Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
420/18.4T8FTR.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
SEPARAÇÃO DE FACTO
DECLARAÇÕES DE PARTE
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Para que a separação de facto constitua fundamento de divórcio, nos termos da alínea a) do art.º 1781.º e art.º 1782.º do C. Civil, são necessários dois elementos: um objetivo - que consiste na separação de leito, mesa e habitação, ou seja, falta de comunhão de vida entre os cônjuges; e um subjetivo - a intenção de romper a vida em comum, ou seja, tem de haver, da parte de ambos os cônjuges ou apenas de um deles, uma disposição interior, um propósito de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial.
2. O elemento subjetivo é exteriorizado com o simples facto de o autor intentar a ação de divórcio, o que, só por si, evidencia a intenção ou propósito de não restabelecimento da vida conjugal.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora
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I - Relatório.
BB, residente na Herdade …, …, 7470-… Sousel, intentou a presente ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra a sua esposa, CC, residente na Rua da …, nº. …, 7460 Cabeço de Vide, Fronteira, pedindo que seja decretado o divórcio entre ambos, alegando que estão separados de facto há mais de um ano consecutivo e que não pretende restabelecer a vida em comum com a ré.
Realizada a tentativa de conciliação, sem êxito, a Ré, devidamente notificada, não contestou.
Foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e fixação dos temas da prova, após o que se procedeu a julgamento e subsequente sentença que julgou a ação procedente e decretou o divórcio entre o Autor e a Ré, com a consequente dissolução do casamento.
Inconformada com esta sentença veio a Ré interpor o presente recurso de apelação, apresentando, após alegações, a seguintes conclusões:
1- O objeto do presente recurso consiste em apurar, no âmbito desta ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, se se devem, ou não, considerar como provados os factos 4., 5., 7. e 8. da “matéria de facto provada”, uma vez que, segundo a decisão recorrida, essa matéria foi dada como provada UNICAMENTE pelas declarações de parte prestadas pelo autor, para prova de factos favoráveis à sua pretensão, tendo em conta que essas declarações não foram acompanhadas de qualquer outro meio de prova.
2- Na data da sessão de julgamento de 18 de Fevereiro de 2019 foi proferido o despacho a fim de serem tomadas declarações de parte ao autor a realizar de imediato”.
3- Após ter sido proferido esse despacho, a ora recorrente opôs-se.
4- No caso sub judice estamos no âmbito de uma ação de direitos indisponíveis que não admite confissão, motivo pelo qual a falta de contestação não implica a confissão dos factos articulados na petição inicial.
5- As declarações de parte dirigem-se, primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma perceção direta privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes.
6- Tais declarações serão sempre livremente apreciadas pelo tribunal, conforme resulta do nº 3 do artigo 466º do NCPC, na parte em que não representem confissão.
7- Refira-se, desde logo que, os meios de prova – a prova por declarações de parte e o depoimento de parte- são distintos.
8 - Na presente ação discutem-se direitos indisponíveis, razão pela qual não é suscetível a eventual confissão de factos.
9- Não foi feita qualquer prova, nem testemunhal nem documental, para além das declarações de parte do A., relativamente aos pontos 4., 5., 7. e 8 da matéria de facto provada, sendo que esta matéria e tal prova resultou, exclusivamente da confirmação pelo Autor, em declarações de parte, dos factos que tinha narrado na sua Petição Inicial, através da sua Ilustre Mandatária.
10- O Autor limitou-se a repetir o que já era do conhecimento do Tribunal.
11- A declaração de parte não está prevista na Lei para exercer a função de “Testemunha de Parte”, razão pela qual o tribunal apenas poderia considerar como provado os factos 2., 3. e 6. da matéria de facto provada, pois sobre esses, além das declarações do Autor, foram considerados como provados pelos depoimentos das duas testemunhas Luís M… e Luís C….
12- Não podia o Tribunal a quo, valorar, como valorou, a prova por declarações de parte do Autor suficiente para fazer proceder a ação, para somente com base nessas declarações dar como provados os factos dos pontos 4., 5., 7. e 8 da matéria de facto provada, sem qualquer outra prova complementar e sem desvirtuar o ónus probatório.
