Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14902/22.0T8PRT.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CONTRATO ATÍPICO
BOA-FÉ
ANALOGIA
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Numa acção com processo especial de prestação de contas, se o réu admitir a existência do facto que constitui a causa de pedir e que deste resultou uma obrigação de prestação de contas nos termos alegados pelo autor, mas sustentar que tal obrigação se encontra extinta, total ou parcialmente, mormente por cumprimento, estará a contestar, pelo que será aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 942.º do Código de Processo Civil.
2 – A obrigação de prestação de contas tem natureza substantiva, sendo, estruturalmente, uma obrigação de informação, tal como o artigo 573.º do Código Civil a configura. Logo, é a lei substantiva a sede própria para a definição dos seus pressupostos. A lei adjectiva deveria limitar-se a regular os termos em que deve ser judicialmente exercido o direito à prestação de contas e cumprida a correspondente obrigação.
3 – Diversas normas substantivas estabelecem obrigações de prestação de contas. Estas também podem resultar de contrato ou do princípio da boa-fé.
4 – Não cabendo, ao caso, um processo especialíssimo de prestação de contas, não poderá ser negada a tutela jurisdicional de um direito à prestação de contas através do processo especial-geral de prestação de contas regulado nos artigos 941.º e seguintes do Código de Processo Civil, sob pena de violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.
5 – Nos contratos legalmente atípicos, atenta a inexistência de um tipo contratual que para eles forneça um modelo regulativo, o clausulado reveste-se de uma importância central para a sua interpretação. Na concretização do regime jurídico desses contratos, é de primordial importância a cláusula geral da boa fé.
6 – Num contrato de “parceria comercial” mediante o qual uma parte autorizou a outra a usar a imagem de uma nutricionista com notoriedade pública para comercializar determinados produtos por si fabricados, contra o pagamento de 7% do preço de venda ao retalho desses produtos em cada mês, e no qual não foi estipulado que a parte que se obrigou a este pagamento prestasse contas à outra, contrariaria o princípio da boa-fé que tal obrigação não existisse.
7 – Deverá aplicar-se, a um contrato como o descrito em 6, por analogia e com as necessárias adaptações, o regime estabelecido, para o contrato de associação em participação, nos artigos 26.º, n.º 1, alínea d), e 31.º, n.ºs 1 a 4, do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07.
8 – Assim, a parte credora do pagamento referido em 6 tem o direito de exigir da outra a prestação de contas sobre as vendas, por esta efectuadas, de produtos abrangidos pelo contrato, sendo, para esse efeito, admissível o recurso ao processo regulado nos artigos 941.º e seguintes do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 14902/22.0T8PRT.E1

Autora: (…), Unipessoal, Lda.

Ré: (…) – Produtos Naturais, Lda.

Pedido: Prestação de contas à autora, sob a forma de conta corrente, com entrega dos mapas de vendas em falta e de cópia das facturas contabilísticas e balancete referentes à comercialização dos produtos vendidos com a designação “(…)” até à data de hoje, nos termos do n.º 3 do artigo 944.º do CPC.

Sentença: Considerando que, do contrato celebrado entre autora e ré, não resultou uma situação de administração de bens pertencentes à primeira por parte da segunda, julgou a acção improcedente.


*


A autora interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. A acção de prestação de contas é uma acção especial tendo uma tramitação processual própria definida pelos artigos 941.º a 952.º do CPC.

2. A primeira fase processual da acção de prestação de contas, consiste na citação do réu para apresentar as contas ou contestar a obrigação de prestar contas – artigo 942.º do CPC.

3. Na falta de oposição quanto à referida obrigação, existem duas hipóteses: o réu apresenta contas e se o autor eventualmente contestar o juiz (artigo 945.º do CPC); ou o réu não apresentar contas, sujeita-se à apresentação de contas por parte do autor, tendo juiz de julgar de acordo com o seu prudente arbítrio (artigo 943.º do CPC).

4. Desta feita, não bastará o réu apresentar um articulado designado por “contestação” para se considerar que o mesmo contesta a obrigação de prestação de contas, havendo de ser apreciado todo o articulado, pois, compulsada a contestação apresentada, o recorrido limita-se essencialmente a impugnar documentos, a alegar que não decorre do contrato uma obrigação de fornecer relatórios e mapas de venda completos e precisos, bem como as faturas contabilísticas, que a “a autora faz confusão entre o que é preço de venda a retalho e preço de venda ao público”, que “é falso que após a cessação do contrato a ré continue a disponibilizar produtos com tais referências a retalhistas” e “é igualmente falso que a ré não tenha querido pagar à autora, pois apresentou-lhe um valor a facturar, que a autora nem resposta deu” (artigos 21.º a 29.º da contestação).

5. A recorrida prestou contas entre os períodos de julho de 2018 a junho de 2020 e julho de 2020 a fevereiro de 2022, alegando, no entanto, que já tinha cumprido com aquela obrigação: no primeiro período através da apresentação mensal de vendas (artigo 2.º do requerimento de 17-03-2023 e documentos juntos n.ºs 1 a 19), e, no segundo período através carta registada (artigo 5.º do requerimento de 17-03-2023 e documento n.º 20), além disso, apresentou agora em juízo a conta corrente relativamente a julho de 2020 e fevereiro de 2022 (documento n.º 21), alegando ainda que, quanto às datas entre setembro de 2018 e junho de 2020, “à data as contas foram prestadas e aceites pela autora” e que “as contas prestadas, do período temporal 01/07/2020 e 04/02/2022 se encontram prestadas” (artigos 10.º e 11.º do requerimento de 17-03-2023).

6. É inequívoco que a recorrida não contestou a obrigação de prestar contas, tendo até assumido que cumpriu com aquela obrigação extrajudicialmente, pelo que a Mmª Juiz não poderia ter apreciado sobre a existência daquele dever.

7. Os termos a seguir nos presentes autos, deveriam ter sido os descritos nos artigos 944.º e 945.º do CPC, com a notificação da autora para contestar as contas apresentadas (artigo 945.º, n.º 1, do CPC) e não os termos do artigo 942.º, n.º 3 e 4, do CPC, conforme ocorreu.

