Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
29/12.6GDSTC.E2
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: FURTO QUALIFICADO
IMPRESSÃO DIGITAL
Data do Acordão: 04/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A impressão digital não faz prova directa da participação do arguido no facto criminoso, devendo ser encarada apenas como indício que deverá ser conjugado com outros elementos de prova, pelo que aquela por si só, não faz prova dessa participação.

II - O vestígio palmar da mão esquerda do arguido encontrado numa garrafa de refrigerante, que havia sido deixada de véspera na empresa em local não livremente acessível ao público, é manifestamente insuficiente para se lhe poder atribuir com a certeza processualmente exigível na fase de julgamento a autoria dos factos ou a sua participação neles.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No âmbito do processo comum nº29/12.6GDSTC.E1, procedente do Juízo Central Criminal de Setúbal (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o arguido J, melhor identificado nos autos, foi acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de furto qualificado, pp. pelos arts. 203º, nº2 e 204, nº1, al.b) e nº2, al.e) e nº3, por referência ao art.202º, al.d) do Código Penal e de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, pp. pelo art.3º, nºs 1 e 2 do DL nº2/98, de 3 de Janeiro.

Realizada a audiência de discussão e julgamento perante tribunal colectivo, por acórdão proferido em 15-03-2017, o arguido foi absolvido da prática desses crimes.

Recurso.

Inconformado com essa decisão relativamente à absolvição do arguido pela prática dos mencionados crime de furto, dela recorreu o Ministério Público, pugnando pela sua condenação no que concerne à prática desses crimes, dizendo, em sede de conclusões, o seguinte:

1 - O arguido J vinha acusado da prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artºs203º, nº1, 204º, nº1, al.b) e 2, al.e) e nº3 e 202º, al.s. d) e e), todos do Código Penal e ainda um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelos nºs 1 e 2 do artº 3º do Dec. Lei nº 2/98 de 3/1, por referência aos artºs 121º e segs. do Código da Estrada.

2 - Procedeu-se a julgamento, sendo o arguido absolvido da prática de todos os crimes, por acórdão proferido no dia 15 de Março do corrente ano.

3 - Da prova produzida em audiência de julgamento conjugada com os restantes meios de prova juntos aos autos, consubstanciados em prova documental, pericial e testemunhal, resulta ter sido o arguido a cometer os factos que lhe são imputados na acusação relativamente aos crimes de furto qualificado cometidos na oficina de Reboques da Mimosa e na empresa Sadocivil;

4 -Verifica-se erro notório na apreciação da prova, uma vez que na apreciação crítica das provas, o colectivo olvidou e não valorou, como devia, o aditamento ao auto de denúncia, auto de apreensão, elaborados pelos órgãos de polícia criminal com recolha de vestígios do crime, a relação de bens furtados apresentada por esta e o relatório pericial sobre os vestígios lofoscópicos recolhidos na mencionada oficina, infringindo, assim, o disposto no artigo 127º, conjugado com os artºs 163.º, n.º 1 e 169.º, do CPP.

5 - Na verdade e salvo melhor opinião, do exame pericial, relatório da inspeção lofoscópica e fotografias retiradas do local, resulta que o arguido pegou obrigatoriamente na garrafa de sumo que estava em cima do frigorífico, na oficina que foi assaltado naquela noite/ madrugada/ princípio de dia.

6 - Por conseguinte, tendo em conta o curto espaço de temporal em que os fatos se deram, a circunstância de o arguido não ser ou ter sido pessoa conhecida e autorizada a estar no escritório da oficina, muito menos naqueles dia/noite, e a ausência de qualquer explicação da sua parte para as suas impressões digitais terem aparecido em objetos levados pelos assaltantes, não se vê outra explicação, por mais inverosímil que seja, para o facto de a sua impressão digital se encontrar na garrafa de sumo, no local onde ocorreu o furto.

7 - Deste facto, conjugado com as regras da experiência comum, resulta que o autor do furto foi o arguido, pois só esse facto permite explicar a existência da sua impressão digital em tal objeto, que ficou esquecido no local.

8 - No que concerne ao furto ocorrido na Sadocivil, resulta da dinâmica dos factos, relatados pelas testemunhas F, M e R, bem como do guarda da GNR, SR, que a viatura furtada saiu pelas instalações desta firma, tudo ocorrendo na mesma noite.

9 - Ao considerar como não provados os factos relativos a tais crimes, concretamente quanto à autoria, com a consequente absolvição do arguido, o colectivo julgou incorrectamente os factos a eles atinentes e incorreu em erro notório na apreciação da prova, porquanto, daqueles meios de prova conjugados com as regras da experiência comum, resulta uma prova positiva dos mesmos.

10 - Consequentemente, nos termos do artigo 431.º, alíneas a) e b), do CPP, devem ser dados como assentes os factos descritos no acórdão recorrido sob a epígrafe dos factos não provados (als. a, b, c e e), bem como sendo ele o autor dos factos descritos sob os nºs 1 a 8 dos factos provados.

11 - Dando-se por provados os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de furto, deverá o arguido ser condenado pela prática de tais crimes, numa pena única de prisão não inferior a 3 (três) anos e 3 (três) meses, sendo admissível um juízo de prognose favorável, mantendo-se a absolvição apenas quanto ao crime de condução sem habilitação legal.

12 - A não se entender assim, deverá reenviar-se o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do CPP, a fim de se suprirem os vícios da matéria de facto nesta parte e que tenha em consideração os supra mencionados meios probatórios.

13 - Cumprimento do disposto no art. 412°, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal:

Pontos que se consideram incorrectamente julgados:
O Ministério Público considera que foram incorretamente julgados os seguintes pontos:
Factos dados como provados sob os nºs 1 a 3, faltando a autoria, bem como os elementos subjectivos do tipo e da punibilidade, que supra se acrescentou.

14 - Provas que impõem decisão diversa da recorrida:
Entende o Ministério Público que para se darem por provados os factos supra aludidos, conjugados com a demais prova, concretamente a prova pericial, deve ser dada credibilidade e valorado o depoimento da testemunha F.

15 - Provas que devem ser renovadas:
A não se entender assim, deverá reabrir-se a audiência, para novas declarações à testemunha F

16 - Referência aos suportes técnicos e concretas passagens em que se funda a impugnação:
Sessão de 19/04/2016 – sistema Citius, - 20160419151232_1770928_2871778(declarações de F).

17– Cumprimento do disposto no art. 412°, nº2 do Código de Processo Penal:
Entende o Ministério Público terem sido violadas as normas previstas nos artºs 127º, 160º-A e 163º, 410º, nº2, al.c), todos do CPP.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, requer-se a Vªs Exªs se dignem:

a) Pronunciar-se quanto à existência de alguns dos vícios previstos no nº2 do artº 410º do CPP, mais concretamente na al.c), determinando o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artº 426º do Código de Processo Penal.

b) A proferir-se decisão quanto à matéria de facto, se tenha em consideração as seguintes provas, que não foram adequadamente apreciadas, de acordo com as normas legais aplicáveis e regras da experiência comum: Relatório pericial e declarações das testemunhas M e F;

c) Alterando-se a decisão quanto à matéria de facto, dando-se como provado que o arguido J praticou os factos indicados sob os nºs 1 a 8, bem como os que supra se indicam, sob as al.s a), b) c) e e) da matéria dada como não provada, integradores dos crimes que lhe eram imputados na acusação e, em consequência, ser o mesmo condenado, pela prática de dois crimes de furto qualificado, em pena não inferior a 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e em cúmulo jurídico em pena não inferior a 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, que poderá ser suspensa na sua execução.
Admitido o recurso o arguido não contra-motivou.