13- As declarações de parte prestadas pelo autor, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, não constituem meio de prova bastante para prova dos pontos 4., 5., 7. e 8. dos factos provados.
14- Na ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge discutem-se direitos indisponíveis.
15- A lei não admite a confissão, como se prevê no art. 354º, al) b) CC e, por isso, não é admitido o depoimento de parte (coisa diferente das declarações de parte), que constitui uma forma de obter a confissão de factos.
16- Conclui-se, que as declarações de parte prestadas pelo autor que versam sobre factos favoráveis à procedência da ação, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, não constituem meio de prova bastantes para prova de tais factos e nessa medida, altera-se a decisão no sentido de julgar tais factos não provados.
17- E a matéria dada como provada nos pontos 2., 3. e 6. dos factos dados como provados NÃO É SUFICIENTE para se poder concluir e decidir que houve separação de facto há mais de um ano consecutivo, nos termos e para os efeitos da alínea a) do art. 1781º do C.C.
18- Considerar-se como provado, pelas duas mencionadas testemunhas, que “Relativamente à saída de casa, por parte do Autor, não permanecendo na casa de morada de família, e indo residir com a mãe, constante dos pontos 2., 3. e 6. da matéria de facto provada”, NÃO É SUFICIENTE para se poder concluir e decidir que houve separação de facto há mais de um ano consecutivo, nos termos e para os efeitos da alínea a) do art. 1781º do C.C.
19- A factualidade provada nos pontos 2., 3. e 6. do facto provado, que foi a única que incidiu prova testemunhal, não é bastante para se poder considerar como provada a separação de facto por um ano consecutivo, nos termos e para os efeitos da alínea a) do art. 1781º do C.C.
20 - Não deveria o Tribunal a quo ter decretado o divórcio entre as partes, uma vez que a factualidade provada nos pontos 2., 3. e 6. (porque essa é a única que está provada também por testemunhas) NÃO é bastante para aferir e concluir pela separação de facto por mais de um ano consecutivo, nos termos e para os efeitos da alínea a) do art. 1781º do C.C.
21- O Tribunal a quo, com a sua decisão, considerando provados os factos constantes nos pontos 4., 5., 7. e 8. da matéria dada como provada, apenas com a prova de declarações de parte do Autor, desacompanhado de quaisquer outros meios probatórios, documentais ou testemunhais, violou, o disposto nos artigos 342º, nº 1 e al) a) do art. 1781º do Código Civil e 466º, nº 3 do CPC.
Nestes termos e ainda pelo muito que, como sempre, não deixará de ser proficientemente suprido, deve ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando-se a douta sentença recorrida, com todas as consequências legais.
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O Autor contra alegou, sustentando que as suas declarações apenas confirmam e esclareceram o depoimento das testemunhas inquiridas sob juramento, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II - Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se devem ser dados como não provados os pontos 4), 5), 7) e 8) da matéria de facto provada, por se basear apenas nas declarações de parte do Autor e, em consequência, não ser decretado o divórcio.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
Na decisão recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade:
1. O Autor e a Ré contraíram casamento católico a 19 de outubro de 1985, no regime de comunhão de adquiridos.
2. No início de abril de 2017 o Autor saiu da residência comum do casal.
3. Em tal data foi o Autor residir para a casa da sua mãe.
4. Passados cerca de 5 meses o Autor foi residir para a herdade da …,…, Sousel.
5. O Autor deixou de ter qualquer relacionamento com a Ré, não mantendo contacto com a mesma.
6. O Autor não mais voltou, desde a data referida em 3., a tomar refeições em conjunto com a Ré, a prestar auxilio na doença ou a partilhar economias.
7. Não existe qualquer relação afetiva entre Autor e Ré.
8. O Autor não mantém interesse na vida em comum com a Ré, não pretendendo restabelecer tal vida em comum.
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2. O direito.