8. A decisão sob censura encontra-se ferida pelo vício da nulidade por excesso de pronúncia, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

9. O artigo 608.º, n.º 2, do CPC, estipula que, “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

10. Por isso, estamos perante a nulidade da decisão por excesso de pronúncia, contemplada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ocorre quando o tribunal se pronuncia sobre questões jurídicas de que não poderia legalmente conhecer, o que sucedeu no presente caso e se invoca para todos os efeitos.

11. A apreciação rigorosa dos meios probatórios é inquestionavelmente a função primordial de qualquer juiz, tanto daquele que na primeira instância preside à audiência e que decide da prova quanto à matéria de facto, como daquele que, em instância de recurso, tem por missão a reapreciação de tal decisão, depois de reponderados os meios de prova.

12. O tribunal, ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que, através das regras da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que …), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo tribunal de 2.ª instância.

13. Cabe ao juiz do processo tomar em consideração “os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda da matéria de facto adquirida e extraindo dos atos apurados as presunções impostas pela lei ou regras de experiência” (artigo 607.º, n.º 4, in fine, do CPC).

14. A ré estava obrigada à prestação de contas, quer pela natureza da relação contratual que estabeleceu com a autora, concretamente tendo em conta a forma de remuneração pelo uso da imagem da Dra. (…).” – artigo 22.º da petição inicial, pelo que, encontrando-se a ré, ilicitamente, a explorar os direitos de utilização de imagem de que a autora é titular, torna-se evidente que deve prestar contas, apresentando comprovativos idóneos, quanto ao volume de vendas” – artigo 27.º da petição inicial.

15. O objecto do contrato, encontra-se perfeitamente definido, pois, a autora assumiu a obrigação de ceder o uso e gestão da sua imagem e marca “(…)” para comércio de produtos alimentares, contra o direito a receber uma percentagem das vendas dos produtos com a representação daqueles bens dos quais era titular.

16. A recorrida nunca impugnou tais factos cumprindo com o ónus que lhe impendia segundo o artigo 574.º, n.º 1, do CPC – “Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor”.

17. A recorrida tinha interesse em usar a marca e imagem da recorrente para promover os seus produtos, atendendo à sua notoriedade no mercado, o que conseguiu com a venda dos produtos associados àqueles elementos, e a autora tinha interesse em divulgar o seu trabalho e promover a sua imagem como nutricionista, e, por isso, dúvidas não existem que o contrato celebrado entre as partes, implicava as seguintes obrigações: autorizar a recorrida para usar e gerir a imagem e marca da recorrente nas embalagens dos seus produtos e pagar uma comissão de 7% sobre o preço da venda a retalho.

18. A falta de impugnação, leva à prova plena dos factos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-10-2019, Processo: 617/14.6YIPRT.L1.S1), pelo que, tendo em conta a prova por confissão e a prova documental apresentada (documento n.º 1 junto com a petição inicial) que andou mal o tribunal a quo, impondo-se o aditamento aos factos provados do seguinte enunciado:

“Nos termos do contrato celebrado a 10.07.2018, com a autorização da autora, a ré passou a usar e gerir a imagem e marca da autora no âmbito do comércio alimentar de produtos saudáveis e dietéticos.”

19. Quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. Assim, vezes há em que a obrigação de prestar contas decorre directamente da lei, mas não é forçoso que assim seja: a referida obrigação pode derivar de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé.”

20. A decisão sob recurso partiu de uma das hipóteses a considerar a existência da obrigação de prestação de contas, recorrente aos ensinamentos da doutrina – “quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses” (Alberto Reis, in Processos especiais, vol. I, pág. 303) – a verdade é que ignorou parte do conceito que admite administração de “interesses” de outrem e não apenas bens ou coisas em sentido formal.

21. É indiscutível que a obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate no geral de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/1990, in CJ, III, págs. 125 a 127) e Acórdãos do STJ de 28-1-75, publicado no BMJ n.º 243, pág. 265, e de 1-7-2003 ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 03A1913).

22. O tribunal a quo assumiu que, pode decorrer do princípio da boa fé:

“A obrigação de prestar contas é uma obrigação de informação. Esta existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artigo 573.º do CC)” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-01-2006, Processo: 10895/2005-6 e, no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-02-2019, Processo: 309/15.9T8FND.C1.

23. Segundo a melhor doutrina e jurisprudência, a prestação de contas é uma das formas de exercício do direito à informação, afirmando-se, designadamente que a obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artigo 573.º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito (v.g. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-02-2005 e de 09-02-2006 e Luís Pires de Sousa, in Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de coisas, pág. 119).

24. “O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objectivas de comportamento – de correcção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, postulando certos modos de atuação em relação, seja na fase pré-contratual, seja ao longo de toda a execução do contrato” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-04-2017, Proc. 896/13.6TBCTB.C1).

25. O mesmo princípio dá igualmente sentido e existência, a princípios constitucionais como a igualdade material de ambas as partes, o princípio da transparência, o princípio da confiança, a dignidade da pessoa humana, cuja realização estaria limitada sem este princípio, tal como foi estabelecido no Ac. do STJ de 17-05-2012, proferido no Proc. n.º 2841/03.8TCSNT.L1.S1, “O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objetiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa fé subjetiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas”.

26. A boa fé ilumina e reflete-se em toda a economia do contrato e durante todo o período da sua execução vinculando os contraentes não ao mero cumprimento formal dos deveres da prestação que recaem sobre eles, mas à observância do comportamento que não destoe da ideia fundamental da leal cooperação que está na base do contrato (Antunes Varela, Obrigações, 187, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20.ª Edição, Ediforum pág. 767) e refere-se tanto aos deveres principais ou típicos da prestação e aos deveres secundários ou acidentais, como também aos deveres acessórios de conduta quer do lado do devedor quer do credor (Cunha de Sá, Abuso de Direito, 173, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20.ª Edição, Ediforum pág. 767).