Nesta Relação o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e proficiente parecer no sentido de ser concedido provimento parcial ao recurso, condenando-se o arguido pela prática do crime de furto cometido nas instalações da empresa “ Reboques da Mimosa, Ldª” e mantendo-se a sua absolvição quanto ao crime de furto perpetrado nas instalações da “Sadocivil….

Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP não houve resposta.

No exame preliminar, não foi admitida a renovação da prova requerida pelo recorrente, de que não houve reclamação.

Colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

No acórdão recorrido foi dada como provada e como não provada a seguinte factualidade:

«A. Matéria de facto provada.
O tribunal, discutida a causa, deu como provados os seguintes factos:

Do acusatório.
1. Na noite de 20 de Maio de 2012, em hora não concretamente determinada, mas entre a 1 hora e as 9 horas, indivíduos ou indivíduos de identidade não concretamente apurada dirigiram-se às instalações da empresa “Reboques da Mimosa, Lda”, também conhecidas por “Auto Runa”, sitas na EN 262, Mimosa, Alvadade Sado.

2. Aí chegados, forçaram a porta de um contentor que é utilizado como escritório, onde entraram e retiraram as chaves do veículo automóvel da marca Fiat, modelo Uno, de matrícula XL---.

3. Após, forçaram a porta de entrada no armazém, onde se encontrava o mencionado veículo e outros objectos, tendo-se apropriado dos seguintes:

- 20 bilhas de 1 litro de óleo, no valor de custo de € 200,00;
- 10 bilhas de 5 litros de óleo 10W40, no valor de custo de € 350,00;
- 8 bilhas de 5 litros de óleo 5W40, no valor de custo de € 400,00;
- 12 bilhas de 5 litros de anti-congelante, no valor de custo de €120,00;
- 2 baterias, no valor de cerca de € 120,00;
- 15 alternadores, no valor de cerca de € 1.000,00;
- 6 motores de arranque, no valor de cerca de € 450,00;
- 5 cabeças de motor usadas, no valor de cerca de € 1.000,00;
- 12 radiadores de cobre usados, no valor de cerca de € 500,00;
- 1 extensão monofásica com 60m, no valor de cerca de € 150,00;
- 1 extensão trifásica com 40m, no valor de cerca de € 400,00;
- diversos bens alimentares, designadamente sardinha, carne, sumos e cervejas, no valor de custo total de € 350,00.

4. Acto contínuo, cortaram a vedação que separa aquelas instalações de outras contíguas, pertencentes à “Sadocivil – empresa de trabalho temporário, Lda”, que servem como armazém de materiais e ferramentas de construção civil.

5. Em sequência, tal indivíduo ou indivíduos vieram a entrar também nestas instalações da “Sadocivil”, onde se encontravam outros veículos automóveis e, do depósito destes, retiraram combustível.

6. Partiram os vidros de janelas, conseguindo entrar no armazém e respectivo escritório da “Sadocivil”, de onde retiraram os seguintes objectos, dos quais se apropriaram:

- um berbequim angular da marca “Bosch”, no valor de pelo menos € 100,00;
- uma rebarbadora, no valor de pelo menos € 80,00;
- 3 esquentadores Junkers, no valor de pelo menos € 300,00;
- um computador, no valor de pelo menos € 500,00;
- três chaves de carrinhas da empresa.

7. Colocaram esse combustível no veículo automóvel de matrícula XL---, o qual tinha o valor de cerca de € 500,00 e, usando as respectivas chaves, colocaram-no em funcionamento e levaram-no daquele local, apropriando-se do mesmo.

8. Conduziram aquele veículo até à Herdade de Vale dos Reis, Alcácer do Sal, onde veio a ser encontrado no dia 24 de Maio de 2012, apresentando vidros partidos, carroçaria amolgada, sem rodas, com o tablier e os bancos danificados e problemas mecânicos.

Da situação pessoal e condição sócio-económica do arguido.
9. O arguido é o filho mais velho de uma fratia numerosa, sendo proveniente de uma família com graves carências económicas e com elevada conflituosidade.

10. Integrou o agregado da família de origem até aos 18 anos, ausentando-se por ocasião de uma grave crise familiar.

11. Após, regressou apenas ocasionalmente e por curtos períodos de tempo.

12. Concluiu o 7.º ano de escolaridade, tendo ainda frequentado um curso profissional de mecânica, no qual veio a perfazer com sucesso o 8.º ano, não alcançando, contudo, concluir o 9.º ano.

13. Não tem problemas de saúde ou aditivos relevantes.

14. Revela alguma imaturidade e reserva.

15. Detém pouco apoio familiar, encontrando-se o progenitor a cumprir pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

16. Nos últimos anos, apresenta mobilidade residencial acentuada e ocupação laboral irregular.

17. Desde 11 de Agosto de 2015, encontra-se em cumprimento de uma pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

18. Tem mantido comportamento adequado às normas em vigor no Estabelecimento Prisional.

Dos antecedentes criminais registados.
19. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais registados:
i) No âmbito do processo sumário n.º ---/11.9GCFAR, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, por decisão de 11-04-2011, transitada em julgado em 02-05-2011, o arguido foi condenado, pela prática em 08-04-2011, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo o total de € 350,00, substituída por 69 horas de trabalho a favor da comunidade.

Por despacho de 04-07-2000, tais penas foram declaradas extintas pelo cumprimento

ii) No âmbito do processo sumário n.º ----/11.3GCFAR, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro, por decisão de 09-12-2011, transitada em julgado em 12-01-2012, o arguido foi condenado, pela prática em 07-12-2011, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 199 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo o total de € 1.094,50.

iii) No âmbito do processo comum n.º ---/10.9JAFAR, do Juízo de Competência Genérica de Tavira, por decisão de 14-01-2012, transitada em julgado em 18-01-2016, o arguido foi condenado, pela prática em 24-10-2010, de um crime de coacção sexual e de um crime de coacção, na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.

iv) No âmbito do processo comum n.º ---/12.2GGMMN, do Juiz 1 de Competência Genérica de Montemor-O-Novo, por decisão de 12-12-2013, transitada em julgado em 04-11-2015, o arguido foi condenado, pela prática em 07-08-2012, de um crime de furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.

v) No âmbito do processo comum n.º ---/12.0GAMCQ, do Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Portimão, por decisão de 13-02-2014, transitada em julgado em 25-06-2014, o arguido foi condenado, pela prática em 30-01-2012, de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.

vi) No âmbito do processo comum n.º ---/10.1GDODM, do Juiz 1 de Competência Genérica de Odemira, por decisão de 23-11-2015, transitada em julgado em 05-01-2016, o arguido foi condenado, pela prática em 03-09-2010, de dois crimes de furto qualificado, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.

vii) No âmbito do processo comum n.º ---/14.0GGSTB, do Juiz 4 do Juízo Local Criminal de Setúbal, por decisão de 06-01-2016, transitada em julgado em 05-02-2016, o arguido foi condenado, pela prática em 21-09-2014, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo o total de € 850,00.