A recorrente discorda do julgamento dos pontos 4), 5), 7) e 8) da factualidade assente, os quais deviam ter sido dados como não provados, por não ter sido produzida qualquer outra prova, testemunhal ou documental, para além das declarações de parte do Autor, dado que estamos em presença de direitos indisponíveis que não admite a confissão.
Na sentença recorrida, quanto a esta factologia, consta a seguinte fundamentação:
Teve, ainda, o Tribunal em consideração as declarações prestadas pelas testemunhas Luís M… e Luís C…, conjugadas com as declarações de parte do Autor, nos moldes infra especificados.

Ora, afirmou o Autor, de modo considerado credível, que “as coisas já não estavam a correr bem” e que, por isso, saiu de casa poucos dias antes da páscoa de 2017, sendo que em tal ano o Domingo de Páscoa ocorreu a 16 de abril.
Explicou o Autor que, desde tal data apenas foi ao encontro da Ré uma única vez, para tentar que o divórcio fosse por mútuo consentimento, sendo que, face à negação desta, não teve qualquer outro contacto.
Cumpre referir que, apesar de o Autor se encontrar presente aquando da inquirição das testemunhas, tal presença não abalou a sua credibilidade, pela forma franca e sincera como respondeu às perguntas realizadas, tendo explicado o modo como saiu de casa, para onde foi viver e como se relaciona (ou não) com a Ré, desde tal data.
De facto, das suas declarações de apurou a factualidade constante dos pontos 4., 5., 7. e 8. da matéria de facto provada, na medida em que o Autor explicou a forma como passou a residir com a mãe, numa primeira fase após a saída da residência comum do casal, passando a viver em Sousel decorridos cinco meses.
Explicou o réu que tinha uma vida em comum com a Ré, também ao nível da agricultura, tendo deixado de ter qualquer ligação, mesmo nesse âmbito, com a Ré.
Esclareceu o Autor que não mantém qualquer contacto com a Ré desde a saída de casa, nem com a filha de ambos, não tendo vontade de reatar a vida em comum, mas antes de se divorciar”.
Vejamos, pois, se a razão está do lado da recorrente.
A recorrente não questiona a admissibilidade legal das declarações de parte nos termos do art.º 466.º do CPC, nem o seu objeto, reconhecendo, com o que se concorda inteiramente, que tais declarações serão sempre livremente apreciadas pelo tribunal, conforme resulta do seu nº 3, na parte em que não representem confissão, meio de prova que não se confunde com o depoimento de parte (previsto no art.º 452.º).
Está em causa, pois, segundo a recorrente, o valor probatório que o tribunal a quo deu a esse meio de prova – declarações de parte, no caso, do autor –, porquanto, defende que não tendo sido produzida qualquer outra prova sobre esses pontos da matéria de facto não podiam ter sido dados como provados.
Como é consabido, a confissão judicial para ser válida, isto é, ter valor probatório, o confitente necessita de poder dispor do direito a que o facto confessado se refira, isto é, a confissão terá de se mover no âmbito dos direitos disponíveis, pois não faz prova contra o confitente se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis, como expressamente estatui o art.º 354.º, alínea b) do C. Civil e art.º 568.º, alínea c) do C. P. Civil.
E não se pode confundir, como, aliás, a recorrente reconhece, o depoimento de parte com vista a provocar a confissão-prova, da prova por declarações de parte sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direito, a apreciar livremente pelo tribunal, salvo se constituírem confissão, como vem previsto no art.º 466.º do CPC.
Ora, foi no âmbito do art.º 466.º do CPC que a senhora Juíza determinou, em audiência de julgamento, a tomada de declarações de parte, o que não se confunde, como se referiu, e merece o acolhimento da apelante, com o depoimento de parte enquanto prova por confissão prevista no art.º 452.º a 454.º do CPC, desde logo porque o Autor não reconheceu a realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, para além de ser proibido esse meio de prova no âmbito da presente ação de divórcio, cujo objeto incide sobre direitos indisponíveis.
Assim, prescreve o art.º 466.º do CPC:
“1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Este novo meio de prova vem sucintamente anunciado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, e que deu origem à Lei n.º 41/2013 de 26/6, nos termos seguintes: “Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.”
