Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO FERREIRA | ||
Descritores: | AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA USUCAPIÃO CASO JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 05/11/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Quem aceita que um bem imóvel faz parte da herança doutrem e acata a sua partilha judicial, não pode depois vir invocar a sua aquisição originária, por usucapião, contra o adquirente do mesmo nessa partilha. | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 442/16.0T8FAR.E1 (2ª Secção Cível) ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA Na Comarca de Faro (Faro - Instância Central – 1ª Secção Cível – J2), (…) intentou contra (…) – Engenharia e Construção, Lda., ação declarativa constitutiva com forma de processo comum pretendendo que se reconheça ao autor o direito de propriedade do prédio misto identificado nos autos, adquirido por usucapião, registado em nome da ré. Fundamenta a sua pretensão no facto de, apesar da ré ter adquirido o imóvel por compra no âmbito de um processo de inventário em que o ora autor era interessado, este não conseguiu de forma adequada defender os seus direitos na medida em que há mais de 30 anos que usa o prédio misto em causa nos autos como seu proprietário, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pelo que o adquiriu por usucapião. Citada, a ré veio contestar, invocando que o ora autor interveio no inventário onde a ré adquiriu o prédio misto em causa por propostas em carta fechada na sequência do imóvel ter sido adjudicado ao autor mas ter sido determinada a sua venda judicial para pagamento das tornas devidas aos demais interessados, pelo que ele bem sabe que não era proprietário do mesmo, impugnando toda a factualidade relativa à utilização do imóvel como seu dono, resultando essa utilização de mera tolerância dos inventariados. Dispensada audiência prévia e cumprido o contraditório veio a ser, na fase do saneador, proferida sentença pela qual se julgou improcedente a ação e se absolveu a ré do pedido. + O autor, inconformado interpôs o presente recurso de apelação, terminando por formular as seguintes conclusões, que se passam a transcrever:“1.ª Considerando que: i) A Ré nos autos de inventário, foi simplesmente interveniente acidental; ii) Os autos de inventário encontram-se em curso e ainda pendentes; iii) Não há nem houve qualquer sentença a reconhecer o direito de propriedade do bem à Ré mas simplesmente o termo de adjudicação do bem que constitui um pressuposto processual na venda de bens, e que prefigura um incidente processual nos termos do disposto no nº. 2 do artigo 91º, do C.P.C. iv) No caso vertente não ocorre nenhum dos pressupostos legais a que se refere o artigo 581.º do CPC, para que se possa argumentar com o trânsito em julgado material de decisão que não existe ou bem assim com a força do caso julgado inexistente porquanto, tal como se referiu, o nº. 2 da norma processual citada afasta o caso julgado FORA DO RESPECTIVO PROCESSO. 2.ª Tal como acima se referiu, o autor tem o direito subjetivo que exerce na ação, a qual sendo reconhecido, implica para a Ré, como consequência jurídica, a anulação do ato de venda, conforme dispõe o art.º 838.º e 839.º do CPC e nada mais do que isso. 3.ª A questão do abuso de direito é ilegal por constituir uma decisão surpresa e que por isso se entende ser nula. A que acresce o facto de que o autor se limita a exercer um direito subjetivo e que tal facto não constitui qualquer abuso. 4.ª No entendimento dos AA, a decisão de que se recorre, violou as seguintes normas: a) Do Código Civil. - Artigo 9º, ao não ter interpretado as normas substantivas e processuais de modo adequado em face das regras da hermenêutica jurídica e 344.º a contrário visto que, do comportamento dos autores, não resulta nenhuma factualidade típica subsumível em tal conduta abusiva. b) Do CPC. - Artigo 91º, nº.2 ,615º, nº.1 alínea “d” e 607.º, n.º 3 e 6 na medida em que não conseguiu julgar os factos dos autos nem subsumir tais factos às normas Jurídicas adequadas facto esse que teria de se ver refletido na decisão de mérito que não serve assim a realização da justiça. c) Da CRP - Artigo 2.º e 20.º, na medida em que deixou sem tutela jurídica efetiva o direito dos recorrentes ante a factualidade provada.” A ré apresentou alegações defendendo a improcedência do recurso. Cumpre apreciar e decidir O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso. Tendo por alicerce as conclusões, são as seguintes as questões que importa apreciar: 1ª - Da nulidade da sentença; 2ª - Da existência de autoridade de caso julgado. + Com relevância para decisão foram considerados provados os seguintes factos:1) A Ré (…) – Engenharia e Construção, Lda., tem inscrito a seu favor, pela Ap. (…) de 16-04-2014, a aquisição por arrematação em propostas em carta fechada no âmbito do processo n.º 139/2000 (atual n.º 530/14.7T8FAR), o prédio misto sito em (…), freguesia de (…), concelho de Faro, composto por terra de cultura e mato com alfarrobeiras e amendoeiras e casa de morada com um pavimento e várias divisões, acessórios e logradouro, com a área de 29.560 m2, sendo 75 m2 de área coberta, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e na matriz rústica sob o artigo (…) da Secção Z da referida freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º …/19980331 (artigos 6º e 7º da petição inicial). 2) O prédio referido em 1) foi adjudicado, por acordo dos interessados, ao ora Autor (…) no âmbito do inventário n.º 530/14.7T8FAR (antigo n.º 139/2000), na qualidade de herdeiro e interessado em virtude de ser filho dos inventariados, onde tal imóvel foi relacionado como bem dos inventariados, falecidos em 14-09-1993 e 17-02-1999, tendo posteriormente sido determinada a venda judicial do referido prédio em virtude do ora Autor não ter pago as tornas devidas aos demais interessado no inventário, tendo a sentença homologatória da partilha transitado em julgado em 2 de Setembro de 2014 (artigos 10º a 15º da contestação). 3) A presente ação foi intentada em 18 de Fevereiro de 2016. Conhecendo da 1ª questão O recorrente invocou a nulidade da decisão sob censura nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 615º, do CPC, por o juiz conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento (quanto ao abuso de direito). A alínea d) deste normativo comina a sentença de nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. No tribunal recorrido foi proferido despacho, em cumprimento do artº 617º, nº 1, do CPC, que desatendeu a arguição de tal nulidade. Há que dizer que carece de razão o recorrente, pois na decisão não se conheceu do “abuso de direito”, apenas se reforçou a ideia de que se não se verificasse a figura de autoridade de caso julgado, sempre se poderia verificar uma situação de abuso de direito. Improcede, assim a invocada nulidade. Conhecendo da 2ª questão Para apreciarmos a questão colocada importa considerar os factos, provados nos nºs 1, 2 e 3, os quais não foram impugnados, bem como a certidão junta aos autos do processo de inventário. Expendeu-se na sentença que “Por violação da autoridade do caso julgado, não pode a presente ação vir a ser julgada procedente, na medida em que há uma decisão anterior que reconhece que o Autor até 1999 não poderia ser o proprietário, ainda que sem título do imóvel em causa nos autos, por a propriedade plena do mesmo pertencer aos seus pais, o que até já foi reconhecido pelo próprio Autor. Tem que se respeitar o decidido no inventário nº 530/14.7T8FAR (antigo nº 139/2000) por decisão transitada em julgado, decisão que se impõe nestes autos, não podendo o Autor vir invocar que exercia a propriedade do prédio antes da morte dos pais de forma a obter os efeitos da aquisição por usucapião previsto nos artigos 1287º e seguintes do Código Civil quando nesse processo foi decidido que esse bem fazia parte da herança indivisa deixada pelos seus pais, tendo um deles falecido em 1999, tendo-lhe sido inclusivamente tal bem adjudicado e tendo acordado pagar tornas aos demais herdeiros, o que não fez, motivo pelo qual o bem cuja propriedade havia adquirido, foi vendido à Ré como forma dos demais herdeiros obterem o pagamento dessas tornas.” Vejamos. Dispõe o artº 619º, nº 1, do CPC que “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artºs 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artºs 696º a 702º”. Por sua vez preceitua o artº 621º do mesmo diploma que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (….)” Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada e julgado (artº 628º do CPC) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial. O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artº 580º, nºs 1 e 2, do CPC). A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Na verdade, “pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que, “autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. Ora, o caso julgado vale também como autoridade, de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em ação posterior. Como referem Manuel Andrade (v. Noções Elementares de Processo Civil, p. 320, 321), Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 384) e Miguel Teixeira de Sousa (v. O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 171 e sgts), o caso julgado não tem por que valer apenas como exceção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em ação posterior. Como salienta Manuel Andrade (obra citada), a definição dada pela sentença à situação ou relação material que estiver sub judice deve ser respeitada para todos os efeitos em qualquer novo processo, tendo este novo processo de ter por assente que a mesma situação ou relação subsistia (a esse tempo) tal como a sentença a definiu. A autoridade de caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artº 581º, do CPC, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida. A autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado corretamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça. (v. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 93. Diz-se no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/05/2010 (proc nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1, www.dgsi.pt), a análise do caso julgado pode ser perspetivada através de duas vertentes, que em nada se confundem: uma delas reporta-se à exceção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; a outra vertente reporta-se à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão”. Segundo Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, páginas 60 e 61 “enquanto que a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a exceção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”. A fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais encontra-se adequadamente traçada no Ac. da Relação de Coimbra de 28/09/2010 (proc. 392/09.6 TBCVL.C1, in www.dgsi.pt), na parte do sumário que se transcreve de seguida: “A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 581º, do CPC”. No caso dos autos, a sentença homologatória da partilha do prédio em questão nos presentes autos, transitou em julgado em 02/09/2014. Atentemos agora no que o recorrente veio argumentar na presente ação: que pretende ver reconhecido o seu alegado direito de propriedade sobre o prédio misto (objeto dos presentes autos, que foi partilhado no processo de inventário), por o ter adquirido por usucapião, prédio esse onde residiu com os seus pais, que assumiram o prédio como seu, embora os pais não lhe tenham feito qualquer doação ou testamento, que se comportou como proprietário do mesmo nele fazendo sementeiras e plantado arvores; que há cerca de 30 anos que os pais lhe permitiram que fizesse uma construção onde vive com a mulher e filhos. Sucede porém, conforme se verifica do inventário nº 530/14.7T8FAR (antigo 139/2000) que correu termos pelo Tribunal de Faro e cuja certidão se encontra junta a folhas 60 a 78, logo após o falecimento dos pais do recorrente, os seus irmãos requereram inventário para partilha dos bens por eles deixados, onde se inclui o prédio misto agora em causa. Nesse processo de inventário, o recorrente foi citado tendo recebido a relação de bens, não tendo reclamado da mesma, aceitando que tal prédio fazia parte da herança deixada pelos seus pais. Nesse processo nunca o recorrente se manifestou contra a partilha do prédio misto em causa, nem nunca se arrogou proprietário do mesmo. Esse processo de inventário seguiu os seus trâmites legais, tendo na conferência de interessados, realizada no dia 13/06/2005, (onde se encontrava presente o ora recorrente, acompanhado de mandatário), os interessados chegado a acordo, onde fizeram constar que os bens constantes na relação de bens junta a folhas 16 e 17 eram adjudicados ao interessado … (ora recorrente), pagando a título de tornas aos outros sete interessados a quantia de 44.000.000$00 (quarenta e quatro milhões de escudos) a que corresponde € 220.000 (duzentos e vinte mil euros). Pelos interessados foi referido que não prescindiam reciprocamente de tornas. Como o ora recorrente não depositou o valor das tornas devidas, os interessados requereram ao tribunal a venda dos bens adjudicados, o que foi deferido por despacho de 21/06/2007. Tendo-se procedido à venda por proposta em carta fechada em 20/10/2009. Temos, assim, pois que o recorrente nunca se apresentou como proprietário do prédio em causa perante os seus irmãos, tendo aceitado que tal bem fazia parte da herança dos seus pais. A partilha, na qual o prédio em causa foi julgado como bem da herança, foi devidamente homologada por sentença, há muito transitada em julgado. Assim sendo, não pode o recorrente querer reeditar, direta ou indiretamente, o assunto, justamente porque a tanto se opõe a autoridade do caso julgado material formado na anterior ação. O que o recorrente está a fazer na presente ação é querer discutir a sua suposta propriedade sobre um prédio, que nunca lhe pertenceu, mas que era um bem da herança deixada pelos seus pais, pertença de todos os seus irmãos. A sentença que homologou a partilha dos bens entre o recorrente e os seus irmãos, também interessados no inventário, faz caso julgado entre o recorrente e os demais interessados relativamente ao facto de os bens partilhados fazerem parte da herança deixado por óbito dos pais do recorrente e dos demais interessados no inventário. Ora, o reconhecimento por sentença transitada em julgado que homologou a dita partilha de que o prédio em causa foi partilhado por pertencer à herança deixada pelos pais do recorrente, é incompatível com o alegado direito de propriedade do recorrente sobre o prédio em causa, em momento anterior à adjudicação que teve lugar no âmbito do inventário Bem andou a Mmª Julgadora na apreciação que fez do valor para o recorrente da decisão proferida no processo de inventário em que o mesmo foi interessado, caso contrário seria violar a autoridade de caso julgado da sentença anteriormente proferida. Em consequência, improcede, também esta questão suscitada pelo recorrente. Deste modo, entendemos que a sentença recorrida fez uma correta aplicação do direito aos factos provados, não merecendo reparo, sendo por isso de confirmar e, em consequência irrelevam as conclusões formuladas pelo recorrente, não se mostrando violadas as normas cuja violação foi invocada. DECISÃO Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida. Custas pelo apelante. Évora, 11-05-2017 Maria da Conceição Ferreira Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura Mário António Mendes Serrano |