B. Matéria de facto não provada.
Da discussão da causa, e com relevância para a boa decisão da mesma, não logrou provar-se que:

a) Foi o arguido quem actuou conforme apurado de 1. a 8. da matéria de facto provada.

b) O arguido conduziu aquele veículo, em vias públicas, sem ser titular de carta de condução.

c) O arguido agiu com a intenção de se apropriar de bens que sabia não lhe pertencerem, bem como sabia que para o conseguir penetrava, por escalamento e arrombamento, no interior de espaços fechados, contra a vontade dos seus proprietários e causando-lhes prejuízo, tudo o que quis e conseguiu.

d) O arguido sabia que não era titular de carta de condução e que, por isso, não podia conduzir veículos automóveis na via pública, não obstante quis fazê-lo.

e) O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção do seguinte modo:

C. Convicção do tribunal e exame crítico das provas.
O tribunal formou a sua convicção, sobre os factos que eram imputados ao arguido na acusação pública, com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual:

C.I. No concernente ao conspecto factual fixado como provado de 1. a 8. em contraponto ao não provado de a) a e): face ao legítimo exercício do direito a não prestar declarações por banda do arguido, tendo por base a valia encerrada no teor conjugado do tecido documental composto pelos autos de notícia e aditamento, respectivamente, de fls. 3 a 5, 28 a 30 e fls. 3-4 do apenso NUIPC ---/12.0GDSTC, relatório táctico de inspecção ocular, com reportagem fotográfica, de fls. 50 a 54, relatórios de inspecção judiciária de fls. 72-74 e 97 a 107, auto de apreensão fls. 31, auto de exame e avaliação de fls. 32, termo de entrega de fls. 33, fotografias de fls. 34 a 38, documentos de fls. 8 a 12, ficha biográfica de fls. 99 e informação do IMTT de fls. 144, acervo o qual, respectivamente, permite encetar por contextualizar espácio-temporalmente e substantivamente o conexo pedaço de vida que conforma o caso espécie, mormente a afectação dos espaços físicos empresariais, dos bens subtraídos e do veículo automóvel em referência, sendo que, com particular respeito à pessoa do arguido, ao tempo da pesquisa efectuada em 12 de Março de 2013, na base de dados do IMTT, não surtiu a mesma efeito, em razão de ser o documento de identificação daquele aí desconhecido.

Concomitantemente ao exame global de tal acervo, veio a recentrar-se o prumo na valoração integral do teor do relatório do exame pericial n.º 201222435-CLO, de identificação lofoscópica de fls. 108 a 112, levada a efeito pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária – sob a égide da dialéctica normativa dos artigos 124.º a 127.º, 151.º, 157.º e 163.º, do Código de Processo Penal – tudo, em cotejo dos contributos depoimentais sequenciais de SR, militar da GNR, em exercício de funções no Destacamento de Santiago do Cacém há cerca de 15 anos, R, representante legal da Sadocivil – empresa de trabalho temporário, Lda, F e M, representantes legais da Reboques da Mimosa, Lda, observando as respectivas posturas e sensibilidades.

Vale dizer que, no circunstancialismo de tempo apurado, a verdade material alcançada em audiência veio a estribar os seus justos limites na conclusão de que ocorreu efectiva afectação sequencial subtractiva dos espaços empresariais de “Reboques da Mimosa, Lda” e “Sadocivil – empresa de trabalho temporário, Lda”, por via do forçar da porta de um contentor, que é utilizado como escritório, e de entrada no armazém da primeira, seguido de corte da vedação e acesso aos espaços que servem como armazém de materiais e ferramentas de construção civil da segunda, incluso com quebra dos vidros de janelas, com sequente entrada no armazém e escritório da mesma.

Para tanto, na âncora da prova documental supra elencada, valeram particularmente os depoimentos de SR, o qual confirmou os termos da inspecção judiciária e conclusões adstritas ao sequencial da acção, de R, F e M, que personificaram descrições sintéticas acerca dos espaços empresarias das suas representadas, discernindo genericamente qualidade e quantidade de bens subtraídos - facto complementado pela valia da prova documental pré-constituída - vindo mesmo os dois últimos a não deixar de aludir a pretéritos e idênticos eventos subtractivos cronologicamente aferidos ao espaço de uma semana, seis meses e um ano antes.

Perante tal substracto probatório e permitindo os compassos do caso espécie cindir três ambiências de relevância criminal – a saber: i) afectação patrimonial de “Reboques da Mimosa, Lda”; ii) afectação patrimonial de “Sadocivil – empresa de trabalho temporário, Lda”; iii) condução do veículo automóvel de matrícula XL – dir-se-á, numa primeira conclusão fulcral, que somente ao primeiro dos momentos se afere a existência de um mero e hipotético laivo de conexão à pessoa do arguido: a existência de um vestígio lofoscópico encontrado numa garrafa de plástico de cor verde de sumo, colocada em cima do frigorífico no interior da oficina de “Reboques da Mimosa, Lda” (cfr. concretamente com fotografias n.ºs 2 a 4, de fls. 106 e 107 dos autos), consubstanciado na impressão palmar correspondente às regiões hipotenar e tenar (letra A – do exame pericial) e hipotenar (letra B – do exame pericial) da palma da mão esquerda do arguido, obtendo o vestígio B a valoração de 13 particularidades ou pontos característicos comuns entre o vestígio recolhido e o quirograma, sendo, como tal, a conclusão de pertença em certeza absoluta.

Por assim, ser, no relevo da razão de ciência de F, veio a apurar-se que tal garrafa de refrigerante integrara lista de compras efectuada de véspera e tendo em vista o celebrar do seu aniversário, no preciso dia 20 de Maio de 2012, garrafa que tal depoente não deixou de referir como encontrada espalhada no chão e já com conteúdo líquido a meio.

Perante tal, cumpre demandar se a vinculação do vestígio conectado à pessoa do arguido emerge, no caudal probatório, suficiente para permitir alcançar a conclusão de que o mesmo é o autor dos factos imputados.

Ora, como conclusão unânime às testemunhas inquiridas, a tipologia de actos sequenciais e extensão dos bens subtraídos convoca, desde logo, com ínfima probabilidade que a actuação intrusiva e subtractiva tenha meramente sido levada e efeito por apenas um indivíduo.

De tal âncora em diante, subsiste meramente, ainda que com afinco, que o vestígio lofoscópico aferido apenas permite concluir que a região palmar da mão esquerda do arguido esteve em contacto com a garrafa em referência, a qual se encontrava em local inacessível ao público.

Tal, porém, não dilucida em que circunstâncias – onde, quando, como e porquê – tal contacto ocorreu, sendo tão cabal a hipótese de o ter sido no espaço empresarial afectado, como no próprio estabelecimento comercial onde F. havia adquirido tal produto de véspera.

Na verdade, como se escreve no Ac. do STJ de 27-05-2010 [Relatado pelo Conselheiro Soares Ramos, Proc. nº 86/08.0GBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt3] “Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não forem proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova)».

Sucede que o âmago do caso espécie, face à inexistência de qualquer outro elemento de conexão à pessoa do arguido, centra-se no valor a atribuir à sua impressão digital, o que convoca o problema da valoração da prova dactiloscópica.