27. A recorrente autorizou o réu a usar o seu direito de imagem e uso de marca em seu benefício, como forma de publicidade, comprometendo-se a pagar uma retribuição cujo montante era de um cálculo aritmético dependente do preço das vendas de produtos a retalho efetuadas pela recorrida com utilização daqueles elementos, é inadmissível e fortemente atentatório da boa fé considerar que a recorrida não se encontra vinculado ao dever de prestar contas sobre o volume de venda a retalho do qual depende a remuneração da recorrente.

28. A recorrente não tem forma de saber se as receitas obtidas com a venda dos produtos comercializados pela recorrida com a sua imagem e marca correspondem à realidade, sendo que tais informações apenas poderão ser prestadas pela recorrida.

29. A recorrida, durante a vigência do contrato teve na sua disponibilidade o uso da imagem e da marca “(…)” para publicitar os seus produtos e difundir aquela marca, tendo obtido proventos daquela gestão, sobre os quais ficou acordado se definiu a fixação de uma comissão em favor da recorrente.

30. O Tribunal a quo não pode negar a existência da obrigação de prestação de contas absolvendo a recorrida do pedido, pois isso, significaria, pelo trânsito em julgado da decisão sob censura, barrar a possibilidade de a recorrente aferir se lhe foi pago o que era devido, em violação da garantia constitucional do acesso aos Tribunais para fazer valer a sua posição jurídica enquanto titular de um direito de crédito (artigo 2.º do CPC)!

31. A decisão sob censura na sua fundamentação e dispositivo violou as seguintes disposições: artigos 2.º, 574.º, n.º 1 e 2, 607.º, n.º 4, 608.º, n.º 2, 615.º, n.º 1, aliena d), 941.º do CPC, artigo 573.º do CC e artigo 20.º, n.º 1, da CRP.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A) O tribunal a quo não está sujeito às alegações das partes quanto a aplicação de questões de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do C.P.Civil;

B) O tribunal é soberano na aplicação do Direito;

C) Não sendo o artigo 615.º, n.º 1, d), do C.P.Civil, referente à aplicação do Direito e de argumentos/razões das partes, pois não se pode confundir as questões que são submetidas à apreciação do tribunal com as razões de facto ou de Direito, alegadas pelas partes e que servem de alicerce a tais questões;

D) E assim nenhuma nulidade existe na aliás douta sentença proferida pelo tribunal a quo, devendo a invocada nulidade ser julgada improcedente por não provada;

E) A apelante alega, grosso modo, que por a apelada utilizar o seu direito de imagem, nos termos contratuais a obrigaria a prestar contas de tal utilização;

F) Não está previsto no contrato qualquer cláusula de prestação de contas pela apelada à apelante;

G) Atento o disposto no artigo 79.º do Cód. Civil cada indivíduo tem o direito à sua imagem, não podendo o seu retrato ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o seu consentimento;

H) O n.º 1 do artigo 79.º do Cód. Civil prevê não só o consentimento do próprio para a exposição, reprodução ou lançamento no mercado da sua imagem;

I) Como é o caso dos autos, em que a apelante contratou com a apelada a utilização do seu nome em embalagens de produtos alimentares;

J) A autorização aludida no artigo 79.º do Cód. Civil poderá surgir como um acto unilateral ou surgir no âmbito de um contrato, havendo neste caso que observar o que resulta das respectivas cláusulas;

L) Consoante acordado pela cláusula terceira do contrato a apelante, tinha direito a receber 7% sobre o preço de venda ao retalho dos produtos alimentares com a designação “(…)” apenas sendo referido que os pagamentos seriam mensais, nada mais;

M) A apelada não se obrigou a vender um número determinado de bens alimentares; o que foi acordado foi que procedendo a apelada à sua venda – e quando o fizesse – entregava uma percentagem do preço de venda dos produtos alimentares que contivessem tal designação, nos termos estabelecidos;

Ora;

N) A obrigação de prestar contas decorre de uma outra obrigação de carácter mais geral, a obrigação de informação prevista no artigo 573.º do Cód. Civil – esta existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência e do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias;

O) Tendo lugar a obrigação de prestar contas sempre que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios, logo se verifica que esta última obrigação tem um âmbito mais restrito que aquela primeira;

P) Pois nem sempre que exista obrigação de informação existe obrigação de prestação de contas: a prestação de contas é um caso corrente da prestação de informações;

Q) Não se vê como decorre do artigo 79.º do Código Civil uma obrigação de prestação de contas, sendo de salientar que, contrariando o que a apelante parece pressupor, à apelada não foi entregue a gestão e administração do «bem alheio» imagem da Sr.ª (…) – apenas lhe foi permitido, com as contrapartidas económicas acordadas, comercializar produtos alimentares contendo a expressão “(…)”;

R) O que a apelante pretende com estes autos não se reporta directamente ao «direito à imagem» da Sra. (…), pessoa humana e sócia única da apelante, tratado no artigo 79.º do Código Civil, mas antes tem a ver com os concretos direitos de crédito que advêm do contrato por ela apelante, celebrado com a apelada;

S) O que nos levanta outro problema, é que a apelante é uma sociedade, não estando demonstrado que a Sra. (…) tenha transmitido os seus direitos de imagem à apelante a fim de legitimamente esta ter contratado a utilização da imagem daquela com a apelada.

O recurso foi admitido.


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Questões a decidir:

1 – Nulidade da sentença;

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Existência de uma obrigação de prestação de contas a cargo da recorrida e admissibilidade do recurso ao processo especial de prestação de contas para exercer judicialmente a pretensão da recorrente.


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1 – Nulidade da sentença:

A recorrente sustenta que a sentença é nula, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC. Fundamenta esta tese em termos que assim se resumem:

- Embora tenha apresentado contestação na sequência da sua citação nos termos do n.º 1 do artigo 942.º do CPC, a recorrida admitiu, nesse articulado, que, do contrato que celebrou com a recorrente (doravante designado por “contrato”), resultou, para si, a obrigação de prestar contas a esta;

- Não tendo a recorrida contestado a obrigação de prestar contas, estava vedado, ao tribunal, apreciar se esta obrigação existe;

- Em vez disso, deviam ter sido seguidos os termos dos artigos 944.º e 945.º do CPC, com a notificação da recorrente para contestar as contas apresentadas (artigo 945.º, n.º 1, do CPC), e não os termos do artigo 942.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.

