Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | JOÃO GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | PRIVACIDADE DOMICÍLIO BUSCA DOMICILIÁRIA PROIBIÇÃO DE PROVA | ||
Data do Acordão: | 02/16/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1 - A informação policial recebida pela polícia portuguesa não é uma “denúncia”, sim isso mesmo, uma informação policial que necessita de ser confirmada. 2 - O artigo 248º nº 1 do Código de Processo Penal permite – no prazo ali indicado e sem abuso policial - a recolha de informação que vise assegurar a prática de actos cautelares previstos nos artigos 249º a 252º do diploma. 3 - Relevante para a privacidade é a noção material de domicílio, a ser apreciada casuisticamente. 4 - Se a extensão do conceito de domicílio a um quarto de hotel é uma extensão aceitável e compreensível – e com garantia constitucional - a posterior extensão do conceito de “dependencia fechada” a um espaço de garagem de um hotel, por referência a um quarto contratado já é uma dupla extensão injustificada e abusiva e nunca gozaria de garantia constitucional pois que nem a garagem do domicílio disso desfrui. Recordemos que a garagem fechada e contígua a domicílio apenas disfruta de protecção da lei ordenária, o artigo 177º, n. 1 do C.P.P.. 5 - Assim, tratando-se de busca e apreensão não-domiciliárias, a regra é a ordem ou autorização depender de despacho da autoridade judiciária competente (artigo 174º, nº 3 do C.P.P.). 6 - Se há uma evidente desconformidade – contradição flagrante – entre a decisão judicial e o teor dos mandados de busca, aquela permitindo – deferindo – uma busca sem limitação horária, estes limitando a busca ao período diurno, ocorre uma violação de um mandado judicial com um determinado teor restritivo a que as forças policiais não atenderam. 7 - Outra constatação que se impõe é que a busca foi efectuada de acordo com o teor do despacho judicial. Assim a nulidade existente diz respeito ao teor do mandado e concretiza-se num mero violar de uma regra de cumprimento do mesmo, invocável no acto e sanável se não arguida nesses termos. Trata-se de um mero lapso do tribunal de instrução que emitiu e assinou uns mandados em contradição com o que o próprio ordenou. 8 - Mas não se pode afirmar que ocorre nulidade, insanável, de produção de prova, valoração de prova proibida e efeito à distância dela resultante pois que a coberto de um válido despacho judicial que a permite. 9 - Não há conversas informais se o agente policial se limita a obter informação do suspeito sobre o local onde se encontra a droga. Não só porque se não evidencia que tenha existido qualquer conversa informal entre arguido e agente da PJ, também porque a actuação deste se encontra legalmente justificada e se não demonstra má-fé na conduta policial. 10 - Do que aqui se trata é de cumprimento de funções policiais muito bem definidas nos artigos 249º e 250º do C.P.P. ou seja, a prática dos “actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “proceder a exames dos vestígios do crime … assegurando a manutennção do estado das coisas e dos lugares” e “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º, n. 1, als. a) e b) do C.P.P.). 11 - O nº 8 do artigo 250º do código é claro - precisamente porque esta é questão de melindre e de fronteira na caracterização da actuação policial em confronto com os direitos de arguido – na afirmação de que “os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária”. 12 - Como afirmou o Prof. Mota Pinto “o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada não deve ser confundido, nem com o direito à protecção da vida privada, incluindo tanto a liberdade como o segredo da vida privada, nem com o direito à privacy reconhecido no direito norte-americano com uma amplitude que o aproxima do direito geral de personalidade”. 13 - A privacidade pode considerar-se então um direito geral de personalidade aberto (sem numerus clausus) e o nosso ordenamento jurídico já autonomizou direitos anteriormente incluídos na privacidade, designadamente o direito à imagem e o direito à palavra. Se dele fizeram parte, é hoje um dado adquirido que são direitos autónomos. E todos estão constitucionalmente consagrados: o artigo 26º nº 1 da CRP é bem claro na sua autonomização. 14 - O que se pode ir buscar à “Sphärentheorie”, teoria das esferas ou teoria dos três graus (“Dreistufentheorie”), a germanização da teorização do US Supreme Court, será a localização em abstracto dos “espaços” da vivência social do ser humano como resultado do desenvolvimento histórico e cultural de determinada sociedade em determinado tempo. 15 - Admitimos que esta teoria não é uma resposta “matemática” mas serve como grelha metodológica de aproximação muito razoável e, pensamos, imprescindível, precisamente pela esquematização abstracta que traz, a funcionar como um “esqueleto” teórico onde irá assentar a casuística, como segue. 16 - Assim o Prof. Paulo Mota Pinto e a jurisprudência do Tribunal Constitucional têm utilizado o método por grupos de casos - na “intimidade da vida privada”, sempre com a noção de que não podemos fugir ao concreto e a aproximação terá de operar-se por grupos ou tipos de realidades. 17 - Em Portugal a jurisprudência sobre a matéria na orgânica infra constitucional - se exceptuarmos dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa - tem sido pacificamente no sentido de admitir e valorar as imagens e/ou a videovigilância como meios de prova, preservando, sem excepções, a privacidade. 18 - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem sido claro na delimitação e clarificação de situações que se diferenciam: a identificação de pessoas por imagem; a constituição de bases de dados (tratadas, portanto) com base em imagens recolhidas. A primeira situação é de licitude indiscutível; a segunda de ilicitude inquestionável. 19 - Dois arestos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem são relevantes por outro motivo, por aceitarem uma metodologia, proveniente do US Supreme Court, de abordagem destes casos relativos à privacidade que, com essa aceitação, passa a ser critério aceite pela jurisprudência convencional e, como tal, vinculativa para os tribunais portugueses. Referimo-nos à aceitação da cláusula da razoável expectativa de privacidade. 20 - Resumo possível, os dois factores importantes para determinar se uma videovigilância é lícita, quer no âmbito constitucional, quer no âmbito da litigância privada, são: se o local é público ou privado; se há uma razoável expectativa de privacidade em duas vertentes, subjectiva e objectiva. 21 - Aqui, no caso concreto, movendo-se os recorrentes em espaços públicos (marina do porto, rodovias, áreas de serviço em rodovias, acesso a hotel e este propriamente dito, que não é espaço privado, salvo os quartos), em circunstância alguma são vistos ou vigiados em local que se possa qualificar como privado, aquilo que deles é visto nessas vigilâncias nada tem de escape de informação privada ou íntima. 22 - Alegar que pertencem à área de privacidade – e portanto excluída da acção policial lícita – os movimentos dos arguidos a partir do aeroporto, as compras no supermercado, diversões e tipos de bares que escolheram, movimentos de e para o quarto de hotel, o escaldão na praia, o tipo e cor do vestuário e calçado é uma compreensível necessidade retórica. Claramente não pertencem à área da privacidade. São características pessoais necessariamente expostas ao público. 23 - Nem as informações assim recolhidas no espaço público e sem que haja a mínima expectativa de privacidade pode ser criticada por violação da auto-determinação informacional ou comunicativa. O conjunto de informações colhida pertence àquilo que é expectável se exponha em público. 24 - O cidadão, quando em público, carrega consigo a sua privacidade, mas aquilo que com ele ocorre em público dificilmente pode ser protegido pela sua privacidade, entendida esta na 2ª esfera, e não revela a sua “reserva de intimidade”. Pode fazê-lo, mas a exposição pública não o impõe. 25 - Naturalmente que a privacidade não é excluída em locais públicos ou abertos ao público se procurada, por exemplo, no interior de um automóvel, numa cabina telefónica, num café ou restaurante, desde que o titular procure o resguardo para a sua privacidade, a possível em público. Mas não se pode “impor” a sua privacidade aos demais em circunstâncias usuais de exposição pública. 26 - O cidadão só está condicionado pelo princípio da legalidade da obtenção da prova contido no artigo 125º do Código de Processo Penal. Rege igualmente o art. 167º do CPP, que regula a produção de prova por meio de reproduções mecânicas, sejam fotográficas, videográficas, fonográficas ou por meio electrónico. E o artigo é claro na afirmação de que tais meios valem como prova se não forem ilícitos nos termos da lei penal. O que remete para o direito penal substantivo, no sentido de que será este a estabelecer os limites de actuação do cidadão na recolha de imagens para prova em processo penal. Questão, aliás, referida no parecer junto. 27 - Assim, a linha de análise deve ter por objecto o tipo contido no artigo 199º, nº 2 do Código Penal, gravações e fotografias ilícitas, tendo sempre presente que se impõe saber não só se há tipicidade da conduta, também se há ilicitude na mesma. 28 - Assim, sendo o direito à imagem tutelado criminalmente no artigo 199º do C. Penal, só será protegido se ocorrer real tipicidade da conduta e “não esteja coberto por uma causa de justificação da ilicitude. É nessa medida que se vem entendendo que é criminalmente atípica, face ao preceituado no art. 199.º, n.º 2 do Código Penal, a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento”. 29 - Não obstante o tipo penal ainda manter uma causa de exclusão de ilicitude – o consentimento, igualmente previsto no artigo 31º, nº 1, al. d) do Código Penal – o desaparecimento da expressão “sem justa causa”, anteriormente prevista no artigo 179º na versão originária do Código Penal, só tem um significado: era uma inutilidade que servia apenas para “advertir” os juízes para a operacionalidade de uma causa de justificação geral. 30 - “Dados sensíveis” da Lei 67/98, de 26/10 são os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos», conforme se estatui no nº 2 do art. 7º da Lei citada. A simples identificação do autor de factos ilícitos criminais ocorridos fora da esfera de privacidade, não se podem classificar como “dados sensíveis”. Logo, não exigem autorização prévia da CNPD pelo que a Lei nº 67/98, de 26/10 não é elemento de relevo no tratamento da identificação por fotograma ou vídeo de arguido em processo penal. 31 - O arguido tem direito à produção de prova mas esse direito está limitado pela sua admissibilidade, relevância jurídica e necessidade (artigos 124º e 340º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal). Se essa concretização é inútil para os autos, o princípio da necessidade impõe que não se admita. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório: No Tribunal Judicial da Comarca no processo comum colectivo supra numerado foi deduzida acusação contra os arguidos: A, gerente de vendas global, casado, nascido a 18.10.1951, natural de Singapura, de nacionalidade britânica, em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde 17.07.2014, actualmente, no Estabelecimento Prisional de Lisboa; B, engenheiro/desempregado, solteiro, nascido a 05.11.1981, natural de Sutton, Inglaterra, de nacionalidade britânica, em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde 17.07.2014, actualmente, no Estabelecimento Prisional de Lisboa; C, designer e capitão de barco, divorciado, nascido em 02.10.1947, natural de Central Patrici, Canadá, de nacionalidade canadiana, em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde 17.07.2014, actualmente, na Zona Prisional da Polícia Judiciária, em Lisboa; D engenheiro/membro de tripulação de embarcação, solteiro, nascido em 16.08.1969, natural de Cornhall, Inglaterra, de nacionalidade britânica, em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde 17.07.2014, actualmente, no Estabelecimento Prisional de Lisboa; E, engenheiro electro-mecânico/cozinheiro, divorciado, nascido em 07.06.1951, natural de Mölin, Suíça, de nacionalidade suíça, em prisão preventiva à ordem dos presentes autos desde 17.07.2014, actualmente, no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária, em Lisboa, pela prática dos factos descritos na acusação, os quais eram susceptíveis de integrar a prática pelos mesmos, em co-autoria material, de um crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado, previsto e punível pelos artigos 21º, nº 1 e 24º, al. c) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B ao mesmo anexa. * O tribunal recorrido veio, por acórdão de 27 de Julho de 2015, a julgar a acusação procedente e a: a) Condenar os Arguidos pela prática, em co-autoria, de um crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado, previsto e punível pelos artigos 21º, nº 1 e 24º, al. c) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B a ele anexa, aplicando: - ao Arguido A, uma pena de 10 (dez) anos de prisão; - ao Arguido B, uma pena de 8 (oito) anos de prisão; - ao Arguido C, uma pena de 9 (nove) anos de prisão; e - a cada um dos Arguidos D e E, uma pena de 6 (seis) anos de prisão; b) Determinou que os Arguidos continuem a aguardar os ulteriores termos processuais sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva – cfr. Artigo 213º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal; c) Condenou os Arguidos na pena acessória de expulsão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 134º, nº 1, al. b) e f), 140º, nº 3, 151º e 144º da Lei 23/2007 de 4 de Julho, pelo período de 5 (cinco) anos; d) Declarou perdidos a favor do Estado o produto estupefaciente, o veleiro, o material informático e de telecomunicações, cartões e acessórios, documentos e quantias monetárias, nos termos dos artigos 35º e 36º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 109º, nº 1 e 3 do Código Penal; e) Determinou a destruição do supra referido produto estupefaciente, nos termos do artigo 109º, nº 3 do Código Penal e 62º, nº 6, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro; f) Condenou os Arguidos no pagamento das custas, com taxa de justiça que se fixa em 6 UC e demais encargos processuais (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III ao mesmo anexa); * Antes disso e no acórdão recorrido havia decidido o tribunal recorrido em sede de conhecimento de questões prévias: «1. Da Nulidade/Inexistência do Inquérito * 2. Da nulidade da busca ao veleiro após as 21 horasA respeito das revistas e buscas, estatui o artigo 174º do Código de Processo Penal que: “1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista. 2 - Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca. 3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência. 4 - O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máxima de 30 dias, sob pena de nulidade. 5 - Ressalvam-se das exigências contidas no n.º 3 as revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos: a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão. 6 - Nos casos referidos na alínea a) do número anterior, a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.” Tratando-se de busca domiciliária, dispõe o artigo 177º do Código de Processo Penal que “1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade. 2 - Entre as 21 e as 7 horas, a busca domiciliária só pode ser realizada nos casos de: a) Terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada; b) Consentimento do visado, documentado por qualquer forma; c) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos. 3 - As buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal: a) Nos casos referidos no n.º 5 do artigo 174.º, entre as 7 e as 21 horas; b) Nos casos referidos nas alíneas b) e c) do número anterior, entre as 21 e as 7 horas. 4 - É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 174.º nos casos em que a busca domiciliária for efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito. 5 - Tratando-se de busca em escritório de advogado ou em consultório médico, ela é, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente. 6 - Tratando-se de busca em estabelecimento oficial de saúde, o aviso a que se refere o número anterior é feito ao presidente do conselho directivo ou de gestão do estabelecimento ou a quem legalmente o substituir.” E, nos termos do artigo 1º, al. m) do mesmo diploma legal, constitui “criminalidade altamente organizada”, entre outras, as condutas que integrarem crime de tráfico de estupefacientes. No caso em apreço, existia a suspeita de carregamento de cerca de 350 Kg de cocaína, isto é, da prática de um crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado, pelo que, nos termos do artigo 177º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, a busca domiciliária poderia ter lugar entre as 21h e as 7h, uma vez que estava em causa criminalidade altamente organizada, havendo apenas que ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução com vista à sua validação. Assim e não obstante o mandado de busca e apreensão de fls. 219 indicar que a busca à embarcação de recreio denominada “GLORIA” só pode ser efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade, o certo é que, para além das 21 horas tal busca cairá no âmbito do referido artigo 177º, nº 2, al. a), carecendo apenas de ser imediatamente validada pelo juiz de instrução criminal, o que veio, aliás, a acontecer por despacho de fls. 406. Com efeito, a execução depois do prazo legal do despacho que autoriza a busca terá como consequência uma nulidade sanável nos termos do artigo 174º, nº 6 ex vi artigo 177º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 486. Aliás, o Tribunal Constitucional em acórdão de 02.05.2007 (vide anot. 2 ao referido artigo 177º, in www.pgdlisboa.pt) considerou que a comunicação imediata da busca ao juiz ou ao magistrado do MP pode ter lugar dentro do prazo de apresentação dos arguidos detidos para primeiro interrogatório judicial; e ainda que o controlo do juiz ou do MP pode ser tácito ou implícito «no sentido de que para efeitos de apreciação e validação da busca domiciliária realizada é suficiente que o juiz de instrução validade as detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em ordem à fixação de uma medida de coacção, sem expressa ou inequivocamente declarar que valida a busca realizada». Ainda que assim não fosse, as nulidades insanáveis encontram-se taxativamente previstas no artigo 119º do Código de Processo Penal, além de outras cominadas em outras disposições legais. A nulidade ora invocada não se encontra prevista no referido artigo nem noutra disposição legal. Do mesmo modo, também não se encontra prevista no elenco do artigo 120º (Nulidades dependentes de arguição), as quais, aliás, respeitando ao inquérito, teriam que ser invocadas até ao encerramento do debate instrutório (nº 3 do mesmo artigo 120º). Não se verifica, deste modo, qualquer nulidade da busca realizada ao veleiro. * 3. Da nulidade da busca à garagemDesde logo, de referir que não foi efectuada qualquer “busca à garagem”, mas sim à viatura com a matrícula 04-LL-21, utilizada pelo Arguido B e que se encontrava aí parqueada. Seja como for e como explica Paulo Pinto de Albuquerque a este respeito, in ob. cit., pp. 481/482 que «A “casa” não tem de ser um imóvel. Um carro ou uma roulotte, em trânsito ou estacionados, podem ser uma casa habitada (acórdão 452/89). Condição é que eles sirvam de habitação, de local onde o visado tem a sua vida e bens domésticos, onde ele desenvolve a sua vida íntima. A “habitação” da casa não implica nem uma relação de exclusividade nem de durabilidade. Uma casa de férias habitada por temporadas ou um quarto de hotel ocupado uma vez na vida também é uma “casa habitada” para o efeito do artigo 177º (…). A “dependência” tem de ser fisicamente contínua à zona de habitação e manter-se no espaço de reserva da vida íntima do visado para merecer a protecção do artigo 177º. Não é uma dependência do domicílio do visado uma garagem colectiva de um condomínio que se encontra fechada, mas que todos os condóminos usufruem igualmente (…)». No caso concreto, tratando-se de garagem do Hotel onde o Arguido se encontrava hospedado e à qual tinha acesso qualquer cliente (pagando ou não um extra), não se pode dizer que se tratasse de um espaço de reserva da vida íntima do Arguido B. Acresce que, do despacho de fls. 21 a 23 pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal nas buscas autorizadas ficaram “abrangidos todos os anexos e dependências dos alvos a buscar (todas as divisões, parqueamento, garagens e arrecadações), caixas de correio e viaturas utilizadas pelo visado”. De referir ainda (embora já sem relevância, atendendo ao que acima já se deixou exposto) que, decorre da prova testemunhal produzida que o acesso à garagem da referida unidade hoteleira foi feito com a colaboração dos respectivos responsáveis, os quais abriram o portão de acesso exterior para entrada de veículos da Polícia Judiciária. Por fim e ainda que assim não fosse, valem aqui os mesmos argumentos já expendidos a respeito da alegada nulidade da busca realizada ao veleiro. * 4. Do mandado de busca à viatura emitido pelo OPCCompulsados os autos, verifica-se, desde logo, que, por despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 11, foi delegada a competência na Polícia Judiciária para a realização das diligências de investigação ao abrigo do disposto no artigo 270º do Código de Processo Penal. Acresce que o artigo 12º, da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto dispõe que: “1 - As autoridades de polícia criminal referidas no n.º 1 do artigo anterior têm ainda especial competência para, no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar: a) A realização de perícias a efectuar por organismos oficiais, salvaguardadas as perícias relativas a questões psiquiátricas, sobre a personalidade e de autópsia médico-legal; b) A realização de revistas e buscas, com excepção das domiciliárias e das realizadas em escritório de advogado, em consultório médico ou em estabelecimento hospitalar ou bancário; c) Apreensões, excepto de correspondência, ou as que tenham lugar em escritório de advogado, em consultório médico ou em estabelecimento hospitalar ou bancário; d) (Revogada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto.) i) Existam elementos que tornam fundado o receio de fuga ou não for possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária; ou ii) No decurso de revistas ou de buscas sejam apreendidos ao suspeito objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime ou constituam seu produto, lucro, preço ou recompensa. 2 - A realização de qualquer dos actos previstos no número anterior obedece, subsidiariamente, à tramitação do Código de Processo Penal e tem de ser de imediato comunicada à autoridade judiciária titular da direcção do processo para os efeitos e sob as cominações da lei processual penal. (…)” E, ao abrigo do disposto no artigo 11º, nº 1 da mesma lei, são autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos do Código de Processo Penal: a) Director nacional; b) Directores nacionais-adjuntos; c) Directores das unidades nacionais; d) Directores das unidades territoriais; e) Subdirectores das unidades territoriais; f) Assessores de investigação criminal; g) Coordenadores superiores de investigação criminal; h) Coordenadores de investigação criminal; i) Inspectores-chefes. No caso em apreço, o mandado de busca e apreensão ao veículo automóvel de matrícula 04-LL-21 e que consta de fls. 75 foi emitido pelo Inspector-chefe da Polícia Judiciária, F, invocando expressamente os artigos 1º, 174º, nºs 1 e 2, 178º e 249º do Código de Processo Penal, bem como os artigos 11º, nº 1, al. i e 12º, nº 1, al. b) e c) da Lei nº37/2008, de 6 de Agosto. Assim e tendo sido emitido ao abrigo da delegação de competência por despacho de fls. 11 e dos artigos acima referidos, o mandado de busca e apreensão ao veículo automóvel de matrícula 00-OO-00, não padece de qualquer vício, tendo, inclusivamente, sido validadas as respectivas apreensões (cfr. fls. 389 e 406). De resto, valem também nesta parte, o acima referido quanto a eventual nulidade e da oportunidade da sua invocação. * 5. Da nulidade do despacho que indeferiu as diligências requeridas pelo Arguido DPara além de se manterem válidos os fundamentos do despacho que indeferiu as diligências requeridas, entende-se que não estamos perante a insuficiência de inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, nem a omissão de diligências que se reputassem essenciais para a descoberta da verdade para os efeitos da nulidade previsto e punível no artigo 120º, nº 2, al d), do Código de Processo Penal. Como muito bem sublinha o Exmo. Procurador da República, quanto ao acesso ao computador pessoal do Arguido, o mesmo não concretizou quais os elementos que aí se poderia encontrar com interesse para a boa descoberta da verdade. No que tange à informação a solicitar à Marina, para além do Arguido, caso nisso visse verdadeiro interesse para a sua Defesa, poder ter feito tal solicitação directamente, continua este Tribunal a não ver qualquer interesse em tal diligência. Com efeito, resulta dos elementos juntos aos autos (fls. 359 e ss. e 521 e ss.) que foram atribuídos à embarcação GLORIA três cartões de acesso, sendo dois deles de acesso pedonal e um de acesso a viaturas. Mais resulta de forma clara que tais cartões ficaram associados à embarcação e não a qualquer viatura automóvel em concreto. Termos em que se conclui que, tais diligências de prova não só não se mostram necessárias para a boa decisão da causa como se traduziriam em actos inúteis. Pelo exposto, julga-se, igualmente, improcedente a invocada nulidade.» *