Importa deixar registado que há muito que a dactiloscopia portuguesa granjeou projecção nacional (o Posto Antropométrico da cidade do Porto foi o primeiro a incluir os registos dactiloscópicos nos boletins, remontando a 1902 o primeiro caso conhecido) e internacional (em 1904 o médico antropólogo Dr. Xavier da Silva realizou uma das primeiras identificações de cadáver por meio de impressões digitais - cfr. Nuno Luís Madureira, A Estatística do Corpo: Antropologia física e Antropometria na alvorada do século XX, in Etnográfica, vol. VII (2), 2003, págs. 283-303, também disponível in ghttp//ceas.iscte.pt/etnografia/docs/vol 07/Vol-vii-N2 283-304.pdf.

É consabido que a importância e transcendência deste método de identificação criminal radica na circunstância de as impressões digitais serem:

· Universais, porque comuns a todas as pessoas;

· Permanentes, porque são imutáveis desde que surgem no 4.º mês de vida intra-uterina só desaparecendo com a putrefacção cadavérica (existem, porém, referências científicas no sentido de o desenho das impressões palmares poder sofrer e revelar a interferência de determinados estados mórbidos, como sejam, para além da lepra, o erctema toxicum bullosum, a hiperhidrose, o queratoma palmar de eczema tyloticum, o noevus verucosum striatus, o raquitismo, o nanismo, aacromegalia, a hemiplagia, o panarício a radiomermite, a esclerodermia com esclerodactilia, a acrocefalia-sindactilia e a ectodactilia- cfr. Pinto da Costa, Impressões Digitais: contribuição para o seu estudo médico-legal, Porto, 1972, págs. 387 e 385);

· Singulares ou inconfundíveis, porque únicas: jamais são idênticas em dois indivíduos, não havendo, de resto, duas impressões digitais iguais feitas por dedos diferentes (nos finais do século XIX, mais concretamente na década de 1890, o cientista britânico Francis Galton demonstrou que a probabilidade de a impressão digital de um dedo de uma pessoa ser exactamente igual à impressão do mesmo dedo de outra pessoa era de um para sessenta e quatro mil milhões. Esta demonstração probabilística foi posteriormente popularizada em 1924, com a frase da autoria de J. A. Larson “não há duas impressões digitais iguais”);

· Indestrutíveis, porque não são modificáveis, nem pela acção do sujeito nem patologicamente; nessa medida, não podem ser falsificadas;

· Mensuráveis, porque susceptíveis de comparação.

A bibliografia sobre a prova dactiloscópica é quase inabarcável. Em português destacam-se os estudos dos médicos Rodolfo Xavier da Silva, Identificação de impressões digitais, Boletim do Instituto de Criminologia, Lisboa, série 4, ano 5, vol. 8-9 (1927-1928) págs. 421-438 e A impressão dos dedos, Boletim do Instituto de Criminologia, Lisboa, série 9, ano 12, vol. 16 (1º semestre 1932), págs. 77-106, de Luís de Pina, Dactiloscopia: Identificação Policial Científica, Lisboa, 1938, e de Pinto da Costa, Impressões Digitais: contribuição para o seu estudo médico-legal, Porto, 1972 e História da Dactiloscopia em Portugal, separata de O Médico, 1469 (1993), págs. 174-175. Na jurisprudência portuguesa, destaca-se o Ac. do STJ de 18-4-1996, proc.º 048908, rel. Cons.º Ferreira Rocha, in www.dgsi.pt. Na literatura jurídica estrangeira pode ver-se, v.g., Luís Alfredo de Diego Diez, La prueba dactiloscópica, Barcelona, 2001, Bosch, e Renaat de Veltere, La dactyloscopie, in Anne Leriche (dir.), La Criminalistique: du mythe à la realité quotidienne, Bruxelas, 2002, Kluwer, págs. 129-149.

Pode ainda aceder-se a vasta e actualizada documentação no sítio da Interpol (www.interpol.int/Public/Forensic/fingerprint).

Em função daquelas características das impressões digitais, o valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva:

a) A aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão. Devido à grande fiabilidade da prova dactiloscópica impõe-se, porém, especiais cuidados na sua recolha [quem efectuou a recolha e quando, por ordem de quem, em que objecto e lugar se encontrava depositada, e especificamente em que zona (vidro exterior ou interior) e na sua transmissão (não estando, naturalmente afastada a existência de erro do perito na comparação)].

b) Mas se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à pratica do crime ou meramente ocasional).

c) Embora não faça prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital pode ser encarado como um indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória (tripartição analítica exposta, por todos, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de Janeiro de 2010, proferido no âmbito do processo n.º 300/04.0GBBCL.G2, Juiz Desembargador Relator Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt).

Este tema do valor probatório da prova dactiloscópica, especialmente no âmbito da prova indiciária e no confronto com o princípio da presunção de inocência, tem merecido particular atenção na doutrina e jurisprudência espanhola a qual é unânime em considerar que o facto de a presença das impressões digitais do arguido no objecto furtado ou no local do furto não ter sido contraditada nem explicada pelo acusado ilide a presunção de inocência, justificando uma condenação (cfr., v.g., António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, 2ª ed., Pamplona, Aranzadi, 1996, págs. 171-174, Huertas Martin, El sujeto pasivo del proceso penal como objeto de la prueba, Barcelona, Bosch, 1999, págs. 224-231, Miguel Angel Montañes Pardo, La Presuncion de Inocência,Pamplona, Aranzadi, 1999, págs. 220-221 Javier Cajal Alonso, La Prueba Pericial, in Pedro Martin Garcia y otros, La prueba en el proceso penal, Valência, Revista General de Derecho, 2000, págs. 855-862, Luís Alfredo de Diego Diez, La prueba dactiloscópica, Barcelona, Bosch, 2001, págs. 39-53).

Também entre nós, ao contrário do que por vezes se pensa e se ouve a todo o tempo, de há muito que se aceita que a prova indiciária, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação (cfr., v.g., Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, reimp. Lisboa, 1981, págs. 288-295, Id., Curso de Processo Penal, 2º vol., Lisboa, 1986, págs. 207- 208, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa/ S. Paulo, 1993, vol. II, pág. 83, Sérgio Gonçalves Poças, Da Sentença Penal-Fundamentação de Facto, in Julgar, n.º3, Set-Dez. 2007, págs. 27-29 e 42-43, Acs. do S.T.J. de 8-1-1995, B.M.J. n.º 451, pág. 86 e de 12-9-2007, proc.º n.º 4588/07, rel. Cons.º Armindo Monteiro in www.dgsi.pt, Acs. da Rel. de Coimbra de 6-3-1996, Col. de Jur. ano XXI, tomo 2, pág. 44 e de 9-2-2000, Col. de Jur. ano XXV, tomo 1, pág. 51, de 11-5-2005, proc.º n.º 1056/05, rel. Oliveira Mendes, de 9-7-2008, proc.º n.º 501/01.3TAAGD, rel. Ribeiro Martins, in www.dgsi.pt, o Ac. da Rel. de Lisboa de 7-1-2009, proc.º n.º 10639/2008-3, rel. Carlos Almeida, os Acs da Rel. de Évora de 24-6-2008, proc.º n.º 437/08-1 e de 17-9-2009, proc.º n.º 524/05.3GAABF.E1, ambos relatados por João António Latas, o Ac. da Rel. do Porto de 28-1-2009, proc.º n.º 0846986, rel. Isabel Pais Martins, todos disponíveis na mesma base de dados, e os Acs da Rel. de Guimarães de 9-10-2006, proc.º n.º 2429/05-1, de 29-1-2007, proc.º n.º 2053/06-1, e de 25-6-2007, proc.º n.º 537/07-1, e 19-1-2009, proc.º n.º 2025/08, todos relatados pelo relator do presente, o último dos quais disponível in www.dgsi.pt).

