Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
430/14. 0 GELLE.E1
Relator: MARIA LEONOR BOTELHO
Descritores: CRIME DE USURPAÇÃO
Data do Acordão: 12/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Não comete o crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195.º e 197 do CDADC, aquele que em estabelecimento comercial difundia através de dois televisores o canal “Mais Kizomba” disponibilizado pela operadora MEO.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO
1. 1. - Decisão Recorrida
No processo de instrução nº 430/14. GELLE da 1ª Secção de Instrução Criminal da Instância Central da Comarca de Faro – J2, foi proferida, em 31.10.2016, decisão instrutória que não pronunciou o arguido JP, melhor identificado nos autos, pela prática do crime de usurpação, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).

Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, por entender que os autos não revelavam indícios da prática de qualquer crime pelo arguido JP, designadamente do crime de usurpação, p. e p. pelos art.ºs 68.º, n.º 2, al. e), 127.º, n.º 3, 155.º, 195.º e 197.º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 45/85, de 17 de Setembro, pelos Dec.-Lei n.ºs 332 a 334/97, de 27 de Novembro, e ainda pela Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro, por considerar que, nas circunstâncias participadas, o arguido limitava-se a receber pela televisão instalada no seu estabelecimento comercial o programa que a MEO estava a difundir – Canal “Mais Kizomba” – nada mais lhe acrescentando, traduzindo-se tal situação numa mera transmissão de conteúdos disponibilizada por outrem, no caso pela MEO, e não uma utilização, razão pela qual considerou afastada a aplicação do disposto nos art.ºs 155.º, 195.º e 197.º do CDADC, em conformidade com o entendimento jurisprudencial uniformizado vertido no AHJ n.º 15/2013, publicado no DR, I.ª Série, n.º 243, de 16 de Setembro.

Discordando dessa decisão, as assistentes, “S.P.A. - Sociedade Portuguesa de Autores, CRL” e “Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos”, requereram a abertura de instrução, sustentando que a questão que se suscita nos autos é a de saber se a situação de facto descrita no despacho do Ministério Público está contida no conceito de comunicação de obras ao público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE, concluindo que se se considerar que a difusão de obras musicais num estabelecimento comercial, através de um aparelho de televisão, integra o conceito de comunicação pública, eram necessárias as autorizações dos autores para esse efeito.

Admitida a abertura da instrução e realizadas diligências de instrução, teve lugar o debate instrutório, vindo a final a ser proferida a referida decisão de não pronúncia.
*
1. 2. - Recursos
1.2.1. - Inconformadas com tal decisão, dela interpuseram recursos as duas assistentes, pugnando pela revogação da decisão instrutória e pela pronúncia do arguido JP pela prática do crime de usurpação, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º do CDADC.

1.2.1.1. – A “S.P.A. - Sociedade Portuguesa de Autores, CRL” finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões:

«a) No dia 30 de Junho de 2014, no estabelecimento comercial denominado “Café XX”, promovia a difusão de música no seu estabelecimento, através de dois televisores ligados, um no exterior, outro no interior, que difundiam através da MEO, o canal “Mais Kizomba” (apenas acessível através do código xxxx e produzido por BR), sem que tivesse obtido as necessárias licenças e autorizações para o efeito.

b) As obras transmitidas neste estabelecimento comercial são protegidas pelo direito de autor;

c) O arguido não dispunha de autorização da Recorrente, que o habilitasse a difundir tais obras em espaço público;

d) A questão a apreciar nos autos é saber se a utilização que o arguido fazia das obras configura o conceito de “comunicação pública”, tal como previsto no artigo 3º n.º 1 da Directiva 2001/29 e se os tribunas nacionais estão vinculados á interpretação que tem sido atribuída pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao conceito de “comunicação pública”;

e) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo a delimitar, unanimemente, em diversos Acórdãos o conceito de comunicação pública;

f) O conceito de “comunicação pública” deve ser entendido em sentido amplo, de modo a assegurar um elevado nível de protecção aos titulares de direito;

g) O meio de comunicação específico não é decisivo; importante é que seja dada ao público a possibilidade de aceder às obras em causa;

h) O conceito de “público” envolve um número indeterminado, mas importante de telespectadores ou ouvintes potenciais;

i) Deve ser um público “novo”, no sentido em que é diferente do previsto quando a radiodifusão foi inicialmente autorizada;

j) O elemento lucrativo é relevante, mas não é decisivo;

l) A utilização de um mero meio técnico para garantir ou melhorar a transmissão de origem na zona de cobertura não constitui comunicação ao público;

m) A utilização de televisão, rádio, colunas, amplificadores não são meros meios técnicos para garantir ou melhorar a transmissão de origem na zona de cobertura, uma vez que, caso essa intervenção não se verificasse, os clientes, embora encontrando-se fisicamente no interior da referida zona, não poderiam desfrutar da obra difundida.

n) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, pelo menos desde 2007, em sucessivos Acórdãos a proferir decisões que nos permitem, com segurança e de modo uniforme a toda a União Europeia, circunscrever e entender este conceito;

o) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido que a transmissão de obras radiodifundidas, através de aparelhos de televisão ou rádio em espaços públicos, configura o conceito de comunicação pública, uma vez que o detentor do aparelho de televisão, ao permitir a escuta ou a visualização da obra, tal intervenção deve ser considerada um acto de comunicação ao público, nos termos do artigo 3º n.º 1 desta Directiva;

p) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem circunscrito o conceito de “comunicação pública” em diversos Acórdãos, de entre os quais os Acórdãos SGAE, C-306/05; Football Association Premier League, C-403/08 e C-429/08 e OSA, C-351/12;

q) As normas nacionais devem ser interpretadas no sentido que resulta da letra e do espírito da Directiva;

r) No âmbito de um processo de reenvio promovido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, O Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que “o conceito deve ser interpretado como abrangendo a transmissão de obras radiodifundidas através de um ecrã de televisão – que se estende ao aparelho de rádio – e de colunas aos clientes que se encontrem presentes num estabelecimento comercial. Em tal situação estamos perante uma nova comunicação ao público e não perante uma mera recepção de uma obra”;

s) Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida em casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação vincula, quer quanto às conclusões, quer quanto à fundamentação, os tribunais nacionais.

t) O Tribunal a quo estava vinculado a seguir a interpretação que o Tribunal de Justiça da União Europeia deu ao conceito de “comunicação pública” no processo de reenvio suscitado pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

u) Ao ter decidido de forma diferente o Tribunal a quo violou os princípios do primado e da interpretação conforme;

v) A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo deve, por isso, ser alterada, pronunciando-se o arguido pela prática de um crime de usurpação.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida em primeira instância, pronunciando-se o arguido JP pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195º e 197º do CDADC.»
*
1.2.1.2. – Por sua vez, a “Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos” finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso foi interposto pela Assistente Audiogest – Associação Para a Gestão e Distribuição de Direitos, da douta decisão, proferida a 31.10.2016 (fls. 351 e ss.), que não pronunciou o arguido JP pela prática do crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195º e 197º do CDADC.

2. O recurso merece – com o devido respeito – inteiro provimento, pois que a decisão do Mmo. a quo, não foi, na perspetiva da mesma, e com o devido respeito, a mais acertada.

3. Desde logo, porque a decisão do Mmo. Juiz a quo, contida na douta decisão recorrida, teve (na ótica da Assistente) por base uma errada interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis em face da factualidade apurada.

4. Pois, contrariamente ao que é sustentado na douta decisão recorrida resultaram verificados e comprovadamente preenchidos, nos autos a quo, todos os elementos do tipo incriminador.

5. Na realidade, dos factos apurados resulta que no dia 30 de Junho de 2014, no estabelecimento denominado “Café xx”, explorado pelo arguido, estavam a ser executados publicamente “vídeo clipes do canal MAIS KIZOMBA”, via televisão, através do canal nº --- do MEO Kanal (criado por um cliente da MEO e disponibilizado ao público), sem que o arguido possuísse qualquer autorização dos produtores de fonogramas ou dos seus representantes, designadamente da ora assistente Audiogest, através da licença denominada “Passmusica”, para proceder a tal execução ou comunicação pública.