*** Inconformados, interpuseram recurso todos os arguidos com as seguintes conclusões (transcritas):
Arguido A Nulidade de Inquérito: 1) A Policia Judiciária recebeu informação da Policia Inglesa e Espanhola, conforme fls. 2 e 3 no que se refere a estes autos, identificando o arguido B e o dia em que o mesmo chegava a Faro. Arguido B 1. A busca realizada na garagem do Hotel, que veio a permitir, mais tarde, a busca no veículo de matrícula 00-OO-00, alugado pelo ora recorrente, é nula e de nenhum efeito. Arguido C 1. O Ministério Público apenas delegou competência na Policia Judiciária para proceder à investigação no dia 15 de Julho de 2014, às 11.30 horas; Arguido D 1. A busca realizada ao Veleiro Gloria, é nula, nos termos dos arts. 126º e 177º ambos do CPP. - A forma como os crimes foram praticados - A gravidade do ilícito - O modo de execução - Os antecedentes criminais, só a título de condenação e não de atenuação 47. O tribunal não ponderou as condições pessoais do agente, não ponderou a ausência de antecedentes criminais. Arguido E I) o Tribunal a quo entendeu dar como provado que o arguido E praticou os factos constantes da acusação, tendo referido na motivação da decisão que formou a sua convicção com base em análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento valorados na sua globalidade. * Respondeu a Digna Procuradora junto do Tribunal da Comarca, com as seguintes conclusões: 1. um espaço de estacionamento de um hotel, ainda que coberto, de modo algum é equiparável a uma garagem de uma habitação, não se tratando de um espaço de reserva da vida íntima do visado que mereça a protecção do artigo 177º, pelo que era permitida a entrada dos elementos da PJ na garagem do Hotel, não tendo sido cometida qualquer nulidade; * O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer defendendo o decidido. Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e responderam os arguidos E e C. Foi junto parecer jurídico subscrito pelos ilustres professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Figueiredo Dias e Costa Andrade que concluem: «13. A serem pertinentes, como se nos afigura, as considerações que deixamos expendidas permitem-nos concluir com segurança: *** B - Fundamentação: B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. Os Arguidos A, C, D e E diligenciaram, em conjunto e conforme previamente combinado entre todos, na concretização de um transporte para a Europa com recepção em Portugal de produto estupefaciente (designadamente, cocaína). *** B.1.2 - Não se provou que: a) Nas circunstâncias referidas em 16. o Arguido A mantinha contactos com os indivíduos que forneceram a cocaína que veio a ser transportada no mencionado veleiro. b) A empresa de que o Arguido é director tem como clientes instituições militares, instituições governamentais, empresas financeiras, empresas corporativas e celebridades. *** B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto: «O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade. * *** Cumpre conhecer. B.2 – Questão prévia e metodologia. B.2.1 – Questão prévia Uma questão prévia se impõe esclarecer face à configuração dada aos autos pelo despacho de fls. VI-2.130-2.133 que indeferiu um pedido de tradução do acórdão condenatório ao recorrente B (requerimento a fls. VI-2.09-2.1010). A um pedido de tradução do acórdão condenatório e subsequente pedido de concessão de prazo suplementar para recorrer, o tribunal respondeu com um duplo indeferimento, o de tradução e o de concessão de prazo suplementar de recurso. Tudo com base fundamentadora no acórdão desta Relação de Évora de 22-04-2010 (proc. 11/05.0FCPTM.E1) que entendeu que a omissão de tradução ou a falta de nomeação de intérprete a arguido estrangeiro que não percebe a língua portuguesa, aquando da notificação da acusação, ou da notificação do despacho que designa datas para julgamento, constitui uma nulidade relativa, sendo extemporânea a sua arguição apenas em sede de recurso. Essa não é, no entanto, a nossa percepção do problema, como já expressámos no acórdão desta Relação de Évora de 26-06-2007 (proc. 848/07-1) nos seguintes termos: III – Porque o arguido tem um direito pessoal, concreto e efectivo à notificação da acusação em língua que entenda, não basta a simples notificação do defensor nomeado para que aquele direito se considere concretizado. E, note-se, é a própria legislação portuguesa a colocar em pé de igualdade a notificação da “acusação” (realidade sobre que se debruça a jurisprudência convencional) e a notificação da sentença (e de outros actos que aqui não importam). Esta é a leitura que dimana da actual redacção do artigo 113º, nº 10 do Código de Processo Penal que frontalmente assevera que «as notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado; neste caso, o prazo para a prática de acto processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efectuada em último lugar». Pela consulta dos autos constata-se que o recorrente A veio entretanto a solicitar a tradução do acórdão (fls. VII-2.160-2.161), o que lhe foi deferido pelo apropriado despacho de fls. VII-2.164-2.165, com a ressalva dos efeitos do despacho anteriormente referido, o de fls. VI-2.130-2.133. Ou seja, partiu-se do princípio de que, quanto ao prazo de recurso e por ter existido indeferimento da concessão de prazo suplementar de recurso, se havia formado caso julgado. Cremos que não será assim. O caso julgado só se forma sobre a concessão de um prazo “suplementar”, realidade que não está aqui em causa. O que aqui está em causa é saber se ainda decorre neste momento o prazo de recurso por … invalidade da notificação do acórdão. E sobre isto não há caso julgado. O não acautelar dos direitos dos arguidos na inexistência de uma tradução da decisão condenatória, como se eles entendessem a língua portuguesa e pudessem ler a decisão que lhes aplicou penas de prisão, olvida uma simples realidade … e o artigo do Código de Processo Penal supra citado. Poderá afiançar-se que os arguidos foram “notificados” do acórdão condenatório no respectivo acto de leitura, assistidos por advogado e intérprete. É posição que não deixa de estar de acordo com a literalidade normativa e a normalidade do sistema, enquanto realidade quotidiana, a dos arguidos que entendem a língua, acobertada pela leitura imediatista do nº 4 do artigo 372º do C.P.P. Cremos, no entanto, que a necessidade de dar cumprimento ao disposto no artigo 372º, nº 5 do C.P.P. (entrega, pelo secretário, de cópia de sentença ou acórdão lavrados em primeira instância, o que deve ser feito de imediato de forma a permitir que o arguido e seu mandatário tenham completo conhecimento da decisão) e a contagem do prazo de recurso a partir do depósito da sentença na secretaria altera esta visão das coisas. O legislador parte assim, saudavelmente, da certeza de que ser notificado de uma sentença condenatória não é só ouvir ler um texto sem ter acesso ao mesmo, não só para compreender o dispositivo, também saber os factos que foram considerados praticados por eles e os fundamentos inerentes aos factos e ao enquadramento jurídico e, sobre tudo, ponderar o exercício do direito ao recurso. Daí – uma das razões – para que o início do prazo de recurso se não conte da data da leitura da decisão, sim da data do respectivo depósito [art. 411º, nº 1, al. b) do C.P.P.]. Se para o cidadão arguido que entende a língua portuguesa tal é essencial e reconhecido pelo legislador (e pelo senso comum), o mesmo deve ser reconhecido para cidadão que não entenda a língua. Por maioria de razão, aliás. Para quê entregar cópia da sentença em português a cidadão que não sabe português? E será uma nulidade sanável a não entrega de sentença em português a quem não saiba a lingua? Ou, de acordo com uma regra de senso comum, nestes casos de arguido que não entenda a língua a entrega de tradução da decisão não será uma condição de validade do acto? É que, pensamos nós, não faz qualquer sentido entregar uma sentença ou acórdão em língua portuguesa … a um inglês, alemão ou chinês que não fale nem entenda a língua de Camões. Ou faz tanto sentido como entregar uma sentença em inglês, alemão ou mandarim a um cidadão português (um juiz ou magistrado do Ministério Público, por exemplo) condenado naqueles países. De tudo poderíamos concluir que a notificação não estaria completa se, de imediato ou em prazo razoável, não fosse entregue cópia da decisão … em língua que se entenda ou se deva entender, caso não seja possível ou seja desnecessária a tradução para determinada língua materna. E, nos termos do disposto no nº 10 do citado artigo 313º e como o prazo para a prática de acto processual subsequente se conta “a partir da data da notificação efectuada em último lugar”, a notificação da decisão só estaria completa no momento da entrega da tradução. Isto na medida em que o legislador supõe que a decisão é depositada “de imediato” e que, “de imediato”, o secretário entrega cópia daquela. Admitimos que seja uma leitura que incomoda a costumeira. Cremos ser a mais correcta para as decisões de primeira instância cuja exigência se contém naquele preceito com esse significado restrito, que se não estende aos tribunais superiores onde a razão de ser da norma se não justifica e os procedimentos são diversos. O acórdão foi lido a 27-07-2015 e depositado a 03-08-2015 (fls. 2.116). Ou seja, sequer a possibilidade de início de contagem do prazo de recurso se pode considerar cumprida na primeira data por inexistência de decisão depositada ou seja, entregue e disponível para cópia. A tradução da decisão foi junta aos autos a 03-09-2015 (fls. 2.242 a 2.283). Ou seja, só a partir dessa data – ao menos – se iniciaria a contagem do prazo de recurso. Mas os arguidos interpuseram recurso a: 02-09-2015 – Arguido C (fls. 2.172); 02-09-2015 – Arguido B K (fls. 2.222); 07-09-2015 – Arguido E (fls. 2.437); 07-09-2015 – Arguido A (fls. 2.547); 02-09-2015 – Arguido D (fls. 2.637). A admitir uma nulidade ou irregularidade (por incompletude) da notificação, a mesma mostra-se sanada na medida em que os arguidos se prevaleceram da faculdade pretendida com a notificação, através da interposição de recurso – artigo 122º, nº 1, al. c) do C.P.P.. * B.2.2 – Metodologia. É sabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Sendo vários os recursos dos arguidos e vários os pontos de inconformidade de cada um deles, assim como o tratamento das mesmas matérias em vários recursos, a abordagem que se entende mais indicada passa por tratar conjuntamente num capítulo inicial as questões relativas a nulidades processuais comuns a vários arguidos ou por vários invocadas, relegando o conhecimento de razões específicas invocadas por cada um dos arguidos para capítulos que lhes sejam próprios. Assim, serão tratadas no ponto B.3 as questões relativas às nulidades processuais comuns. No último ponto desta secção abordar-se-á a questão da violação da privacidade, enquanto alegação plural quanto às nulidades. Serão tratados nos pontos B.4 e seguintes os restantes temas relativos a cada um dos arguidos, com remissão para o primeiro tratado, no caso de questões comuns que não acrescentem argumentos diversos. Excepto as questões relativas às penas e ao perdimento de valores e objectos, que serão tratados em B.9 e B.10. Serão aquelas: - a nulidade por “falta de comunicação” - “falta de inquérito” (arguidos A e C); - a nulidade da busca à “garagem" (arguidos A, B e C); - a nulidade da busca ao veleiro após as 21 horas" (arguidos C e D); - a proibição de valoração de conversas informais (arguidos A e C); - a violação da privacidade. Serão estas: Arguido A: - a nulidade do acórdão por falta de fundamentação – conclusões 33ª a 60ª; - a impugnação da matéria de facto – conclusões 61ª a 115ª; - o tráfico agravado – conclusões 116ª a 122ª; - da apreensão de dinheiro – conclusões 123ª a 126ª; - a medida da pena – conclusões 127ª a 138ª. Arguido B - a qualificativa prevista na alínea c) do art.º 24.º de Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – conclusão 10ª; e - a pena de prisão que lhe foi imposta – conclusões 11ª a 15ª. Arguido C - a nulidade do acórdão por falta de fundamentação – conclusões 31ª e 32ª; - a impugnação da matéria de facto dada como provada – conclusões 33ª a 36ª; - a qualificativa do crime de tráfico de estupefacientes – conclusões 37ª a 39ª; - a medida da pena – conclusões 40ª e 41ª; - a perda do veleiro a favor do Estado – conclusões 42ª a 44ª. Arguido D - a nulidade do despacho que indeferiu as diligências requeridas – conclusões 9ª a 14ª; - a impugnação da matéria de facto e o in Dubio Pro Reo – conclusões 14ª a 37ª; - a qualificação por tráfico agravado – conclusões 31ª a 37ª; - a comparticipação – conclusões 38ª a 44ª - a medida da Pena – conclusões 45ª a 50ª; - os objetos e dinheiro declarados perdidos a favor do estado – conclusões 51ª a 54ª. Arguido E - a impugnação da matéria de facto – conclusões XI a XXV ; - a forma de comparticipação – conclusões XXVI a XXXVIII; - a agravação – conclusões XXXIX a XLVII; - a determinação da pena concreta – conclusões XLVIII a LV; - a violação do princípio in dubio pro reo - conclusões LVI a LXI; - a declaração de perdimento a favor do Estado do telemóvel e Ipad – conclusões LXII a LXIX. * B.3 – Das nulidades. B.3.1 – Da nulidade por “falta de comunicação/inquérito”. Pelos arguidos vem arguida a nulidade do inquérito nos termos dos artigos 119°, alínea b) e 122°, ambos do Código de Processo Penal, na medida em que a notícia da chegada ao aeroporto do arguido B foi conhecida da Polícia Judiciária no dia 11.7.2015 e nesse mesmo dia foram iniciadas diligências que se prolongaram até ao dia 15.7. A comunicação ao Ministério Público só veio a ocorrer no dia 15.7.2014. Entendem os arguidos que foram violados os artigos 48°, 242°, 243°, 224°, 248° e 249° do Código de Processo Penal. A arguição, quando nominada como nulidade por “falta de inquérito” faz supor a invocação de violação do disposto na al. d) do art. 119º do código. No entanto a invocação factual e a norma supostamente violada, tal como arguida pelos recorrentes, centra-se na falta de comunicação ao MP e na al. b) do preceito, isto é, a falta de promoção do processo pelo Ministério Público. Ora, como é evidente no início do processo (1º vol.), a comunicação ao Ministério Público ocorreu em 15-07-2015, dentro do prazo de 10 dias previsto no art. 248º, nº 1 do C.P.P.. Não há, portanto, falta de promoção do processo pelo Ministério Público, pois que tal apenas ocorreria se aquele prazo não fosse cumprido ou a polícia, cumprindo-o, agisse abusivamente. E, no essencial é isto que os arguidos invocam: a não-comunicação em momento anterior por abuso de funções policiais. A questão, assim, limita-se a ser uma tomada de posição sobre saber se o nº 1 do art. 248º do C.P.P. deve ser lido restritivamente de forma a apenas permitir, antes da comunicação ao Ministério Público, actividades que caibam na previsão dos artigos 249º a 252º do diploma. Também, se a expressão “no mais curto prazo” significa menos que o prazo de 10 dias ali previsto. Isto é, estão as entidades policiais amarradas “by the book”, numa leitura restritiva, a benefício dos arguidos? Ou, a realidade está contida naqueles poucos preceitos? Isto quanto à primeira questão. Quanto à segunda se o “curto prazo” implica leitura diversa da literal. Entendemos que não – para ambas as questões - pois que o nº 1 do referido artigo 248º permite suficiente margem de manobra para que se entenda nele estar contida a possibilidade de recolha de informação no sentido de confirmar comunicação de prática de actos ilícitos e de comprovar identidade e localização dos seus agentes, assim como o local da prática daqueles actos. Quanto à segunda porque nos parece – para o caso concreto – que se está a esquecer uma realidade factual incontrolável: por um lado, a comunicação foi feita em 24 horas; por outro, dez dias são prazo aceitável. Receber informação dando conta de que indivíduos que se não encontram em território nacional para aqui se dirigem para concretizar a prática de actos inseridos no conceito geral de criminalidade altamente organizada supõe, implica, a recolha de informação que comprove e elucide as entidades policiais quanto ao teor e credibilidade daquela informação. Não aceitar isto é viver longe da praxis. Ora, recebida a comunicação a 11-07-2014 justifica-se que não haja imediata comunicação face à necessidade de a comprovar. De notar que a prática de ilícitos só vem a ocorrer a 14-07-2015, pelo que a vigilância tinha que necessariamente decorrer de 11-07 a 14-07 e que decorrer com a devida retenção de informação, que é coisa consabidamente desrespeitada no país. Se a comunicação ao Ministério Público vem a ocorrer em 15-07-2014, não só o dispositivo legal é cumprido dentro do prazo como a não-comunicação imediata se apresenta como justificada face à concreta conformação das acções de vigilância a desenvolver. E, por tudo, a comunicação é feita em 24 horas desde a prática do ilícito em território nacional. Aceita-se, portanto, que a comunicação a entidade que, em regra, se caracteriza legalmente pelo excessivo formalismo coloque algumas reservas enquanto se não assegura o objectivo de recolha de informação e a salvaguarda da prova. É claro que isto também se centra numa realidade – a eficaz e respeitadora recolha e tratamento de informação e o seu sigilo - que o país não soube resolver em 40 anos, mas disso não curam os autos. Acresce que o acompanhamento dos suspeitos se revela essencial para surpreender o momento em que se torna necessário praticar os actos cautelares necessários e adequados ao caso concreto. Porque dessa vigilância depende o saber qual o local e o momento da prática dos actos ilícitos e quem e quantos são os seus agentes. Só isso abre lugar à certeza de se poderem praticar os actos cautelares necessários. Sendo certo que as normas pretendidas inconstitucionais pelos recorrentes visam impedir a existência de um pré-inquérito ou inquéritos secretos, a sua leitura nos termos expostos garante o seu acerto constitucional e evita aquilo que, na essência, é a preocupação da norma, o abuso policial. E, note-se, a norma – artigo 248º, nº 1 do C.P.P. – dispõe que os OPC devem comunicar no mais curto prazo desde que tiverem … “…notícia de um crime por conhecimento próprio ou mediante denúncia …”. E daqui decorre, igualmente que, comprovada a prática dos ilicitos - e do local onde ocorre - e a possível identificação dos seus agentes, a comunicação é feita no dia seguinte. Ou seja, em 24 horas desde a prática do ilícito (entrada nas águas territoriais portuguesas), facto anterior, aliás, ao “conhecimento próprio” que só ocorre com a busca à viatura, momento em que a entidade policial constata a existência de estupefaciente na posse dos suspeitos. Deve realçar-se, portanto, que a informação policial recebida pela polícia portuguesa não era uma denúncia para os efeitos do referido no nº 1 do preceito, sim isso mesmo, uma informação policial que necessitava de ser confirmada e que não se enquadra no conceito de denúncia contido no artigo 242º do C.P.P.. Se tratássemos como “denúncia” todas as informações policiais não haveria espaço eficaz para o seu tratamento. Como sabido, o excesso de informação conduz à ineficácia. Acresce que os factos entre os dias 11 e 14 não se confirmaram e basta pensar num desvio de rota do iate para se concluir pela necessidade de um mínimo comprovante quanto à informação recebida. Uma informação policial também não se confunde com “notícias de crimes manifestamente infundadas”, previsão do nº 2 do preceito. Vero que as normas indicadas não permitem uma leitura que impeça a prática de actos policiais que comprovem a prática de actos ilícitos criminais e de quem são os seus agentes. Acresce que razão alguma, literal, sistemática ou teleológica, permite que se afirme que o prazo de 10 dias do artigo 248º, nº 1 do C.P.P. é excessivo e, logo, inconstitucional. Nem se vê como um prazo de 24 horas pode funcionar como prazo limite. Não há parâmetro legal onde o ancorar. Porquê 24? Porque não 12, ou 6? A ser assim sempre seria mais adequada importar o valor constitucional das 48 horas. Mas nega-se a adequação dessa leitura na medida em que – excluindo o abuso policial, casuísticamente apreciado – o prazo de 10 dias é uma forma adequada de compatibilizar valores constitucionais e as necessidades de recolha de informação, essencial nos dias que correm. Isto é, o artigo 248º nº 1 do Código de Processo Penal permite – no prazo ali indicado e sem abuso policial - a recolha de informação que vise assegurar a prática de actos cautelares previstos nos artigos 249º a 252º do diploma. Não houve, pois, violação de qualquer preceito constitucional nem prática de qualquer nulidade insanável, designadamente a prevista na al. b) do artigo 119º do Código de Processo Penal. * B.3.2 – Da nulidade da busca à “garagem" do Club. Esta é uma arguição de três dos arguidos (A, B e C), que afirmam nula a busca efectuada na garagem do Club, por não ter sido realizada em cumprimento de um mandado judicial pois que, naquele momento, a garagem constituía uma extensão das suas habitações ou domicílios (quartos do Hotel) e, além disso, trata-se de espaço privado, reservado aos hóspedes do hotel, considerando terem sido violados os artigos 174°, n. 5 e 251°, ambos do Código de Processo Penal. Invocam, portanto, a proibição de valoração de tal prova nos termos do artigo 126°, n. 3 do Código de Processo Penal. A este respeito, tendo em mente os direitos fundamentais de reserva da intimidade da vida privada e familiar e da inviolabilidade do domicílio (artigos 26º, nº 1 e 34º da Constituição da República Portuguesa), tendo presentes os artigos artigo 12.