Ponto é que os indícios sejam graves, precisos e concordantes, como se exprime o artigo 192.º, n.º 2, do Código de Processo Penal Italiano.

Segundo Paolo Tonini, são graves os indícios que são resistentes às objecções e que, portanto, têm uma elevada capacidade de persuasão; são precisos quando não são susceptíveis de diversas interpretações, desde que a circunstância indiciante esteja amplamente provada; são concordantes quando convergem todos para a mesma direcção (La prova penale, 4ª ed., Pádua, 2000, apud Eduardo Araújo da Silva, Crime Organizado-procedimento probatório, editora Atlas, São Paulo, 2003, pág. 157 – também citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de Janeiro de 2010, proferido no âmbito do processo n.º 300/04.0GBBCL.G2, Juiz Desembargador Relator Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt).

Como lapidarmente se consignou no citado Ac. do STJ de 12-9-2007, relatado pelo Sr. Cons.º Armindo Monteiro “A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo que reforcem o juízo de inferência”.

Ora, inexistindo dúvida que revestindo a prova dactiloscópica a natureza de prova pericial, o juízo técnico-científico inerente a tal perícia presume-se subtraído à livre apreciação do juiz, devendo a divergência (no caso inexistente) ser fundamentada (artigo 163º, n.1 e 2 do Código de Processo Penal).

Sucede que, no caso em análise, para além do vestígio referenciado, inexiste pura e simplesmente qualquer outro facto probatório índice que permita apontar directa ou sequer indirectamente à pessoa do arguido.

Isto é, embora tenha sido feita prova directa do contacto do arguido com a garrafa de sumo aludida, a qual se encontrava no interior do espaço empresarial da primeira das empresas ofendidas, não ocorre sequer daí que tal contacto tenha ocorrido precisamente em tal interior, podendo-o, como se adiantou, ter mesmo ocorrido em momento pretérito até na superfície comercial em que a representante legal da ofendida o havia adquirido (considerando que o foi de véspera e face ao consabido tempo sensivelmente de 72 horas de constância normal de vestígios lofoscópicos em materiais).

Como tal, no caso sub judice, queda curto o substracto probatório e, por via dele, o factual para sequer convocar lícitas ilações no sentido da prossecução do acusatório.

Rematando em apreciação, inexiste nos autos qualquer outro suporte indiciático grave, preciso e concordante com o vestígio palmar da mão esquerda do arguido encontrado numa mera garrafa de refrigerante adquirida em momento imediatamente antecedente, razão pela qual não só se erige dúvida incontornável de conexão da pessoa do arguido com a afectação do primeiro dos espaços empresariais, como mesmo se assume ser tal prova directa manifestamente insuficiente para alcançar a prova do concreto facto, daí, dado como não provado sob o inciso a).

De tal marco concludente em diante, escusado será concretizar que, por maioria de razão, outrossim, com respeito às duas subsequentes ambiências de relevância criminal – a saber: ii) afectação patrimonial de “Sadocivil – empresa de trabalho temporário, Lda”; e iii) condução do veículo automóvel de matrícula XL---, pura e simplesmente nem prova directa arreigada em vestígios de índole lofoscópica ou de qualquer outra ordem sequer se verificam, razão pela qual ressalta sedimentado o facto não provado em a) a par dos incisos que erigem os factos não provados de a) a e).

Termos em que, a jusante do transtorno causado particularmente às testemunhas que, em redobrado esforço de cidadania, se viram obrigadas a volver a esta instância para reproduzir as suas razões de ciência, a virtude da repetição da audiência de julgamento no caso espécie se arreiga única e exclusivamente na reiteração da conclusão de que este tribunal se encontra limitado e mesmo legalmente impedido de extrapolar conclusão no sentido da imputabilidade da acção global delineada pelo acusatório ao arguido, razão pela qual se impõe a sua respectiva absolvição.

C.II. Factualidade provada de 9. a 18.: atinente à situação pessoal e condição social e económica do arguido brotou da substância do conexo relatório social ínsito a fls. 565-568 dos autos.

C.III. Finalmente, quanto à existência de antecedentes criminais registados do arguido, conforme facto provado em 19., pontos i) a vii): relevou o seu próprio certificado de registo criminal actualizado e junto a fls. 557-564 dos autos.

O tribunal a quo procedeu à subsunção legal da factualidade supra mencionada da seguinte forma:

D. Questão decidenda – Seu recorte e limites à luz do acusatório.

Arreigada na matéria que consubstancia a factualidade provada, cumpre a este Tribunal Judicial apreciar normativamente da responsabilidade criminal do arguido, mormente procedendo à análise categorial das imputadas infracções criminais – exigências de imputação objectiva e subjectiva e de punibilidade.

E. Aspecto jurídico valorativo da prova e subsunção incriminadora.
Ao arguido vem imputada da prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, dos seguintes crimes:

i) dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, b), e n.º 2, e), e n.º 3, 202.º, d) e e), todos do Código Penal;

ii) um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo n.º 1 e 2 do art. 3.º do DL nº 2/98, de 03-01, por referência aos arts. 121º e ss, do Código da Estrada.

Sucede, porém, que face à ausência de prova relevante para erigir a tese acusatória, do que derivou a estabilização fáctica e contra-fáctica tal qual fixada nos limites catalogares da matéria provada e não provada, inexorável é concluir que se encontra afastada a integral verificação de todos os precisos elementos integradores dos tipos objectivos e, bem assim, subjectivos dos ilícitos em referência.

Destarte, e sem necessidade de mais considerações, inexorável é concluir pela absolvição do arguido.

Apreciando.

Poderes de cognição deste tribunal. Objecto dos recursos. Questões a examinar.

Tendo sido documentadas através de gravação áudio, as declarações prestados oralmente na audiência de julgamento, este tribunal, em princípio, conhece de facto e direito (arts.363º, 364º e 428º do CPP).

Sendo, o objecto dos recursos, como é uniformemente entendido pela jurisprudência, delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, a questão que delas emerge e que reclamam solução, sem prejuízo de outras que sejam de conhecimento oficioso, consistem em saber:

1º. Se ocorre o erro de julgamento apontado pelo recorrente e se a matéria de facto deve ser modificada nos termos por si preconizados e consequentemente o arguido ser condenado pela prática dos crimes de furto ou de algum deles de que foi acusado e posteriormente submetido ao julgamento; e

2º. Se a sentença recorrida sofre do vício que o recorrente lhe atribui – erro notório na apreciação da prova – art.410º, nº2, al.c), do CPP ou de algum dos outros vícios enunciados nas alíneas a) e b) do citado preceito legal.

Examinemos pela ordem indicada as questões acabadas de enunciar.