6. Pois bem, desde logo, tal circunstancialismo fáctico nenhuma relação tem com a “actividade de recepção-transmissão” de música proveniente de canais televisivos especializados ou dedicados a música cujo conteúdo é determinado pelo órgão de radiodifusão.

7. Já que, in casu, nem sequer de radiodifusão, strito sensu, estamos a falar, uma vez que nos presentes autos e em face da factualidade apurada, a televisão é apenas o suporte para a visualização de tais vídeos musicais, como, naturalmente o seria qualquer computador.

8. E no caso do arguido, o simples suporte para a execução/comunicação pública, não autorizada nem licenciada dos mesmos.

9. Pelo que, ao contrário do sustentado pelo Mmo. a quo., o circunstancialismo de facto que serviu de base à comunicação/execução pública, não autorizada, levada a cabo pelo arguido no estabelecimento comercial que explorava, não é o mesmo a que se faz alusão no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 15/2013 de 16/12/2013.

10. Acresce que, o regime dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos foi consolidado a nível internacional por um conjunto de tratados internacionais, cujas disposições foram sendo incorporadas no seio do direito da União.

11. O qual se foi densificando quer a nível legislativo (nomeadamente através de diretivas comunitárias) quer a nível jurisprudencial (decisões do TJUE).

12. De tal modo que a norma criada pelo legislador da União e interpretada pelo TJUE passa a ser de aplicação obrigatória nos Estados Membros, cabendo ao legislador e julgador nacional harmonizar (quer normativa, quer jurisprudencialmente) a mesma com norma interna e respetiva interpretação ou pelo contrário, revogar a norma interna contrária.

13. Assim sendo, a jurisprudência firmada pelo TJUE assume assim no direito comunitário, a natureza de precedente para os Tribunais do Estados Membros no que concerne à interpretação dos conceitos jurídicos do direito da União, como sendo o de “público” e “comunicação pública” no âmbito dos direitos de autor e direitos conexos.

14. Na realidade, sobretudo a partir de 2006, o TJUE em diversos arrestos jurisprudenciais, foi densificando de forma consistente e unitária tais conceitos tendo como base três princípios estruturantes, como sejam: assegurar um padrão de alto nível de proteção dos direitos de autor e conexos, harmonizar a nível comunitário dos conceitos constantes das Diretivas e serem os mesmos interpretados à luz dos conceitos equivalentes constantes das normas internacionais (v.g. Convenção de Roma e WPPT).

15. Circunstância essa que, não só foi reafirmada pelo TJUE em momento posterior ao Acórdão do STJ nº 15/2013, como também tendo-o (enquanto elemento integrante do ordenamento jurídico nacional sobre tal matéria) em consideração direta e imediata na apreciação de um caso português apresentado, ao mesmo, a título prejudicial, pela SPA (Despacho SPA, datado de 14 de Julho de 2015), no qual, uma vez mais (e daí já por mero despacho), se sufraga integralmente, os critérios que densificaram de forma consistente e unitária tais conceitos.

16. Constituindo assim direito europeu unificado, integrará tal conceito a ação do operador [utilizador (conceito este, igualmente, harmonizado comunitariamente)] – proprietário e/ou explorador de um hotel, bar, café, restaurante, spa, entre outros - que dá acesso, aos seus clientes, a uma emissão radiodifundida que contém uma obra protegida, sendo que estes apenas desfrutam da mesma por força da intervenção daquele.

17. Que a coloca à disposição de um público novo - um público diferente do público visado pelo ato de comunicação originária da obra, ou seja, os utilizadores diretos, isto é, detentores dos aparelhos de receção que, individualmente ou na sua esfera privada ou familiar captam as emissões - não presente no local de onde provêm as comunicações, que não estejam presentes no local em que tem origem a comunicação, o mesmo é dizer, que não se encontrem em contacto físico e direto com o ator ou executante dessas obras.

18. Sendo o conceito de “público”, aquele que visa um número indeterminado de pessoas (telespectadores potenciais) de molde a tornar a obra acessível às pessoas em geral e não a pessoas específicas, pertences a um grupo privado (familiar) ou tendencialmente fechado e imutável.

19. Mostrando-se relevante, quer os efeitos cumulativos que resultam da disponibilização das obras a destinatários potenciais, nomeadamente a indeterminação das pessoas que têm acesso à mesma obra, paralela e sucessivamente.

20. Bem como, embora não decisivo, a suscetibilidade daquele operador económico transmitir tais obras radiodifundidas com fim lucrativo de modo a repercutir na frequência do estabelecimento (essa transmissão é suscetível de atrair clientes, alvos do utilizador e, por outro lado, recetivos, de uma maneira ou de outra, à sua comunicação) e, finalmente, nos resultados económicos da sua atividade.

21. Devendo entender-se o conceito de «comunicação» como visando toda e qualquer transmissão de obras protegidas, independentemente do meio ou procedimento técnico utilizados.

22. Pelo que, a aludida comunicação pública de obras (radiodifundidas), de acordo com a jurisprudência consolidada pelo TJUE, em termos de normalidade e de acordo com regras da experiência da vida, segundo o padrão do "homem médio" ocorre quer se trate de quartos de hotel, bares pubs, cafés e/ou restaurantes, entre outros, inexistindo como bem expressa, de forma consistente o TJUE, qualquer diferença de tratamento entre eles.

23. Daí decorrendo para o utilizador a obrigação solicitar a devida autorização e de liquidar uma remuneração equitativa pela comunicação dessa obra e/ou prestação (fonograma/videograma) aos titulares do direito de autor e conexos, a qual acresce à paga pelo radiodifusor.

24. O mesmo se passando mutatis mutantis perante um ato de colocação à disposição de uma obra/ prestação protegida e perante um consequente ato de comunicação pública da mesma.

25. Efetivamente, tendo em conta o Princípio basilar e fundamental do direito jusautoral da independência das formas de exploração (a adoção de qualquer delas pelo titular dos direitos de autor e conexos não prejudica a adoção das restantes pelo mesmo, carecendo de autorização e devendo ser remunerado por cada utilização diferente que da mesma seja feita por parte de terceiros), temos que o direito de autorização e subsequente remuneração devida ao titular do direito de autor e conexo, pela radiodifusão ou colocação à disposição da obra/prestação é independente e autónomo (não abrange) do direito do mesmo pela comunicação/execução ao público dessa obra/prestação, mormente via rádio/TV.

26. Pois bem, encontrando-se os Tribunais apenas sujeitos à Lei, os mesmos, nos litígios devem aferir da conformidade constitucional das normas aplicáveis, e bem assim, verificar a sua conformidade com todas as normas a que elas devem sujeitar-se (normas internacionais, europeias, legais).

27. Quer as normas emanadas de tratados internacionais (regularmente ratificados ou aprovados) como as decorrentes da União Europeia, possuem dignidade constitucional, prevalecendo sobre as normas internas de cada Estado-Membro.

28. Atento a importância do direito comunitário, expresso no “princípio do primado do direito da União Europeia “, o legislador nacional, não só deverá adequar a sua atuação com os objetivos assumidos naquele, bem como, deverão as normas internas ser lidas e interpretadas à luz das diretivas transpostas, assim como, com os demais instrumentos de direito da União Europeia, tudo com vista a assegurar a interpretação uniforme daquele direito em todos os Estados-Membros.

29. Do mesmo modo, as decisões jurisdicionais do Tribunal de Justiça [TJUE] constituem um adquirido comunitário que deve ser respeitado obrigatoriamente em todo o espaço europeu, nomeadamente, pelos Tribunais dos Estados Membros, aos quais não se encontra na sua faculdade não o adotarem e aplicarem (podendo contudo, em caso de dúvida de aplicação ao litígio concreto, suscitar um pedido de apreciação pelo TJUE, através do mecanismo do reenvio prejudicial).

30. O que ocorre no caso nacional no âmbito do qual, a decisão proferida pelo TJUE (Despacho SPA, de 14.07.2015), aplicável à ordem jurídica nacional e posterior ao Ac. STJ nº 15/2013, constituiu, sem sombra de dúvidas, um precedente normativo a ter em conta por todos os demais Tribunais nacionais na análise e decisão de questões análogas e similares, como se defende de forma unânime da jurisprudência nacional.