Esta tese assenta num equívoco: o de que a contestação da obrigação de prestação de contas se restrinja à hipótese de o réu negar que o facto invocado como causa de pedir gere aquela obrigação ou, eventualmente (a recorrente não se pronuncia sobre ela, mas resulta, por maioria de razão, da sua argumentação), também à de o réu impugnar o próprio facto invocado como causa de pedir; daí a errada conclusão de que qualquer outra tomada de posição por parte do réu equivalha a admissão da obrigação de prestação de contas.

Não é assim.

A contestação da obrigação de prestação de contas pode assumir várias modalidades[1]. Além das anteriormente referidas, ocorrem-nos as seguintes:

1 – O réu admite a existência do facto invocado como causa de pedir e que dele resulte uma obrigação de prestação de contas, mas circunscreve este efeito a uma dimensão (por exemplo, temporal) menor que a afirmada pelo autor;

2 – O réu admite a existência do facto referido em 1 e que dele resultou uma obrigação de prestação de contas nos termos alegados pelo autor, mas sustenta que esta obrigação se encontra extinta, total ou parcialmente, mormente por cumprimento.

Também nestas hipóteses, o réu contesta a obrigação de prestação de contas, suscitando a questão prévia da existência desta, seja na sua totalidade, seja apenas em parte, tendo por referência a forma como o autor a configurou. Daí que se esteja em pleno domínio de aplicação do n.º 3 do artigo 942.º do CPC. Aquela questão prévia terá de ser decidida pelo juiz antes de o processo passar à fase seguinte. O juiz tem a opção de decidir sumariamente a questão, nos termos da 1.ª parte daquela norma, ou de mandar seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa, nos termos da 2.ª parte da mesma norma.

Na decisão da referida questão prévia, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito, em conformidade com a regra geral do artigo 5.º, n.º 3, do CPC. Poderá, pois, concluir pela inexistência da obrigação de prestação de contas com fundamento jurídico diverso daquele(s) que o réu invocou.

Na sentença recorrida, entendeu-se, acertadamente, que a recorrida contestou, pelo que era aplicável a tramitação prevista no n.º 3 do artigo 942.º do CPC. Na verdade, a recorrida, embora admitindo que para si resultava, do contrato, uma obrigação de prestação de contas à recorrente, negou a subsistência dessa obrigação relativamente ao período de 10.07.2018 a 30.06.2020, por já a ter cumprido. Relativamente ao período de 01.07.2020 a 04.02.2022, a recorrida declarou apresentar as contas juntamente com a contestação à petição inicial aperfeiçoada.

A questão decidida pela sentença recorrida é precisamente aquela que a recorrida suscitou: a existência actual da obrigação de prestação de contas. Fê-lo foi com argumentação jurídica diversa da proposta pela recorrida. É sobejamente conhecida a distinção entre questão e argumento, essencial para ajuizar acerca da verificação das nulidades da sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Só se verifica nulidade por omissão de pronúncia se o juiz deixar de se pronunciar sobre uma questão que devesse apreciar, não se se limitar a não analisar um argumento apresentado por uma parte para sustentar a sua tese sobre uma questão apreciada. E só se verifica nulidade por excesso de pronúncia se o juiz se pronunciar sobre uma questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado, não se decidir uma questão de que devesse conhecer com base em argumentação jurídica diversa daquela que as partes apresentaram[2].

No entendimento do tribunal a quo, o contrato não teve por efeito a criação de uma situação de administração de bens pertencentes à recorrente por parte da recorrida, pelo que “a tutela do direito da autora não passa pelo cumprimento pela ré do dever de prestar contas”. Daí que não tenha sentido a necessidade de analisar a argumentação apresentada pela recorrida, que pressupunha que o contrato tivesse gerado uma obrigação de prestação de contas. Não transpôs, portanto, os limites da questão que tinha de decidir. Apenas a resolveu com base em argumentação jurídica diversa daquela que a recorrida apresentou.

Resulta do exposto que o tribunal a quo não conheceu de questão de que não pudesse tomar conhecimento, pelo que a sentença recorrida não padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do CPC.

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A sentença recorrida baseou-se exclusivamente no conteúdo do contrato celebrado entre recorrente e recorrida, que deu como integralmente reproduzido, embora destacando o seguinte: “A autora e a ré outorgaram documento escrito, intitulado “Contrato”, em 10-07-2018, nos termos do qual acordaram que a ré fabricaria e comercializaria produtos alimentares com a designação “(…)” e, ainda, que pagaria à autora uma percentagem de 7% sobre o preço de venda a retalho (PVR) dos produtos alimentares com a designação “(…)”, incluindo vendas nas máquinas de vending e nas plataformas on line.”

Atento o fundamento pelo qual o tribunal a quo julgou a acção improcedente – inexistência, face ao conteúdo do contrato, de uma situação de administração de bens da recorrente por parte da recorrida e, consequentemente, da obrigação de a segunda prestar contas à primeira –, é admissível a forma como aquele enunciou a matéria de facto que julgou provada. A descrição exaustiva do conteúdo do contrato constituiria uma formalidade inútil. A totalidade desse conteúdo deve considerar-se recebida na sentença recorrida.

Analisemos, à luz do que acabámos de afirmar, a pretensão da recorrente de aditamento do seguinte enunciado à matéria de facto provada: “Nos termos do contrato celebrado a 10.07.2018, com a autorização da autora, a ré passou a usar e gerir a imagem e marca da autora no âmbito do comércio alimentar de produtos saudáveis e dietéticos.”