1º. Do alegado erro de julgamento.
Liminarmente impõe-se esclarecer o seguinte:

Resulta com toda a clareza e nitidez que o recurso foi interposto mas apenas no que concerne unicamente à absolvição do arguido da prática dos dois crimes de furto pelos quais foi acusado e submetido a julgamento e já não no que respeita à sua absolvição pela prática do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, pois relativamente a esta o Ministério Público conformou-se.

Assim, é patente e manifesto que a menção feita na peça recursiva quanto aos factos que no entender do recorrente devem ser dados como provados, à alínea a) dos factos dados como não provados e ao ponto 8 dos factos dados como provados, deve entender-se excluído a referência a ter sido o arguido o condutor do veículo, pois relativamente ao crime de condução sem habilitação legal o MºPº não recorreu conformando-se nessa parte com a absolvição do arguido.

Fechado este parêntesis é altura de avançarmos, conhecendo do objecto do recurso.

Alega o recorrente que o tribunal “ a quo” avaliou incorrectamente a prova, pois entende que da conjugação e concatenação da prova produzida e examinada na audiência de julgamento deve ser dado como provado que o arguido foi autor dos dois furtos consubstanciados pelos factos descritos sob os pontos 1 a 8 da materialidade apurada, pelo que os factos dados como não provados sob as alíneas a), c) e e) devem transitar para os factos provados e consequentemente aquele ser condenado pela autoria desses dois crimes de furto.

Vejamos.
Como é sabido o recurso da matéria de facto pode ser efectuado por duas vias.

Uma através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do disposto no art.412º, nº3 e 4, do CPP e outra através da invocação os vícios enunciados no nº2 do art.410º, do CPP, onde se inclui o erro notório na apreciação da matéria de facto, que constituem uma forma restrita de impugnação da matéria de facto. São institutos distintos e como tal não devem ser confundidas, como parece acontecer com o recorrente, como mais à frente veremos.

Trata-se efectivamente de duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.

Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova e os outros vícios enunciados na mencionada norma, constituem um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP.

Vamos primeiramente ocuparmo-nos do alegado erro de julgamento, através da impugnação ampla da matéria de facto invocada pelo recorrente.

Como é sabido existe erro de julgamento quando o tribunal dá como “provado” certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ter sido considerado “não provado”, ou então, o contrário.

Ora, os factos que interessam ao julgamento da causa são de ordinário ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais. A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça.

A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág 434].

A verdade em direito é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directamente ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.

É certo que dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados.

Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa. A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas.

Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define.

No caso de que aqui nos ocupamos como decorre da fundamentação do acórdão recorrido que atrás transcrevemos, ao contrário do que afirma o recorrente, e como veremos mais à frente de forma mais detalhada, o tribunal avaliou crítica e criteriosamente toda a prova produzida e examinada na audiência de julgamento, nomeadamente, os depoimentos das testemunhas ouvidas nessa sede e toda a prova documental junta aos autos, nomeadamente o aditamento ao auto de notícia, auto de apreensão e o exame pericial de identificação lofoscópica e respectivo relatório e tudo ponderando de forma conjugada e concatenada, para o que aqui releva, deu como provado os factos integradores dos dois crimes de furto em causa, descritos na acusação, designadamente no que concerne às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram e aos bens subtraídos, excluindo apenas que o arguido tivesse sido o seu autor ou tivesse participado nesses factos.

E é relativamente à imputação ao arguido da prática desses factos ou à sua participação neles que reside a divergência entre o tribunal “ a quo” e o Ministério Público, aqui recorrente.

Enquanto para o tribunal “a quo” a globalidade da prova produzida e examinada na audiência é insuficiente para poder ser assacado ao arguido a autoria ou a sua participação nos furtos em causa, por sua vez o MºPº entende que essa prova é suficiente para se poder atribuir ao arguido a sua participação e autoria nesses factos delituosos.

Vejamos.

Comecemos por analisar o evento relativo ao furto praticado nas instalações de “Reboques da Mimosa, Ldª”, pois que da imputação da sua autoria ao arguido, na versão do recorrente/MºPº, depende a imputação do crime de furto perpetrado de seguida nas instalações da empresa “Sadocivil”.

Como expresso com todo o acerto no acórdão recorrido, da conjugação e concatenação de toda a prova produzida e examinada na audiência de julgamento, dela resulta apenas no que concerne ao primeiro «um mero e hipotético laivo de conexão à pessoa do arguido: a existência de um vestígio lofoscópico encontrado numa garrafa de plástico de cor verde de sumo, colocada em cima do frigorífico no interior da oficina de “Reboques da Mimosa, Lda” (cfr. concretamente com fotografias n.ºs 2 a 4, de fls. 106 e 107 dos autos), consubstanciado na impressão palmar correspondente às regiões hipotenar e tenar (letra A – do exame pericial) e hipotenar (letra B – do exame pericial) da palma da mão esquerda do arguido, obtendo o vestígio B a valoração de 13 particularidades ou pontos característicos comuns entre o vestígio recolhido e o quirograma, sendo, como tal, a conclusão de pertença em certeza absoluta».

Ainda com relevância nesta matéria o tribunal” a quo” atentou no depoimento da testemunha F, apurando-se que «tal garrafa de refrigerante integrara lista de compras efectuada de véspera e tendo em vista o celebrar do seu aniversário, no preciso dia 20 de Maio de 2012, garrafa que tal depoente não deixou de referir como encontrada espalhada no chão e já com conteúdo líquido a meio e que (…) a dita garrafa se encontrava em local inacessível ao público».

É inquestionável que a prova lofoscópica realizada pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária tem natureza de prova pericial, pelo que juízo técnico-científico inerente a tal perícia presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, devendo a divergência ser fundamentada (Cfr.arts.151º e 163º, n.1 e 2 do Código de Processo Penal).

No caso de que aqui nos ocupamos, ao contrário do que afirma o recorrente, o tribunal “ a quo” da avaliação que fez não emerge qualquer valoração que divirja ou belisque o juízo técnico-científico formulado pela entidade que procedeu à inspecção, recolha dos vestígios e exame pericial de identificação lofoscópico em causa.

Com efeito, como bem é explicitado no acórdão recorrido, com recurso à obra e autores nele citados a identificação lofoscópica assenta na circunstância das impressões digitais assumirem as características seguintes:

· Universais, porque comuns a todas as pessoas;

· Permanentes, porque são imutáveis desde que surgem no 4.º mês de vida intra-uterina só desaparecendo com a putrefacção cadavérica (…);

· Singulares ou inconfundíveis, porque únicas: jamais são idênticas em dois indivíduos, não havendo, de resto, duas impressões digitais iguais feitas por dedos diferentes (…);

· Indestrutíveis, porque não são modificáveis, nem pela acção do sujeito nem patologicamente; nessa medida, não podem ser falsificadas; e

· Mensuráveis, porque susceptíveis de comparação.

A impressão digital não faz prova directa da participação do arguido no facto criminoso, devendo ser encarada apenas como indício que deverá ser conjugado com outros elementos de prova, pelo que aquela por si só, não faz prova dessa participação.

E com toda a propriedade, acrescenta o tribunal recorrido que em função destas características da impressão digital, em abstracto o valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva:

a) A aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão (…).

b) Mas se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à pratica do crime ou meramente ocasional).

c) Embora não faça prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital pode ser encarado como um indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória.