º do DUDH (“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”) e artigo 8.º, n.º 2, do CEDH (“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”) resta apurar se, de facto, tais normativos foram postos em causa no caso sub iudicio. E se será caso de aplicação do disposto no nº 3 do artigo 126º do Código de Processo Penal ao determinar que “ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”. Nos autos resulta comprovado que: 38. Também o Arguido B, após prévia combinação com o Arguido A, veio a deslocar-se para Portugal nesse dia 11 de Julho, com o propósito de receber deste último a cocaína e com vista a guardá-la e, posteriormente, entrega-la a terceiros não identificados. * 117. Mais tarde, procedeu-se a busca no referido veículo Nissan, que se encontrava ainda parqueado naquela garagem do mencionado Hotel, sob controlo no exterior, dos Inspectores da PJ desde a noite do dia anterior, tendo-se detectado no seu interior, as mencionadas seis malas que, no dia 14, o Arguido B tinha recebido do Arguido A, completamente cheias de produto estupefaciente, com um total de 150 embalagens de cocaína. 118. Tal estupefaciente foi, assim, apreendido ao Arguido B. 119. As 150 embalagens continham cocaína com o peso bruto de 167.916,515 gramas, sendo que foi constituída amostra cofre com 1.015,730 gramas (peso líquido) e remanescente com 166.900 gramas (peso bruto). 120. Dentro da mala/saco de cor preta que continha embalagens com cocaína foi encontrado um ticket referente ao pagamento de comida adquirida no “Somers Supermart”, de St. Georges, nas Bermudas, com data de 19 de Julho de 2014. 121. Dentro da viatura foi ainda encontrado e apreendido ao Arguido B, um recibo da empresa Yorcarhire, auto Rent VI, com o nº 71670, emitido em nome do Arguido, relativo ao aluguer da viatura Nissan com a matrícula 00-OO-00, com data de entrega em 11.07.2014 e devolução em 18.07.2014; e um termo de responsabilidade referente ao contrato de aluguer da referida viatura e munida do dispositivo Via Verde. Estes os factos relativos à busca realizada e que dizem respeito à viatura detida pelo arguido B. A fls. I-75 encontra-se o “mandado de busca e apreensão” - assinado pelo Inspector-Chefe da PJ F – «do veículo automóvel da marca Nissan, matricula 00-OO-00, o qual se encontra na garagem da unidade hoteleira ». A fls. I-83-84 a concretização de tal mandado consta do «auto de busca e apreensão em viatura» de matrícula 04-LL-21. O teor de tal auto dá conta de que foi efectuada uma busca a uma viatura perfeitamente identificada. Não há referência a uma busca à garagem ou apreensão aqui efectuada. Não há, portanto, uma busca à garagem, sim uma busca a uma viatura que se encontrava numa garagem. Coisas distintas mas que suscitam o mesmíssimo problema jurídico. Trata-se, então, de saber se a garagem do Hotel é uma extensão dos quartos de hotel. Estes, por seu lado, não suscitam dúvidas quanto à sua natureza de espaço reservado e equivalente a domicilio, não obstante transitório. De qualquer forma não está em causa a natureza “domiciliária” do quarto de hotel ocupado pelo arguido mas apenas o saber se essa garantia reconhecida ao quarto de hotel abrange a garagem. Parece poder afirmar-se que o conceito de domicílio se não restringe ao conceito civilístico correspondente ao local de habitação, enquanto “Domicílio voluntário geral” (1. A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente, em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles. 2. Na falta de residência habitual, considera-se domiciliada no lugar da sua residência ocasional ou, se esta não puder ser determinada, no lugar onde se encontrar”). E nesse mesmo sentido fundamentou o acórdão do TC nº 452/89 quando afirmou que a inviolabilidade do domicílio é uma garantia que excede o conceito civilístico de domicílio, apresentando «uma dimensão mais ampla, isto é, e mais especificamente, tem por objecto a habitação humana, aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar […]» Trata-se, portanto, de uma noção material de domicílio a ser apreciada casuisticamente. Atendo-nos ao caso concreto o que está em causa é um espaço designado como garagem e cujas características contratuais se definem como “serviço privativo de garagem” e fisicas como “espaço amplo e aberto” no interior do hotel permitindo o aparcamento de várias viaturas. Ou seja, trata-se de espaço de aparcamento em garagem de uso geral dos hóspedes do hotel que contratem o serviço. Não estamos perante um espaço vedado para guarda de uma só viatura e outros pertences, sim de um só espaço amplo de uso por uma multiplicidade indeterminada de hóspedes para guarda de viaturas indeterminadas em momentos indeterminados. Se é certo que a jurisprudência aceita que uma garagem vedada e contígua à habitação merece, por imposição de lei ordinária (a “casa habitada ou numa sua dependência fechada” do artigo 177º, nº 1 do C.P.P.), a mesma protecção dada ao domicílio, já o mesmo não ocorre quando entre a casa de habitação e a garagem deixa de haver a contiguidade inerente ao conceito de “dependência”, ou anexo e lhe é inerente a ausência de privacidade por se tratar de espaço não vedado e acessível a outrém. E de espaços não vedados em garagens recordamo-nos de dois casos, as garagens (espaços de aparcamento, não fechados) de condomínios e de espaços hoteleiros. A este propósito é bastante claro o acórdão do STJ de 20-09-2006 (proc. 06P2321, sendo relator o Cons. Armindo Monteiro): «IX - Uma garagem fechada - e não um espaço aberto, inserto num espaço mais amplo de garagens de um condomínio - como é a natureza daquela onde foi efectuada a busca nos autos, é um espaço fechado dependente da casa, local ocupante de uma relação de complementaridade com aquela - foi arrendada conjuntamente com o apartamento pelo arguido - concorrendo ambas para a realização dos fins próprios do domicílio, sem ser, no entanto, isoladamente, considerada domicílio. No caso, tratando-se de garagem fechada integrada em espaço de condomínio o STJ aceitou – aceitaria, já que o problema deixou de existir face ao válido consentimento do visado à data da realização da busca – a necessidade de emissão de mandado de busca domiciliária, considerando a garagem “dependência fechada”. Com os mesmos critérios no essencial (e o mesmo obstáculo, o consentimento) já o Tribunal Constitucional se pronunciou no mesmo sentido, agora num espaço vedado – um condomínio – mas sem garagens vedadas.[3] E concluiu: «4 - A especificidade do caso radica no facto de esse espaço ser fisicamente descontínuo em relação à zona de habitação e de a ele terem acesso não só o próprio arguido, ora recorrente, como os demais condóminos ou eventuais arrendatários, comodatários, etc.. E cremos ser isto que caracteriza o caso dos autos: um “serviço privativo de garagem”, em espaço não vedado, num hotel para aparcamento de viatura. E isto nunca constituirá uma “dependência fechada” de uma casa de habitação. Esta realidade não beneficia da garantia de inviolabilidade da vida privada que se reconhece a um quarto de hotel, nem é seu espaço contíguo. Afirmar o contrário é afirmar que é domicílio de hóspede de hotel ou equiparado o espaço de aparcamento da sua viatura num parque público vizinho contratado parcialmente pelo estabelecimento hoteleiro, como ocorre em vários estabelecimentos hoteleiros em Portugal. E se o parque é camarário, é afirmar que parte do parque camarário é domicílio dos hóspedes do hotel. Ou seja, o dito parque público bem como os “espaços” de aparcamento passarão a ser quota-parte indeterminada do domicílio de pessoas a determinar por futuro contrato de alojamento, hospedagem, albergaria ou pousada ou outro. O argumento, pelo absurdo a que conduz, é elucidativo. Se a extensão do conceito de domicílio a um quarto de hotel é uma extensão aceitável e compreensível – e com garantia constitucional - a posterior extensão do conceito de “dependencia fechada” a um espaço de garagem de um hotel, por referência a um quarto contratado já é uma dupla extensão injustificada e abusiva e nunca gozaria de garantia constitucional pois que nem a garagem do domicílio disso desfrui. Recordemos que a garagem fechada e contígua apenas disfruta de protecção da lei ordenária, o artigo 177º, n. 1 do C.P.P.. A única justificação da pretensão limita-se a ser a tentativa de “extensão” do espaço vedado à investigação policial, nada mais. Do que se trata, pois, é de uma simples busca num veículo aparcado num local que nem é domicílio nem dependência imediata deste. De tudo se pode concluir que no caso concreto não estamos perante uma busca domiciliária que siga o regime do artigo 177º, nº 1 do Código de Processo Penal. Assim, tratando-se de busca e apreensão não-domiciliárias, a regra é a ordem ou autorização depender de despacho da autoridade judiciária competente (artigo 174º, nº 3 do C.P.P.). No caso, no entanto, é aplicável o disposto no artigo 174º, nº 5, al. a) do diploma, que se mostra validamente ordenada por OPC, nos termos dos artigos 11º, nº 1. al. i) e 12º, nº 1. al. b) da Lei nº 37/2008, de 06-08. Resta acrescentar que a presença da polícia na “garagem” do hotel foi consentida pelos respectivos responsáveis do Hotel, consentimento que é válido para esse local amplo e de acesso meramente condicionado a uma multiplicidade de hóspedes do hotel, naturalmente não se estendendo à busca à viatura. É por tudo, improcedente a arguição de nulidade da busca à viatura que se encontrava na garagem do hotel. * B.3.3 – Da nulidade da busca ao veleiro após as 21 horas. Argumentam os arguidos C e D com a nulidade da busca efectuada ao veleiro, porquanto o mandado judicial para a realizar permitia que a mesma ocorresse entre as 7h e as 21h, tendo a mesma sido realizada às 23h15m, violando-se o disposto nos artigos 1260 e 177º, ambos do Código de Processo Penal. Argúem os arguidos e o parecer junto, igualmente, com a circunstância de o despacho judicial não autorizar a busca entre as 21 e as 7 horas, aliás, de ter sido expresso na proibição de realização da busca no horário nocturno. Aqui labora-se em erro de facto. Aquilo que, no que à busca ao veleiro diz respeito, o Ministério Público promoveu foi (fls. 15-16): «(…) 3. Dos mandados de busca: Só no mandado judicial (fls. 47) vem a aparecer a expressão “A presente diligência só pode ser efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade – artigo 177º, nº 1 do C.P.P.”. Isto é, a essência da decisão judicial foi deferir a promoção do Ministério Público de requerer a busca nos moldes promovidos – incluindo o período nocturno – em lado algum dela constando qualquer limitação horária ou restrição ao conteúdo do nº 1 do artigo 177º do C.P.P.. A decisão judicial que é expressa na indicação dos números aplicáveis de vários artigos – 174º, n. 2 e 3, 178º, n. 1 e 269º, n. 1, al. c) – é clara na remissão para a totalidade do artigo 177º, incluindo, portanto, o nº 2 do preceito. Nada nele restringe o horário da busca. Assim, há uma evidente desconformidade – contradição flagrante – entre a decisão judicial e o teor dos mandados de busca. Aquela permitindo – deferindo – uma busca sem limitação horária, estes limitando a busca ao período diurno. Naturalmente que não interessa saber, porquanto não é possível, a razão de tal desconformidade (não espantaria que fosse o costume, o documento-tipo constante de um programa informático feito sem controlo judicial e que é useiro e vezeiro em coisas que tais, o que não invalida que esteja judicialmente subscrito), mas demonstrando que, neste como em outros casos, a modernidade informática não controlada pode ser fidagal inimiga do processo. Dela haverá que extrair as devidas consequências. A primeira consequência é a existência de uma violação de um mandado judicial com um determinado teor restritivo a que as forças policiais não atenderam. Outra é a constatação de que a busca foi efectuada de acordo com o teor do despacho judicial. Assim a nulidade existente diz respeito ao teor do mandado e concretiza-se num mero violar de uma regra de cumprimento do mandado, invocável no acto e sanável se não arguida nesses termos. Trata-se de um mero lapso do tribunal de instrução que emitiu e assinou uns mandados em contradição com o que o próprio ordenou. Mas não se pode afirmar que ocorre nulidade, insanável, de produção de prova, valoração de prova proibida e efeito à distância dela resultante pois que a coberto de um válido despacho judicial que a permite. Improcedente, pois, o invocado. * B.3.4 – Da proibição de valoração de conversas informais com o arguido C. Está em causa, no dizer dos arguidos A e C, a valoração da “conversa” do arguido C com o OPC antes da sua constituição como arguido, concretamente quando lhes indicou onde se encontrava a droga, pois tal valoração contraria o preceituado nos artigos 127°, 129° e 366°, todos do Código de Processo Penal. A este respeito transcrevem-se as conclusões 27ª a 29ª do recurso do arguido A: «27 - A prova assentou quanto ao facto 29, ultima parte, numa alegada conversa informal durante a busca ao veleiro entre o capitão C, enquanto detido e G,cfr. acórdão fls. 39. G, 2015.07.08, 10:05:02, minuto 18:57. A fundamentação do tribunal recorrido discorre: «Por seu turno, M, H e G procederam à busca ao veleiro GLORIA e confirmam os objectos aí encontrados e bem assim a reacção dos Arguidos, donde se destaca a do Arguido C que indicou o esconderijo onde foi guardada a droga durante o seu transporte para Portugal e entregou o dinheiro que tinha na sua posse. Em lado algum se afirma ter havido qualquer conversa que possa ser considerada uma fraude à lei por substituição de declarações de arguido por “conversa informal”, forma ínvia de atribuir ao arguido “declarações” de teor desfavorável. Do que aqui se trata é de cumprimento de funções policiais muito bem definidas nos artigos 249º e 250º do C.P.P. ou seja, a prática dos “actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “proceder a exames dos vestígios do crime … assegurando a manutennção do estado das coisas e dos lugares” e “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º, n. 1, als. a) e b) do C.P.P.). Sem olvidar que o nº 8 do artigo 250º do código é claro - precisamente porque esta é questão de melindre e de fronteira na caracterização da actuação policial em confronto com os direitos de arguido – na afirmação de que “os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária”. Não só porque se não evidencia que tenha existido qualquer conversa informal entre arguido e agente da PJ, também porque a actuação deste se encontra legalmente justificada e se não demonstra má-fé na conduta policial. Vai neste sentido a jurisprudência do STJ, designadamente no seu acórdão de 15-02-2007 (proc. 06P4593, sendo relator o Cons. Maia Costa), nos seguintes termos: I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
4 - Mas não há conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir os preceitos legais, quer pela necessidade de “documentar” a prática do ilícito e suas sequelas, designadamente providenciar os actos cautelares que se imponham (v. g. artigos 243º, 248 a 250º do C.P.P.), quer quando actuam por imposição legal ao detectarem a prática de um ilícito e o arguido decide – por sua iniciativa e sem actuação criticável das forças policiais – fazer afirmações não sugeridas, provocadas ou imaginadas por aqueles OPC. E, no caso, não se demonstra que tenha havido conduta criticável da força policial. Improcedente, pois, a razão de inconformidade. * B.3.5 – Da privacidade. B.3.5.a) – Da delimitação da questão. A questão colocada concentra-se no saber se a obtenção de prova por vigilância pessoal – via acção dos inspectores da P.J. – fotografia e videovigilância [a designada, no acrónimo anglo-saxónico, CCTV (Close-Circuit TeleVision)] em local público é admissível em julgamento como prova validamente obtida, passível de ser produzida em audiência e livremente valorada ou, ao invés, se estamos perante um meio proibido de prova por violação da privacidade, esta entendida em sentido a definir. Esta matéria inclui também a suposta violação da privacidade dos arguidos por acção policial de recolha de informação (principalmente os arguidos A e B), tal como por eles alegado e como defendido no parecer junto aos autos e objecto do recurso quanto à invocada nulidade de inquérito. Para tanto é mister saber se é admissível a prova, se o será nos mesmos termos quaisquer que sejam as circunstâncias em que foram obtidas, se obtidos em público, se obtidos na vida privada, se obtidos na intimidade. Se obtidas com violação da autodeterminação informacional ou informativa. No caso e no que à imagem diz respeito não se trata de junção de meios de prova procurados, produzidos e juntos por forças policiais, trata-se, tão só, de recolha de material probatório (imagens) produzido e obtido por particulares e que é aproveitado pelas polícias para recolha de informação, perseguição de actos ilicitos criminais e posterior instrução dos autos para produção de prova em audiência de julgamento. Está em causa a “privacidade” ou “privacy” que o tribunal constitucional também define como a “última e inviolável área nuclear da liberdade pessoal” (Ac. TC 459/93). Afirmação que, por si, é controversa pois que a liberdade é, por essência, pública e a área nuclear inviolável será o eu íntimo e não o eu social. O “rigth to be let alone”, expressão que é habitualmente atribuída ao Justice Louis Brendeis do US Supreme Court no seu voto de vencido no acórdão Olmstead v. US, [277 US 438 (1928)], foi delimitado como “the most comprensive of rigths, and the rigth most valuable by civilized man”, mas que ele próprio atribui ao Juiz Cooley, no livro “Cooley on Torts” no seu artigo “The rigth to privacy”. [4] Neste artigo Warren e Brandeis não definiram a “privacy”. Mas começaram por dar (em 1890!) importante contributo a ela se referindo como “…the right to life has come to mean the right to enjoy life – the right to be let alone…”, expressão esta que passou a constituir uma bandeira na defesa do direito. Desde logo na terminologia se inicia a indefinição e a abrangência: “privacy”, privacidade, privaticidade e privatividade (neologismos afastados), vida privada, esfera íntima, reserva sobre a intimidade da vida privada, intimidade, intimsphäre, diritto alla riservateza, le secret de la privé, direito sobre “o seu próprio nariz” (Schiller, Mota Pinto), right to be let alone. [5] Nem no mundo globalizado do direito iremos encontrar consenso, bem pelo contrário, iremos encontrar maior indefinição. Indefinição que se aviva quando áreas tradicionalmente tidas como privadas – a familia, a conjugalidade, os filhos, a “intimidade” – são tema de teorização para alteração de padrões comportamentais por acção, também, de serviços públicos, introduzindo-os na esfera pública e objecto de outros mais gravosos atentados ao ser humano na sua relação consigo. A situação agrava-se com teorizadores – tributários de convicções várias – que se empenham em desvirtuar o conceito de público, forma e razões do seu surgimento, com propósitos utilitaristas politicos ou, ao invés, leaks que começam a ser sistemáticos, resultantes das características próprias dos sistemas informáticos que buscam a “confusão” de esferas, tudo parecendo dar razão àqueles que alertam para a erosão da esfera privada e provocando o movimento contrário – o radicalismo irracional de defesa do privado – que coloca em crise a própria noção de sociedade aberta e é aproveitado judicialmente como “esfera de protecção” dos agentes do ilícito. É que, é necessário não olvidar, o privado e o público são essenciais ao humano e não há gradação ética e social entre elas, apesar de haver muitas relações e conexões. Recordemos Hanna Arendt quando, expressando ideias contrárias ao senso comum e estranhas a teóricos europeus continentais relativistas afirma que “… a sociedade de massas não destrói apenas a esfera pública e a esfera privada: priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo, mas também do seu lar privado…”. [6] Mas capital é notar que os recorrentes vêm invocar dois direitos relativos à vida privada. Um a protecção da vida privada, outro a “autodeterminação informativa” sobre a vida privada, este último a funcionar como uma “reserva de intimidade”. E, como afirmou o Prof. Mota Pinto “o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada não deve ser confundido, nem com o direito à protecção da vida privada, incluindo tanto a liberdade como o segredo da vida privada, nem com o direito à privacy reconhecido no direito norte-americano com uma amplitude que o aproxima do direito geral de personalidade”. [7] E prossegue aquele, então, juiz do Tribunal Constitucional depois desta essencial distinção (ob. e loc. cit.): Aquele direito tem, antes, por objecto o controlo de informação sobre a vida privada. O interesse que visa proteger é o interesse em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação ou simplesmente a circulação de informação sobre a vida privada – isto é, genericamente, sobre os factos, comunicações ou posições sobre ou próximos do indivíduo ou confidenciais ou reservados –, bem como o interesse na subtracção à atenção dos outros (anonimato lato sensu), ou interesse na solidão (na exclusão do acesso físico dos outros à pessoa). A estes interesses opõem-se o interesse ao conhecimento e à divulgação da informação, e o interesse no acesso ou controle das acções da pessoa. Excluímos, pois, do âmbito do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada interesses que têm antes a ver com a liberdade de condução da vida privada, que são protegidos pelo direito à liberdade (artigos 26º, n.º 1 e 27º da Constituição e 70º, n.º 1, do Código Civil), assim se evitando a “miséria da privacy” que resultou do seu alargamento desmesurado, no contexto anglo-saxónico. Incidindo sobre informação relativa à vida privada, o direito previsto no artigo 80º, n.º 1, é um direito ao controlo dessa informação – da sua captação e da sua divulgação. O objecto do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada define-se, pois, pela confluência do controlo (autodeterminação) sobre informação com a esfera da vida privada. Nesta perspectiva do direito à reserva é de aceitar a extensão da noção de “direito à autodeterminação informativa” para além do domínio do tratamento de dados pessoais – como aspecto do “direito geral de personalidade” –, e abrangendo a protecção perante a intrusão no domínio pessoal e a tutela perante a divulgação de afirmações pessoais e factos verdadeiros. [8]