Se este enunciado se limitasse a reproduzir uma cláusula do contrato, o seu aditamento à matéria de facto provada seria inútil, dada a recepção da totalidade do conteúdo desse contrato na sentença recorrida. Todavia, não é o caso. Na realidade, como aliás resulta da fundamentação do recurso, trata-se, não de um facto, mas de uma conclusão que a recorrente propõe, com base na interpretação do contrato. Com efeito, em parte alguma do contrato se encontra estipulado que a recorrida “passou a usar e gerir a imagem e marca da autora no âmbito do comércio alimentar de produtos saudáveis e dietéticos”. Poderá é concluir-se, com base na interpretação do contrato, que a utilização que, por efeito deste, a recorrida passou a fazer da imagem e do nome da nutricionista (…), envolvia o uso e a gestão dessa imagem e desse nome no âmbito dos produtos abrangidos pela parceria.

Sendo assim, não há razão para aditar o referido enunciado à matéria de facto provada. Se o conteúdo do contrato nos legitimar a concluir nos termos expostos, não deixaremos de o fazer.

3 – Existência de uma obrigação de prestação de contas a cargo da recorrida e admissibilidade do recurso ao processo especial de prestação de contas para exercer judicialmente a pretensão da recorrente:

O CPC de 1939 não se imiscuiu na tarefa de determinar quem deve ser obrigado a prestar contas a outrem, que cabe ao Direito substantivo. Os seus artigos 1012.º a 1022.º contêm normas puramente processuais.

Com base nas normas substantivas que, ao tempo, impunham obrigações de prestação de contas, José Alberto dos Reis concluiu que poderia formular-se o princípio geral de que quem administra bens ou interesses alheios estava obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses[3].

O CPC de 1961 manteve a boa prática do CPC de 1939. Na sua redacção originária, os artigos 1013.º a 1023.º regulam exclusivamente matéria processual.

Porém, a reforma desse código levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, alterou a redacção do artigo 1014.º, posteriormente reproduzida no artigo 941.º do CPC de 2013. Essa redacção é a seguinte: “A acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

Assim se consagrou legislativamente um princípio até então meramente doutrinário e que assim se deveria ter mantido. Tal recepção é criticável por duas ordens de razão.

Por um lado, como já referimos, a obrigação de prestação de contas tem natureza substantiva. Estruturalmente, é uma obrigação de informação, tal como o artigo 573.º do Código Civil a configura. Logo, é a lei substantiva a sede própria para a definição dos seus pressupostos. A lei adjectiva deveria limitar-se a regular os termos em que deve ser judicialmente exercido o direito à prestação de contas e cumprida a correspondente obrigação, como acontecia antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12.

Por outro lado, além de ser deslocada, a referida recepção gerou um factor de perturbação no sistema. A introdução, no artigo 1014.º do CPC de 1961, da referência à administração de bens alheios pelo réu como aparente pressuposto de admissibilidade da acção especial de prestação de contas, não determinou o desaparecimento das normas de Direito substantivo que oneravam quem se encontrasse em determinadas situações com uma obrigação de prestação de contas a outrem. Ainda hoje, apesar da redacção do artigo 941.º do CPC, tais regimes substantivos avulsos subsistem.

Assim surgiu um problema novo: como articular o disposto no artigo 941.º do CPC com os regimes substantivos que, de forma avulsa, estabelecem obrigações de prestação de contas? Mais, podendo uma obrigação de prestação de contas resultar de um contrato, nos termos do artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil[4], ou constituir, inclusivamente, uma directa concretização do princípio da boa fé, em que medida o disposto no artigo 941.º do CPC poderá condicionar a liberdade contratual ou a actuação deste princípio?

Poderia responder-se a estas questões cindindo a vertente substantiva da processual. A referência do artigo 941.º do CPC à administração de bens alheios por parte do réu da acção de prestação de contas apenas delimitaria o âmbito de aplicação deste processo especial, não prejudicando a vigência de regimes substantivos que impusessem uma obrigação de prestação de contas.

Porém, tal solução redundaria em negar tutela jurisdicional a pretensões de prestação de contas juridicamente fundadas, com ofensa do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual, na parte que nos interessa, a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Não se argumente, contra isto, que o credor da prestação de contas (ou o obrigado que quisesse prestá-las espontaneamente) que visse vedado o acesso à acção especial de prestação de contas, poderia exercer a sua pretensão através do processo comum declarativo. Seria absurdo a lei vedar o meio processualmente adequado, que é a acção especial de prestação de contas, a quem pretende a prestação destas, mas admitir o exercício desta pretensão através de um meio processualmente inadequado, como é a acção declarativa comum. Uma tutela efectiva do direito à prestação de contas depende de a lei admitir o seu titular a recorrer, ou a um processo especialíssimo de prestação de contas que a lei estabeleça para a particular situação daquele, ou ao processo especial-geral de prestação de contas regulado nos artigos 941.º e seguintes do CPC.

Resta, pois, fazer uma interpretação da referência do artigo 941.º do CPC à administração de bens alheios em conformidade com a Constituição, de forma a garantir que, seja qual for a sua fonte, nenhuma pretensão de prestação de contas fique sem tutela jurisdicional adequada.

A necessidade deste breve enquadramento da questão que analisamos decorre de a sentença recorrida ter julgado a acção improcedente com base no entendimento de que não resultou do contrato uma situação de administração de bens pertencentes à recorrente por parte da recorrida, sem mais.

A fundamentação da sentença recorrida é, na parte que agora nos interessa, a seguinte:

O processo de prestação de contas está relacionado com a obrigação a que alguém se encontra vinculado de prestar a terceiro contas dos seus actos. Não existe norma legal que, genericamente, preveja as situações em que existe tal obrigação. Na verdade, o que há é um alargado leque de preceitos que, de forma casuística, impõem essa obrigação. Porém, como refere o senhor professor Alberto dos Reis, em Processos Especiais, Vol. I, pág. 303, pode, a partir desses normativos que, caso a caso, estabelecem a obrigação de prestar contas, extrair-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. Assim, vezes há em que a obrigação de prestar contas decorre directamente da lei, mas não é forçoso que assim seja: a referida obrigação pode derivar de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé.

Com efeito, a obrigação de prestação de contas pode resultar do princípio geral da boa fé a partir de uma mera administração de facto (não convencionada nem normatizada); porém, pressuposto essencial de tal obrigação é que esteja em causa uma administração de bens alheios, o que a nosso ver não sucede in casu.