No caso concreto, como é dito no acórdão sob censura, e que merece a nossa adesão, pese embora tenha sido feita prova directa do contacto do arguido com a aludida garrafa de refrigerante, que se encontrava no interior das instalações da empresa “Reboques Mimosa, Ldª”, em local não livremente acessível ao público, daí não decorre necessariamente sequer que tal contacto tenha ocorrido precisamente em tal local, podendo mesmo ter ocorrido em momento pretérito até na superfície comercial em que a representante legal da empresa o havia adquirido (considerando que o foi de véspera e face ao consabido tempo sensivelmente de 72 horas de constância normal de vestígios lofoscópicos em materiais).

No âmbito da prova indirecta, como é aqui o caso, como muito bem é salientado no acórdão desta Relação de 24-10-2017, proc.nº500/15.8GDPTM.E1, relatado pelo Senhor Desembargador António Latas, disponível em www.dgsi.pt «a certeza sobre os factos indirectos ou instrumentais é essencial para a validade das inferências lógicas neles assentes. Deduções retiradas de factos de ocorrência duvidosa não podem conduzir à certeza processualmente exigível à luz dos princípios da culpa e da presunção de inocência, aqui incluindo o princípio in dubio pro reo».

Como temos afirmado noutras ocasiões a propósito deste tema, este elemento, apesar de não fazerem prova directa da participação do arguido nesse facto, têm porém o valor de indício, isto é, de circunstância a partir da qual se pode, em determinadas condições, fundar a consistência de um facto desconhecido. Esta prova indiciária conjuga a prova directa (sobre os factos indiciários) e as presunções na reconstrução do facto histórico em discussão e constrói-se a partir de dois elementos:

- O indício, facto instrumental provado, o qual deve ter a capacidade de revelar outro facto com o qual está relacionado; tem que estar demonstrado a partir da prova directa e exige-se uma pluralidade de indícios (independentes), para diminuir a possibilidade do acaso; devem também ser concordantes, convergindo para a mesma conclusão, e esta deve ser imediata (sem deduções intermédias);

- A presunção (ou silogismo), uma inferência efectuada a partir do indício, apoiada na experiência ou em regras da ciência, permitindo suportar um facto distinto. Importa ainda que esta inferência ou conclusão seja manifesta ou segura, excluindo a possibilidade de os factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam os indícios probatórios colhidos. Neste sentido, os indícios devem ser ainda inequívocos pois só assim suportam com segurança a presunção[1].

Conforme se escreveu no Acórdão do S.T.J., de 12.09.2007, disponível em www.dgsi.pt, citando PRIETO CASTRO Y FERNANDIZ E GUTIERREZ DE CABIEDES, Derecho Penal, vol. II, pág. 252, “nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere impunidade”.

A prova directa distingue-se da prova indirecta e a sua vinculação com o raciocínio indutivo. Logicamente que o pronunciamento sobre a valoração do indício e do raciocínio indutivo é uma mistura de controle sobre a valoração da prova (o indício) e de controle sobre o raciocínio contido na decisão (indução) pois aquilo que se trata é de se determinar se o indício é suficientemente forte e também se o mesmo permite concluir, por indução, pela existência de um facto. Aqui não está em causa a aplicação da imediação mas uma mistura da aplicação de critérios de verosimilhança e critérios lógicos.

É, assim, clássica a distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária. Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, a partir de deduções e induções objectiváveis e com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar[2].

Entende o Dr. EUCLIDES DÂMASO SIMÕES[3] que o uso de prova indirecta implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova directa, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência).

Seguindo autores espanhóis e alguma jurisprudência nacional dos nossos tribunais[4], podemos afirmar que a utilização deste tipo de provas exige:

(i) em primeiro lugar e em regra, uma pluralidade de elementos indiciários;

(ii) em segundo lugar, que tais elementos sejam concordantes; e,

(iii) em terceiro lugar, que tais indícios sejam inequívocos, ou seja, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, que tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios.

Ora, os elementos probatórios aludidos, autónoma e directamente comprovados, não constituem justamente indícios plurais, concorrendo articuladamente para uma solução única e que surge como a única que os factos-indícios, de forma segura, autorizam.

Inexistindo, no caso em apreciação, qualquer outro facto probatório indiciário para além daqueles que aponte na direcção da participação do arguido nos factos perpetrados nas instalações dessa empresa (intrusão e subtracção), ou que com estes se possam relacionar, o vestígio palmar da mão esquerda do arguido encontrado na mencionada garrafa se refrigerante, que havia sido deixado na véspera em local não livremente acessível ao público é manifestamente insuficiente para se lhe poder atribuir com a certeza processualmente exigível na fase de julgamento a autoria de tais factos ou a sua participação neles.

Deles apenas emerge uma probabilidade do arguido poder ter tido participação neles, insuficiente para lhe poder ser assacada responsabilidade penal pela sua prática.

Por outro lado, ao contrário do que alega o recorrente, salvo o devido respeito, a circunstância do arguido não ter fornecido qualquer explicação alternativa para a existência do vestígio palmar encontrado na mencionada garrafa de refrigerante, tendo optado em julgamento por manter em silêncio, não autoriza nem legitima que daí se extraia validamente qualquer ilação desfavorável, como por aquele vem preconizado.

Na verdade, o disposto no artigo 343.º n.º 1, do CPP proíbe expressamente que o juiz atribua ao silêncio do arguido qualquer significado probatório desfavorável para o estabelecimento da culpabilidade.

O uso do direito ao silêncio consagrado em tal preceito proíbe o aproveitamento contra si da sua não explicação da existência daquele vestígio palmar.

Acresce que ao contrário do que alega o recorrente, no processo penal não há ónus da prova, vigorando o princípio da investigação, também designado de princípio da verdade material, pelo que carece de fundamento legal a afirmação de que cabia ao arguido infirmar os indícios que sobre si impendiam.

Com efeito, como afirma o Prof. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", II Vol., p. 110, a questão do ónus da prova não tem relevância em processo penal, pois a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo).

Um sistema de ónus da prova implica uma repartição do encargo da prova entre a acusação e a defesa, mas o ponto essencial não é tanto quem deve provar cada um dos factos, mas quais as consequências da falta de prova dos mesmos. Se os factos resultam provados pouco importa quem desenvolveu a actividade probatória, o importante é a situação de certeza. É hoje pacífico na doutrina que não existe um ónus da prova em sentido formal ou de alegação, isto é, não existe um encargo de produzir prova por parte da acusação ou da defesa, não tendo as partes o dever de produzir as provas necessárias a escorar as suas afirmações de facto, sob pena de não verem os factos respectivos serem tidos como provados. Neste sentido, vide F. Dias in "Direito Processual", Vol I, Coimbra, 1974, p. 212.

É também esse o entendimento que julgamos pacífico da jurisprudência, podendo ver-se, entre outros, os arestos do STJ de 6/1/1982, BMJ n° 313, p. 173, acórdão do STJ de 15/12/1982, BMJ n° 322, p. 282, Acórdão do STJ de 23/4/1986, BMJ n° 356, p.144 e Acórdão de 23-06-1999, proc.nº650/98 – 3.ª; SASTJ, nº32, 87.