31. Assumindo carácter obrigatório geral que, na prática, vincula “todos os juízes nacionais, como juízes de direito (da UE)” a menos que se suscite novamente, em momento anterior à decisão, novo pedido de reenvio de interpretação.

32. Ficando demonstrado assim, com o devido respeito, que é muito, e s.m.o., a insustentabilidade atual, por um lado, da tese defendida pelo Mmo. a quo (e mutatis mutantis do Acórdão do STJ, nº 15/2013 – o qual não tem força obrigatória geral), quanto à diferenciação entre (mera) receção (pública) e comunicação pública, a qual conduz, inclusive e de forma inevitável a uma interpretação muito restrita da noção de público que contraria o espírito e os objetivos de harmonização das Diretivas Comunitárias no âmbito dos direitos de autor e conexos, os quais se devem basear num elevado nível de protecção.

33. O que aliás conduziu a doutrina portuguesa que sobre o mesmo se debruçou a tecer-lhe duras críticas, enumerando “numerosos vícios” e sustentando inclusive que na era em que vivemos “a mera recepção de obras radiodifundidas é uma realidade inexistente (…) o que implica que só é defensável, para o efeito em causa, a distinção entre comunicação privada e comunicação pública”.

34. Acresce que, no direito autoral português, nomeadamente na sua consagração legal [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC)] nada existe que seja contrário ou discrepante do direito da União, bem como, incompatível com o direito comunitário de origem jurisprudencial (as quais contudo sempre teriam de ser resolvidas a favor deste último), no que a estas matérias se refere.

35. Pelo que, em face da factualidade apurada nos autos, bem assim, da interpretação dos conceitos jurídicos supra aludidos, a que, com o devido respeito e s.m.o., o Mmo. a quo., se encontrava obrigado a seguir, mostra-se claro que, in casu, estamos perante uma circunstância fáctica que integra, sem margem para dúvidas o conceito de comunicação pública de videogramas musicais.

36. Inexistindo motivo, como se defende, atualmente, na doutrina, esclarecido que está o tema pelo Tribunal do Luxemburgo, para a divergência de opiniões acima descrita, urgindo seguir, a nível nacional, a corrente jurisprudencial delineada neste campo pelo Tribunal de Justiça, e assim se introduzindo maior certeza jurídica nesta matéria.

37. Circunstância esta tanto mais premente e evidente atenta a clarificação que o próprio legislador nacional [em momento posterior ao Acórdão do STJ, nº 15/2013 no âmbito do diploma sobre a regulamentação das entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos (Lei 16/2015, de 14 de Abril)] fez sobre a correta interpretação de tais conceitos.

38. Assim sendo, com o entendimento explanado na sentença proferida (baseado, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 15/2013), o Mmo. a quo., com o devido respeito e s.m.o., contraria, frontalmente, a interpretação (sentido, alcance e objetivo) das normas internacionais e comunitárias sobre esta questão, aplicáveis ao nosso país e às quais este se encontra vinculado, bem como, a interpretação conforme com as mesmas que das disposições nacionais, insertas, no CDADC, se terá de fazer.

39. Desrespeitando (e mutatis mutantis, o Acórdão do STJ citado), como devido respeito, que é muito, e s.m.o, um adquirido comunitário quer a nível legislativo, quer a nível jurisprudencial, violando assim, o “princípio do primado do direito europeu”.

40. Deste modo, tendo atribuído o legislador nacional, aos produtores fonográficos/videográficos, entre outros, o direito de autorizar (ou proibir) a execução/comunicação pública dos fonogramas/videogramas por eles produzidos e editados,

41. A execução/comunicação pública sem tal autorização deverá ser considerada uma utilização não autorizada de tais fonogramas/videogramas, o que desde logo, implica a violação do disposto no artigo 184º.2 CDADC e preencherá, como se referiu, o tipo criminal de usurpação (artigo 195º CDADC).

42. Considerando tudo o exposto, e o mais que, doutamente, será suprido, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e de aplicação, nomeadamente o disposto nos artigos o disposto nos artigos 108º.2, 184º, 195º, 197º do Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos, bem como, o artigo 3º.1 da Diretiva 2001/29.

NESTES TERMOS, E COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ SER DADO INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A DECISÃO RECORRIDA, A QUAL DEVERÁ SER SUBSTITUÍDA POR DOUTO ACÓRDÃO, EM QUE, ACOLHENDO-SE AS RAZÕES SUPRA INVOCADAS PELA ORA APELANTE PRONUNCIE O ARGUIDO PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE USURPAÇÃO, PREVISTO E PUNIDO NOS TERMOS DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 195º E 197º DO CDADC.
ASSIM SE FAZENDO INTEIRA J U S T I Ç A».

1.2.2. - O Ministério Público respondeu, manifestando a sua concordância com a decisão recorrida e sustentando que os recursos não merecem provimento.

E termina as suas motivações, quanto a ambos os recursos, com as seguintes conclusões:

«I. Não se verifica o crime de usurpação previsto no artigo 195.º do CDADC quando os televisores de um estabelecimento servem como mero meio de transmissão da emissão divulgada por um canal televisivo, em nada contendendo, alterando ou acrescentando a tal emissão;

II. Não é exigível a quem divulga o conteúdo de um canal privado construído numa plataforma disponibilizada pela operadora de comunicação, e a qual não alerta para a eventual falta de licenças ou autorizações dos titulares dos respectivos direitos, que averigúe previamente da existência ou não de tais licenças ou autorizações;

III. Pelo que, mesmo que por hipótese se admitisse verificar-se crime, sempre não se verificaria o elemento subjectivo do referido crime de usurpação.

IV. Face ao que, somos do parecer que o presente recurso deve ser julgado improcedente e, por conseguinte, ser confirmada a douta decisão recorrida que fez boa e correcta aplicação do Direito e da Lei.

Porém, Vossas Excelências, decidirão como for de J U S T I Ç A.»
*
1.2.3. - O arguido manifestou a sua concordância com a decisão recorrida, sustentando que os recursos não merecem provimento.

E termina a sua motivação, quanto a ambos os recursos, com as seguintes conclusões:

«A) Nos autos foi proferido despacho de não pronúncia do arguido em que decidiu não considerar praticados factos e qualquer tipo de conduta em que imputa ao arguido JP a prática de um crime de usurpação de direitos de autor, p.e p. pelos artigos 195.º e 197.º, todos do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.

B) O arguido concorda integralmente com o Douto Despacho de não pronuncia proferido nos autos, no que tange ao arguido, sendo certo que, nesse âmbito o mesmo não lhe merece qualquer reparo, pelo que deve ser integralmente mantida a decisão.

C) O arguido limitava-se a receber na televisão a emissão de um canal de televisão, situação idêntica à que seve de base no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 15/2013 do Supremo Tribunal de Justiça português.

D) Sustentam as assistentes que, tratando-se de um canal privado da MEO, construído, não pelo canal de televisão, mas por um cliente da própria Meo, que posteriormente, permite o acesso ao seu canal por parte de toda a comunidade de subscritores MEO, através de um código de acesso diferente, não lhe é aplicável o entendimento do sobredito Acórdão.

E) No entanto, nada nos permite indiciariamente concluir que o responsável pela criação do canal “Mais Kizomba” não obteve junto dos autores das obras ou seus representantes as autorizações legalmente exigidas.

F) Na verdade sendo o canal “Mais Kizomba”, facultado pela operadora MEO, um dos maiores portais e canal dedicado a este género musical e sobejamente conhecido não podemos descurar a hipótese de o seu responsável ter obtido as autorizações legalmente exigíveis para o construir e disponibilizar.

G) Com efeito, o facto de televisões e rádios já pagarem direitos de autor deverá impedir a sua posterior cobrança no acto de recepção em lugares públicos de programas radiodifundidos por televisão que incluam essas obras.

H) Ao invés, se tal acontecesse e realizássemos uma cobrança por tal receção, estaríamos a exigir uma colecta a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que, pela autorização da radiofusão da obra, já o autor recebeu a correspondente remuneração.