Estas declarações só podem incidir sobre factos que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direito, sendo apreciadas livremente pelo tribunal, nos termos do n.º3 do art.º 466.º e n.º5 do art.º 607.º do CPC, salvo que revestirem a natureza de confissão.
No que respeita às declarações de parte, refere o Professor Lebre de Freitas, in “A Ação Declarativa Comum”, 2013, 3.ª Edição, pág. 278, “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.”
Relativamente a este meio de prova, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/11/2014 (Pedro Martins): “Mas a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do juiz. Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas”.
Todavia, esta interpretação tem merecido algumas críticas, pois como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, 2018, Almedina, Vol. I, págs. 529/530, este meio de prova permite á parte que seja admitida a depor em casos em que não existem outros meios de prova (como o divórcio sem consentimento) e que “subjaz ao preceito a ideia de que são as partes que verdadeiramente conhecem os contornos do litígio e detêm a razão de ciência mais direta, não havendo qualquer obstáculo de ordem material que possam comparecer espontaneamente perante o tribunal para, sem intermediários, exporem a sua versão dos factos, submetendo-se ao imediato contraditório da parte contrária e ao inquisitório do tribunal, competindo ao juiz apreciar o valor probatório das declarações”.
E quanto ao argumento de que a parte irá, por princípio, relatar ou confirmar a sua versão dos factos retratada no articulado e que lhe é favorável, afirmam os Autores: “ O poder da imediação não deve ser desconsiderado, do mesmo modo que não deve ser desprezado o relevo que pode ser atribuído a declarações mais ou menos espontâneas de alguém que não está condicionado necessariamente pelos efeitos jurídicos que podem ser extraídos das suas declarações. É que uma coisa é a versão da parte exposta pelo seu mandatário…;outra, bem diversa, é a que pode emanar da própria parte quando depõe perante o juiz, tudo podendo decorrer de modo mais espontâneo e impressivo, permitindo, porventura, uma aproximação à realidade que subjaz ao litígio”.
Daí entenderem que face ao princípio da livre apreciação das provas a que o juiz está vinculado, “nada obstará a que factos que, de acordo com a lei substantiva, não estejam sujeitos a prova tarifada, sejam considerados provados com base nas declarações da parte, se acaso o tribunal se convencer da sua veracidade” (nosso sublinhado).
E acrescentam: “Ainda que estejam em causa direitos indisponíveis, não há impedimento a que seja deferida tomada de declarações de parte”, sendo certo que delas não pode ser extraída uma declaração com valor confessório, por totalmente inadmissível, face ao disposto na alínea b) do art.º 354.º do C. Civil, dando como exemplo as ações divórcio.
Luís Filipe Pires de Sousa, in “ As Declarações das Partes/Uma Síntese”, abril 2017, http://www.trl.mj.pt., a propósito do tema - como valorar as declarações de parte -, enuncia as três teses essenciais que têm vindo a ser assumidas na doutrina e na jurisprudência como: i) Tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; ii) Tese do princípio de prova; iii) Tese da autossuficiência/valor probatório autónomo das declarações de parte.
A primeira tese consiste em considerar as declarações de parte como função supletiva, funcionando apenas como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas [1].
Paulo Pimenta [2] afirma que “face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva, isto é, será um meio ao qual as partes recorrerão nos casos em que, face à natureza pessoal dos factos a averiguar, pressintam que os outros meios probatórios usados não terão sido bastantes para assegurar o convencimento do juiz. Nessas situações, embora não exclusivamente nessas, é natural que a parte seja levada a supor que o seu próprio depoimento terá a virtualidade de contribuir para que a convicção do juiz se forme em sentido favorável à sua pretensão”.
A tese do princípio de prova (ii) sustenta que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova [3].
Neste sentido se pronunciou o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/4/2018, proferido no proc. n.º 482/17.1T8VNG.P1 (Ana Paula Amorim), in www.dgsi.pt, em caso idêntico ao dos presentes autos, em cujo sumário se pode ler:
"Em ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, as declarações de parte prestadas pelo autor que versam sobre factos favoráveis à procedência da ação, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, não constituem meio de prova bastante para prova de tais factos."