In casu, resulta provado que as partes acordaram que a ré fabricaria e comercializaria produtos alimentares com a designação “by Ana Bravo Nutrição com Coração” e, ainda, que pagaria à autora uma percentagem de 7% sobre o preço de venda a retalho (PVR) dos produtos alimentares com a designação “(…)”, incluindo vendas nas máquinas de vending e nas plataformas on line. Na estrutura deste acordo, não se vislumbra quais os bens pertencentes à autora, cuja administração é atribuída à autora.

Conclui-se, portanto, que a tutela do direito da autora não passa pelo cumprimento pela ré do dever de prestar contas, consequentemente impondo-se absolver a ré do pedido de prestação de contas”.

O ponto de partida desta fundamentação era promissor. Todavia, na continuação, o tribunal a quo fez referência ao princípio enunciado por José Alberto dos Reis, na obra que acima mencionámos, e decidiu com base nele, sem referir que, entretanto, o mesmo foi incorporado na lei processual, e sem outra sustentação jurídica. O tribunal a quo analisou sumariamente a parte do clausulado do contrato que considerou relevante e concluiu que dele não resultou a atribuição, à recorrida, de poderes de administração sobre bens da recorrente, pelo que o direito desta “não passa pelo cumprimento pela ré do dever de prestar contas”.

Por um lado, a problemática em análise não se resolve de forma tão linear, antes reclamando outro tipo de indagação. Por outro, mesmo à luz da regra em que o tribunal a quo se baseou, não é líquido que a solução correcta seja a de considerar que a recorrida não está obrigada a prestar contas à recorrente. Passamos a desenvolver estas duas ideias.

A tarefa de responder à questão de saber se, por efeito da celebração do contrato, a recorrida se encontra onerada com uma obrigação de prestação de contas à recorrente, tem de se iniciar com a análise e qualificação do referido contrato. Só depois de percorrer esse caminho será possível determinar se o Direito fornece sustentação para a pretensão da recorrente de que a recorrida lhe preste contas.

Na al. c) do preâmbulo do contrato, as partes consignaram ser seu objectivo comum “desenvolver um projeto destinado a promover produtos alimentares para uma dieta saudável e equilibrada”.

Na cláusula 1.ª, as partes denominaram o contrato como “parceria comercial”. Mais precisamente, estipularam que o contrato “tem por objeto estabelecer as condições da parceria comercial entre a (…) e a (…), no âmbito dos produtos alimentares fabricados e comercializados pela (…) com a designação (…)”.

Na cláusula 2.ª, as partes estipularam que o contrato “terá a duração por tempo indeterminado, podendo cada uma das partes rescindir o mesmo, desde que comunique à outra com 90 dias de antecedência sobre a data do seu término”.

No n.º 1 da cláusula 3.ª, as partes estipularam que “A (…) compromete-se a pagar à (…) uma percentagem de 7% sobre preço sobre o preço de venda ao retalho (PVR) dos produtos alimentares com a designação (…), incluindo vendas nas máquinas de vending e nas plataformas online, como como site e Amazon”. No n.º 2 da mesma cláusula, foi estipulado que o pagamento dessa percentagem seria efectuado mensalmente, mediante transferência bancária.

Na cláusula 7.ª, as partes estipularam uma cláusula geral de boa fé, nos seguintes termos: “As partes comprometem-se a cooperar ao longo de todo o projeto no sentido de melhorias constantes e estratégias inovadoras, de acordo com os princípios da boa-fé e eficiência, para que o presente contrato seja executado com o maior sucesso possível”.

As cláusulas transcritas permitem-nos chegar a algumas conclusões úteis acerca da natureza do contrato.

Como vimos, na cláusula 1.ª do contrato, as partes designaram a relação dele emergente como “parceria comercial”. Tal parceria consubstanciava-se, essencialmente, em a recorrente autorizar a recorrida a comercializar os produtos por ela abrangidos com a designação “(…)”, ficando a segunda obrigada a pagar, à primeira, 7% sobre o preço de venda ao retalho desses produtos, através de transferência bancária, com periodicidade mensal. Foram estes os deveres principais de cumprimento a que recorrente e recorrida se vincularam.

Não abrangendo a “parceria comercial” estipulada entre recorrente e recorrida a globalidade da actividade económica por esta desenvolvida, mas unicamente a comercialização de uma determinada linha de produtos por ela fabricados e comercializados, fica, sem necessidade de maior indagação, afastada a possibilidade de qualificação do contrato como de associação em participação, atenta a configuração deste tipo contratual resultante dos artigos 21.º a 31.º do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07. Como adiante procuraremos demonstrar, é este o tipo contratual mais próximo, mas, mesmo tendo em conta a sua elasticidade, a diferença acima evidenciada coloca o contrato para além dos seus limites. Inexiste outro tipo legal em que o contrato possa ser integrado.

A primeira conclusão a que chegamos é, pois, a de que nos encontramos perante um contrato legalmente atípico e inominado.

Trata-se, igualmente, de um contrato socialmente atípico. Não conhecemos, na prática comercial, um modelo contratual que seja habitualmente utilizado e se identifique com o núcleo central do contrato, acima descrito. Daí que não tenhamos ao nosso dispor modelos regulativos consagrados pela prática comercial que nos auxiliem a enquadrar, interpretar e, eventualmente, integrar lacunas do contrato[5].

A qualificação do contrato como legalmente atípico permite, por si só, chegar a uma outra conclusão. Atenta a inexistência de um tipo contratual que forneça um modelo regulativo para o contrato, o clausulado deste assume uma importância central para a sua interpretação. Como ensina Pedro Pais de Vasconcelos, “A importância relativa da estipulação é (…) inversa nos contratos típicos e nos atípicos. Nos típicos, a declaração negocial serve para completar ou para alterar o modelo regulativo típico; nos atípicos, serve para constituir o próprio modelo regulativo. Neste sentido, a estipulação, nos contratos típicos, tem um papel relativamente secundário na formação do conteúdo contratual, enquanto que nos atípicos têm um papel principal. A regulação contratual, nos contratos típicos, reside principalmente no tipo enquanto que nos atípicos se encontra principalmente nas estipulações negociais.”[6]

Atenta esta última conclusão, poderia argumentar-se que, não prevendo o contrato que a recorrida preste contas sobre as vendas, por si realizadas, dos produtos compreendidos no âmbito da parceria, tem de se concluir que essa obrigação não existe. A recorrida deita mão deste argumento nas suas alegações.