E conclui o referido professor “o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada é reconhecido pela Constituição da República, no artigo 26º, n.º 1, e pelo Código Civil, no artigo 80º, respectivamente como direito fundamental e como direito de personalidade. Enquanto tal, este direito é intransmissível e irrenunciável”. Assim impõe-se saber o que se viu (e obteve) e onde, primeiro passo para a actual decisão nas duas vertentes referidas, privacidade e reserva de intimidade. * B.3.5.b) – Da jurisprudência nacional. Como pragmáticos a abordagem inicial é atermo-nos, no essencial, à jurisprudência e doutrina nacionais, sem descuidar a visão do exterior. A CRP fala de “reserva de intimidade da vida privada e familiar” no artigo 26º, nº 1 e de intromissão na “vida privada” noutros preceitos (32º, nº 8). Na legislação ordinária que ora releva, o artigo 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, volta a fazer referência a “vida privada”, nada nos permitindo uma sua leitura restritiva, bem ao invés. A privacidade pode considerar-se então um direito geral de personalidade aberto (sem numerus clausus) e o nosso ordenamento jurídico já autonomizou direitos anteriormente incluídos na privacidade, designadamente o direito à imagem e o direito à palavra. Se dele fizeram parte, é hoje um dado adquirido que são direitos autónomos. E todos estão constitucionalmente consagrados: o artigo 26º nº 1 da CRP é bem claro na sua autonomização. Assim, de um lado da balança teremos o direito à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, à privacidade. Também o direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das telecomunicações (artigo 34º CRP) e o direito a uma correcta utilização da informática (artigo 35º CRP) são direitos conexionados com a privacidade. Ou seja, a “privacidade” entendida no seu sentido amplo é necessariamente uma realidade multifacetada e “multi-direitos”. No caso concreto todos num prato da balança e todos de alguma forma relacionados com o que se deva entender por vida privada, nesta se integrando a sua “intimidade” e o direito a determinar a sua própria informação. O que se pode ir buscar à “Sphärentheorie”, teoria das esferas ou teoria dos três graus (“Dreistufentheorie”), a germanização da teorização do US Supreme Court, será a localização em abstracto dos “espaços” da vivência social do ser humano como resultado do desenvolvimento histórico e cultural de determinada sociedade em determinado tempo. Os conceitos de “público” (este num sentido mais arendtiano como soma do “político” e do “social”) e “privado” variam em razão do tempo e da geografia, a intimidade suscita outras, acrescidas, perplexidades históricas e antropológicas. Já antes e em sede filosófica a “privacidade” era tema inescapável e, há quem o diga, desde o privado Jean-Jacques, o público Rousseau. E esta “realidade” de difícil apreensão terá, então, que se referir a um tempo e lugar, hoje, em Portugal, Europa, para se descortinar o que seja da intimidade, da privacidade, do “público”. Este é um dos pontos em que se surpreende a ideia de país periférico: os juristas americanos anteciparam a percepção ainda no século XIX, os juristas alemães germanizam (sistematizam a influência além-mar) no pós guerra e os portugueses esperam pela tradução. O US Supreme Court começa a laborar na questão em acórdão de 1928 (Olmstead, já supra referido), a teoria das três esferas está temporalmente localizada em decisão de 1973, o Tribunal Constitucional português tem os primeiros acórdãos relevantes sobre o tema nos anos 90, isto já no século passado (por exemplo os acórdãos nº. 128/92, 459/93, 319/95 e 355/97). Recordemos, como o realça o douto parecer junto, que esta teoria, com origem na jurisprudência alemã, abarca três esferas: a da intimidade, a da vida privada e a esfera comum (pública). De acordo com esta teoria este direito de personalidade compreende uma esfera de intimidade, a qual abrange informações de tal forma reservadas que, em regra, nunca serão acessíveis a outros indivíduos. Dentro desta esfera teremos assuntos relativos à vida sentimental, estado de saúde ou de gravidez, vida sexual, convicções políticas e religiosas, etc. Num plano menos resguardado, mas igualmente reservado, temos a esfera privada, que varia de pessoa para pessoa e que inclui os hábitos de vida e as informações que o indivíduo partilha com a sua família e amigos e cujo conhecimento o respectivo titular tem interesse em guardar para si. Finalmente, a esfera comum (que muitos designam por pública ou de interacção social), que inclui os comportamentos e atitudes acessíveis ao público e passíveis de serem conhecidos por todos. Admitimos que esta teoria não é uma resposta “matemática” ao nosso problema, mas serve como grelha metodológica de aproximação muito razoável e, pensamos, imprescindível. Dizia e com razão o Prof. Costa Andrade na reunião com o Sindicato dos Jornalistas tida na altura da revisão do Código Penal de 1995, “não é muito correcta, mas é a mais segura” e “está consagrada no nº 3 do artigo 180º do Código Penal”. [9] [10] Por isso que se não possa concordar com a ideia expressa no acórdão do STJ de 28-09-2011 de que não se deve distinguir entre "intimidade" e "vida privada", com apelo à denominada “teoria das esferas” porquanto é difícil determinar o que é que deve ser incluído em cada uma das classificações. É que a proposta ali apresentada parece-nos ainda mais indefinida quando se afirma que “o âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se com base num conceito de vida privada que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: o respeito dos comportamentos; o respeito do anonimato; e o respeito da vida em relação”. Apesar disto é evidente que a germanização, concretizada naquela teoria, é indispensável, precisamente pela esquematização abstracta que traz, a funcionar como um “esqueleto” teórico onde irá assentar a casuística, como segue. O Prof. Mota Pinto acaba por dar ao termo “intimidade” o seguinte significado, meramente por exclusão: [11] A “intimidade” ou esfera íntima não pode ser relacionada com esfera de segredo; Um sentido útil da “intimidade” é o de excluir aspectos como a vida profissional (segredo de negócios); Com o termo “reserva” pretende-se evitar a intromissão na vida privada e a divulgação de factos referentes à vida privada. Assim o Prof. Paulo Mota Pinto inclui os seguintes aspectos – utilizando o método por grupos de casos - na “intimidade da vida privada”: Nome, sinais de identidade, dados pessoais como filiação, residência ou número de telefone; estado de saúde, vida conjugal, vida amorosa e afectiva; Projectos de casamento e divórcio, aventuras amorosas, afectos e ódios; Sendo o local um indício importante da privacidade, não é o único critério. Não exclui factos ocorridos em público ou em locais abertos ao público; Outros locais privados serão: automóvel, cabina telefónica, ou um café; A vida do lar e os factos que aí decorrem, como a intimidade maternal, são vida privada, excepto prova em contrário; O passado de uma pessoa, se não for da esfera pública ou caiu no esquecimento; Os objectos e recordações pessoais; Património: situação financeira, ganho de lotarias, heranças; Passatempos, locais e dias de férias; encontros com amigos, deslocações, saída e entrada em casa; Atributos pessoais: deformações físicas, hábitos sexuais, qualidades ou dotes artísticos. Fazendo apelo à jurisprudência do Tribunal Constitucional temos, em resumo, o seguinte alcance (acórdãos nºs. 128/92, 278/95, 319/95, 263/97 e 355/97): Na esfera de intimidade engloba-se a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou domicílio) e, bem assim, os meios de expressão e de comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.). A situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações activas e passivas nela registadas. Os dados de saúde integram a categoria de dados relativos à vida privada, tais como as informações referentes à origem étnica, à vida familiar, à vida sexual, condenações em processo criminal, situação patrimonial e financeira. Importa reter outros dados já regulados. Assim, por exemplo: O teor da previsão do artigo 35º, nº 3 da CRP: as convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa e origem étnica. E os Dados Sensíveis da Lei 67/98, de 26/10 – artigo 7º, nº 2 - os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos». Assim como “Categorias especiais de dados”, da Convenção para a Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal o seu artigo 6.º, sob a epígrafe refere os “dados de carácter pessoal que revelem a origem racial, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou outras, bem como os dados de carácter pessoal relativos à saúde ou à vida sexual. O mesmo será aplicável para os dados de carácter pessoal relativos a condenações penais”. Como se vê, uma profusão de realidades, conceitos e de terminologia (que se não esgotam nesta exposição) que não ajudam a uma compreensão clara do que é a zona de “intimidade” e a zona da “vida privada”. Que tornam difícil a separação conceptual entre intimidade da vida privada/vida privada, entre a 1ª e a 2ª esferas de privacidade. Mas há uma realidade inultrapassável: essa dificuldade é inerente ao tema. Por isso que o Prof. Costa Andrade fale em “plasticidade” do tema e do relacionamento entre esferas. De qualquer forma temos delimitado o conceito amplo da vida privada com os contributos acima referidos que já serve de razoável base de trabalho. Em resumo: há uma área de privacidade que engloba duas esferas: sem grande rigor de linguagem, uma geral, outra de intimidade. A esfera geral da vida privada (a 2ª esfera) é o que resta entre a intimidade e a esfera comum ou pública. De resto, só o caso concreto será relevante e revelador. Ou seja, não podemos fugir ao concreto e a aproximação terá de operar-se por grupos ou tipos de realidades (acórdão do Tribunal Constitucional nº 263/97 e Prof. Costa Andrade, in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, pag. 94). No entanto podem ocorrer casos em que a esfera de intimidade seja substancialmente reduzida, não só por ocorrerem em público, também em virtude das características de vida do beneficiário do direito (pessoas que expõem propositada, profissional ou comercialmente a sua imagem, ou titulares de cargos políticos que a expõem com risco das suas funções públicas – culto do sensacionalismo, contratos com revistas do coração, governante com amante espiã, etc.). À semelhança do decidido no acórdão Katz [Katz v. US, 389 US 347 (1967)], aquilo que uma pessoa, propositadamente, expõe publicamente, mesmo se da esfera privada, não é objecto de protecção da 4ª Emenda. Em Portugal qual tem sido a jurisprudência sobre a matéria na orgânica infra constitucional? Se exceptuarmos dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, a posição do STJ e das Relações, tem sido maioritariamente, quase se diria pacificamente, no sentido de admitir e valorar os referidos meios de prova, preservando, sem excepções, a privacidade. E, quase sempre, em casos de prova produzida ou captada por particulares (neste conceito se incluindo empresas que não sejam de segurança privada) e, posteriormente, recolhida pelos OPC e junta aos autos. [12] E, no caso concreto, onde foram efectuadas essas vigilâncias policiais e obtidas as fotos? Em local público: na marina do porto, na via pública, numa área de serviço rodoviária, no acesso a um hotel. Sem grande fundamentação podemos dar como conclusão pacífica que não foram meios obtidos com violação da 1ª esfera, a da intimidade. Haverá, então, como alegam os recorrentes e o parecer junto, violação da privacidade, entendida esta como aquilo que se interpõe na contraposição intimidade/público, seja pela recolha de imagens, seja pela colecta de conhecimentos obtidos no seguimento e vigilância dos recorrentes? A resposta também nos parece evidente. Não há qualquer violação da área de protecção da segunda esfera. Nos casos equivalentes já tratados pela jurisprudência – STJ e Relações – tem-se entendido pacificamente que não há violação da privacidade, considerando que a prova é obtida na esfera pública e sem atentar contra a privacidade. * B.3.5.c) – Da jurisprudência europeia. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem sido claro na delimitação e clarificação de situações que se diferenciam: a identificação de pessoas por imagem; a constituição de bases de dados (tratadas, portanto) com base em imagens recolhidas. A primeira situação é de licitude indiscutível; a segunda de ilicitude inquestionável. Temos assim, pelo menos, os arestos: - Friedl v. Austria - (1995), §§ 49-52 – Fotografias tiradas em locais públicos (manifestação pública), guardada pela polícia e que não é objeto de tratamento de dados para identificação da pessoa não é uma interferência na vida privada § 58. - P.G. e J.H v. UK – 2001 - § 56, 57 – Uma pessoa andando na rua será forçosamente vista por outra nas mesmas circunstâncias. O facto de se observar esta cena pública por meios técnicos (por exemplo, um agente de segurança com CCTV) reveste um carácter similar. Ao invés, a criação de um registo sistemático ou permanente de tais elementos pertencentes ao domínio público pode dar lugar a considerações ligados à vida privada. - Peck v. UK - (2003) §§ 57, 58, 59 – (Sistema de TV em circuito fechado em Brentwood, Reino Unido. Operador ligado à polícia, por meios áudio e vídeo) - O facto de se vigiarem os actos de um indivíduo num local público, utilizando um sistema visual sem registar dados não constitui uma ingerência na vida privada. [13] Dois arestos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem são relevantes por outro motivo, por aceitarem uma metodologia, proveniente do US Supreme Court, de abordagem destes casos relativos à privacidade que, com essa aceitação, passa a ser critério aceite pela jurisprudência convencional e, como tal, vinculativa para os tribunais portugueses. Referimo-nos à aceitação da cláusula da razoável expectativa de privacidade. No acórdão Halford v UK – 1997 – aceita-se essa cláusula da “razoável expectativa de privacidade”, centrando-a na análise dos conceitos de “vida privada” e “correspondência” e antes da análise dos conceitos de “interferência” e “de acordo com a lei”, constantes do nº 2 do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No já citado aresto P.G. e J.H v. UK – 2001 – afirma-se que a cláusula da “razoável expectativa de privacidade” pode ser um significativo, mas não necessariamente conclusivo, factor de análise de uma dada situação. Torna-se necessário dar então uma vista de olhos a essa jurisprudência do US Supreme Court. Em Olmstead (1928) – com voto de vencido do Justice Louis Brandeis (também Holmes) – o tribunal considerou que a 4ª emenda se aplicava só a bens tangíveis, numa interpretação literal da emenda (só a locais, casas, escritórios, quartos de hotel, cartas seladas). Brandeis defendeu que se aplicava a qualquer manifestação de privacidade (interpretação actualista da Constituição americana enquanto corpo de leis “destinadas a aproximarem-se da imortalidade, tanto quanto o pode ser uma instituição humana”). Já em Katz v. US - 389 US 347 (1967) - [arguido condenado por comunicar por telefone público em cabine envidraçada os resultados de apostas. Escuta colocada na cabina telefónica] se reverte a opinião da jurisprudência de Olmstead, afirmando que a 4ª emenda [14] defende pessoas e não locais e que a privacidade, mesmo em locais públicos, pode ser protegida pela Constituição. No entanto aquilo que uma pessoa expõe ao público, mesmo em locais como a casa ou escritório, não é defendido pela 4ª Emenda. Isto sugere que a vigilância em locais públicos não é protegida mas a matéria não foi aqui explicitamente resolvida na parte decisória. Será, no entanto o voto (“concurring opinion”) do Justice Harlan o determinante. Ele cria a cláusula “Razoável expectativa de privacidade” (“Reasonable expectation of privacy”) com dois requisitos: 1ª – A pessoa deve ter uma actual (subjectiva) expectativa de privacidade numa dada situação; 2º - A sociedade deve estar preparada para reconhecer essa (objectiva) expectativa como razoável nas circunstâncias do caso. [15] O primeiro factor é dúbio, [16] mas à medida que o primeiro factor perde peso, ganha relevância o segundo factor. O Tribunal tem considerado que uma pessoa que viaja de carro em estradas públicas não tem uma razoável expectativa de privacidade. A entrada em local privado já assegura essa expectativa, mas não impede a observação visual pela polícia em campo aberto. Neste ponto vale lembrar que já se havia decidido que à polícia é permitido aumentar as suas capacidades sensoriais com o uso de avanços científicos e técnicos (US v. B, 274 US 559 – 1927). [17] Em California v. Ciraolo [476 U.S. 207 (1986)], num caso em que uma plantação de marijuana em quintal vedado por vedação com 3 metros (10 feet) e perante uma denúncia anónima se fez confirmação por voo em avião alugado pela polícia de Santa Clara, Califórnia, a 1.000 feet (304,8 m), base para a obtenção de mandado que levou à apreensão e destruição da marijuana. O ali arguido invocou a ilegalidade por violação da "curtilage" da sua casa. [18] O tribunal concluiu que não estava preenchido o segundo pressuposto de Katz. A expectativa do requerente de que a sua privacidade era defensável era “unreasonable and is not an expectation that society is prepared to honor”. Estes são casos que, para além do enquadramento factual da cláusula, revelam casos de fronteira e, como tal, de difícil resolução. Resumo possível, os dois factores importantes para determinar se uma videovigilância é lícita, quer no âmbito constitucional, quer no âmbito da litigância privada, são: se o local é público ou privado; se há uma razoável expectativa de privacidade em duas vertentes, subjectiva e objectiva. Aqui, no caso concreto, quais os espaços e quais são as razoáveis expectativas de privacidade dos recorrentes? Movem-se os recorrentes em espaços públicos (marina do porto, rodovias, áreas de serviço em rodovias, acesso a hotel e este propriamente dito, que não é espaço privado, salvo os quartos), em circunstância alguma são vistos ou vigiados em local que se possa qualificar como privado, aquilo que deles é visto nessas vigilâncias nada tem de escape de informação privada ou íntima. Alegar que pertencem à área de privacidade – e portanto excluída da acção policial lícita – os movimentos dos arguidos a partir do aeroporto, as compras no supermercado, diversões e tipos de bares que escolheram, movimentos de e para o quarto de hotel, o escaldão na praia, o tipo e cor do vestuário e calçado é uma compreensível necessidade retórica. Claramente não pertencem à área da privacidade. São características pessoais necessariamente expostas ao público. Nem as informações assim recolhidas no espaço público e sem que haja a mínima expectativa de privacidade pode ser criticada. O conjunto de informações colhida pertence àquilo que é expectável se exponha em público. Aceita-se que exista a possibilidade de privacidade no espaço público em sentido restrito, territorial, questão que o Supremo americano já resolveu há mais de 40 anos. Diremos nós que o cidadão, quando em público, carrega consigo a sua privacidade, mas aquilo que com ele ocorre em público dificilmente pode ser protegido pela sua privacidade, entendida esta na 2ª esfera, e não revela a sua “reserva de intimidade”. “O termo público denota dois fenómenos intimamente relacionados mas não completamente idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e nós mesmos – constitui a realidade”. [19] Ora, se em público se carrega apenas a aparência e se não expõem os dados que consituem a intimidade, nem o círculo de privacidade supra exposto é violado, o que em público é exposto não merece a tutela pretendida. O cidadão carrega em público a sua privacidade: transporta consigo o “nome, sinais de identidade, dados pessoais como filiação, residência ou número de telefone; estado de saúde, vida conjugal, vida amorosa e afectiva”, etc. E quando o faz, quando em público, não está a expor esses dados íntimos ou privados. Pode fazê-lo, mas a exposição pública não o impõe. Naturalmente que a privacidade não é excluída em locais públicos ou abertos ao público se procurada, por exemplo, no interior de um automóvel, numa cabina telefónica, num café ou restaurante, desde que o titular procure o resguardo para a sua privacidade, a possível em público. Mas não pode “impor” a sua privacidade aos demais em circunstâncias usuais. Aquilo que os recorrentes aqui pretendem é precisamente isso. Impor, por razões tácticas, o entendimento que fazem da sua privacidade “conveniente” aos demais. É claro que aqui o conceito de “demais” é restrito ao Tribunal e às polícias. Ora, o caso concreto nem de longe se aproxima de qualquer dos casos de fronteira – e, como tal, de difícil solução – que foram expostos supra. O caso sub iudicio é de uma manifesta simplicidade: não há violação da privacidade em qualquer das suas vertentes. * B.3.5.d) – Dos princípios atinentes à prova É consabido que no campo da prova rege o artigo 125º do Código de Processo Penal que consagra o princípio da legalidade da prova, determinando que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. E o artigo 32º, nº 8 da CRP determina que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Em concretização deste comando constitucional dispõe o artigo 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Métodos proibidos de prova”, que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. Sem esquecer a previsão do artigo 8º, nº 1 da CEDH (Direito ao respeito pela vida privada e familiar): Mas nenhum diploma regula a actividade do cidadão comum ou empresa, cuja actividade não esteja regulamentada (segurança privada, por exemplo), que tira uma fotografia ou filma a prática de um crime. Como sabido, o cidadão só está condicionado pelo princípio da legalidade da obtenção da prova contido no artigo 125º do Código de Processo Penal. Rege igualmente o art. 167º do CPP, que regula a produção de prova por meio de reproduções mecânicas, sejam fotográficas, videográficas, fonográficas ou por meio electrónico. E o artigo é claro na afirmação de que tais meios valem como prova se não forem ilícitos nos termos da lei penal. Note-se, não nos termos da lei contra-ordenacional, ou qualquer outra. Só nos termos da lei penal. O que remete para o direito penal substantivo, no sentido de que será este a estabelecer os limites de actuação do cidadão na recolha de imagens para prova em processo penal. Questão, aliás, referida no parecer junto. Caindo a conduta na previsão do art. 192º do CP – devassa da vida privada - quer quanto ao direito à palavra, quer quanto ao direito à imagem, a prova será sempre proibida. Aqui impera, no entanto, o dolo específico de devassa contido no corpo do nº 1 do preceito, para além dos elementos objectivos contidos nas alíneas, que se não verificam, um e outros, nos factos que pretendemos abarcar nesta análise. Assim, a linha de análise deve ter por objecto o tipo contido no artigo 199º, nº 2 do Código Penal, gravações e fotografias ilícitas. Como se refere no Ac. da Relação de Lisboa de 28.05.2009 (Fátima Mata-Mouros) na remissão para a lei penal “não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além de se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo.» Posição que o STJ veio a confirmar no seu Ac. de 28.09.2011 (rel. o Cons. Santos Cabral). Assim, sendo o direito à imagem tutelado criminalmente no artigo 199º do C. Penal, só será protegido se ocorrer real tipicidade da conduta e “não esteja coberto por uma causa de justificação da ilicitude. É nessa medida que se vem entendendo que é criminalmente atípica, face ao preceituado no art. 199.º, n.