O princípio de prova é o grau de prova mais débil, significando que a prova em causa não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.
Ensina o Professor Lebre de Freitas, ob. cit. pág., 222: “Por princípio de prova entende-se um resultado insuficiente para a prova do facto, mas suscetível de, combinado com o de outros meios de prova que sejam produzidos no processo, a ela conduzir; trata-se de um contributo para o resultado probatório final, sem força probatória autónoma, mas concretamente relevante quando os meios de prova com que se combine não sejam, por si só, suficientes para gerar no julgador a convicção de que o facto probando se verificou”.
Para o Professor Teixeira de Sousa, “ As Partes, o Objeto e a Prova na Ação Declarativa”, Lex - Edições Jurídicas, 1995, p. 203, “o princípio (ou começo) da prova é o menor grau de prova: ele vale apenas como fator corroborante da prova de um facto. Isto é, o princípio da prova não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova de um facto”.
Finalmente, de acordo com a terceira tese (iii), não obstante as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem alicerçar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo.
Pires de Sousa, ibidem, defende esta orientação, salientando que “a posição mais correta radica na tese mais ampla (iii), e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz”, repudiando “o pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte, sendo infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte”, enunciando as cinco razões que a sustentam, nomeadamente que “desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos fatores a ter em conta na valoração do testemunho. Assim, «Nada impede assim que o juiz forme a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha interessada (até inclusivamente com base nesse depoimento) desde que, ponderando o mesmo com a sua experiência e bom senso, conclua pela credibilidade da testemunha.» Ou seja, o interesse da parte (que presta declarações) na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada: a novidade é relativa e não absoluta, a diferença é de grau apenas”.
E conclui: “Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação - pág. 37.
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit. pág. 532, defendem ser esta a melhor solução, colocando as declarações de parte em pé de igualdade com os demais meios de prova de livre apreciação, com base nos quais pode ser considerado provado o facto e necessidade do juiz expor os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção ( art.º 607.º/4 e 5 do CPC) .
Criticando a orientação expressa no citado Acórdão da Relação do Porto (proc. n.º 482/17.1T8VNG.P1), o Professor Teixeira de Sousa [4] adianta: “Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se”.
Do que se deixa dito, concluiu-se não haver qualquer impedimento legal para a prestação de declarações do Autor sobre os mencionados factos pessoais, ainda que essas declarações hajam sido determinadas oficiosamente, tendo presente o disposto no art.º 7.º/2, 417.º, e n.º1 do art.º 452.º ex vi n.º2 do art.º 466.º do CPC ( cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit. pág. 531) ( [5]).
A tanto não o impede a circunstância de na ação se discutirem direitos indisponíveis, como é o caso com a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, como se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/10/2014, proferido no proc. n.º 2022/07.1TBCSC-B.L1-2, consultável em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: “Mesmo estando em causa uma ação em que se discutem direitos indisponíveis, não pode ser rejeitado o requerimento para declarações de parte, com fundamento na sua inutilidade, por ser suscetível de levar a uma eventual confissão de factos, posto que, neste caso, tal meio de prova é ineficaz para produzir confissão, já que esta nunca poderia ser valorada com os inerentes efeitos de irretratabilidade e força probatória plena”.
O Professor Teixeira de Sousa [6], em comentário a este Acórdão e manifestando a sua concordância, realça: “Da circunstância de o meio de prova não poder vir a ter o valor probatório da confissão não se segue que ele não possa ser avaliado livremente. Isto é, se não é possível atribuir ao meio de prova qualquer dos valores probatórios que a lei, em abstrato, lhe fixa, é possível atribuir-lhe, pelo menos, um desses valores.
Aliás, a solução está em consonância com o disposto no art. 361.º CC: "O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente". É precisamente o que deve valer para o lugar paralelo da prova por declarações da parte”.