I) Deste modo, os direitos de autor e direitos conexos e respectivas autorizações, foram pagos e concedidas através da operadora de televisão MEO, pelo que arguido nada devia sobre os mesmos, não se mostrando preenchidos os pressupostos do crime por que vinha indiciado.

J) Tendo em conta a recente jurisprudência do STJ, o facto de as circunstâncias serem análogas às discutidas no AUJ n.º 15/2013 e o não surgimento de novos dados de facto se impõe a orientação contida no mesmo aos restantes Tribunais Nacionais.

K) O AUJ n.º 15/2013 do STJ pôs termo à referida querela ao firmar jurisprudência no sentido de “a aplicação, a um televisor de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149.º, 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos e Conexos.”

L) O STJ sustentou a sua posição conciliando alguma doutrina e jurisprudência nesta matéria, analisando os normativos legais aplicáveis e aplicando a argumentação no Parecer n.º 4/92 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.

M) DE acordo com os mesmo, a mera receção ainda que alterada por quaisquer equipamentos que podem não integrar originariamente o aparelho, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, estará incluída no plano da receção radiodifusão e por esse motivo não é aplicável o n.º 2 do artigo 149.º do CDADC.

N) Entendeu o STJ que a instalação das colunas nada acrescentava ou alterava à emissão televisiva, não fazendo o titular do estabelecimento comercial nenhuma recriação do programa transmitido.

O) Pelo que, a situação se enquadrava plenamente no plano da receção da radiofusão, não havendo uma nova utilização ou aproveitamento organizados da transmissão original que se realizava.

P) A mera receção ainda que alterada por quaisquer equipamentos que podem não integrar originariamente o aparelho, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, estará incluída no plano da receção radiodifusão e por esse motivo não é aplicável o n.º 2 do artigo 149.º do CDADC.

Q) Em face desta decisão, e perante situação de facto idêntica ao dos autos, impõe-se portanto a aplicação da jurisprudência que o presente Acórdão do STJ veio concretizar.

R) Entende-se por isso, inatacável o entendimento manifestado no despacho de não pronúncia pela Meritíssima Juiz, no sentido de não considerar praticados factos e qualquer tipo de conduta em que imputa ao arguido JP a prática de um crime de usurpação de direitos de autor, p.e p. pelos artigos 195.º e 197.º, todos do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC), devendo o mesmo aqui prevalecer.»
*
1.2.4. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art.º 416.° do C.P.P., sufragando a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª Instância quanto a ambos os recursos, pronunciou-se pela manutenção do despacho recorrido.
*
1.2.5. - Cumprido o disposto no art.º 417.°, n.º 2, do C.P.P., apenas respondeu a assistente “S.P.A. - Sociedade Portuguesa de Autores, CRL,” reafirmando que o arguido procedia à comunicação de obras protegidas pelo direito de autor em local público (o estabelecimento que explora), sem para tal estar devidamente autorizado, tendo assim cometido o crime de usurpação, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º do CDADC, pelo qual deve ser pronunciado.
*
1.2.6. - Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, daquele diploma.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. – Objecto do Recurso
Dispõe o art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

E no nº 2 do mesmo dispositivo legal determina-se também que, versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.

Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso - cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, in www.stj.pt, em cujo sumário se lê:

«O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso (…), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir, em qualquer dos recursos, prende-se com saber se se mostra, ou não, indiciariamente preenchido, pela conduta do arguido, o tipo legal referente ao crime de usurpação, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º do CDADC.
*
2. 2. – Da Decisão Recorrida

É o seguinte o teor da decisão instrutória recorrida:
«Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, por entender que os autos não revelam indícios da prática de qualquer crime pelo arguido JP, designadamente, do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 68.º, n.º 2, al. e), 127.º, n.º 3, 155.º, 195.º e 197.º, todos do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo DL n.º 63/85, de 14 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 45/85, de 17 de Setembro, pelos Decreto-Lei 332 a 334/97, de 27 de Novembro, e ainda pela Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro.

Resulta, em síntese, do sobredito despacho que, nas circunstâncias participadas, o arguido limitava-se a receber pela televisão instalada no seu estabelecimento comercial o programa que a MEO estava a difundir – Canal “Mais Kizomba” – nada mais lhe acrescentando.

Concluindo-se que a situação em apreço traduz uma mera transmissão de conteúdos disponibilizada por outrem, no caso pela MEO, e não uma utilização, afastou-se a aplicação do disposto pelos artigos 155.º, 195.º e 197.º do CDADC, em conformidade com o entendimento jurisprudencial uniformizado vertido no AHJ n.º 15/2013, publicado no DR I.ª Série n.º 243, de 16 de Setembro, determinando-se, em consequência, o arquivamento dos autos.

*
Inconformadas, as assistentes, Sociedade Portuguesa de Autores, CRL e Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos vieram requerer a abertura de instrução (fls. 213 e ss e fls. 227 e ss).

Para tanto, e em síntese, sustentam que a questão que se suscita nos autos é a de saber se a situação de facto descrita no despacho de acusação está contida no conceito de comunicação de obras ao público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE.

Conclui-se que se se considerar que a difusão de obras musicais num estabelecimento comercial, através de um aparelho de televisão, integra o conceito de comunicação pública, eram necessárias as autorizações dos autores para esse efeito.

Sobre o conceito de comunicação de obras ao público, sustentam as assistentes que o Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou sobre a matéria, decidindo por despacho de 14 de Julho de 2015 que “o conceito de comunicação ao público, na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e direitos conexos na sociedade de informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento”.

Concluem as assistentes que esta decisão se impõe aos tribunais internos dos Estados membros, donde, em consequência, deve o arguido ser pronunciado pela prática do crime de usurpação.

A título de diligências de instrução, a assistente Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos pediu a inquirição dos agentes autuantes e de uma testemunha.
*
Foi declarada aberta a instrução.
Indeferiu-se a reinquirição dos agentes autuantes, por se considerar desnecessária aos fins da instrução.
Determinou-se a inquirição da testemunha arrolada sobre os aspectos técnicos da criação do canal em causa.
Procedeu-se à realização de debate instrutório.
*
Cumpre proferir decisão instrutória.

De acordo com o artigo 286º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução tem como escopo a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Configura-se, assim, como uma fase processual, sempre optativa - cfr. resulta do n.º 2, do mesmo artigo -, destinada a questionar os despachos de arquivamento e/ou de acusação deduzidos.

Para cumprir tal desiderato, impõe-se uma apreciação crítica de toda a prova recolhida no inquérito e na instrução, terminando por uma decisão sobre esta, no sentido da suficiência da mesma - a verificação dos indícios suficientes de que fala o Código de Processo Penal, no n.º 1, do artigo 308º -, para envio do processo à fase de julgamento, ou não. Certo é que para a prolação de despacho de pronúncia se exige prova de todo diferenciada daquela que se exige na fase de julgamento.

Com efeito, em sede de pronúncia relevam, de um modo particular, o conjunto de indícios dos quais possa resultar uma possibilidade razoável de aos arguidos vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, como decorre do teor do artigo 283º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Nos presentes autos, há, assim, que atender à prova, vista num carácter global e ao nível dos indícios.

Além do mais, do inquérito deve também resultar prova indiciária sobre os seguintes quesitos: quem, onde, quando, de que forma e, se possível, qual a razão da prática dos factos denunciados. Caso não constem, a acusação pode ser considerada infundada ou naufragar, por falta de prova, em sede de julgamento.

Nos termos do postulado no artigo 283º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Ministério Público deve deduzir acusação caso, durante o inquérito, tenham sido recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes.

Por indícios suficientes deve entender-se aqueles elementos de facto trazidos pelos meios probatórios ao processo, os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído.

Com efeito, os indícios devem ser reputados como suficientes quando, das diligências efectuadas durante o inquérito, resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o(s) arguido(s) responsável(eis) por ele. Aliás, os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes por forma a que logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do(s) arguido (s), impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.