Porém, não é assim. Os contratos atípicos não são ilhas. Integram-se na Ordem Jurídica, sendo-lhes aplicáveis os princípios gerais desta, com destaque para o da boa fé, que adquire, neste domínio, um papel reforçado. Recorremos novamente à, nesta matéria, imprescindível lição de Pedro Pais de Vasconcelos: “Na concretização da disciplina dos contratos atípicos é de primordial importância a cláusula geral da boa fé. A falta de acesso directo aos modelos contratuais da lei ou da prática suscita com mais frequência e mais importância, nos contratos atípicos, a necessidade de recorrer à boa fé para determinar em concreto o conteúdo dos comportamentos devidos.”[7]

Além dos princípios gerais da Ordem Jurídica e, mais especificamente, do Direito dos contratos, são ainda aplicáveis, aos contratos atípicos, as normas que regulam as classes de contratos em que os mesmos possam ser integrados[8], os contratos e os negócios jurídicos em geral, bem como normas pertencentes a tipos contratuais legais com os quais aqueles apresentem maiores semelhanças. As primeiras são aplicáveis directamente. Já as normas pertencentes a tipos contratuais legais com os quais aqueles apresentem maiores semelhanças, serão aplicáveis por analogia[9].

As cláusulas do contrato que acima transcrevemos inculcam que o mesmo deve ser integrado na categoria dos contratos de cooperação, definidos como “aqueles acordos negociais, típicos ou atípicos, celebrados entre duas ou mais empresas jurídica e economicamente autónomas, (singulares ou colectivas, públicas ou privadas, comerciais ou civis), com vista ao estabelecimento, organização e regulação de relações jurídicas duradouras para a realização de um fim económico comum.”[10] Caracterizam-se “pela concertação da atividade das partes com vista à obtenção de um fim comum”[11].

Esta qualificação, de natureza doutrinária, é útil porquanto auxilia o aplicador do Direito na busca de tipos contratuais com os quais o contrato apresenta maior semelhança, com vista a, neles, encontrar normas legais susceptíveis de lhe serem aplicáveis por analogia, nos termos expostos.

Somos, assim, conduzidos a um contrato de cooperação típico, o contrato de associação em participação.

Os já mencionados artigos 21.º a 31.º do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07, contêm o regime jurídico do contrato de associação em participação. Este é definido, pelo n.º 1 do artigo 21.º, como o contrato mediante o qual uma pessoa é associada a uma actividade económica exercida por outra, ficando a primeira a participar nos lucros ou nos lucros e perdas que desse exercício resultarem para a segunda.

Tal como no contrato de associação em participação, recorrente e recorrida acordaram que a primeira ficaria associada, de forma duradoura, a uma actividade económica exercida pela segunda. Porém, em termos diversos. A associação não seria à globalidade da actividade económica da recorrida, mas sim à comercialização de determinados produtos, aos quais a designação “(…)” acrescentaria valor. Por ser esse o objecto da parceria, a participação da recorrente não era nos lucros e perdas, nem apenas nos lucros, mas sim no resultado da venda ao retalho dos produtos em causa.

Existe analogia entre as situações. Em qualquer delas: 1) É estipulada uma prestação pecuniária a favor da parte que não exerce a actividade económica de cujo resultado tal contrapartida depende; 2) Essa parte necessita que aquela que exerce a actividade económica lhe preste informação sobre o resultado desta para saber se, em cada período (no caso dos autos, em cada mês), tem direito àquela prestação pecuniária e, em caso afirmativo, qual é o seu montante.

Na relação contratual de associação em participação, a lei, concretamente o já referido Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07, tutela expressamente a necessidade de o associado dispor da referida informação. O n.º 2 do artigo 22.º menciona o direito de informação do associado. O artigo 26.º, n.º 1, alínea d), estabelece que o associante tem o dever de prestar ao associado as informações justificadas pela natureza e pelo objecto do contrato. Os n.ºs 1 a 4 do artigo 31.º estabelecem que: O associante deve prestar contas nas épocas legal ou contratualmente fixadas para a exigibilidade da participação do associado nos lucros e nas perdas e ainda relativamente a cada ano civil de duração da associação (n.º 1); As contas devem ser prestadas dentro de prazo razoável depois de findo o período a que respeitam; sendo associante uma sociedade comercial, vigorará para este efeito o prazo de apresentação das contas à assembleia geral (n.º 2); As contas devem fornecer indicação clara e precisa de todas as operações em que o associado seja interessado e justificar o montante da participação do associado nos lucros e perdas, se a ela houver lugar nessa altura (n.º 3); Na falta de apresentação de contas pelo associante, ou não se conformando o associado com as contas apresentadas, será utilizado o processo especial de prestação de contas regulado pelos artigos 1014.º e seguintes do Código de Processo Civil (n.º 4).

Coloca-se a questão de saber se estas normas legais deverão ser aplicadas, por analogia, ao contrato celebrado entre recorrente e recorrida. Impõe-se responder afirmativamente. Parece-nos evidente que o funcionamento da relação contratual dele emergente pressupõe a existência, a cargo da recorrida, de um dever de prestação de informação, à recorrente, sobre as vendas dos produtos abrangidos pela “parceria comercial” que efectue, nomeadamente de prestação de contas sobre os valores daí resultantes. Sem o reconhecimento desse direito, a recorrente ficaria destituída de meios para controlar o cumprimento da obrigação principal da recorrida, que é a de lhe pagar, mensalmente, um valor correspondente a 7% do preço de venda ao retalho daqueles produtos, donde decorreria que a recorrida só cumpriria essa obrigação se e na medida que quisesse.