º 2 do Código Penal, a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento” (Ac. Rel. Porto de 23-11-2011, Mouraz Lopes). Ou seja, impõe-se saber não só se há tipicidade da conduta, também se há ilicitude na mesma. Este tipo penal é muito interessante na sua evolução. Anteriormente estava previsto no artigo 179º, na versão originária do Código Penal e o corpo do seu nº 1 rezava: “1 - Quem, sem justa causa e sem consentimento de quem de direito: … gravar, fotografar…” O desaparecimento da expressão “sem justa causa” tem permitido o raciocínio de que as gravações nunca admitirão a existência de uma causa justificativa na medida em que esta causa de justificação desapareceu do tipo penal. Houve mesmo quem visse no desaparecimento desta expressão uma cabala, uma conspiração anti jornalística e antidemocrática e que lesse a expressão como contendo um “elemento negativo do tipo” que desaparecido, facilitaria o seu preenchimento não compensado pela causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31º, nº 1, al. b) do Código Penal – que não seria mais que uma causa de exclusão da culpa mal colocada no referido artigo - conduzindo a um regime de liberdade de imprensa mais gravoso do que o existente no tempo de Marcelo Caetano. [20] Quer-nos parecer que, não obstante a circunstância de o tipo penal ainda manter uma causa de exclusão de ilicitude – o consentimento, igualmente previsto no artigo 31º, nº 1, al. d) do Código Penal – o desaparecimento da expressão “sem justa causa” só tem um significado: era uma inutilidade que servia apenas para “advertir” os juízes para a operacionalidade de uma causa de justificação geral. Quem o diz é o legislador. Na reunião com o Sindicato dos Jornalistas tida na altura da revisão do Código Penal (1995) é claro o sr. Deputado do PSD, Prof. Costa Andrade a afirmar (4º Volume dos Trabalhos Preparatórios – 1995, pag.s 221 e 227) que a “justa causa foi eliminada de consciência tranquila … porque, apesar de todos os esforços feitos … não se descobriu conteúdo útil. E mais ou menos toda a doutrina diz que isto é uma menção redundante da ilicitude” (pag. 221). Posição que era também, aliás, a do Prof. Fig. Dias. A explicação histórica surge fls. 221 in fine. É, “pois, uma advertência aos juízes … considerada redundante”. “Ou seja, um aviso dirigido ao intérprete, e aplicador da lei, chamando a atenção para o valor das causas de justificação” (fls. 227-228). Isto é os juízes, à data presumidamente distraídos, deveriam operar as causas gerais de exclusão da ilicitude. Em suma, o cidadão só será autor de um crime de fotografia e filmagem ilícita se não operar nenhuma causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31º do Código Penal – designadamente a legítima defesa, o exercício de um direito ou o consentimento. E estando nós a tratar do direito à imagem, convém recordar que o Código Civil o regula de forma expressa no seu artigo 79º ao dispor: “O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela”. [21] E o seu número dois estabelece os casos de justificação de forma bastante clara: “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”. Ou seja, há licitude na obtenção de fotografias ou filmes se ocorrer, nos termos deste preceito e do artigo 31º do Código Penal (ou seja, causas gerais de exclusão de ilicitude mais as constantes do artigo 79º, nº 2 do Código Civil): 1 - a legítima defesa; Face a isto temos dúvidas de que a foto ou filme enquadrados em lugares públicos, que hajam decorrido publicamente, sem uma excessiva individualização do retratado, ou sejam factos de interesse público, não sejam causas de ausência de tipicidade. As restantes serão necessariamente causas de exclusão da ilicitude. Isto é, os artigos 79º e 80º do Código Civil não podem ser menorizados. Têm que ser atendidos na análise penal, não só como consequência do princípio da plenitude da ordem jurídica, também pela operacionalidade do princípio da subsidiariedade do direito penal. Nisto é muito claro o art. 31º, nº 1 do CP: “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”. Mas também o diz - uma vez mais - o legislador (Prof. Costa Andrade, ob. cit. – fls. 223) “a nível de fotografia sobra muito pouco. A verdade é que estas alterações ao Código Penal estreitam a margem dos comportamentos puníveis” (fls. 243). Ora, se assim é, e só estando em causa o direito à imagem, não é prova proibida a prova produzida por um cidadão relativa a imagens obtidas em público, seja: uma bomba de abastecimento; um supermercado; uma via pública filmada através de um sistema habitacional; a parte comum de um prédio visível da via pública; câmaras de vigilância de estabelecimento comercial; centro de lavagem de automóveis, um porto, uma marina, etc. Naturalmente que, na análise casuística, haverá que ponderar que existem locais públicos de livre utilização comum. E haverá locais públicos de acesso reservado. E o caso concreto poderá determinar uma diversa ponderação em função dos pressupostos que baseiam a necessidade de reserva de acesso a um local público. Aqui temos que reconhecer que a realidade tem mais imaginação do que nós. A discussão está aberta, naturalmente, a propósito dos conceitos de “intimidade”, “vida privada”, “exigências de polícia ou justiça” e “local público”, mas isso é casuística e o caso concreto facilmente se coloca na área da esfera pública. Não há, portanto, violação da privacidade nem prova proibida. * B.3.5.f) – Da CNPD (Comissão Nacional de Protecção de Dados). No parecer nº 70/2011 da CNPD e a propósito da intenção de alteração legislativa quanto à videovigilância, nota-se uma quase afirmação de poderes judiciais por parte da CNPD, quando afirma “que se assume como garante desse direito fundamental que é a privacidade dos cidadãos face ao tratamento dos seus dados pessoais…”. “Tal garantia resulta, desde logo, da possibilidade de valoração de determinado tratamento de dados assente em juízos de proporcionalidade, adequação e necessidade face às finalidades associadas, juízo específico em matéria de protecção de dados e o qual requer independência e imparcialidade na sua formulação”. Sem obstar ao acerto de tais afirmações no âmbito de competência da CNPD, essencialmente administrativa, convém recordar que essa entidade está sujeita ao escrutínio judicial, como o atesta o Artigo 1º, nº 4 do Protocolo Adicional à Convenção para a Protecção das Pessoas Relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal, respeitante às autoridades de controlo e aos fluxos transfronteiriços de dados, quando afirma no seu nº 4 que “As decisões das autoridades de controlo passíveis de contestação podem ser objecto de recurso judicial”. Por isso que seja de total acerto a afirmação do STJ no seu Ac. 28-09-2011 – Santos Cabral - de que “é evidente a aporia a que é conduzido quem pretenda rever na citada Lei (67/98) a fonte de apreciação da legalidade dos meios de prova em processo penal e ver naquela Comissão de Protecção de Dados - instância administrativa destinada a controlar e fiscalizar o processamento de dados pessoais - um papel de filtragem e condição prévia do acto processual penal como se uma instância judicial penal de primeiro e último recurso se tratasse. A legalidade dos actos praticados no processo penal procura-se no Código de Processo Penal”. E a CNPD, entidade administrativa, não passa disso mesmo, não obstante a pretensão evidenciada. Questão está, pois, em saber se as Câmaras de videovigilância estão sujeitas, para que possam servir de prova em processo penal, ao controlo e autorização prévios da CNPD (o que abarca os casos de desconhecimento se foi ou não objecto de licenciamento pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, que é o caso dos autos). O regime normativo da protecção de dados pessoais, estabelecido na Lei 67/98 de 26 de Outubro, aplica-se à videovigilância, desde que esta permita identificar pessoas sempre que o responsável pelo tratamento esteja domiciliado em Portugal, conforme decorre do artigo 4º n.º 4 da Lei. E, nos termos do Artigo 3.º da Lei 67/98 é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social. Não é o que ocorre no caso sub iudicio onde a identificação dos arguidos se limitou a fazer apelo ao visionamento das imagens e ao apelo à memória dos inspectores da PJ. Nesta leitura aquela norma está de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [Ac. Friedl v. Austria - (1995)] quando afirma que as fotografias tiradas em locais públicos, guardadas pela polícia e que não são objeto de tratamento de dados para identificação da pessoa não é uma interferência na vida privada. Mesmo que se entendesse aplicável ao caso e como a questão não diz respeito ao tratamento de dados sensíveis, a lei não exige controlo prévio dos sistemas de videovigilância por parte Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD)– cf. art. 4º, nº 4, 7º, nº 2, e 28º da Lei 67/98, de 26/10 – Ac. Rel. Porto de 22-10-2011, relatado por Mouraz Lopes e da Relação de Coimbra de 02-11-2011, relatado por Olga Maurício. Isto porquanto “dados sensíveis” da Lei 67/98, de 26/10 são os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos», conforme se estatui no nº 2 do art. 7º da Lei citada. Ora, aquilo de que vimos tratando, simples identificação do autor de factos ilícitos criminais ocorridos fora da esfera de privacidade, não se podem classificar como “dados sensíveis”. Logo, não exigem autorização prévia da CNPD. Logo, a Lei nº 67/98, de 26/10 não é elemento de relevo no tratamento da identificação por fotograma ou vídeo de arguido em processo penal. Se fosse e se condicionasse a admissão de prova em processo penal, suscitaria bastas dúvidas a sua constitucionalidade face ao artigo 202º da CRP. * *** B.4 – Recurso do arguido A B.4.1 – A nulidade do acórdão por falta de fundamentação – conclusões 33ª a 60ª. O tribunal deu como provados factos sem indicar em que provas se sustentou e não fundamentou por que motivo não considerou credíveis as declarações dos arguidos B e Roy. O recorrente assenta esta alegação em dois pontos: a invocação de nulidade de sentença quanto aos factos dados como provados de 58) a 80) (conclusões 33ª a 39ª) por considerar que não houve depoimento sobre factos mas sim expressão de convicções e interdição de contraditório na apreciação da prova; nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação de factos provados e não provados (conclusões 40ª a 60ª). * B.4.1 a) - A essencial argumentação do recorrente, no primeiro ponto, assenta nos seguintes considerandos: As imagens de vídeo que suportam a prova dos factos indicados em 58 a 80 do acórdão recorrido não têm qualidade, pelo que nenhum facto poderia o tribunal dar como provado com base nas mesmas e muito menos com base nos comentários de Inspector da Polícia Judiciária sobre tais imagens, pelo que a valoração das mesmas viola o disposto nos artigos 128° e 130°, ambos do Código de Processo Penal, alegando, ainda, que este meio de prova não poderia ser utilizado porque viola o princípio da imediação e das garantias de defesa. Ora, esta é uma argumentação com vista à conclusão de que o tribunal errou na apreciação da prova e não que inexiste fundametação. E, vistas as imagens de CCTV (Close-circuit Television) e a correspondente reportagem documental (a fls. I-332-358 e III-930-960, por exemplo), havendo que aceitar que as imagens não são as ideais, elas permitem no entanto a qualquer pessoa que conheça os intervenientes identificar quem delas consta. A esse respeito é clara a fundamentação do tribunal recorrido, que se transcreve: Quanto às pessoas que se encontrariam na embarcação no dia 14.07.2014, os Arguidos não alegam a presença de outros indivíduos para além dos três Arguidos que constituíam a tripulação da mesma, sendo que a presença do Arguido A em tais circunstâncias acaba por ser admitida pelo mesmo. Neste ponto é capital notar que os depoimentos dos agentes da PJ são importantes na medida em que eles procederam à vigilância dos arguidos, então suspeitos, nos dias anteriores e se aperceberam das suas características físicas e comportamentais ou seja, aperceberam-se de como os suspeitos “eram” à data, a sua forma de vestir e andar, tudo características que se alteram na altura em que se realiza a audiência de julgamento, tornando inviável nesta uma tão imediatista apreciação das imagens. Assim, não se trata de essas testemunhas transmitirem “convicções” pessoais, trata-se de transmitirem um conhecimento adquirido naquela data. Isto é, o conhecimento adquirido pelos agentes quanto às características físicas e comportamentais dos arguidos concretiza-se na sua intervenção em audiência através do reconhecimento nas imagens dos intervenientes na Marina. Por outro lado, o visionamento possível em CCTV está devidamente documentado nos autos – e já em inquérito – nos locais supra indicados, podendo ser vistos e analisados pelos arguidos permitindo-lhes, igualmente, o exercício do contraditório com base nessas mesmas imagens – fotogramas – ou requerer o seu visionamento em audiência, caso o justificassem. Certo é que o visionamento do ficheiro em software de CCTV não é essencial pois que os fotogramas colocados nos volumes I e III dos autos correspondem, sem perda de qualidade, ao que dali consta. Foi, pois, produzida prova nos autos que tornava desnecessário o visionamento em audiência daquilo que já constava documentalmente nos autos. E esses mesmos fotogramas permitiam o devido exercício do contraditório. E, por tudo, não houve valoração de prova proibida. Razões por que inexiste qualquer nulidade da decisão recorrida pelo apontado motivo e que deva ser enquadrada na al. c) do nº 1 do artigo 379º do C.P.P. * B.4.1.b) – Quanto ao segundo subtema aqui tratado pelo recorrente, a nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação de factos provados e não provados (conclusões 40ª a 60ª), convém ter presente que o recorrente explicita nessas conclusões [e nas motivações que lhes subjazem a fls. 2567 a 2.580 (18 a 31 do seu recurso)] três tipos de desacordo: uma, a inexistência de tomada de posição do tribunal recorrido sobre factos alegados pela defesa, que será – se existente – uma nulidade de acórdão; outra a invocação de erro na apreciação da prova que o recorrente faz corresponder à ideia de falta de prova para a condenação ou, terceira situação, que factos dados como provados não foram devidamente fundamentados. Isto é, institutos diversos que, semeados, sempre propiciam uma omissão de pronúncia. A primeira questão diz respeito ao objecto do processo, a segunda ao princípio da livre apreciação da prova e a terceira, essa sim, à necessidade de fundamentação factual que pode conduzir à nulidade por insuficiência fundamentadora. Assim, a segunda questão será analisada em conjunto com a intitulada “impugnação da matéria de facto”. * B.4.1.b).1 – Quanto à primeira não suscita qualquer dúvida que é decorrência do direito de defesa que o juiz está limitado pelo thema decidendum mas está igualmente sujeito à obrigação de o esgotar, quer na contribuição dada pelo Ministério Público, quer pela defesa, na definição desse objecto. Neste ponto não conhecemos texto que de forma tão certeira e sucinta dê uma panorâmica completa sobre o tema como o do nosso colega Cruz Bucho, nos seguintes termos: “…, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado. Há, pois, uma inultrapassável identidade entre os conceitos de “objecto do processo” e “factos”, assim como há outra intransponível imbricação entre os conceitos de “crime” e de “factos”. Sem factos não há crime. Nem causas de exclusão ou exculpação. Os factos são a base indispensável de um processo. Mas, naturalmente, têm que ser normativamente relevantes. Sendo normativamente relevantes têm que ser esgotantemente apreciados. Cristalizando-se o objecto do processo com os factos que constam da acusação – e nessa medida se entendem como normativamente relevantes, o que quer significar que, constando da acusação têm um significado enquanto conduta humana subsumível ao ordenamento jurídico – o princípio da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente), impõe que os factos que constavam da acusação tenham um destino. Mas nesse objecto do processo também entram em linha de conta os factos resultantes da discussão e os alegados pela defesa, desde que sejam isso mesmo, factos e não meras conclusões, nem o “negativo” do invocado na acusação. E desde que sejam normativamente relevantes, ou seja, desde que invoquem uma causa que exclua a ilicitude, a culpa ou a punibilidade, dizendo de forma abrangente, qualquer facto que seja relevante para subsunção ao tipo de ilícito imputado na acusação, para o juízo da sua exclusão e para a pena aplicável. Ora, o recorrente invoca na sua conclusão 59ª um acórdão do STJ que diz isto mesmo, mas olvida colocar numa só conclusão a especificação dos factos que entende não terem sido considerados – e que deveriam ter sido – pelo acórdão recorrido. Não querendo este tribunal ficar-se pelo formalismo exacerbado, nem se tendo justificado despacho do relator com convite à correcção desse infímo ponto, porque a questão é de manifesta simplicidade e sem dar azo a dúvidas, respingamos a precisa matéria da respectiva motivação (fls. 2.570 dos autos e 21 do recurso) para concluirmos que o motivo de desagrado do recorrente se centra no desprezo do tribunal pelos factos 4, 5, 7, 10, 11 e 13 da sua contestação. Ora, naturalmente que o recorrente não atendeu devidamente ao sentenciado pois que a decisão do tribunal recorrido até tem, à parte, dois dos factos que constavam da contestação do arguido e disso mesmo faz menção: os factos provados 155 e 156. Acresce um outro facto provado, o 151, onde é expressa de forma clara a sua situação familiar. Os restantes factos que constavam da contestação do recorrente A foram dados como não provados de b) a e). E assim se esgotam os factos normativamente relevantes alegados pelo recorrente na sua contestação, mesmo aqueles que não tinham relevo normativo [os factos não provados b) e c) são disso exemplo], mas assumindo o tribunal recorrido uma jurisprudência das cautelas que se justifica. Não há, logo, qualquer nulidade da decisão recorrida pelo indicado motivo. * B.4.1.b).2 – Já quanto à necessidade de fundamentação factual os argumentos aduzidos pelo recorrente assentam na ideia de que factos dados como provados não foram devidamente fundamentados. Dispõe o artigo 205.º da CRP que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o nº 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal (requisitos da sentença) estatui que a sentença deve conter fundamentação que consiste na “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. Em caso de inobservância do indicado, rege o nº 1, al. a) do artigo 379.º do mesmo diploma, cominando com “nulidade” a sentença que “não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.º 2 e 3, alínea b)”. Do que se trata, no caso concreto, é saber se é suficiente a motivação fáctica apresentada pelo tribunal recorrido, no uso do princípio da livre apreciação da prova. Desde logo convém afastar a ideia de que a análise a efectuar assentará num mero critério quantitativo das razões de facto apresentadas ou se cada facto dado como provado tem um parágrafo justificativo. Bem ao invés, impõe-se apurar se a motivação apresentada – que pode e deve ser sucinta – é completa, no sentido de tornar límpidos, claros, os seus fundamentos, daí que se possa já afirmar que a sua insuficiência equivalerá à sua falta, para os efeitos do disposto no artigo 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, na medida em que uma fundamentação insuficiente ou obscura, não é completa. Isto é, apresentará ela, decisão, “os motivos, de facto …. que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”? Para esse desiderato é mister recordar que a motivação de facto visa, no mínimo, um triplo objectivo: obter uma maior confiança do cidadão na administração da justiça; assegurar o auto controlo das entidades judiciárias; assegurar o direito ao recurso. Não iremos quedar-nos a fundamentar esta matéria, já suficientemente tratada pela doutrina e jurisprudência nas suas manifestações mais comuns. Nesta sede cabe ao tribunal assegurar que o significado positivo de livre apreciação da prova não está assente em critérios subjectivos, emotivos, não é arbitrária, imotivável e incontrolável. Nem é genérica, por remissão. Bem ao invés, ela deve reconduzir-se a critérios objectivos, racionais, motivável via razão e linguagem. Encurtando razões, a motivação da decisão mais não é do que uma exigência de controlo objectivo e racional da livre apreciação da prova, algo de essencial numa sociedade democrática. Se há quem afirme que a motivação se basta com a indicação das provas relevantes ou, em alternativa, das regras da experiência ou os critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se orientasse num determinado sentido, preferimos ver nela uma mais alargada abordagem metodológica, assente quer no contributo da doutrina, quer da jurisprudência. Naquela surge como adequada a consideração de três patamares necessários de análise na motivação de facto; a indicação das provas carreadas para o processo e que sejam pertinentes; a análise crítica e racional das razões que conduziram a que se atribuísse relevância (ou não) a essa prova; a ponderação lógica dos factos e das provas com vista à decisão de facto. Para além da afirmação da vertente negativa do princípio da livre apreciação da prova - o valor dos meios de prova não está legalmente preestabelecido (já salientado por Figueiredo Dias [23]) – a ponderação lógica das provas e dos factos faz-se por apelo às regras de experiência comum, das quais podem ressaltar “descontinuidades imediatamente apreensivas nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta”. [24] A jurisprudência tem realçado recentemente o necessário apelo às presunções naturais, “como juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.” [25] É essencial saber por que razão o tribunal atribuiu relevo a determinadas provas, a razão porque não atendeu a outras e qual foi o percurso racional, lógico, por ele seguido para definir a totalidade da matéria de facto. Tudo de forma a excluir que o tribunal veicule a ideia (que pode ser errónea, mas que a ausência de fundamentação bastante legitima) de que fez apelo a elementos não objectivos, a meras possibilidades ou impressões imediatistas. O sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema irracionalista, subjectivo, de apreciação probatória, [26] sim um sistema racionalista, assente na razão, nas regras de experiência social comprovada e em presunções probatórias racionalmente fundadas. [27] Ora, que se passa no caso dos autos? A decisão recorrida, para além de fazer o elenco sucinto mas suficiente das provas carreadas para os autos e que foram relevantes para a apreciação factual, procedeu à análise crítica e racional das razões que conduziram a que se atribuísse relevância (ou não) a essa prova, assim como fez uma ponderação lógica dos factos e das provas com vista à decisão de facto. Tomemos como exemplo estes dois excertos da decisão, na fundamentação da parte de matéria de facto mais referida pelo recorrente: Resulta, deste modo, que o veleiro GLORIA A com a sua tripulação constituída pelos Arguidos C, D E E, atracou nas Bermudas, donde veio para a Europa (vide documentos de fls. 228 e ss.); que no dia 14 de Julho de 2014, são descarregadas malas da referida embarcação, no porto e onde também se encontra presente o Arguido A; que este encontra-se no mesmo dia com o Arguido B e, juntos, procedem à transferência de malas da viatura conduzida por aquele Arguido para a viatura conduzida por este Arguido; que entre esse momento e o momento da busca a esta viatura de marca Nissan, os movimentos do Arguido B são controlados, bem como os acessos à sua viatura; que vêm a ser encontradas as malas neste veículo automóvel, contendo a cocaína apreendida, malas essas que são precisamente as mesmas que foram observadas a ser transferidas, na estação de serviço de Grândola, da viatura do Arguido A para a viatura do Arguido B; e, por fim, que é encontrada numa das malas (a mala/saco de cor preta) um ticket de um estabelecimento comercial das Bermudas, local onde o Arguido B não se deslocou. Da documentação, das informações juntas aos autos e das diligências levadas a cabo pela Polícia Judiciária – nomeadamente, cópias de passaportes de fls. 135 a 139, 171 a 175, 186 a 204 e 213 a 218; documentação portuária referente a entradas e estadias em marinas, no Brasil, Venezuela, Guadalupe, Bermuda e Portugal de fls. 228 a 247 e 280 e 281; e informação dos movimentos migratórios do Arguido A de fls. 981 e 982 - resultam ainda os trajectos percorridos pela embarcação GLORIA (e, como tal, pelos Arguidos C, D e E) e pelo Arguido A, donde decorre confluência espácio-temporal entre este Arguido e a tripulação do referido veleiro em dois locais diferentes (na América do Sul e nas Bermudas). Atendendo ainda à demais prova produzida e os demais factos apurados, resulta da normalidade da vida que, nessas ocasiões, aqueles Arguidos mantiveram contactos respeitantes à operação que levaram a cabo. Aqui e no resto da motivação factual é patente que o tribunal recorrido explicitou, de forma lógica e racional, por referência ao teor dos documentos e às regras de experiência comum, as razões que fundaram a convicção do tribunal recorrido. Valorou os meios de prova com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais. Não se limitou, portanto, à mera catalogação de prova. Por outro lado essa fundamentação, quando se refere a factos ocorridos na América do Sul e Caraíbas, fá-lo por referência à documentação existente nos autos e que foi apreendida aos arguidos, dela retirando ilações factuais permitidas pelas regras do raciocínio dedutivo e que é confirmada pelo tribunal de recurso após a sua leitura. Poderia ter sido mais explícita essa fundamentação, preenchendo espaços lógicos que se podem facilmente deduzir mas que não dariam azo a dúvidas na sua exposição. O conceiro de “sucinto” poderá estar em causa mas não ao ponto de se poder considerar “insuficiente” a fundamentação factual. Da parte do recorrente não é dada qualquer contribuição que demonstre a inexistência ou insuficiência de fundamentação. Decorre da conclusão 41) que o mesmo entende haver insuficiente fundamentação quanto aos factos sob 1, 2, 4, 7, 10, 13 a 17, 20 a 24, 27, 30, 31, 36, 38, 39, 42,46 a 48, 63, 64,71, 74, 82, 126 136, 138, 143,144, 145, quanto à sua pessoa. Em conclusões apenas quanto ao facto sob 15) alega razões fundamentadoras. Os restantes factos não mereceram qualquer argumentação concretizadora. Só na motivação – fls. VIII-2.568-2.569 – vamos encontrar referência especificada aos factos sob 10), 14) e 15). Os restantes factos são olvidados. Quanto aos factos 10), 14) e 15) eles resultam claramente provados da análise da documentação constante dos autos e das inferências que as movimentações dos arguidos – documentadas – e a apreensão da cocaína no iate, para isso “adaptado”, permitem. Quanto às conclusões 46ª a 56ª, são elas uma forma de impugnação não especificada da matéria de facto o que, permitindo afirmar que a mesma não invalida a conclusão da suficiente fundamentação, nunca permitiria a alteração da matéria de facto – artigo 431º, al. b) do C.P.P.. Outros argumentos utilizados pelo recorrente – e recordemos que o tribunal está vinculado a conhecer de questões, não de argumentos – são afastados de forma implícita mas indubitável pela fundamentação factual do tribunal recorrido, que necessariamente afecta a versão apresentada pelo recorrente arguido. Designadamente a invocação de que se não fundamentou a não-aceitação da versão dos factos do arguido ou a não-inclusão nos factos provados de todos os locais em que o arguido esteve, como se fosse igualmente relevante saber em que locais o arguido esteve que não sejam coincidentes com o rumo do iate. Vários dos argumentos utilizados quanto a este ponto roçam o risível, designadamente quando exigem que se faça prova incontestável de que o conteúdo das malas era o mesmo quando saíram do iate e quando foram apreendidas, exigindo a demonstração “ontológica” de que o seu conteúdo não foi alterado no percurso entre os dois locais. Aqui, aliás, a argumentação coincide com as conclusões 31ª e 32ª do recurso do recorrente C (motivações a fls. VIII-2.525-2.526), este expressamente alegando a inexistência de fundamentação da existência de “nexos causais” temporais e espaciais entre o momento em que é efectuada a vigilância e a apreensão da droga no carro no Hotel. Recordemos que o primeiro facto ocorre pelas 16 h de 14-07-2014 e a apreensão da droga no carro no Hotel pela 13 h de 15-07-2014. Ou seja, um período inferior a 24 horas que foi coberto pela Policia Judiciaria. Ora, num pequeno percurso (cerca de 160 km), com vigilância da PJ, sendo as datas e horas de chegada e saída, percurso e destino apenas sabido pelos arguidos e com a detenção a ocorrer menos de 24 horas depois, só uma teoria conspirativa complexa poderia compaginar uma alteração do conteúdo das malas por outrém que não os arguidos. Sem mencionar que a hora da chegada ao porto de Sines também era de conhecimento exclusivo dos arguidos e que o controlo das malas foi por estes feita em todo o percurso e por estes colocadas no hotel, em local de acesso dificultado a estranhos. Saber se a vigilância da PJ é total nessas 24 horas é mera retórica. Foi total, porque contínua, nessas 24 horas. Foi total porque vigiada a garagem do hotel desde a entrada da viatura até à sua apreensão no dia seguinte. Apenas durante essa noite a garagem foi vigiada no exterior e ninguém ficou a vigiar a viatura no interior da dita garagem. Mas isto é insuficiente para que se acredite que alguém, no interior, tenha substituído telemóveis por 150 embalagens de cocaína pesando 167,916 kgs. Não é crível, plausível, exequível. Quem, dispondo de tal quantidade de cocaína naquele local e naquela hora, no interior do hotel, saberia que o arguido ali iria chegar e se dispunha a abrir mão do estupefaciente de tal valor para o trocar por telemóveis (!)? E porquê? E que indícios o sustentam? E porquê só referido no final da audiência de julgamento? Neste ponto o recorrente A é mais explícito, mas não aduzindo razões que suportem a sua teoria conspirativa de que alguém teria alterado o conteúdo das malas nem adiantando qualquer indício sério dessa possibilidade que, aliás, sempre deveria ter sido discutido em audiência, caso fosse minimamente credível. Contraditório oblige! Alegar uma implausível teoria conspirativa apenas em sede de recurso não parece ser trunfo que se recomende. Será o juízo emitido sobre a ligação entre os arguidos e o conteúdo das malas suficiente para uma condenação penal? Os ditos “hiatos” temporais e espaciais entre Sines e Lagos e as menos de vinte e quatro horas de diferença entre descarga e apreensão não interromperão esse nexo de imputação? Esta a verdadeira questão suscitada pelos arguidos. Porque, convém ter presente, a questão neste argumento recursivo não é (apenas) de ausência de fundamentação. Aqui a questão (também) é de certeza judicial que, no essencial, os recorrentes afirmam não existir por ser possível, hipotéticamente, uma alteração do conteúdo das malas. Ora, tal versão em vez de a inquinar reforça tal certeza. O inverosímil reforça o possível. O que centra a discussão no que seja a certeza judicial exigível para uma condenação penal. E ela é expressa em duas frases que se entendem não permitirem melhor explanação, a continental europeia “probabilidade que roça a certeza” e a anglo-saxónica “beyond reasonable doubt”, ambas expressando idêntica realidade, o mais exigente standard de prova. Ambas exigem a formulação de um juízo que deve assentar em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra. [28] Convém, por outro lado, não olvidar que a verdade obtida num processo não é apenas a verdade cientificamente comprovada, a verdade absoluta e cientificamente inatacável ou, mais, a total correspondência entre a realidade acontecida e o pensamento actual. Como ao tribunal se impõe uma decisão em função de toda a prova produzida e não apenas por referência a parte dela, à visão parcial da prova produzida, sem exigência de serem afastadas todas as possibilidades teoréticas ou imaginárias. Por isso que se diga que essa verdade tem que ser a verdade judicial, obtida num processo, através de meios suficientes e apropriados para convencer o Tribunal da sua verificação, através de um juízo probabilístico. A verdade (material) é “a realidade, aquilo que tem efectiva existência, com exclusão do meramente possível”, [29] a verdade que, “não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser antes de tudo uma verdade judicial prática”, [30] assente em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra, de uma “probabilidade que roça a certeza”. E essa probabilidade que roça a certeza existe no caso dos autos. E resultando quer do texto da decisão recorrida quer dos vários elementos de prova aí referidos analisados na sua globalidade. Não ocorre, portanto, a nulidade referida pelo artigo 379º al. a) do Código de Processo Penal. Nem ocorre erro na apreciação da prova. * B.4.2 – Da impugnação da matéria de facto – conclusões 61ª a 115ª; Quando no ponto B.4.1.b se referia a invocação de erro na apreciação da prova que o recorrente faz corresponder à ideia de falta de prova para a condenação relegámos para momento posterior a apreciação dessa questão que, no entanto, acabou por ser abordada e respondida quando nos referimos à existência de um juízo positivo sobre a certeza judicial. Mas outros pontos de inconformidade com a matéria de facto são suscitados pelo recorrente – assim como por outros recorrentes - pelo que esta parte da fundamentação, em termos de enquadramento genérico, acaba por ser comum. * B.4.2.a) – Das presunções de facto. Os recorrentes que pretendem pôr em causa a matéria de facto, de forma explícita ou implícita insurgem-se contra o uso que o tribunal recorrido fez das praesumptio facti ou hominis, quer quando assim as apelidam (presunções) quer quando as designam como “prova indirecta”. Por economia reproduzimos aqui o acórdão desta Relação de 11-11-2014 (331/12.7JALRA.E1) por nós relatado, que importa ao enquadramento geral justificativo do uso das presunções simples e, daí retiramos:
Para o Código Civil português, portanto para o ordenamento jurídico português sem que se possa excepcionar o direito penal, a presunção é uma “prova”, pois que incluída na Secção II do Capítulo II (Provas), do Sub-título IV, do Livro I do Código Civil. E uma “prova” tem por função a “demonstração da realidade dos factos” – artigo 341º do referido diploma. (…) Desta forma as presunções assumem um papel probatório de relevo essencial, chegando a qualificar-se a presunção na jurisdição penal como um meio de prova, ao invés de mero raciocínio judicial de carácter probatório (v.g. Carlos Climent Durän, “La Prueba Penal”, Tirant lo Blanche, 2ª ed. Tomo I, pags. 868-869), ou a afiançar que “as presunções são o centro de gravidade de todo o sistema probatório” (Serra Dominguez, M – “Comentários al Código Civil y Compilaciones Forales”, pag. 554, apud, Climent Durän, ob. cit., I, 865). A operatividade da presunção deve, no entanto, apresentar alguns requisitos metodológicos básicos. Devemos ter presente que o facto provado (factum probatum) a base da presunção, a sua premissa inicial, nem sempre permite concluir pelo factum probandum (o facto desconhecido a provar), o que exige maior desenvolvimento fundamentador. (…) Em resumo, a presunção com base no factum probatum permite a ligação ao factum probandum se a presunção se basear num juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco. Não basta, pois, a mera verosimilhança, o provável, o plausível, para que se permita operar de forma capaz uma presunção natural.
No caso concreto é permitido ao tribunal recorrido fazer uso de presunções que correm a linha do tempo, acompanhando a costa vicentina. Aqui esse percurso é simples. Do iate no porto para a estrada em duas viaturas e, finalmente, para a garagem do hotel e subsequente busca e apreensão. De forma imediatista mas não simplista: em Lagos é apreendida uma viatura com cocaína; essa viatura foi alugada por um dos arguidos que é relacionável com o arguido A; este é visto em Sines a contactar outros arguidos que acabaram de chegar de iate, provindos da América do Sul; é visto o transbordo de malas do iate para a sua viatura; desta faz-se, noutro local, o transbordo para a viatura do arguido B; este dirige-se a Lagos onde pernoita com a viatura guardada na garagem; no dia seguinte é detido e feita a apreesão da cocaína nas malas transportadas. Note-se que, sequer, estão em causa os dois extremos factuais, Sines e Lagos. O iate chegou ao porto de Sines e a viatura foi apreendida, com cocaína em Lagos. Estes são factos incontestávelmente provados através de meios de prova directos. É precisamente aquilo que medeia entre ambos os extremos (locais e operações, decarregamento e apreensão) que aqui se discute processualmente, as nulidades focadas no iate e no hotel e a alegada falta de vigilância da PJ ao veículo com a cocaína (num incontornável toque de humor, a polícia criticada por não ter feito a devida vigilância do estupefaciente), que podem ser os elos fracos da presunção, razão porque se discutem. Mas as presunções estabelecidas pelo tribunal recorrido, apesar de isso não ter sido explicitamente assumido, são inquestionavelmente admissíveis e fáceis de fazer. É que, entre os extremos – e aí reside a dificuldade dos recursos – os espaços factuais também estão suficientemente preenchidos por prova directa: é inquestionável o transbordo na marina de Sines das malas para a viatura VW detida pelo arguido A; é inquestionável o transbordo na área de serviço de Grândola das malas para a viatura Nissan detida pelo arguido B. E isto não são presunções, são nexos muito bem definidos e directamente definidos. Onde estão as presunções? Claramente na assunção de que a droga que estava no iate (e que estava não é presunção) foi transportada nas malas para a viatura VW. Que, acondicionadas as malas na viatura Nissan no interior da garagem do hotel, com este vigiado do exterior pela PJ, ninguém a elas teve acesso nessa noite. E estas presunções são fáceis de estabelecer e seguras nos seus requisitos. A prova directa é abundante e o espaço lógico preenchido pelas presunções é muito pequeno e, principalmente, estabelece-se forçosamente o tal “juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco”. Justificava-se o uso de presunções de facto e estas foram operadas de forma segura e adequada. * B.4.2.b) – Da impugnação de facto. Se relativamente à matéria de direito – o tradicional entrechocar das matérias clássicas de recurso – o âmbito e natureza do recurso não levanta problemas de maior, já quanto à matéria de facto a dificuldade, conhecida de todas as ordens jurídicas liberais, de configurar o recurso sobre matéria de facto aconselhavam a construção de um sistema em que a alteração de facto surja como um remédio para os casos extremos não tolerados pela ordem jurídica (recurso de revista alargada do artigo 410º do C.P.P.) - a impor ao tribunal de recurso o seu conhecimento oficioso - ou casos em que a alteração dos factos apurados em primeira instância surja como de necessidade evidente (artigo 412º, nº 3 e 4 do C.P.P.), demonstrada pelo recorrente. Abandonada, pois, a praticamente inexistente possibilidade de recurso de facto no C.P.P. de 1929 e excluída a opção, teóricamente possível, pelo sistema integral de júri, esta foi, bem a nosso ver, a opção do legislador português. Assim, como se afirma no acórdão do STJ de 15-12-2005 (Proc. 2.951/05, sendo relator o Cons. Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.” E a justificação surge límpida e é repetida pela jurisprudência. A apreciação da prova no julgamento realizado em 1ª instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão. Assim, a opção legislativa (obtida após esta leitura literal e aquela sistemática) é uma opção metódica que centra no julgamento realizado em primeira instância o essencial do julgamento, surgindo o recurso não como forma de substituição de uma decisão, mas como forma última de corrigir algo que possa ter corrido patentemente mal. Ora, vistos os autos, constata-se que o recorrente (não obstante ter cumprido o seu ónus de impugnação especificada quanto aos aspectos formais indicados nos números 3 e 4 do artigo 412º do C.P.P.) não consegue demonstrar – substancialmente - que a sua versão dos factos se deve impor. Em concreto e por afirmação do recorrente, estão em causa os factos referidos na sua conclusão 41 (v. conclusão 115), o que revela a proximidade entre as alegações relativas à falta de fundamentação e as relativas à impugnação factual. Estas, as conclusões relativas à matéria de facto, vão da conclusão 61) à 115). E abarcam, no essencial, a falta de qualidade de imagens de CCTV no porto de Sines e a falta de prova directa, suficiente, de que as malas sairam do iate, passaram pelo passadiço e que se não cria o nexo com o seu aparecimento no carro do arguido B. Vimos já que esta impugnação é insustentável face às imagens e aos depoimentos dos agentes da PJ. O ticket ocupa as conclusões 66) a 71) e diz respeito à apreensão de um ticket de supermercado das Bermudas dentro de um saco preto que continha cocaína. Apesar de visto pelos agentes, de constar do processo como apreendido e de uma agente, L, identificar o local onde se encontrava, o arguido sustenta a impossibilidade de tal acontecer pois que, estando as embalagens de cocaína húmidas o tickect não estava, apesar de o saco ter contido aquelas embalagens por um dia (e não dois, como argumenta o recorrente). Tratando-se de invocação de erro notório na apreciação da prova por apelo à decisão recorrida – mas aceitando nós, para facilitar, o apelo a elemento de prova além da decisão recorrida - nem a lógica impõe a conclusão pretendida pelo recorrente, nem o papel analisado seria destruído pela humidade por cerca de 24 h., apesar de ainda agora encarquilhado. Mas a essencialidade da impugnação do recorrente centra-se na falta de vigilância do veículo que transportava a cocaína, o que se concretiza nas conclusões 71) a 115), desenvolvidas nas motivações a fls. VIII-2585 e ss. Aqui o recorrente defende que não é possível dar como adquirido que o veículo esteve sempre sob vigilância pelo que houve, necessariamente, substituição dos telefones que os arguidos A e B afirmaram estar na viatura pela droga que veio a ser apreendida. Para tanto recorrem aos depoimentos dos agentes da PJ que procederam à vigilância e às tardias declarações daqueles arguidos, no final da audiência de julgamento. Ora, do que se extrai dos depoimentos dos agentes da PJ, Q, F e L, que foram transcritos pelo recorrente confirma-se a visão do tribunal recorrido. Isto é, a viatura Nissan na posse do arguido B foi seguida desde Grândola até ao hotel e permaneceu na garagem até ao dia seguinte, dia em que se procedeu à busca e apreensão da cocaína no seu interior. E os agentes da PJ garantiram que vigiaram o exterior do quarto do arguido B e a entrada da garagem, afirmando haver pouco tráfico e que apenas dois ou três veículos saíram daquela garagem com famílias no seu interior. Os arguidos B e A reproduziram, em últimas declarações, uma versão favorável, a dos telefones substituídos por cocaína enquanto a viatura esteve, nessa noite, na garagem. Do exposto conclui o recorrente: - a viatura não esteve sempre sob vigilância; - várias situações poderiam ter ocorrido; - pelo que não vale prova indirecta; - logo opera o princípio in dubio pro reo. A resposta possível a esta impugnação passa por afirmar que as provas e os argumentos do recorrente não impõem outra convicção, sequer tornam verosímil outra decisão de facto tal a fragilidade dos argumentos. Afirmar que a viatura esteve sem vigilância durante a noite, numa garagem de hotel encerrada, de reduzido trânsito de viaturas, com agentes da PJ a vigiarem a entrada da dita garagem, sem conhecimento de outrém de que naquela data a mesma estivesse aparcada no local e que “algo” poderia ter ocorrido, é crer numa infima probabilidade conspirativa que exigia muito mais labor para o convencimento de qualquer tribunal. Por outro lado, face a tal, não pode operar o princípio in dubio pro reo, pois que este exige um inultrapassável impasse probatório e, aqui, a verdade processual alcançada está para além da dúvida razoável. Improcede, portanto, a impugnação factual. * B.4.3 – O tráfico agravado – conclusões 116ª a 122ª. No essencial o recorrente, para considerar inexistente a agravação, invoca o seguinte: Não foi feita prova de que o arguido pretendesse obter avultada compensação económica, pelo que a sua conduta não integra a prática do crime agravado de tráfico de estupefacientes, mas antes a do crime previsto no artigo 21° do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro. Como afirmava o Cons. Simas Santos no acórdão do STJ de 22-01-2009 (proc. 08P4125) é “inabarcável a jurisprudência deste Tribunal sobre a noção de avultada compensação económica, enquanto circunstância qualificativa do crime de tráfico de estupefacientes …”. No essencial o problema, porque se trata de subsunção à al. c) do artigo 24º do Dec-Lei nº 15/93, centra-se na definição do conceito de “avultada compensação remuneratória”. E naquele mesmo aresto o referido magistrado já dava conta do abandono da tese que recorria ao conceito de valor consideravelmente elevado (o que excede 200 unidades de conta) contido no artigo 202.º, al. b), do C.P.P., considerando que o mesmo apenas tem relevância para os crimes contra o património. De facto a jurisprudência tem sido explícita na afirmação de que o conceito de avultada compensação remuneratória tem que ser encontrado numa apreciação global dos factos provados levando em conta aquilo que caracteriza a actividade de tráfico, designadamente a quantidade e qualidade do estupefaciente, o posicionamento do agente no tráfico e a percepção de que a vantagem económica seria relevante, mesmo em caso de médio tráfico, não se exigindo a sua concretização ou demonstração contabilística por tal ser impossível. Elucidativo é a este respeito o sumariado nas proposições I a IV do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-12-2008 (proc. 08P3456, sendo relator o Cons. Maia Costa):
I - A verificação da agravação prevista na al. c) do art. 24.º do DL 15/93, de 22-01 [quando o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória], não depende de uma análise contabilística de lucros/encargos, irrealizável, pelas características clandestinas da actividade. Assim, no caso dos autos duas realidades se impõem desde o início: a qualidade, cocaína, e a quantidade, elevada. Depois o preço do respectivo estupefaciente, também elevado, a potencialidade do negócio e a posição dos arguidos nele, tráfico internacional de grandes quantidades para distribuição, num dos mercados de maior potencial lucrativo, a Europa. A imagem global resultante não deixa qualquer dúvida sobre a operatividade da qualificativa. Improcedente, pois, a razão de desacordo. * B.5 – Recurso do arguido B B.5.1 – A qualificativa prevista na alínea c) do art.º 24.º de Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – conclusão 10ª. O tribunal recorrido errou ao integrar a conduta do arguido no artigo 24° do D.L. 15/93, de 22.1, pois, se tivesse sopesado todas as circunstâncias, concluiria pela ilicitude mediana da sua conduta e assim o condenado apelo crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21° do referido diploma.
Nesta matéria remetemos para o ponto B.4.3 (recurso do arguido A) onde já fundamentámos a improcedência da alegação, não havendo questões ou sub-questões diversas ou novos argumentos a tratar. Em função disto o objecto do recurso deste recorrente fica limitado à matéria a tratar infra em B.9. * B.6 – Recurso do arguido C B.6.1 – A nulidade do acórdão por falta de fundamentação – conclusões 31ª e 32ª. Nesta matéria remetemos para o ponto B.4.1.b.2 (recurso do arguido A) onde já fundamentámos a improcedência da alegação. * B.6.2 – A impugnação da matéria de facto dada como provada – conclusões 33ª a 36ª. As imagens de vídeo que suportam a prova não têm qualidade, pelo que nenhum facto poderia o tribunal dar como provado com base nas mesmas e muito menos com base nos comentários dos Inspectores da Polícia Judiciária sobre tais imagens, pelo que a valoração das mesmas viola o disposto nos artigos 128° e 130° do Código de Processo Penal. Fazendo apelo ao referido em B.4.2.b) a concreta arguição do recorrente centra-se em matéria já por nós abordada – e afastada - no ponto B.4.1 a), pelo que a questão é improcedente. * B.6.3 – A qualificativa prevista na alínea c) do art.º 24.º de Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – conclusões 37ª a 39ª. Não foi feita prova de que o arguido pretendesse obter avultada compensação económica, pelo que a sua conduta não integra a prática do crime agravado de tráfico de estupefacientes. Nesta matéria remetemos para o ponto B.4.3 (recurso do arguido A) onde já fundamentámos a improcedência da alegação. * B.7 – Recurso do arguido D B.7.1 – Da nulidade do despacho que indeferiu as diligências requeridas pelo arguido D. As nulidades que se conheceram até agora têm uma característica comum. Devem ser conhecidas em recurso da decisão final na medida em que são insanáveis – a primeira, nulidade processual – ou implicaram valoração de prova que delas resultou (as buscas e a conversa informal). Esta concreta razão de inconformidade invocada pelo arguido D não tem qualquer dessas características, não sendo uma nulidade processual insanável nem uma valoração de prova proibida. Aliás, sequer se trata de qualquer nulidade, sim de um simples indeferimento de um requerimento que tinha por objecto uma pretensão de produção de prova. E esse requerimento, para acesso a prova apreendida nos autos, foi indeferido pelo tribunal recorrido. Passamos por cima da circunstância de o recorrente não ter identificado devidamente o despacho recorrido. De facto, nem nas motivações nem nas conclusões (9ª a 13ª) o recorrente delimita a sua razão de insatisfação, localiza o despacho que pretende impugnar ou dá conta do seu teor. Caberá ao tribunal adivinhar a sua localização e o seu teor apenas na medida em que o momento do conhecimento foi relegado pelo tribunal recorrido para a decisão final, ao invés da audiência de julgamento. Afirma o recorrente (conclusão 12ª) que tal ocorreu no momento em que ofereceu a contestação e que se terá concretizado em não permitir a produção de elementos de prova. Isto permite-nos afiançar duas coisas: desde logo que se não trata de nulidades de despacho, sim de despacho de indeferimento de produção de prova; depois, que a inconformidade do recorrente se deveria ter manifestado em recurso de tal despacho, para o qual o recorrente dispunha de prazo diverso, com início que antecedia o prazo de recurso de decisão final. Ou seja, o recorrente deveria ter interposto, em tempo, recurso interlocutório de despacho que lhe indeferiu a produção de meios de prova. Não o tendo feito precludiria o seu direito a ver a matéria discutida nos autos por via do caso julgado formal. Dir-se-á, no entanto, que a circunstância de na sua contestação (a fls. V-1652-1657, a 19-05-2015) requerer a produção de prova numa dupla vertente (acesso ao computador e solicitação de envio de ofício à marina de Sines), que não foi objecto de despacho anterior ao início da audiência de julgamento – como seria curial – altera o sentido da questão. De facto, o despacho a conhecer de tais pedidos foi lavrado em audiência de julgamento a 08-07-2015 (acta a fls. VI-1.946) com um indeferimento por se tratar de requerimento genérico e sem indicação de uma pretensão concreta, fundamento que se nos afigura correcto. A isso seguiu-se a invocação pelo ora recorrente (ainda na mesma sessão da audiência de julgamento), de uma suposta nulidade processual, que o mesmo caracteriza como integrante da al. d) do artigo 120º do C.P.P., a omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. E é o conhecimento desta alegação de invalidade que se relega para a decisão final, ao invés de um imediato indeferimento, que se impunha. E não há como negar ao recorrente a expectativa de uma decisão que, expressamente, se relega para final, sob pena de coarctar o seu direito ao recurso, a uma segunda apreciação sobre o ponto suscitado, já que a ausência de decisão lhe inviabilizou o recurso interlocutório. Dela conhecendo dir-se-á que o recorrente se fica pela argumentação genérica quanto ao direito de defesa e à existência de uma nulidade no despacho, quando aquilo que releva é a falta de concretização de uma das suas pretensões (o computador) e a inexistência de razão que justifique a segunda (solicitações à marina de Sines) quando o próprio a poderia obter e não alega razão para justificar a intervenção do tribunal. De facto, o arguido tem direito à produção de prova. Esse direito está limitado, no entanto, pela sua admissibilidade, relevância jurídica e necessidade (artigos 124º e 340º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal). Se essa concretização é inútil para os autos, o princípio da necessidade impõe que não se admita. Ou seja, não há um direito absoluto à produção de qualquer prova de forma não controlada. Como afirma o Prof. Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal - 2º vol., 4ª edição, Lisboa – São Paulo, Verbo, 2008, pag. 134) “a preocupação do legislador em estabelecer o controlo judicial das provas permanece ao longo da história do direito e surge da necessidade de as limitar às que são imprescindíveis para a decisão, eliminando as que não têm que ver com os factos objecto do processo ou as que, ainda que tendo relação com eles, não representam novidade alguma que possa influir na decisão. Na fase do julgamento o poder do tribunal de recusar a admissão e produção de prova requerida pela acusação e pela defesa é limitado pela sua inadmissibilidade, irrelevância ou superfluidade, inadequação, inobtenibilidade ou por ser meramente dilatória (artigo 340º, nº 3 e 4)”. E há que reconhecer que o arguido não requereu prova que se revelasse necessária. A forma como requereu demonstrou a sua desnecessidade. Ou, dito de outra feição, o recorrente, no seu requerimento, não fez o mínimo esforço para elucidar o tribunal da prova que queria produzir com o acesso pretendido, nem da forma como o pretendia fazer. Daqui decorre que se o direito de defesa se pode concretizar no peticionar de produção de um elemento de prova, dele não resulta o automatismo descontrolado da sua produção, um ónus de o tribunal adivinhar qual a pretensão do recorrente. E, no caso de dois bens apreendidos (computador e iate) acresce a necessidade de o tribunal garantir que os mesmos não desaparecem ou é desvituado o seu conteúdo (computador), pelo que solicitar a produção de prova com esses dois bens pressupõe uma explicação minimamente detalhada do que se pretende e como se pretende. Não tendo o recorrente cumprido o ónus de demonstração que está suposto no nº 4 do artigo 340º do C.P.P. é improcedente esta razão de divergência, devidamente sustentada enquanto indeferimento, irrealista enquanto alegação de nulidade. * B.7.2 – A impugnação da matéria de facto, a fundamentação desta e o in Dubio Pro Reo – conclusões 14ª a 30ª. Entende que o vídeo da actividade desenvolvida pelos arguidos na marina é insuficiente para dar como provado que as malas apreendidas saíram do veleiro e que o recorrente ali se encontrava e que auxiliou nessa tarefa; e que também os depoimentos da testemunha Mónica Tranter e Inspectora Ana Grijó não permitiam que o tribunal assim concluísse. Fazendo apelo ao genericamente referido em B.4.2.b), a impugnação do recorrente centra-se igualmente na eficácia das imagens de CCTV, matéria já por nós abordada. O recorrente acrescenta outros dois meios de prova, os depoimentos das testemunhas inspectora da PJ, H, e P. Os requisitos de impugnação mostram-se cumpridos pelo recorrente. No entanto o conjunto das provas indicadas, incluindo os trechos transcritos dos depoimentos, não impõem diversa decisão. Aliás o recorrente concorda com esta asserção já que as suas conclusões vão em dois sentidos semelhantes mas diversos deste: conclui por ausência de prova da prática dos factos pela sua pessoa (com falha na fundamentação factual) ou, ao menos, pela existência de uma dúvida que deve conduzir ao operar do princípio in dubio pro reo. Cremos que sem razão em qualquer das vertentes indicadas: não há ausência de fundamentação adequada, a prova é suficiente para a imputação dos factos, os depoimentos transcritos nem geram dúvida factual nem obrigam a outra decisão e, igualmente, não permitem o operar do princípio in dubio pro reo. Injustificada a alegação do recorrente. * B.7.3 – A qualificação por tráfico agravado – conclusões 31ª a 37ª. Não foi feita prova de que o arguido pretendesse obter avultada compensação económica, pelo que a sua conduta não integra a prática do crime agravado de tráfico de estupefacientes, nem os elementos dos autos permitem concluir que seja co-autor dos factos, mas antes um cúmplice. Nesta matéria remetemos para o ponto B.4.3 (recurso do arguido A) onde já fundamentámos a improcedência da alegação, sendo certo que a argumentação do recorrente apenas acrescenta dois argumentos de forma explícita: a não concretação da possibilidade de ganho elevado; a menor ilicitude da actuação do arguido referida pelo tribunal recorrido. Quanto à primeira – e como já supra deixámos implícito – não se exige na qualificativa uma prova cabal de um concreto ganho, sim a perspectiva desse ganho. Quanto à segunda, a referida menor ilicitude é referida ao tipo penal ao qual a conduta se subsume, não implicando essa ilicitude diminuída uma integração em tipo penal diverso. Improcede, portanto, esta razão de descontentamento do recorrente. * B.7.4 – A comparticipação – conclusões 38ª a 44ª. Os arguidos actuaram em co-autoria, sem sombra de dúvidas já que se verificam relativamente a todos eles os pressupostos da co-autoria, o elemento subjectivo (“o acordo, a decisão, expressa ou tácita, para a realização de determinada acção típica”) e o elemento objectivo, “a realização conjunta do facto, o tomar parte directa na execução”. Ou seja, houve “domínio funcional do facto”, o que define a co-autoria segundo a teoria do domínio do facto. Houve decisão sobre a realização do facto (“domínio do facto material como domínio da decisão”) e domínio do facto através da configuração do facto (“domínio do facto material como domínio de configuração”), sendo certo que aos cinco arguidos coube assegurar a realização da acção executiva. A co-autoria supõe sempre uma divisão de tarefas e/ou um agir conjunto que torne possível o crime, o facilite ou que diminua os riscos da acção. E, no caso, existe este “agir conjunto” que facilitou e diminuiu os riscos da acção (deslocação conjunta). Como se afirma no acórdão do STJ de 10-01-2008 (Proc. 07P4277, rel. Cons. Simas Santos): “(3) “verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum”. Por isso que se entenda que todos os arguidos agiram em co-autoria de um mesmo crime. Outrossim, neste tipo de crime é inescapável que o seu “largo espectro” facilita o surgimento da figura da co-autoria. Isso, aliás, é de alguma forma salientado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-10-2004 (Proc. n.º 1875/04 - 3.ª Secção, rel. Cons. Henriques Gaspar) quado afirma que (proposição II) a execução conjunta não exige que todos os agentes intervenham em todos os actos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a actuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da acção, e que o tipo de crime “apresenta uma configuração típica de largo espectro, de tal modo que qualquer contacto ou proximidade com produto estupefaciente permite, por si, integrar por inteiro a tipicidade” (proposição V). De resto convém recordar que os arguidos que invocam a qualidade de meros cúmplices – D e E – estão a motivar e concluir contra factos provados, como é patente no teor dos factos provados sob: 17) - Conforme atrás referido, nessa altura, a cocaína, com o peso bruto de 167.916,515 gramas, com o conhecimento dos Arguidos A, C, D e E, veio a ser colocada no mencionado veleiro denominado GLORIA. É, pois, irrecusável a co-autoria. * B.8 – Recurso do arguido E B.8.1 – A impugnação da matéria de facto – conclusões XI a XXV. As imagens de vídeo que suportam a prova de que o arguido Hans estava no veleiro e ajudou a carregar as malas para a viatura não têm qualidade, pelo que nenhum facto poderia o tribunal dar como provado com base nas mesmas e muito menos com base nos comentários dos Inspectores da Polícia Judiciária sobre tais imagens, pelo que a valoração das mesmas viola o disposto nos artigos 3400 do Código de Processo Penal. Quanto aos demais factos deverão ser dados como não provados, por não ter sido produzida prova e tendo o tribunal os considerados provados com base em convicção. Chamamos à colação o já fundamentado em B.4.2.b). E acrescentamos que o recorrente pretende invocar falta de prova para sustentar os factos dados como provados e erro na apreciação probatória, factos esses que identifica em kk) das motivações (fls. 2326) e conclusão XIX, mas o teor destas não contém argumentação que demonstre a existência de erro de conhecimento oficioso, erro notório na apreciação da prova, nem válida impugnação parcial na medida em que incumpridos os respectivos pressupostos Nesta última sede, a impugnação factual, o recorrente argumenta com o que consta de III) das conclusões, transcrição de parte dos depoimentos dos inspectores da PJ Carlos DM e H, cujo teor não impõe diversa apreciação da prova. No essencial as motivações e conclusões do recorrente são um manifesto de desagrado pela decisão factual e o apelo a uma nova reapreciação probatória, o que está vedado ao tribunal ad quem sem que se mostre cumprido o ónus de impugnação contido nos números 3 e 4 do artigo 414º do C.P.P. * B.8.2 – A forma de comparticipação – conclusões XXVI a XXXVIII. Remetemos, neste ponto, para o já fundamentado em B.7.3. * B.8.3 – A qualificação – conclusões XXXIX a XLVII. Não foi feita prova de que o arguido pretendesse obter avultada compensação económica, pelo que a sua conduta não integra a prática do crime agravado de tráfico de estupefacientes, nem os elementos dos autos permitem concluir que seja co-autor dos factos, mas antes um cúmplice. Nesta matéria remetemos para o ponto B.4.3 (recurso do arguido A) onde já fundamentámos a improcedência da alegação. * B.8.5 – O princípio in dubio pro reo - conclusões LVI a LXI. Por aquilo que supra já ficou explanado em sede de fundamentação da sentença recorrida e, consequentemente, sobre vícios de facto e presunções, já podemos extrair a conclusão de que a certeza judicial atingida no caso concerto afasta a aplicabilidade do princípio in dubio pro reo. O princípio in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Essa «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» - Ac. STJ de 25-10-2007 (in proc. 07P3170, relator Cons. Carmona da Mota, citando a autora anteriormente citada). O que não ocorre no caso em apreço. Entende-se, portanto, que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar). Não há, pois, que censurar o tribunal recorrido na apreciação e fundamentação da prova por ele efectuada e pela não aplicação do princípio in dubio pro reo. * B.9 – Das penas. É certo que o tribunal recorrido na fundamentação da medida das penas foi pouco explícito na ponderação das circunstâncias atenuantes gerais, ficando-se por uma referência geral às condições “pessoais e familiares” dos arguidos. Certo é, também, que no acervo de factos a considerar para a determinação da sanção sobrelevaram – como tinham que sobrelevar – os atinentes aos aspectos de agravação face ao elevadíssimo grau de ilicitude das condutas, culpa intensíssima, ausência de auto-censura, perigos elevados supostos nas consequências dessas condutas. Por outro lado, face à forma que revestiram as detenções, o flagrante, algumas circunstâncias atenuantes, como a confissão, assumem reduzidíssimo valor. A idade e as condições pessoais evidenciadas não são de molde a jogar um papel de relevo numa maior atenuação da pena. Assim, relativamente a todos os recorrentes, o elevadíssimo grau de ilicitude das suas condutas, a sua culpa intensa, as circunstâncias da acção – elevada quantidade de droga, sua qualidade, inserção em tráfico internacional marítimo - antes de permitirem uma atenuação da pena sempre aconselhariam o seu agravamento, considerando uma moldura penal abstracta de 5 a 15 anos de prisão, o que se não compagina possível vista a proibição da reformatio in pejus. * B.9.1 – Arguido A - a medida da pena – conclusões 127ª a 138ª. A pena concreta é excessiva se se atentar que se tratou apenas de um transporte, que a actuação do arguido não era imprescindível para a consumação da operação, a idade do arguido, a sua situação familiar. No caso do recorrente A vêm articuladas circunstâncias que não alteram este entendimento. Assim o facto de se tratar de um único transporte é irrelevante pois que a lei não prevê nem supõe que sejam muitos. Basta um. Quanto ao não ser a actuação do arguido imprescindível para a consumação da operação é questão já tratada a propósito da co-autoria e nela se esgota. A idade do arguido e a sua situação familiar em nada justifica um abaixamento da medida da pena. Dos factos provados sob 148) a 153) e que caracterizam a sua situação pessoal, familiar e social nada resulta que aponte para um juízo de mitigação das necessidades de prevenção que os factos provados relativos à ilicitude e culpa demonstram. Por outro lado as considerações expendidas sobre o seu papel na acção contêm alegação de factos que não resultaram provados e os provados negam-nas, designadamente as que constam das suas conclusões 129) a 134), exceptuada a idade. Não estamos perante um “simples peão de brega” mas um coordenador da acção, o que aconselha um olhar de maior gravidade sobre a sua conduta, razões por que se mantém a pena imposta. * B.9.2 – Arguido B - a pena de prisão que lhe foi imposta – conclusões 11ª a 15ª. Entende ser elevada a pena concreta aplicada, pois devia o tribunal ter sopesado a confissão parcial do arguido e os seus hábitos de trabalho, impondo-se uma pena no seu limiar mínimo, pelo que terá violado o tribunal o disposto no artigo 71° do Código Penal. Relativamente ao arguido Krokoszynki chamamos à colação as considerações anteriores e fazemos notar que, de forma específica, vem alegado que o tribunal não atendeu à confissão parcial e aos seus hábitos de trabalho. Como já se afirmou supra, a confissão assume muito reduzido valor dada a configuração dos factos relativos à detenção do arguido, que tornaram inviável uma não assunção, ao menos parcial, dos factos imputados. Por outro lado o ter hábitos de trabalho, sendo louvável, não pode aqui funcionar como atenuante geral com um mínimo de peso relevante. As razões invocadas nas conclusões 11ª e 12ª dizem mais respeito à qualificação jurídica das condutas, já supra tratadas, do que à pena concreta aplicada. Improcedem, pois, as razões de inconformidade quanto à pena concreta imposta. * B.9.3 – Arguido C - medida da pena – conclusões 40ª e 41ª. O tribunal não atendeu a várias circunstâncias atenuantes, como a idade do arguido, a sua saúde e o facto de ser primário. Em conclusões o arguido evoca três factos que entende merecerem um juízo atenuativo que não foram acolhidos pelo tribunal recorrido. São eles a idade de 68 anos, a sua saúde (enfarte e cancro) e o seu comportamento anterior. Nas suas motivações (a fls. VIII-2532) o recorrente, com base nos mesmos factos, afirma que se justificava relativamente à sua pessoa uma “pena especialmente atenuada”. Quer-nos parecer que a pretensão se concretiza num pedido de atenuação por existência de três factos vistos como circunstâncias atenuantes gerais e a referência supra indicada não é a invocação de uma circunstância atenuante modificativa prevista no artigo 72º do Código Penal. Não só porquanto não prevista, também porque tais factos, tendo óbvio relevo na história pessoal do recorrente, não preenche nenhum dos requisitos que permitam a operatividade do preceito, a diminuição acentuada da ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Os factos trazidos à colação são atendíveis e foram atendidos pelo tribunal recorrido na menção às “condições pessoais” dos arguidos. Assim, é improcedente a razão de insatisfação quanto à pena concreta aplicada ao arguido. * B.9.4 – Arguido D - a medida da Pena – conclusões 45ª a 50ª. O tribunal não ponderou, para a concretização da pena, a ausência de antecedentes criminais e as condições pessoais do arguido, violando o disposto nos artigos 40°, 70°, 71° e 72°, todos do Código Penal. Pede o arguido que as penas sejam aplicadas pelo mínimo e suspensas na sua execução. Como se afirmou supra não obstante o tribunal ter sido pouco explícito quanto às atenuantes não se pode deixar de considerar que os aspectos atenuativos referidos pelo recorrente tenham sido sopesados, não só pela referência genérica feita pelo tribunal, também porquanto numa moldura abstracta com os valores supra apontados só um peso muito grande dados àquelas circunstâncias pode fazer entender o quantum das penas impostas. No entanto tem razão o recorrente – melhor se diria, passa a ter razão - ao fazer a equiparação à pena imposta ao arguido E igualmente feita, aliás, pelo tribunal recorrido. Isto porquanto procedente o recurso deste por inexistência de antecedentes criminais e sendo igualáveis as condutas, ilicitude e culpa, as penas devem permanecer idênticas. Assim a pena do recorrente deverá ter redução idêntica à que virá a considerar-se adequada para o arguido E. * B.9.5 – Arguido E - a determinação da pena concreta – conclusões XLVIII a LV. Para a determinação da pena concreta o tribunal valorou um certificado de registo criminal escrito em alemão e que não foi traduzido, sendo a sua valoração nula, nos termos dos artigos 92° e 379°, n. 2, ambos do Código de Processo Penal. Invoca o arguido o disposto nos artigos 92º, n. 3 e 166º do Código de Processo Penal para sustentar a sua inconformidade. Cremos, no entanto, que apenas uma das normas é invocável. A primeira, indicada com lapso, é o artigo 92º, n. 1 do C.P.P e refere-se a “actos processuais”, que devem ser praticados em língua portuguesa. Como a razão da alegação do recorrente se centra na junção de um documento em língua alemã a dita norma não é a aplicável. Já o será o artigo 166º, n. 1 do código na medida em que se trata de traduzir documento (a remissão do preceito para o n. 6 do artigo 92º não altera o afirmado). A tradução de documento está, no entanto, sujeita a um juízo de necessidade. Esse juízo impõe-se no caso já que os documentos estão em lingua de difícil percepção para a maioria dos intervenientes. Trata-se do facto dado como provado sob 210) que reza: «Segundo informação prestada pelas autoridades policiais suíças, este Arguido foi condenado por infracções graves à lei federal suíça sobre estupefacientes em 2007». E tal facto não é inócuo mas é iníquo. Não é inócuo pois que permitiu ao tribunal recorrido sopesá-lo como circunstância agravante geral e é iníquo pois que dá o recorrente como “condenado” pelas polícias, não permite o contraditório quanto aos fundamentos de eventual condenação, nem se sabe desta, factos que a determinaram, juízos sobre ilicitude e culpa e natureza e medida da sanção eventualmente imposta. E não obstante não transcrita em devido tempo, comme d´habitude, a Decisão-Quadro nº 2008/675/JAI do Conselho, de 24-07-2008 (que deveria ter sido transposta até 15-08-2010), sempre seria curial reconhecer a necessidade de dispor da sentença penal anterior lavrada noutro Estado membro devidamente traduzida para apurar dos critérios necessários à agravação geral da pena imposta. Isto implica que tal facto, o 210º, deva ser dado como não provado e reduzida a pena imposta para os 5 anos e 8 meses de prisão, considerando que o mínimo são os 5 anos e o jogo de circunstâncias adequadamente consideradas pelo tribunal recorrido não permite que a pena se aproxime mais daquele limite. * B.10 – Dos perdimentos. B.10.1 – Desde logo impõe-se afirmar a inaplicabilidade do artigo 7º (Perda de bens a favor do Estado) da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (Medidas de combate à criminalidade organizada). Não obstante inserido no catálogo de crimes permissivo da operatividade do normativo ao caso concreto não é possível operar a presunção contida no artigo 7º, n. 1 da citada Lei na medida em que essa presunção se limita aos producta sceleris (a “vantagem de actividade criminosa” do nº 1 do artigo 7º) e porquanto se desconhece a totalidade dos factos que seria pertinente apurar para fazer funcionar a presunção (“a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito”). A questão limitar-se-ia à aplicação ao caso dos autos do disposto no artigo 109º do Código Penal (perda de instrumentos e produtos) o qual determina que serão “declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”. Quanto à perda de objectos (instrumentos e vantagens) é patente que tem havido uma inflexão jurisprudencial na interpretação, muito mais restritiva, do disposto neste preceito, de que é exemplo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2007 (Processo: 06P4815 Rel. Cons. Henriques Gaspar), [31] no sentido de centrar a declaração de perdimento na natureza da coisa e no risco intrínseco de prática de novos ilícitos. Mas isto quanto à generalidade dos crimes. Relativamente aos crimes previstos no Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, parece ser mais acertado dar a devida importância a uma outra dissensão jurisprudencial entre o entendimento de que o artigo 109º é aplicável como norma geral de integração a qualquer tipo de ilícito criminal, no que ora interessa, incluindo os crimes de tráfico de estupefacientes (o acórdão do STJ supra citado) e os que entendem que a alteração introduzida pela nº Lei n.º 45/96, de 03/09 ao artigo 35º Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, afasta aquela aplicabilidade e gera um automatismo da declaração de perdimento quando estamos perante este tipo de crimes. [32] De facto a mera leitura do preceito - artigo 35.º, nº 1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro - nas duas redacções faz ressaltar essa diferença. [33] Se inicialmente pensámos que o automatismo previsto na norma não poderia funcionar estando em causa um direito constitucionalmente protegido, como o da propriedade privada (artigo 62º da Constituição da República Portuguesa), hoje tendemos a considerar justificada a diversidade de regimes e a teleologia da alteração legal, com o fito de retirar aos agentes do ilícito os instrumentos e vantagens deste, sabidas as dificuldades postas pelas novas formas de tráfico que dificultam a acção dos clássicos meios de acção policial e judicial. Aquele nocivo automatismo é claramente temperado pelo uso, judicial, dos critérios da causalidade e proporcionalidade aplicáveis ao caso concreto, o que afasta qualquer juízo de censura constitucional. É assim que essa jurisprudência, a que assume a segunda posição supra exposta, discorre: «VIII. De acordo com o disposto no art. 35.º do DL 15/93, de 22-01, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido, ou estivessem destinados a servir, para prática de uma infracção prevista no respectivo diploma. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol II, págs. 530 e ss., a redacção inicial do artigo em causa, seguindo o teor do art. 109.º do CP, exigia, para a declaração de perda a favor do Estado, que os instrumentos ou produtos do crime, pela sua natureza ou circunstâncias do caso, pusessem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecessem sério risco de vir a ser utilizados para o cometimento de novos crimes. Tal exigência foi suprimida com a alteração introduzida pela Lei 45/96, de 03-09, derrogando a norma geral do art.109.º do CP, parecendo implicar uma consequência automática prática ou do destino à prática dos objectos declarados perdidos a favor do Estado. Face a isto importa proceder à análise concreta das pretensões postas. * B.10.2 – Pretensões dos arguidos. Arguido A - da apreensão de dinheiro – conclusões 123ª a 126ª. Não deveria o tribunal ter declarado perdido a favor do Estado o dinheiro encontrado com o arguido, por não ter sido feita prova da origem ilícita do mesmo. Arguido C - a perda do veleiro a favor do Estado – conclusões 42ª a 44ª. Não deveria o tribunal ter declarado perdido a favor do Estado o veleiro pois este é a habitação permanente do arguido e tal perda é desproporcional. Arguido D - os objetos e dinheiro declarados perdidos a favor do estado – conclusões 51ª a 54ª. Não deveria o tribunal ter declarado perdidos a favor do Estado o computador, telemóvel e a quantia de 1.425,00 €, por não ter sido feita prova da origem ilícita dos mesmos. Arguido E - a declaração de perdimento a favor do Estado do telemóvel e Ipad – conclusões LXII a LXIX. Não deveria o tribunal ter declarado perdidos a favor do Estado o telemóvel e Ipad por não ter sido feita prova da sua essencialidade para a prática do crime. * No essencial invocam os arguidos a inexistência de nexo de causalidade entre os bens e o ilícito e a falta de proporcionalidade na declaração de perda do iate, alegada “habitação permanente” de um dos arguidos. Face a qualquer das supra citadas posições jurisprudenciais é certo que a perigosidade das coisas não existe, já que a perigosidade intrínseca de um iate ou de material telefónico e informático nada tem a ver com a prática de crimes de tráfico de estupefaciente. Mas essa perigosidade é inerente à sua mobilidade (iate) e capacidade de comunicação fácil (computadores, telemóveis e tablets) e, como tal, de meio essencial à capacidade de transporte da droga e comunicações necessárias entre arguidos e outros prováveis intervenientes. Mas aqui estão os arguidos a olvidar factos provados. De facto, o que se prova nos factos sob 62 a 64, 124 a 126, 129 e 131 (natureza e proveniência do dinheiro dos arguidos C, D e E), 141 e 143 (natureza do dinheiro, funções do iate e demais objectos digitais) inviabiliza a pretensão dos recorrentes A, D e E quanto à devolução das quantias monetárias e aparelhos digitais (telemóveis, computadores e tablets). Relativamente ao iate é ainda mais nítido o nexo que se estabelece com o ilícito, sendo o mesmo essencialíssimo à sua prática e no modo como o foi, o mais favorável ao seu êxito pela capacidade de um iate não só fazer a travessia atlântica, também a de se misturar com o restante tráfego marítimo e de aportar a qualquer local, mesmo o mais recôndito e, por isso, de mais difícil detecção pelas forças policiais. Na perspectiva diversa – a da proporcionalidade – não é manifestamente desproporcional declarar o perdimento de um iate com valor de cerca de 200.000,00 € num tráfego com um valor expectável de 8.000.000,00 € e na sequência de um caso de tráfico de estupefacientes de âmbito internacional onde se demonstra, de forma insofismável, a essencialidade do uso do dito iate na actividade ilícita. Improcedentes, pois, as pretensões dos arguidos. *** C - Dispositivo: Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal de Relação de Évora: A - Em conceder parcial provimento aos recursos dos arguidos D e E e, em consequência: Ø dão como não provado o facto provado sob 210º («Segundo informação prestada pelas autoridades policiais suíças, este Arguido foi condenado por infracções graves à lei federal suíça sobre estupefacientes em 2007»). Custas pelos arguidos que não obtiveram provimento, com a taxa de justiça de 5 (cinco) Ucs.. Comunique, de imediato, ao tribunal recorrido, independentemente do trânsito e com essa menção. (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado). Évora, 16 de Fevereiro de 2016 João Gomes de Sousa Antóno Condesso
__________________________________________________ [1] - In “Reforma do Código Penal - Trabalhos Preparatórios”, Assembleia da República, 1995, 4º Volume – Outras Audições Parlamentares, pag. 224. [2] - V. o mesmo autor in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra Editora, 1996. pp. 96-105. [3] - Mas considerando haver “equiparação, para efeitos de tutela penal entre a habitação e os espaços vedados anexos”. [4] Em co-autoria com Warren - In Harvard Law Review, vol. IV, December 15, 1890, nº 5, disponível (17-01-2016): http://www.english.illinois.edu/-people-/faculty/debaron/582/582%20readings/right%20to%20privacy.pdf [5] - Hoje discute-se nos meios filosóficos e jurídicos se a “teoria da privacidade”, a “privacy” tal como invocada por Warrem e Brandeis e posteriormente pelo US Supreme Court, não foi uma forma errada de encarar o problema, principalmente a partir de um artigo de 1980 do Prof. Raymond Wacks da Universidade de Hong-Kong, com o título “The Poverty of Privacy” (“A miséria da privacidade”). [6] - In “A condição humana”, Relógio d´Água Editores, Lisboa, 2001, pag. 74. [7] - “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in “Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues”. [8] - «Assim, incluindo na autodeterminação informativa (ou “informacional”) o controle de informação sobre a vida privada Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Lehrbuch des Schuldrechts, II ( Besonderer Teil, 2., Halbband, 13ª ed., München, 1994, §80, espec. p. 498 (v. também já Claus-Wilhelm Canaris, “Grundrechtswirkungen und Verhältnismä(igkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatrechts”, in Juristische Schulung, 1989, pp. 161-172). A noção de “autodeterminação informacional" foi formulada para o domínio da protecção de dados constantes de ficheiros, pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, segundo o qual "o livre desenvolvimento da personalidade sob as condições modernas do tratamento de dados pressupõe a protecção do indivíduo contra a recolha, armazenamento, utilização e cessão dos seus dados pessoais (...). Nas condições actuais e futuras de tratamento automatizado de dados, o poder do indivíduo de em princípio determinar ele próprio a cessão e utilização dos seus dados pessoais (...) requer protecção em medida especial" (Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 65, pp. 1 e ss., em decisão relativa aos censos – "Volkszählungsurteil"). V. Klaus Vogelsang, Grundrechte auf informationelle Selbstbestimmung, Baden-Baden, 1987. Também o Tribunal Constitucional português, no Acórdão n.º 355/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 37, pp. 7), afirmou que os direitos reconhecidos pelo artigo 35º da Constituição impedem “que a pessoa se transforme em ‘simples objecto de informações”, podendo, como meios de protecção contra intromissões na esfera da vida privada de cada um, ser reunidos num “direito à autodeterminação informativa (informationelle Selbstbestimmung), na linha proveniente da decisão do Tribunal Constitucional alemão de 15 de Dezembro de 1983”. A referida proveniência não impede, porém, a extensão da noção a outros casos de controlo sobre informação pessoal, permitindo perspectivar a outra luz o objecto dos direitos subjectivos em causa, embora sem os tornar desnecessários» - Nota do citado estudo do Prof. Mota Pinto, com bolds nossos. [9] - In “Reforma do Código Penal - Trabalhos Preparatórios”, Assembleia da República, 1995, 4º Volume – Outras Audições Parlamentares, pag. 224. [10] - V. o mesmo autor in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra Editora, 1996. pp. 96-105. [11] - P. Mota Pinto, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pp. 479-586, [12] - V. Acórdãos do STJ de 15-02-1995 (CJ, I, 205), de 20-06-2001 (CJ, II, 221) e 12-07-2007 (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d55c954f305ef2aa80257325002bf7f9?OpenDocument) [13] - Considerou o tribunal que o registo de dados e o seu carácter sistemático ou permanente pode dar lugar à consideração de violação da vida privada. No caso concreto o requerente queixa-se, apenas, da divulgação posterior da sua imagem. O tribunal só considera haver violação do artigo 8º pelo excesso de publicidade. No entanto era uma providência prevista pela lei e a divulgação perseguia fins legítimos, a segurança pública, a defesa da ordem, a prevenção de infracções criminais e a protecção de direitos de outrém. O tribunal considera (§ 59) que é de relevante interesse do Estado a caça ao delinquente e a prevenção da criminalidade e não contesta que o sistema CCTV preenche de forma importante essas duas necessidades, cuja eficácia e sucesso são reforçadas pela publicidade dada ao sistema e às suas vantagens. Mas reprova a inexistência de preocupação de velar pela não identificação do requerente. Conclui que não foram suficientes as garantias de respeito pela vida privada e a divulgação pública (não em processo) das imagens foi um atentado desproporcionado à vida privada e uma violação do artigo 8º da Convenção. [14] - “The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized”. [15] - V. “Oxford Companion to The Supreme Court of The United States”, Kermit Hall, 2º Edition, 2005, 554 e “Landmark Supreme Court Cases, The Most Influential Decisions of The Supreme Court of The United States”, Gary Hartman et al., 2004, p. 340. [16] - Ver acórdão Kyllo em que a partir de um espaço público foi feita uma vigilância de uma casa por um dispositivo termal. O Tribunal considerou exigível um mandado e afirmou que o Governo pode ser impedido de usar tecnologia que não está à disposição do público) [17] - Esta é uma área do direito (privacidade, buscas, pressupostsos de emissão de mandados judiciais) em que as tecnologias assumem um papel de relevo, razão que levou o Prof. Paul Schwartz (Privacy and Participation: Personal Information and Public Sector Regulation in The United States, 80, Iowa Law Review, 553, 1994) a apontar um dos elementos de insuficiência da cláusula, a “silenciosa capacidade da tecnologia para corroer as nossas expectativas de privacidade”. [18] - Figura jurídica da “common law” que protege anexos e terrenos circundantes a uma habitação."At common law, the curtilage is the area to which extends the intimate activity associated with the “sanctity of a man's home and the privacies of life”. “Protection afforded the curtilage is essentially a protection of families and personal privacy in an area intimately linked to the home, both physically and psychologically, where privacy expectations are most heightened”. [19] - Hanna Arendt, obra citada, pag. 64. [20] - “O cerco legislativo à Comunicação Social” - Google. Sem fonte e data mas dado como escrito por: Marinho Pinto, Advogado, Jornalista do jornal EXPRESSO, Assistente Convidado da Universidade de Aveiro, onde rege a Cadeira de Direito e Deontologia da Comunicação no Curso de Novas Tecnologias da Comunicação do Departamento de Comunicação e Arte. [21] - Este nº 1 do artigo 79º do Código Civil deve sofrer uma interpretação actualista no sentido de nele se acobertar a violação do direito à imagem através de fotograma ou filme e não ser reduzido à sua interpretação literal de que só existiria violação do direito à imagem se a mesma ocorrer através de fotografia. [22] - “Alteração substancial dos factos em processo penal”, José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho - Comunicações apresentadas no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal”, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários e realizado em Lisboa no dia 13 de Março de 2009 no Fórum Lisboa, e no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009, no 7º aniversário deste Tribunal. Disponível in “http://www.trg.pt/info/estudos.html”. [23] - In Direito Processual Penal, pags. 198-202, 1ª ed. 1974 Reimpressão. [24] - Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004, proc. 03P3213, Relator Cons. Henriques Gaspar. [25] - Acórdão citado. [26] - “Concepção persuasiva” na terminologia de Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Folosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 62. [27] - Ou “concepção cognoscitivista”, que se apresenta coerente com o método de corroboração e refutação de hipóteses como forma de valoração da prova, versão limitada do princípio da imediação, forte exigência de motivação factual e recurso amplo em matéria de facto. Vide aut e ob cit. pag. 64 e nota 6. [28] - Tema já por nós desenvolvido no acórdão desta Relação de 11-11-2014 no processo n. 331/12.7JALRA.E1. [29] - Prof. Castro Mendes – “Do conceito de prova em Processo Civil” [30] - Prof. Fig. Dias, in Direito Processual Penal, 1º, 194 [31] - “I - O fundamento da perda a favor do Estado dos instrumentos que serviram ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, prevista no art. 109.º do CP, não é uma qualquer relação instrumental com o facto, mas a natureza da coisa e as condições de perigosidade que tal natureza revele; a perda constitui, deste modo, uma medida de segurança pelos riscos do instrumento em relação à afectação de determinados valores, ou de prevenção pela especial aptidão («sério risco») para a prática de novos ilícitos. II - Trata-se de uma norma geral, que convive com a existência de outras previsões específicas para determinadas categorias de factos ilícitos típicos ou para bens específicos. III - No domínio das infracções tributárias, o regime relativo à perda de meios de transporte consta dos arts. 16.º, 17.º e 19.º do RGIT”. [32] - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-02-2012 (Proc. 999/10.9TALRS.S1, rel. Cons. Santos Cabral). [33] - Redacção do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro: “1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”. Redacção da Lei n.º 45/96, de 03/09: “1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”. [34] - O referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-02-2012 (Proc. 999/10.9TALRS.S1, rel. Cons. Santos Cabral). |