Com efeito, caso o juízo do Ministério Público seja no sentido da inexistência de tais indícios ou mesma da existência de prova bastante de não se ter verificado crime, de que o(s) arguido(s) não o(s) praticou(aram) ou de que é inadmissível o procedimento, a decisão a tomar é a de arquivamento do processo.
*
Na presente instrução, é apenas uma a questão decidenda, que se reconduz a averiguar se, ao contrário do que sustenta o Ministério Público, existem indícios que permitam concluir que o arguido praticou factos susceptíveis de integrarem a prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º, n.º 1, e 197.º, n.º 1, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, al. j), 11.º, 12.º, 14.º e 68.º, todos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, ou de qualquer outro crime, devendo, em consequência, proferir-se despacho de pronúncia.

Para o efeito, cumpre analisar, histórica e conjugadamente, toda a prova carreada quer para o inquérito quer para a presente fase instrutória.
*
Os presentes autos iniciam-se, em 30 de Junho de 2014, com o levantamento do auto de notícia de fls. 3 e ss., dando conta que o estabelecimento comercial denominado Café xx, explorado por JP, estava aberto ao público, mantendo dois televisores ligados, um no exterior, outro no interior, que difundiam, através da MEO, o canal “Mais Kizomba” (apenas acessível através do código --- e produzido por BR), sem que se tivessem obtido as necessárias licenças e autorizações para o efeito.

A fls. 34 a 36 foi junta informação sobre o canal “Mais Kizomba”.

A fls. 37 e ss. foram juntas as condições de utilização do serviço Meo Kanal.

Constituído arguido e interrogado nessa qualidade (fls. 177, 181 e 182), o arguido confirmou os factos constantes do auto de notícia, juntando as facturas da SPA (fls. 183 e 184) relativas à utilização de obras literário-musicais.

Foi junto, a fls. 189 dos autos, o crc do arguido, do qual nada consta.

Em sede de instrução, foi ouvido, como testemunha, JR, consultor de propriedade intelectual. Nesse contexto, esclareceu que o canal “Mais Kizomba” não faz parte da grelha de programação “normal” da MEO, tratando-se de um canal construído por assinantes, privados, da MEO, e só acessíveis a partir da MEO KANAL a quaisquer outros assinantes Meo que tenham acesso a um código de 6 dígitos de acesso. Mais esclareceu que no acesso ao dito canal não surge, no aparelho de televisão, qualquer tipo de mensagem que advirta que aquele conteúdo é de acesso reservado e depende de autorização dos autores.

Cumpre apreciar.
E a questão é a de saber se se colheram indícios suficientes que permitam imputar ao arguido, JP a prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC).

Sob a epígrafe usurpação, dispõe o artigo 195.º do CDADC:
1- Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código”. (o sublinhado é nosso)

2-Comete também o crime de usurpação:
a. Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respectivo autor, quer se proponha ou não a obter qualquer vantagem económica;

b. Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;

c. Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiofundida, exceder os limites da autorização concedida, …

3. Será punido com as penas previstas no artigo 197.º o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respectivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar directa ou indirectamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem.

Segundo dispõe o artigo 197.º do diploma legal em referência, os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.

A negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

Conforme então resulta da letra do artigo 195.º, a usurpação é uma utilização não autorizada pelo autor de uma obra ou prestação; o que é o mesmo que dizer que um terceiro que utilizar a obra ou prestação alheia, em qualquer das modalidades previstas no CDADC (reprodução, transformação, distribuição ou comunicação da obra ao público, cfr. artigo 68.º), necessita do consentimento do autor.

Trata-se da violação de direitos patrimoniais do autor, que lhe asseguram a exploração económica exclusiva da obra.

Também comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor, divulgar ou publicar uma obra não divulgada ou publicada ou não destinada a tal, nos temos da alínea a) do nº2 do art.195º. Estamos aqui perante a violação de um direito moral, nomeadamente o direito ao inédito, ou seja o direito do autor de divulgar ou não a sua obra.

A alínea b) do mesmo n.º 2 do artigo 195.º estipula outra forma de usurpação. Segundo esta alínea comete o crime de usurpação que coligir ou compilar obras, sem a autorização do autor. As obras em causa tanto podem ser inéditas, como já terem sido publicadas. Tal como refere OLIVEIRA ASCENSÃO (Direito Penal de Autor, Lex Edições Jurídicas, Lisboa, 1993, p. 24) o sentido da existência desta alínea, que à primeira vista parece estar englobada no nº 1, deve ser “atingir os casos em que as obras não são protegidas ou a utilização é livre, e não obstante a utilização conjunta só pode fazer-se com a autorização do autor.”

A última modalidade da prática do crime de usurpação por terceiros desemboca na ultrapassagem dos limites da autorização concedida pelo autor a terceiro para utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida. Estamos aqui perante um excesso dos limites da autorização conferida e tal é legalmente punido pela alínea c) do nº 2 do art. 195. Este excesso pode verificar-se quer por ter excedido o limite de tempo a que a autorização se destinava, quer por ter extrapolado o seu conteúdo. O fundamento desta estipulação jaz na circunstância de “en ambos casos se desprecia la voluntad del autor” (J. GÓMEZ BENÍTEZ e G. QUINTERO OLIVARES, Protección penal de los derechos de autor y conexos, Cuadernos Cívitas, 1988, p. 102).

Em resumo, comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista:

- utilizar a obra ou prestação (nº1);
- divulgar ou publicar obra inédita (nº2, al. a);
- coligir ou compilar obras (nº2, al. b);
- se exceder no exercício da autorização (nº2, al. c).

É elemento negativo do tipo o não consentimento do autor, como resulta da letra do art. 195º.

O elemento negativo do tipo incriminador é aquele “cuja ausência a própria descrição da conduta punível exige” (vide, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, parte geral, Teoria do Crime, tomo II, Editorial Verbo, 1998, p. 24. Quanto a este assunto o mesmo autor refere o seguinte: “Costumam referir‐se os tipos que prevêem causas de justificação como elementos negativos do tipo. É uma construção possível, mas inconveniente, desde logo porque enquanto o tipo subjectivo há‐de ser adequado aos elementos do tipo incriminador, o mesmo já não sucede necessariamente quanto aos elementos do tipo permissivo.” (op. cit. p. 23‐24)

Conforme resulta do disposto no artigo 197.º, o crime de usurpação é punido quer a título de dolo (cfr. artigo 14.º do CP), quer a título de negligência (cfr. n.º 2 do artigo 197.º e 15.º do CP).

Importa, pois, percorrer e analisar os sinais indiciários recolhidos à luz das sobreditas considerações, a fim de saber se, indiciariamente, o arguido JP cometeu, ao contrário do que se entendeu no despacho de arquivamento, o crime de usurpação.

De acordo com o entendimento do Ministério Público, a conduta em causa não integra o conceito de utilização previsto na norma em referência; pois que o arguido se limitava a receber pela televisão instalada no seu estabelecimento comercial o programa que a MEO estava a difundir – Canal “Mais Kizomba” – nada mais lhe acrescentando.

Face ao que, na esteira do entendimento jurisprudencial uniformizado do AUJ n.º 15/2013, publicado no DR I.ª Série n.º 243, de 16 de Setembro, concluiu-se que a situação em apreço traduz uma mera transmissão de conteúdos disponibilizada por outrem, no caso pela MEO, e não uma utilização.

Assim sendo, afastou-se a aplicação do disposto pelos artigos 155.º, 195.º e 197.º do CDADC, determinando-se, em consequência, o arquivamento dos autos.

Efectivamente, de acordo com sobredito entendimento do STJ, a aplicação a televisor de aparelhos de difusão de som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura nova utilização de obra. Ou seja, a existência de colunas de ampliação e uniformização do som aplicadas a televisor não transforma o acto de recepção em retransmissão do programa. Nem tão pouco acrescenta nada à obra, apenas melhora, em intensidade e dimensão auditiva, o sinal sonoro emitido pela televisão.

Entendendo que a situação de facto descrita nos autos não diverge, no seu cerne, daquela que serviu de base ao entendimento jurisprudencial supra referido, o Ministério Público afastou a aplicação da incriminação em referência.

Este Tribunal perfilha do mesmo entendimento.

Indiciam os autos que, em 30 de Novembro de 2014, no âmbito da exploração do café xx, o arguido exibia, nas televisões que tinha ligadas, o canal “Mais Kizomba”, nada mais lhe acrescentando.

Estes indícios apenas dizem que o arguido se limitava a receber na televisão a emissão de um canal de televisão; situação em tudo análoga à que serve de base de facto ao AUJ n.º 15/2013.

Sustentam, neste tocante, as assistentes que, tratando-se de um canal privado da MEO, construído, não pelo canal de televisão, mas por um cliente da própria MEO que, posteriormente, permite o acesso ao seu canal por parte de toda a comunidade de subscritores MEO, através de um código de acesso diferente, não lhe é aplicável o entendimento do sobredito Acórdão.

Ressalvado o devido respeito por opinião em contrário, na argumentação das assistentes não se encontram dados de facto novos que permitam por em causa o entendimento do acórdão de uniformização de jurisprudência. A conduta é a mesma, quer se trate de um canal da programação da Meo, quer se trate de um canal da rede Meo.

Tão pouco se pode dizer- se é o que pretendem as assistentes – que, no caso da MEO, por se tratar de um canal de televisão, está assegurado o respeito pelos direitos de autor, ao passo que, num canal construído dentro da rede Meo, por um subscritor, não foram obtidas as necessárias autorizações. Nada nos autos permite indiciariamente concluir que o responsável pela criação do canal “Mais Kizomba” não obteve junto dos autores das obras ou seus representantes as autorizações legalmente exigidas.

Importa, pois, apreciar a outra linha de argumentação das assistentes que defendem que a questão que se suscita nos autos é a de saber se a situação de facto descrita no despacho de acusação está contida no conceito de comunicação de obras ao público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE.

Sobre o conceito de comunicação de obras ao público, sustentam as assistentes que o Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou sobre a matéria, decidindo por despacho de 14 de Julho de 2015 que “o conceito de comunicação ao público, na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e direitos conexos na sociedade de informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento”.

Concluem as assistentes que esta decisão se impõe aos tribunais internos dos Estados membros, donde, em consequência, deve o arguido ser pronunciado pela prática do crime de usurpação.

Com o devido respeito, uma decisão por mero despacho do Tribunal de Justiça da União Europeia, mesmo à luz do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, não põe em causa o entendimento jurisprudencial uniformizado do Supremo Tribunal de Justiça, em sentido contrário, uma vez que só novos dados de facto, não considerados no AUJ, podem levar à aplicação de um entendimento diferente pelos tribunais.

Ora, conforme se disse supra, entre a situação descrita nos autos e aquela que serve de base ao AUH n.º 15/2013, não há diferença, pelo que, a actividade de recepção do canal “Mais Kizomba” no estabelecimento comercial do arguido não desencadeia a aplicação do disposto pelos artigos 195.º e 197.º do CDADC.
*
Pelo exposto, decide-se não pronunciar o arguido JP pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do CDADC.

Após trânsito, declaro, cessada, a medida de coacção aplicada ao arguido.
Custas pela assistente, que se fixam em 2 UC.
Notifique.
Deposite em livro próprio.»
*
2. 3. – Apreciando e decidindo
Conforme decorre do disposto no art.º 286.º do C.P.P., a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, tendo em vista submeter ou não a causa a julgamento, e é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório (art.º 289.º, n.º 1, do C.P.P.).

E, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 308.º do C.P.P., se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, ou, caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

A noção de “indícios suficientes” encontra-se vertida no art.º 283.º, n.º 2, do C.P.P., aplicável à fase de instrução por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2, do mesmo Código, considerando a lei suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que a “possibilidade razoável” de condenação de que fala aquele art.º 283.º, n.º 2, do C.P.P. é uma possibilidade mais positiva que negativa, de acordo com a qual o juiz só deve pronunciar quando, atentos os elementos de prova constantes dos autos, forma a convicção no sentido de que é elevada a probabilidade de condenação, isto é, de que é mais forte a probabilidade de condenação do que a de absolvição.

Como assinala Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Tomo I, pág. 133, «os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição».

Assim, só uma forte ou alta possibilidade de condenação deve levar à pronúncia do arguido.

Nesse sentido, veja-se também o Ac. do TRL de 16.11.2010, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: «Quanto ao que se deve entender por indícios suficientes uma primeira posição (minoritária e que podemos considerar já ultrapassada) defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade (ainda que diminuta) de futura condenação em julgamento.

Uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.

Por último, a posição que recolhe os favores da maioria da doutrina advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.

Fala-se, a este propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação. Ainda que haja quem não autonomize esta posição da anterior e tanto fale em “alta probabilidade” como em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado.»

Assim, partindo da análise dos indícios recolhidos, haverá que fazer, a partir deles, um juízo de prognose, avaliando até que ponto será expectável que tais indícios se mantenham em julgamento e, em face disso, ponderar da maior ou menor probabilidade de se obter uma condenação.

No juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios, importará verificar se os indícios recolhidos convergem na mesma direcção e resistem às objecções que contra eles podem ser formuladas, por forma a poder aquilatar-se se se revestem da suficiência legalmente exigida para sujeitar alguém a julgamento, isto é, se relacionados e conjugados entre si permitem concluir pela existência de uma alta possibilidade, de uma elevada probabilidade de o arguido vir a ser condenado em julgamento, sendo que só em tal hipótese se poderá justificar a prolação de um despacho de pronúncia.

Voltando ao caso dos autos, importa apurar se se mostra indiciada a prática pelo arguido do crime de usurpação, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º do CDADC, isto é, se a conduta daquele preenche o referido tipo legal.

O direito de autor pertence, em princípio, ao criador intelectual da obra (art.º 11º do CDADC).

Sob a epígrafe “Formas de utilização”, determina-se no art.º 68.º do CDADC:
«1 - A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

2 - Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

a) A publicação pela imprensa ou por qualquer outro meio de reprodução gráfica;
b) A representação, recitação, execução, exibição ou exposição em público;
c) A reprodução, adaptação, representação, execução, distribuição e exibição cinematográficas;
d) A fixação ou adaptação a qualquer aparelho destinado à reprodução mecânica, eléctrica, electrónica ou química e a execução pública, transmissão ou retransmissão por esses meios;

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;

f) Qualquer forma de distribuição do original ou de cópias da obra, tal como venda, aluguer ou comodato;

g) A tradução, adaptação, arranjo, instrumentação ou qualquer outra transformação da obra;

h) Qualquer utilização em obra diferente;

i) A reprodução directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte;

j) A colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, da obra por forma a torná-la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;

l) A construção de obra de arquitectura segundo o projecto, quer haja ou não repetições.

3 - Pertence em exclusivo ao titular do direito de autor a faculdade de escolher livremente os processos e as condições de utilização e exploração da obra.

4 - As diversas formas de utilização da obra são independentes umas das outras e a adopção de qualquer delas pelo autor ou pessoa habilitada não prejudica a adopção das restantes pelo autor ou terceiros.

5 - Os actos de disposição lícitos, mediante a primeira venda ou por outro meio de transferência de propriedade, esgotam o direito de distribuição do original ou de cópias, enquanto exemplares tangíveis, de uma obra na União Europeia.» (sublinhados nossos)

Estabelece também o art.º 149º do CDADC

«1 - Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 - Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 - Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão.» (sublinhados nossos)

E, quanto à “comunicação pública da obra radiodifundida”, estabelece o art.º 155.º do mesmo Código:

«É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens».

Por sua vez, sob a epígrafe «usurpação», determina-se no art.º 195.º do CDADC:

«1 - Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.

2 - Comete também o crime de usurpação:

a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respectivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;

b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;

c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.

3 - Será punido com as penas previstas no artigo 197.º o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respectivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar directa ou indirectamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem.

Quanto às penas aplicáveis, diz-se no art.º 197.º do mesmo CDADC:

«1 - Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

3 - Em caso de reincidência não há suspensão da pena.»

O crime de usurpação visa defender o exclusivo da exploração económica da obra, reconhecido ao autor daquela, verificando-se o crime quando ocorre uma utilização não autorizada da mesma obra e, isto, independentemente de o agente pretender obter, ou não, qualquer compensação económica.

De acordo com as disposições legais transcritas, comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista:

- utilizar a obra ou prestação (art.º 195.º, nº1);
- divulgar ou publicar obra inédita (art.º 195.º, nº2, al. a);
- coligir ou compilar obras (art.º 195.º, nº2, al. b);
- se exceder no exercício da autorização (rt.º 195.º, nº2, al. c).

Nos termos do mesmo art.º 195.º do CDADC, o tipo do crime de usurpação exige ainda um elemento negativo, que se traduz no não consentimento do autor.

Sustentam as assistentes que a questão que se suscita nos autos é a de saber se a utilização que o arguido fazia das obras configura o conceito de “comunicação pública”, nos termos previstos no art.º 3º, n.º 1, da Directiva 2001/29 e segundo a interpretação que lhe tem sido atribuída pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de acordo com a qual a transmissão de obras radiodifundidas, através de aparelhos de televisão ou rádio em espaços públicos, configura o conceito de comunicação pública, uma vez que o detentor do aparelho de televisão, ao facultar a escuta ou a visualização da obra, permite uma nova comunicação ao público e não apenas uma mera recepção de uma obra.

Aludem ainda as assistentes que, por despacho de 14 de Julho de 2015, o Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se de novo sobre a matéria, decidindo, num caso português, apresentado ao mesmo a título prejudicial, que “o conceito de comunicação ao público, na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e direitos conexos na sociedade de informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento”.

Considerando que esta decisão se impõe aos tribunais internos dos Estados membros, concluem as assistentes que, em consequência, deve o arguido ser pronunciado pela prática do crime de usurpação.

Por sua vez, o Ministério Público considera que não se verifica o crime de usurpação previsto no art.º 195.º do CDADC quando os televisores de um estabelecimento servem como mero meio de transmissão da emissão divulgada por um canal televisivo, em nada contendendo, alterando ou acrescentando a tal emissão, nos termos do entendimento jurisprudencial uniformizado pelo AUJ n.º 15/2013, publicado no DR I.ª Série n.º 243, de 16 de Setembro, que a situação em apreço traduz uma mera transmissão de conteúdos disponibilizada por outrem, no caso pela MEO, e não uma utilização, que não é exigível a quem divulga o conteúdo de um canal privado construído numa plataforma disponibilizada pela operadora de comunicação e a qual não alerta para a eventual falta de licenças ou autorizações dos titulares dos respectivos direitos, que averigue previamente da existência ou não de tais licenças ou autorizações e que, mesmo que por hipótese se admitisse verificar-se crime, sempre não se verificaria o elemento subjectivo do referido crime de usurpação, razão pela qual devem os recursos ser julgados improcedentes.

Por sua vez, defendeu o arguido a manutenção da decisão recorrida, por nenhum reparo merecer, sustentando que se limitava a receber na televisão do seu estabelecimento comercial a emissão de um canal de televisão, situação idêntica à que serve de base ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 15/2013 do Supremo Tribunal de Justiça.

Vejamos.
Atento o teor do auto de notícia de fls 3 e 4 e as próprias declarações do arguido, indiciam os autos que, em 30 de Novembro de 2014, no âmbito da exploração que fazia do “Café xx”, o arguido exibia, nas televisões que tinha ligadas, através da operadora MEO, vídeo clips do canal “Mais Kizomba”, não sendo possuidor de licenças emitidas pelas assistentes.

De acordo com tais indícios, o arguido limitava-se a receber na televisão do seu estabelecimento comercial a emissão de um canal de televisão, nada lhe acrescentando ou alterando.

Não se suscita qualquer dúvida quanto ao facto de o estabelecimento comercial denominado «Café xx», explorado pelo arguido, ser um lugar público, atenta a definição legal contida no n.º 3 do art.º 149º do CDADC (entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão).

Mas importa saber se a difusão de obra radiodifundida em local público por televisão que, através da Meo, difundia o canal “Mais Kizomba”, configura uma situação de simples recepção de obra ou, pelo contrário, traduz uma nova utilização (uma recepção – transmissão) de obra.

O princípio geral é o da liberdade de recepção. A radiodifusão da obra está sujeita a autorização do respectivo autor, mas o mesmo já não acontece com a sua recepção no destino. É que na autorização para a radiodifusão da obra está já prevista a sua recepção, sendo, por tal razão, esta livre, mesmo que seja pública e independentemente do modo como se efectiva (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora, 1992, pág. 301 e ss.).

Reconhecendo que a Directiva 2001/29/CE não define o conceito de “comunicação pública”, afirmam as assistentes que o TJUE tem, pelo menos, desde 2007, vindo a entender que a transmissão de obras radiodifundidas através de aparelhos de televisão e de rádio em espaços públicos, é abrangida pelo mesmo conceito, interpretando o art.º 149º do CDADC no sentido de que a autorização para a radiodifusão abrange apenas a recepção das obras em ambientes privados e apontando, a título de exemplo, os acórdãos do TJUE SGAE, C-306/05, C-403/08 e C-429/08 e C-351/12.

A situação dos autos é análoga à que serve de base ao AUJ n.º 15/2013.

O Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 15/2013, de 16 de Dezembro (publicado no DR, 1ª série, n.º 243, de 16 de Dezembro de 2013), fixou jurisprudência nos seguintes termos:

«A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.»

E podemos ler na respectiva fundamentação:
«A comunicação da obra radiodifundida por altifalante ou instrumento análogo depende, pois, de autorização e confere ao autor da obra direito a uma remuneração.

Mas que se deve entender por comunicação? Trata-se necessariamente de uma modalidade de utilização da obra diferente das previstas no n.º 1 (transmissão e retransmissão).

Na radiodifusão, como vimos, a comunicação direta entre o organismo emissor e o público recetor está prevista no n.º 1 do artigo 149.º, bem como a relação mediada por retransmissor.

A situação prevista no n.º 2 terá, pois, de ser diferente. E é diferente desde logo pelas características do lugar onde é realizada a receção: lugar público.

Mas será que a mera receção em lugar público integrará a previsão do n.º 3, envolvendo o dever de autorização por parte do autor da obra? A audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros tipos de estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?

Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite -se (radiodifunde -se) para o recetor.

Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149.º.

Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender.

Ponto é que se mantenha no âmbito da receção.

É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149.º. Este preceito tem de reportar -se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Essa nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.

Será esse normalmente o caso quando a receção é convertida ela própria num espetáculo, organizado em estabelecimentos públicos, em torno de eventos desportivos ou musicais, haja ou não entradas pagas, mas publicitado, eventualmente com um arranjo ou decoração especial do espaço, tudo com vista à captação de uma audiência alargada, pelo menos mais alargada do que aquela que normalmente acorreria ao estabelecimento. Aqui já se abandona o plano da simples receção para se invadir o da criação de um espetáculo, ainda que tendo na base a captação de um programa televisivo. Há uma organização e uma "encenação" que alteram a normal receção do programa. Por isso, estamos já no plano da comunicação pública, que deve ser paga.

Aceitar-se-á a mesma solução quando se tratar de uma receção multiplicada, como acontece nos estabelecimentos hoteleiros, em que a receção é distribuída nos quartos e salas comuns, o que se traduz, para além da amplificação exponencial do sinal radiodifundido, num serviço extra prestado pelo hotel aos hóspedes, suscetível de atrair clientela, e por consequência lucros, pelo que se pode considerar uma reutilização da obra, sendo por ela devida uma remuneração.

Mas já não será o caso da mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo.

Insistindo e resumindo: haverá reutilização da obra se foram empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a difusão da obra, produzindo um espetáculo diferente do que é radiodifundido.

Compreende -se que em tais condições, e só nelas, haja a obrigação de pagar uma nova remuneração ao autor.

Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto nº 2 do artigo 149.º. Doutra forma, seriam cobrados direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a correspondente remuneração.

Analisemos agora a situação que motivou a divergência jurisprudencial.

Em estabelecimento comercial aberto ao público em geral, lugar público para os efeitos do artigo 149.º, n.º 3, difundia-se um programa televisivo presenciado por vários clientes. Ao televisor tinham sido ligadas colunas de som, que não faziam parte originariamente do aparelho, e que serviam para amplificar e distribuir o som pelo estabelecimento.

As colunas de som, embora não fizessem parte do televisor, no sentido de que não o integravam originariamente, não constituem, porém, material diferente do que já vem instalado normalmente nesse tipo de aparelhagem, pois qualquer televisor contém necessariamente o material adequado para difundir o som pelo ambiente.