Assim, com o devido respeito, entendemos que falece razão ao recorrente, não permitindo a prova produzida e examinada na audiência de julgamento, a imputação ao arguido da autoria do crime de furto perpetrado nas instalações de “Reboques da Mimosa, Ldª”.

Sobre a autoria do furto perpetrado na “Sadocivil” a tese do recorrente estava dependente de ter sido o arguido a praticar o furto nas instalações de “Reboques da Mimosa, Ldª”, facto este não demonstrado, concluindo daí que só poderia ter sido ele também a cometer o furto na “Sadocivil”, dado a coincidência de ambos terem ocorrido na mesma noite e a dinâmica dos factos e a circunstância da viatura furtada ter saído pelas instalações desta.

Ora, não se tendo provado a participação do arguido naquele e sendo insofismável que nenhuma prova directa ou indirecta foi produzida e examinada em audiência de julgamento sobre a autoria deste, também não pode ser imputado ao arguido qualquer intervenção/participação nos factos criminosos praticados nas instalações da “Sadocivil”.

No caso em apreciação, afigura-se-nos não merecer censura o processo de formação da convicção do tribunal recorrido, que se encontra devidamente explicado no respectivo acórdão, onde se encontra também indicado o raciocínio lógico-dedutivo que, após análise crítica da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, relativamente aos factos impugnados o levou a concluir pela sua não prova.

Assim, e salvo o devido e merecido respeito pela opinião do recorrente, não merece reparo a convicção alcançada pelo tribunal recorrido, no que concerne à matéria de facto impugnada, pois inexiste prova que minimamente permita criar no espírito do tribunal (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa sobre a imputação da autoria desses factos ao arguido, sendo que subsistindo alguma dúvida intransponível, sempre essa dúvida deve beneficiar a arguido, dado o principio “in dubio pro reo”.

De tudo o exposto, entendemos que não assiste razão ao recorrente, não merecendo reparo a convicção alcançada pelo tribunal recorrido, relativamente à matéria impugnada aqui em causa.

Improcede, pois, a modificação da matéria de facto peticionada pelo recorrente/MºPº.

2º. Do alegado erro notório na apreciação da prova.
Conforme resulta do estatuído no nº2 do art.410º, do CPP, os vício previstos nas alíneas a), b) e c), têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.

Trata-se de vícios intrínsecos da decisão, não sendo lícito afirmar-se a sua existência recorrendo a elementos que lhe sejam exteriores, designadamente de depoimentos e declarações prestados, quer durante o inquérito, instrução, quer até na audiência de julgamento.

O erro notório na apreciação da prova [atr.410º, nº2, al.c) do CPP] como vício relevante em processo penal, é segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

O vício de erro notório na apreciação da prova, só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

O erro tem assim de aferir-se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (sem recurso, por exemplo, a declarações ou depoimentos prestados durante o inquérito, instrução ou julgamento), tendo ainda que resultar desse texto de forma tão patente que não escape à observação do homem de formação média.

«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).

É que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325), o que no caso concreto não se verifica.

Se bem interpretamos a peça recursiva, a invocação deste vício radica nos mesmos fundamentos em que a recorrente pretendeu alicerçar a impugnação ampla da matéria de facto, isto é, na valoração da prova feita pelo tribunal recorrido e na valoração oposta que dela faz o recorrente, relativamente a determinados factos, alegação essa que nada tem a ver com este vício, na medida em que faz apelo a elementos alheios ao texto do acórdão recorrido, como são alguns depoimentos prestadas em julgamento.

Ora, como acima dissemos, o erro de julgamento e o erro notório na apreciação da prova são institutos distintos e como tal não devem ser confundidas, como parece acontecer com os recorrentes.

Trata-se de duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.

Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova, constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP.

O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do recorrente.

A este respeito, como é salientado pelo STJ «Se existe mera discordância do recorrente entre aquilo que o colectivo teve como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida, ou o contrário, não se verifica qualquer dos vícios indicados no art. 410º- 2 a) e c), do CPP.» (Ac. de 19.3.98, no BMJ 475-261).

Em bom rigor, o que a recorrente com esta invocação pretendeu por em causa foi a apreciação que o Tribunal “a quo” fez de alguns meios de prova, que na sua perspectiva não avaliou devidamente.

Não se verifica , pois, qualquer erro e muito menos ostensivo, grosseiro ou notório na apreciação da prova, sendo que a decisão, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si segundo um raciocínio lógico e coerente e de acordo com as regras da experiência comum, pelo que não padece de tal vício.

Em bom rigor, repete-se uma vez mais, o recorrente não aduz mais do que uma divergência quanto à avaliação feita pelo Tribunal recorrido de alguns meios de prova, divergência que não tem qualquer relevo nesta sede.

É, pois, indubitável que a sentença recorrida não padece deste vício.

Também não vem alegado, nem vislumbramos que o acórdão impugnado enferme dos outros vícios previstos nas als.a) e b) do nº2 do art.410º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Como também não foi feito uso de provas proibidas e não enfermando a sentença recorrida de algum dos vícios enunciados nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º do CPP, improcede o pedido de reenvio do processo para novo julgamento, tendo-se por definitiva a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª Instância.

Assim, não vingando a modificação da matéria de facto pretendida pelo recorrente, improcede necessariamente a condenação do arguido, pela prática como autor dos crimes de furto que lhe foram imputados na acusação.

Condenação essa que, aliás, vinha ancorada na modificação da matéria de facto nos termos por si preconizados, pelo que não obtendo êxito quanto a esta, aquela pretensão tem também necessariamente de improceder.

Estando assim, definitivamente estabilizada a matéria de facto descrita no acórdão recorrido, em face dela improcede a condenação do arguido pela prática dos crimes de furto de que fora acusado.

Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra o acórdão recorrido, que não afronta nem posterga nenhum dos princípios e normas invocadas pelo recorrente.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos nega-se provimento ao recurso, mantendo-se integralmente o douto acórdão recorrido.

Sem custas por delas estar isento o Recorrente/Ministério Público (art.522º, do CPP).

Évora, 10 de Abril de 2018.

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Gilberto Cunha

João Martinho de Sousa Cardoso
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[1] sobre esta prova indiciária, v. j. gaspar, titularidade da investigação criminal e posição jurídica do arguido, especialmente in rmp 88, out./dez. 2001, especialmente págs. 102 e ss., m. miranda estrampes, la mínima actividade probatoria en el proceso penal, j. m. bosch editor, 1997, págs. 231 a 249, ou a. martinez arrieta, la prueba indiciaria, in la prueba en el proceso penal, centro de estudos judiciales, vol. 12, marid 1993, pág. 53 e ss.

[2] cfr. germano marques da silva, curso de processo penal, 3.ª ed., vol. ii, pág. 99.

[3] vide prova indiciária, revista julgar, n.º 2, 2007, pág. 205.

[4] vide, entre outros, j.m asencio melado, presunción de inocência y prueba indiciária, 1992, m. miranda estrampes, la mínima actividad probatória en el proceso penal, j.m. bosh editor, 1997, págs. 231 a 249 os acs. do supremo tribunal de justiça de 24.03.2004, 12.09.2007, 19.12.2007 e 12.03.2009, da relação de coimbra de 28.04.2009 e da relação do porto de 07.11.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt.