstimo concedido pelo banco à referida empresa. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 20.08.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “D” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 123.764,87. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 16.11.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “F” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 99.616,13. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 27.11.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “G” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 123.784,87. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 12.11.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “I” do mesmo prédio, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 99.616. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 26.08.2009;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “J do mesmo prédio, o qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 119.181,30. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 16.12.2009.
6) E em datas não apuradas mas pelo menos entre data próxima a 03.07.2009 e até 25.03.2010, a arguida entregou aos responsáveis da sociedade denominada RAS, SA, nas referidas condições, os seguintes:
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “D” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito em S, descrito na Conservatória do Registo Predial de S, sob o n.º 0001, da freguesia de S, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 134.498,42 referente a um empréstimo concedido pelo banco à referida sociedade. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 11.02.2010;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “L” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito em S, descrito na Conservatória do Registo Predial de S, sob o n.º 0101 da freguesia de S, a qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 134.264,70 referente a um empréstimo concedido pelo banco à referida sociedade. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 26.03.2010;
- Título de cancelamento (distrate) da hipoteca referente à fracção “H” do mesmo prédio, o qual visava garantir, quanto àquela fracção, o pagamento do montante de € 134.264,70. Com base na entrega do mencionado título, a hipoteca que onerava a referida fracção foi cancelada em 23.05.2011;
7) Em resultado da conduta da arguida, ficou o banco sem garantia bastante para assegurar o pagamento dos empréstimos que concedeu às referidas empresas, vendo-se impossibilitado de cobrar parte dos seus créditos (sublinhado nosso), sendo que no nº19 dos factos provados o julgador concretizou que parte não apurada do valor recebido pelas sociedades Área H Lda e R SA na venda das fracções referidas em 5) e 6), que deveria ser usado no pagamento do crédito hipotecário, foi usado para pagar valores em dívida perante o banco demandante (dívidas distintas das dívidas de capital dos empréstimos garantidos pelas hipotecas) – mas essa parte usada no pagamento era muito inferior (menos de metade) ao valor que deveria ser usado no pagamento parcial dos créditos hipotecários (sublinhados nosso).
Pese embora, à data da prolação do acórdão recorrido, não ter sido possível precisar esse valor, foi contudo, possível quantificá-lo já em metade do valor dos distrates, ou seja em € 543.382,71 (€ 1.086.765,42:2).
Como é sabido, os direitos reais de garantia embora estejam funcionalmente conexionados com os direitos de crédito, cujo pagamento asseguram, são autênticos direitos reais, dotados, por conseguinte das características de sequela e da preferência. São direitos reais organizados em função dos direitos de crédito. Assim, tais garantias acompanham o bem sobre que incidem (sequela) e conferem preferência, segundo a prioridade temporal da sua constituição ou do seu registo, sobre outros direitos que incidam sobre o mesmo bem (preferência).
Com essa garantia real o interesse do credor beneficia de um reforço quanto à possibilidade devir a ser satisfeito.
Devido à sua natureza de garantia real, a hipoteca caracteriza-se pela afectação de um bem imóvel ou equiparado à garantia de pagamento de uma dívida.
Como garantia, a hipoteca é um direito acessório, uma vez que acompanha sempre a obrigação garantida, com a extinção da qual se extingue também [art.730º, al.a) do C.Civil]. Assim, a sua constituição e subsistência dependem da constituição e subsistência do direito a que serve de garantia.
A hipoteca subordina-se funcionalmente ao crédito a que anda anexa, pois que se destina a assegurar a sua finalidade.
Tendo presente estas breves considerações e a noção de património atrás definida, e bem assim, a factualidade acabada de transcrever, que se encontra definitivamente sedimentada, sufragamos a interpretação dessa materialidade feita no acórdão recorrido.
Assim, como aí diz, sendo «evidente que a hipoteca constitui um direito (subjectivo) real, de natureza patrimonial (dada a sua função e a sua acessoriedade face ao crédito garantido), incrustado no património do credor, e cuja extinção, sem a concomitante extinção do crédito garantido, importa uma diminuição daquele património. Assim é em geral, do ponto de vista da expectativa jurídica, que encerra, de assegurar uma entrada patrimonial futura na esfera jurídica do credor (um incremento patrimonial futuro). Mas também assim é na perspectiva da extinção parcial imediata de um direito do lesado e, assim, uma diminuição do seu activo, sendo ainda que a eliminação daquele direito também diminui a consistência do crédito – como o direito de crédito se traduz apenas numa expectativa de pagamento, a eliminação da sua garantia real torna menos consistente aquela expectativa, que, no limite, passa a depender apenas do arbítrio (da vontade) do devedor. Acresce ainda, mas de forma essencial, que a aferição desta perda prejudicial não pode ser autonomizada das concretas circunstâncias presentes no caso e, em especial, do procedimento implementado pelo banco que deveria ser adoptado: como a disponibilização do título de cancelamento da hipoteca apenas deveria ser realizada mediante o simultâneo pagamento do crédito hipotecário correspondente Correspondente à fracção em relação à qual a hipoteca iria ser cancelada, a conduta da arguida permite associar ao cancelamento da hipoteca uma perda efectiva imediata para o banco, traduzida na falta de pagamento do correspondente crédito. É certo, este crédito não se extinguiu e persiste como um activo no património do banco, mas, com a conduta da arguida, o banco viu-se logo privado dos valores que deveria receber aquando do cancelamento e, nessa medida, sofre uma imediata perda patrimonial. A subsistência do direito de crédito apenas releva no futuro, e na medida em que o banco ainda dispõe de título que pode futuramente (e eventualmente) permitir atenuar o prejuízo sofrido, mas não o elimina à data dos factos. Ou seja, não evita a consumação do crime (com a ocorrência do prejuízo), relevando apenas para efeitos subsequentes. Existe, pois, a produção de um prejuízo patrimonial, na medida em que ocorre uma diminuição do valor económico presente no património do lesado, por referência à posição em que se encontraria se o agente não tivesse realizado a conduta descrita - levando em conta, de um lado, que esse prejuízo se actualiza logo na falta de liquidação dos empréstimos hipotecários com a respectiva parte do preço da venda das fracções em causa; e, de outro lado, que se apura que a parte do valor recebido aplicada em responsabilidades perante o Banco era muito inferior (menos de metade) ao valor que deveria ser usado no pagamento parcial dos créditos».
Em suma: Em consequência directa e necessária da apurada conduta da arguida, o banco/assistente viu diminuído o valor económico do seu património, na medida em que se viu impossibilitado de cobrar parte dos seus créditos, como emerge, do ponto 7 dos factos dados como provados, sofrendo com isso o correspondente prejuízo patrimonial.
Assim, não obstante o esforço argumentativo da recorrente (que em parte assenta em realidades que não tem correspondência nos factos dados como provados e algumas vezes até em oposição à materialidade dado como provada e que está definitivamente fixada) e salvo sempre o devido respeito, entendemos que in casu se verifica o prejuízo patrimonial, que como atrás referimos, apesar de à data da prolação do acórdão recorrido, não ter sido possível precisar o seu valor, foi contudo, possível quantificá-lo já em metade do valor dos distrates, ou seja em € 543.382,71.
E será que este valor poderá ser qualificado como importante, como exigido no art.224º, do Código Penal para que se tenha por verificado o elemento do tipo – causar prejuízo patrimonial importante.
Vejamos.
Como já trás dissemos trata-se de um conceito impreciso e indeterminado que há-de ser preenchido pelo intérprete no momento de aplicação da lei.
Essa foi a opção seguida pelo legislador, que como bem refere Mário Varges Gomes, in “Crimes Contra o Património em Geral”, pag.77 veda ao intérprete todo e qualquer esforço no sentido de fazer equivalências mais ou menos abstractas de valores por mais justas e razoáveis que possam parecer.
A este propósito refere, por sua vez, o Prof. Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao art.224º, do Código Penal, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, a pags.367, que o conceito de prejuízo patrimonial importante deve ser aferido recorrendo-se a um duplo critério: objectivo e subjectivo, isto é, deve atender-se à gravidade do prejuízo em termos absolutos, mas também à situação económica em que a vítima ficou colocada.
Admitindo que o prejuízo daquele valor não fragilizou economicamente o lesado Banco S, SA, de qualquer modo, em termos absolutos ou quantitativos, na actualidade, trata-se de um valor consideravelmente avultado para a generalidade dos portugueses. O mesmo é dizer, que na actualidade aquele valor traduz e representa indubitavelmente em termos absolutos e quantitativos um prejuízo muito avultado, significativo e, por isso mesmo, importante. Ainda dito de outro modo, trata-se de um valor pecuniário que assume uma particular e significativa relevância e importância patrimonial, que confere um muito elevado poder aquisitivo que só é acessível e está disponível a uma parte muito reduzida da população.
Vale tudo isto para concluirmos que não pode deixar de ser qualificado de importante o prejuízo patrimonial daquele valor (€543.382,71), causado ao lesado como consequência directa e necessariamente da conduta apurada da arguida.
Assim, no caso concreto temos por verificado o mencionado elemento do tipo – causar prejuízo patrimonial importante.
Mostra-se assim preenchido esse elemento do crime de infidelidade, pp. no art.224º, n1, do C. Penal e, bem assim, os demais elementos objectivos do tipo que acima se enunciaram e o elemento subjectivo – dolo directo – (elementos estes que nem sequer foram postos em crise), pelo que falece razão à recorrente/arguida, impondo-se a manutenção da condenação contra si proferida em 1ª Instância pela prática deste crime.
Relativamente à condenação da arguida/demandada indemnizar o lesado/demandante na quantia fixada no acórdão recorrido, ela estriba-se na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos.
A este respeito, dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Ora, de harmonia com o estatuído no art.483º do C. Civil, a obrigação de indemnizar por factos ilícitos, depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
- a existência de um facto voluntário do agente;
- que esse facto seja ilícito;
- que exista um nexo de imputação do facto ao lesante;
- a verificação de um dano e ainda que haja um nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo agente.
Neste conspecto, desde já se antecipa que a absolvição pedida pelo recorrente no que concerne à condenação na indemnização arbitrada, também naufraga, pois que essa sua pretensão vem alicerçada na alegação de não ter causado qualquer prejuízo patrimonial ao demandante com a sua apurada conduta o que determinaria não ser criminalmente ilícita a sua conduta, pelo que não tendo feito vencimento essa tese, como atrás se deixou exposto, e estando provado o contrário, ou seja, a ocorrência do prejuízo patrimonial nos termos anteriormente mencionados e por conseguinte ser ilícita a sua apurada conduta e verificando-se os outros pressuposto da obrigação de indemnizar fundada na responsabilidade extracontratual por facto ilícito, terá de ser mantida de a sua condenação relativamente ao pedido de indemnização civil, nos precisos termos em que foi proferida no acórdão sob censura.
Por todo o exposto e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra o douto acórdão recorrido.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos nega-se provimento ao recurso mantendo-se integralmente o douto acórdão recorrido.
Sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie, condena-se a arguida/recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC’s [arts.513º, nºs 1 e 3 e 514º, nºs 1 e 2 do CPP e art. 8º nº9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais].
Évora, 15 de Dezembro de 2015.
(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).