Tal interpretação do contrato seria inaceitável, atento o seu resultado. Numa relação contratual em que uma parte fica com direito a receber da outra, periodicamente, uma percentagem de um valor que é apenas do conhecimento desta, tem de ser reconhecido, àquela, o direito a ser informada, com uma cadência adequada, desse valor, através da prestação de contas relativas aos factos que o determinam. Esse dever é imposto, desde logo, pelo princípio da boa-fé, que não é compatível com soluções que deixem a possibilidade de exercício dos direitos de uma parte à mercê do arbítrio da outra.

Atenta a referida necessidade de tutelar o interesse da recorrente em obter informação acerca dos valores de que depende a existência e o montante da prestação estipulada na cláusula 3.ª do contrato e a similitude, quanto a este aspecto, entre a relação contratual que existiu entre recorrente e recorrida e aquela que decorre de um contrato de associação em participação, deverá, pois, ser aplicado, por analogia e com as necessárias adaptações[12], o disposto nos artigos 26.º, n.º 1, alínea d), e 31.º, n.ºs 1 a 4, do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28.07.

Assim se conclui que a recorrida tinha o dever acessório de prestar, à recorrente, a informação necessária para que esta pudesse conhecer qual era a quantia que tinha direito a receber em cada mês. Não prestando a recorrida espontaneamente tal informação, ou se a recorrente não se conformasse com aquela que lhe fosse prestada, poderia esta utilizar o processo especial de prestação de contas, hoje regulado pelos artigos 941.º e seguintes do CPC, por aplicação analógica do artigo 31.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 231/81.

Nada mais é necessário para a demonstração da existência de uma obrigação de prestação de contas a cargo da recorrida e da admissibilidade do recurso ao processo especial de prestação de contas para exercer judicialmente a pretensão da recorrente. Contudo, não deixaremos de abordar a questão de saber se se pode considerar que, por efeito do contrato, a recorrida administrava bens da recorrente.

É verdade que não nos encontramos perante uma situação típica de administração de bens alheios. A recorrente não entregou, à recorrente, nem no momento da celebração do contrato, nem no decurso da execução deste, uma coisa para que ela a administrasse. Concedeu, sim, autorização para que a recorrida utilizasse, em regime de não exclusividade (cfr. a cláusula 6.ª do contrato), o nome e a imagem de uma nutricionista com notoriedade pública na comercialização de determinados produtos por si fabricados, subentendendo-se que, para o efeito, tinha legitimidade.

A recorrente sustenta que, por efeito do contrato, a recorrida passou a usar e a gerir o nome e a imagem da referida nutricionista no âmbito da sua actividade comercial, nisso se traduzindo a administração de bem alheio.

É fora de dúvida que a utilização do nome e da imagem da nutricionista em causa no comércio de produtos dietéticos tem valor pecuniário. Tanto assim é, que a recorrida pagou por essa utilização. Estamos, pois, perante um bem, cuja utilização pela recorrida gerava rendimentos, que entravam no património desta. Uma parte desse rendimento devia ser posteriormente transferido para o património da recorrente.

Isto consubstanciava uma situação de administração de bens da recorrente por parte da recorrida. Esta utilizava um bem da recorrente no seu comércio, obtinha receitas com isso e tinha a obrigação de entregar parte destas à recorrente. A gestão desta fonte de rendimento da recorrente estava, por efeito do contrato, sob o domínio da recorrida. A recorrente tinha um interesse directo nesse segmento do negócio da recorrida, o qual, nessa medida, era gerido ou administrado pela recorrida no interesse comum de ambas.

Sendo assim, ainda que analisássemos a questão da admissibilidade de recurso ao processo especial de prestação de contas por parte da recorrente somente à luz do disposto no artigo 941.º do CPC (o que, repetimos, é incorrecto, pois a complexidade da questão obsta à sua resolução através de uma mera operação de subsunção no conceito de “administração de bens alheios”), a resposta a dar teria de ser positiva.

Concluindo, a sentença recorrida deverá ser revogada, procedendo o recurso. Fica, assim, assente que o processo especial de prestação de contas constitui o meio adequado para a recorrente exercer judicialmente o direito que invoca. Após a descida do processo, deverá o tribunal a quo ajuizar se se encontra em condições de proferir imediatamente a decisão referida na 1.ª parte do n.º 3 do artigo 942.º do CPC, com ou sem a prévia produção de prova, ou se é caso para se desencadear a tramitação referida na 2.ª parte do mesmo preceito legal.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se o cumprimento, pelo tribunal a quo, do disposto no n.º 3 do artigo 942.º do CPC, nos termos descritos na fundamentação deste acórdão.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.


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Sumário: (…)

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Évora, 11.01.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Ana Margarida Leite (1.ª adjunta)

Eduarda Branquinho (2.ª adjunta)


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[1] Leia-se, sobre esta matéria, José Alberto dos Reis, Processos especiais, volume I - Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, págs. 325-326.

[2] A jurisprudência sobre esta matéria é infindável. Referenciamos, a título exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.02.2005 (Sousa Peixoto) e 12.01.2021 (Paulo Ferreira da Cunha), da Relação de Évora de 06.10.2016 (Mário Serrano), da Relação de Lisboa de 06.06.2006 (Maria do Rosário Gonçalves) e 25.11.2014 (Manuel Tomé Soares Gomes) e da Relação do Porto de 20.12.2004 (Machado da Silva).

[3] Obra citada, pág. 303.

[4] Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2.ª edição, Almedina, 2020, pág. 137.

[5] Leia-se, sobre esta matéria, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Livraria Almedina, 1995, pág. 321.

[6] Obra citada, pág. 376.

[7] Obra citada, pág. 397. Cfr., também, págs. 322 e 401.

[8] Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, págs. 317-318.

[9] Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, págs. 327 e 367.

[10] José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 5.ª Reimpressão da edição de Outubro de 2009, Almedina, pág. 389.

[11] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III, Contratos de Liberalidade, de Cooperação e de Risco, 3.ª edição, Almedina, pág. 79.

[12] Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, págs. 369 a 371.