Ora, no caso em apreço, a verdade é que as declarações do Autor foram corroboradas pelos depoimentos de Luís C…, que confirmou que Autor e Ré vivem separados um do outro, em casas distintas, declarou conhecer a casa de morada de família e nela apenas permanecer a Ré e que o Autor aí não se desloca desde a separação, achando que não mantém qualquer relacionamento desde a separação porque o Autor “não quer nada com ela”, e da testemunha Luís M…, o qual também declarou que Autor e Ré estão separados desde o início de 2017, não vivem juntos e que ele se quer separar.
Assim, não corresponde à verdade que relativamente à demonstração da factologia enunciada nos pontos 5), 7) e 8) não haja sido produzida qualquer outra prova para além das declarações de parte do Autor.
Na verdade, não estamos apenas perante declarações do Autor (declarações de parte) a apreciar livremente, pelo que irreleva a questão de saber qual a tese a seguir quanto ao valor probatório a atribuir a essas declarações, uma vez que foram acompanhadas e corroboradas pelos depoimentos das citadas testemunhas.
Em todo o caso, resta sublinhar que ainda que se reconhecesse razão à Recorrente, no sentido de se excluir da factualidade provada os pontos n.ºs 4), 5), 7) e 8), como pretende, sempre os restantes factos apurados permitem, contrariamente ao sustentado, julgar procedente a ação de divórcio, com a consequente dissolução do casamento, como foi decretado pela 1.ª instância, ou seja, sempre o recurso terá de improceder.
Nesse sentido, podemos afirmar que seria até totalmente inútil saber se essa matéria de facto deve ou não ficar provada, pois é insuscetível de influenciar a decisão de mérito, sendo que no processo não é lícito realizar atos inúteis (art.º 130º, do CPC).
Os poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1ª instância não devem ser atuados se os factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhum dos enquadramentos jurídicos possíveis do objeto do recurso» [7]..
Na verdade, constitui fundamento legal para o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, a separação de facto por um ano consecutivo, nos termos da alínea a) do art.º 1781.º do C. Civil.
A separação de facto constitui uma das causas objetivas do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, presumindo-se dessa separação a rutura definitiva do casamento.
Entende-se por separação de facto a inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer - art.º 1782º/1, do C. C.
Para que a separação de facto constitua fundamento de divórcio são, por isso, necessários dois elementos, a saber: um elemento objetivo - que consiste na separação de leito, mesa e habitação, ou seja, falta de comunhão de vida entre os cônjuges; e um elemento subjetivo - a intenção de romper a vida em comum, isto é, tem de haver, da parte de ambos os cônjuges ou apenas de um deles, uma disposição interior, um propósito de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial [8].
Por outro lado, é necessário que essa falta de comunhão se prolongue pelo menos durante um ano consecutivo, contando-se tal prazo desde a última manifestação de comunhão de vida e prolongar-se por um ano sem interrupção.
Ora, decorre dos factos provados e referidos em 2), 3) e 6) que o Autor, no início de abril de 2017, saiu de casa da residência comum do casal e foi residir para casa de sua mãe e aí não mais voltou, deixando de tomar refeições em conjunto com a Ré, de lhe prestar auxílio na doença ou a partilhar economias, factualidade que configura, sem qualquer dúvida, o elemento objetivo da separação de facto, bem como o prazo de duração de um ano, visto que a separação ocorreu em abril de 2017 e a ação deu entrada em dezembro de 2018.
E quanto à verificação do denominado elemento subjetivo também não sofre dúvidas a sua existência, pois como se tem vindo a entender o “propósito” de um ou de ambos os cônjuges de não restabelecer a vida em comum pode ser afirmado ou exteriorizado de forma expressa ou tácita, e que o “simples facto de o autor intentar a ação de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido” – vide Acórdãos do STJ de 5/7/2001, Col. Jur. STJ, 2001, T-II, pág. 164; e de 11/7/2006, Col. Jur., STJ, 2006, T-II, pág. 157.
No último aresto, a propósito do elemento subjetivo, pode ler-se: “deve ser afirmado, ou exteriorizado, por forma expressa ou tácita, sendo que, e como julgou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 3 de Junho de 2004 – 04B 1564 – o simples intentar da ação de divórcio com fundamento na separação de facto basta para caracterizar o propósito de pôr fim à sociedade conjugal (…)”.
No mesmo sentido, mais recentemente, também se pronunciou o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/11/2015, proferido no proc. n.º 10033/09.6TCLRS.L1-2 (Ezaguy Martins) disponível em www.dgsi.pt, exarando-se no seu sumário: “A simples propositura da ação de divórcio com fundamento na separação de facto basta para caracterizar o propósito do Autor de não restabelecer a vida em comum” [9].
De outro modo, podia questionar-se como seria viável obter do depoimento de terceiros a prova da intenção do autor de não restabelecer a vida em comum.
Assim sendo, para a decisão de mérito e do presente recurso podemos desprezar os factos impugnados pela recorrente e descritos nos pontos 4), 5), 7) e 8), já que os restantes e supra descritos são suficientes para demonstrar a separação de facto por mais de um ano consecutivo e que o Autor, com a propositura desta ação, revela o propósito de não mais restabelecer a vida em comum (elemento subjetivo).
Decorrentemente, a decisão recorrida não merece qualquer censura, devendo ser mantida.
Improcede, pois, a apelação.
Vencido no recurso, suportará a apelante as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do CPC.
***
IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. Para que a separação de facto constitua fundamento de divórcio, nos termos da alínea a) do art.º 1781.º e art.º 1782.º do C. Civil, são necessários dois elementos: um objetivo - que consiste na separação de leito, mesa e habitação, ou seja, falta de comunhão de vida entre os cônjuges; e um subjetivo - a intenção de romper a vida em comum, ou seja, tem de haver, da parte de ambos os cônjuges ou apenas de um deles, uma disposição interior, um propósito de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial.
2. O elemento subjetivo é exteriorizado com o simples facto de o autor intentar a ação de divórcio, o que, só por si, evidencia a intenção ou propósito de não restabelecimento da vida conjugal.

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V. Decisão.

Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Évora, 2019/06/27
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Lebre de Freitas, in “A Ação Declarativa Comum”, 2013, 3.ª Edição, pág. 278; e Paulo Pimenta, “
[2] Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2.ª edição, pág. 387.
[3] Pires de Sousa, ob. cit., cita na doutrina, Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, p. 58, pronuncia-se assim: «É que não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado”.
No mesmo sentido se pronunciaram os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 20/11/2014 (Pedro Martins) e de 26/6/2014 (António José Ramos); orientação que também foi seguida no Acórdão da Relação de Évora, proferido em 6/10/2016, proc. n.º1457/15.0T8STB.E1, relatado pelo ora relator, disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] “Para que serve afinal a prova por declarações de parte?”, “https://blogippc.blogspot.com/search?q=declara%C3%A7%C3%B5es+de+parte.
[5] ) No mesmo sentido, Teixeira de Sousa, in “Prova por declarações de parte; relações jurídicas indisponíveis”, https://blogippc.blogspot.com/2014/04/prova-por-declaracoes-da-parte-relacoes.html.
Em sentido oposto, Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 278 , para quem “As declarações de parte não podem ser ordenadas oficiosamente”.
[6] In “Prova por declarações de parte; relações jurídicas indisponíveis”, https://blogippc.blogspot.com/2014/04/prova-por-declaracoes-da-parte-relacoes.html.
[7] ) Cf. Acórdão do TRL de 10-02-2011, proferido no processo n.º 334/10.6TVLSB-C.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cf. Tomé d’Almeida Ramião, “ O Divórcio e Questões Conexas”, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 66; Antunes Varela, in “Direito da Família”, Vol. I, pág. 411; e Abel Pereira Delgado, in “ O Divórcio” pág. 68 e segs.
[9] Entendimento também partilhado no Acórdão da Relação do Porto, de 18/04/2013, proferido no proc. n.º 3003/10.3TBVNG.P2 (Deolinda Varão), www.dgsi.pt: “O período da separação e facto de o autor ter pedido o divórcio servem para aferir da verificação do elemento subjetivo da separação de facto.”