As colunas não produziam portanto qualquer função nova, o que elas faziam era ampliar e distribuir o som que o televisor já difundia por todo o espaço do estabelecimento. A função delas era apenas a de melhorar a captação do som.

Assim, a instalação das colunas nada acrescentava ou alterava à emissão televisiva. Nenhuma recriação do programa transmitido era produzida. Insiste-se: o que as colunas permitiam era a melhoria da captação do som.

Daí que a situação se enquadre inteiramente no plano da receção da radiodifusão.".

Atento o seu teor, dúvidas não existem de que a jurisprudência fixada pelo referido Acórdão Uniformizador é aplicável à situação em apreço nos autos, na qual nem sequer está em causa a utilização de aparelhos de ampliação do som que tivessem sido adicionados a uma televisão (colunas), mas apenas a utilização de televisão enquanto aparelho receptor de radiodifusão sonora e visual de obra.

Nos termos previstos no art.º 445.º do C.P.P. e no que respeita à eficácia do acórdão de uniformização de jurisprudência, determina-se no seu nº 1 que a decisão que resolver o conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do n.º 2 do artigo 441.º, estipulando-se no nº 3 do mesmo normativo legal que aquela decisão não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, muito embora imponha que estes fundamentem as divergências relativas à jurisprudência fixada.

Mas, conforme referem Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1202, e Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1591, citados no Ac. do TRC de 28.06.2017, in www.dgsi.pt, «a fundamentação da divergência tem que ir para além da comum fundamentação da decisão penal, devendo suportar-se em argumento novo, relevante e não ponderado, na notória alteração das concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais ou na modificação da composição do Tribunal Supremo»

E, como se afirma no referido Ac. do TRC de 28.06.2017, inexiste «argumento novo que nos leve a afastar a jurisprudência fixada, nem temos notícia de evolução doutrinal ou jurisprudencial quanto aos argumentos utilizados, determinante, hoje, de uma decisão uniformizadora diferente, quer pela data, ainda próxima, em que foi proferido o Acórdão nº 15/2013, quer pela circunstância de nele serem expressamente referidas decisões do TJUE contrárias, como sejam os acórdãos proferidos nos processos nºs 403/08 e 429/08, este supra mencionado, e o primeiro, mencionado nos fundamentos do despacho 14 de Julho de 2015, proferido no processo C-151/15

Acresce que a questão prejudicial que foi objecto do despacho do TJUE de 14 de Julho de 2015, a que aludem as assistentes, proferido no processo C-151/15, in http://curia.europa.eu/juris/document, foi decidida nos seguintes termos:

«Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.°, n.º 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de um aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento.»

Não obstante, muito embora resulte evidente a oposição entre a jurisprudência fixada pelo STJ no Acórdão Uniformizador nº 15/2013 e a interpretação que o TJUE fez no referido despacho de 14 de Julho de 2015, certo é que, quer numa, quer noutra, está em causa a transmissão de uma obra através de um aparelho de rádio ou televisão ligado a colunas e/ou amplificadores.

Porém, no caso dos autos, a difusão era apenas feita através de aparelho de televisão sem o auxílio de quaisquer outros equipamentos que lhe ampliassem e/ou melhorassem o som, donde resulta que a situação concreta em análise é um minus em relação à tratada quer pelo AUJ nº 15/2013, quer pelo mencionado despacho do TJUE de 14.07.2015.

Assim, considerando o decidido pelo Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 15/2013, é manifesto que a factualidade objectiva suficientemente indiciada (em 30 de Novembro de 2014, no âmbito da exploração que fazia do “Café xx”, o arguido exibia, nas televisões que tinha ligadas, através da operadora MEO, vídeo clips do canal “Mais Kizomba”, não sendo possuidor de licenças emitidas pelas assistentes) não preenche o tipo objectivo do crime de usurpação.

E, verificando-se que tal factualidade não corresponde à efectivamente analisada no mencionado despacho do TJUE, de 14.07.2015, já que, como dissemos, não está em causa a utilização de aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, não poderá considerar-se que lhe é aplicável a interpretação constante de tal despacho.

Mas, mesmo que, perante o teor do despacho de 14 de Julho de 2015 do TJUE, se considerasse preenchido o tipo objectivo do crime de usurpação, impunha-se ainda verificar se se mostra preenchido o elemento subjectivo do tipo, isto é, o dolo, ou seja o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art.º 14.º do C. Penal.

A propósito, veja-se o excerto, extremamente claro e elucidativo, do já citado Ac. do TRC de 28.06.2017:

«Como dissemos já, a usurpação é um crime doloso, preenchendo-se o respectivo tipo com o simples dolo eventual.

Agora numa outra perspectiva, a usurpação é um mala prohibita, um crime artificial, cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem se pode exigir que o seja. Naturalmente que quem exerce, de forma estável, uma determinada actividade, como acontece com o arguido, têm o dever acrescido de conhecer as normas legais que a regem.

Mas a complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional com que nos deparamos, onde avulta a especialíssima e relevantíssima circunstância de o Tribunal do topo da hierarquia dos tribunais judiciais portugueses ter deixado expresso, através de um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que condutas como a imputada nos autos pela assistente SPA ao arguido, não integram a prática do crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, acrescida da ampla divulgação pública feita de tal aresto uniformizador, torna manifestamente desrazoável o entendimento de que, atento o disposto no art. 16º, nº 1 do C. Penal, se possa considerar suficientemente indiciado o dolo, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do mesmo código.

Nesta decorrência, inexistem indícios suficientes da conduta dolosa do arguido o que vale dizer que, não obstante a consideração da interpretação feita pelo TJUE que vimos referindo, não se mostra suficientemente indiciada a prática do crime de usurpação.»

Concorda-se inteiramente com a análise feita quanto à falta de preenchimento do elemento subjectivo em situações como a dos autos.

Na verdade, se o nosso mais Alto Tribunal considera, há diversos anos, e apesar da Jurisprudência formulada pelo TJUE, que a aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149.º, 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, não seria razoável admitir-se que, apesar disso, se mostra suficientemente indiciado que o arguido conhecia a ilicitude da sua conduta e que, consciente da sua censurabilidade, quis praticar tal acto, quando é ainda certo que, nos termos previstos no art.º 16.º, n.º 1, do C. Penal, o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.

Acresce que, como as próprias assistentes admitem, a Directiva 2001/29/CE não define o conceito de “comunicação pública”, tendo tal conceito vindo a ser densificado pela Jurisprudência do TJUE, cujo conhecimento não é razoavelmente de exigir ao arguido para efeito de se considerar preenchido o crime de usurpação.

Por fim, mas não menos importante, não pode esquecer-se que os factos datam de 30.06.2014, sendo portanto anteriores ao mencionado despacho do TJUE, de 14.07.2015, donde claramente decorre que, também por isso, não podia o arguido conhecer o teor de tal despacho e a interpretação nele feita pelo TJUE quanto ao conceito de «comunicação ao público».

Ora, ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior (n.º 1 do art.º 29.º da C.R.P.).

Nestes termos, mesmo que se considerasse que, atenta a Jurisprudência definida pelo TJUE, a conduta do arguido preenchia indiciariamente o tipo objectivo do crime de usurpação – o que, em nosso entendimento, não é sequer o caso – uma vez que não se mostra indiciado o elemento subjectivo do tipo (dolo), impõe-se concluir que não se encontra suficientemente indiciada a prática, pelo arguido, do crime de usurpação em causa nos autos, p. e p. pelos art.ºs 195.º e 197.º do CDADC.

Assim, ainda que também por outros fundamentos, o despacho recorrido não merece censura.

Improcedem, consequentemente, os recursos interpostos por ambas as assistentes.

III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedentes os recursos interpostos pelas assistentes “S.P.A. - Sociedade Portuguesa de Autores, CRL” e “Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos”, confirmando-se integralmente a douta decisão instrutória recorrida.

Sem custas, por delas estarem isentas as recorrentes (art.º 4.º, n.º 1, f), do R.C.P.)
*
Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)

Évora, 05 de Dezembro de 2017
_________________________
(Maria Leonor Botelho)
_______________________
(Gilberto da Cunha)