Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1347/19.8PBFAR-A.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: HOMICÍDIO TENTADO
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
PERIGO DE FUGA
PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – Atentas as circunstâncias do caso e tendo o arguido sido condenado há cerca de 7 anos, por crime de idêntica natureza, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, revelando os factos uma incapacidade de controlo dos seus ímpetos criminosos, é de emitir um juízo de prognose de perigosidade social do arguido e considerar verificado um concreto perigo de continuação da actividade criminosa, além do perigo de fuga, pelo que a prisão preventiva é a única medida de coacção adequada a acautelar esses perigos.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos autos de inquérito acima identificados, do Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal de Faro, MM foi ouvido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, findo o qual a Mm.ª Juíza que a tal diligência presidiu entendeu que os autos indiciavam fortemente a prática pelo arguido de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art.º 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 al.ª e), do Código Penal, e decretou, na parte que agora interessa ao recurso, aguardasse o arguido os ulteriores termos do processo sob prisão preventiva, nos termos dos art.º 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 202.º, n.º 1 al.ª a) e b) e 2 e 204.º al.ª a) e c), do Código de Processo Penal.

O despacho em que assim decidiu tem o seguinte teor, citado apenas na parte que agora interessa ao caso:
(…)
Indiciam fortemente os autos a prática, pelo arguido, dos factos descritos no requerimento do MP para aplicação de medida de coacção, a saber:

No dia 5 de Outubro de 2019, pelas 18h26, o arguido deslocou-se, na companhia do pai, ao serviço de urgência do Hospital de Faro, com o fito de ser observado pela psiquiatria, tendo referido na triagem que ali se deslocara devido ao facto de ter antecedentes de psicose paranóide e desde há pelo menos 4 semanas não tomar a medicação que lhe foi prescrita, e naquele dia sentir agitação psicomotora, ansiedade e ter alucinações visuais e auditivas.

Então, seguindo o protocolo do hospital para doentes psiquiátricos, o arguido ficou a aguardar junto ao balcão médico-cirúrgico n.º 2.

Este local trata-se de um espaço comum dividido entre o serviço de observação e o aludido balcão médico-cirúrgico.

Pelas 21h20, a médica AA, que prestava serviço médico no serviço de urgência ado Hospital de Faro àquela hora, estava sentada inserindo dados clínicos em computador, de costas voltadas para o arguido.

Neste momento, o arguido muniu-se de uma garrafa de oxigénio que se encontrava no local e desferiu com esta garrafa uma pancada que atingiu AA na parte de trás da cabeça.

Em face de tal pancada, AA caiu e já quando esta estava no solo, deitada, o arguido ergueu novamente a garrafa e desferiu naquela nova pancada que também a atingiu na cabeça.

O arguido cessou a sua conduta porque foi interceptado e agarrado por vários médicos que de imediato acorreram ao local, nomeadamente LL e TT.

Em consequência necessária e directa da actuação do arguido, resultou para a ofendida AA traumatismo da coluna e traumatismo crânio-encefálico, com ferida contusa da região occipital do crânio com pequena hemorragia incontrolável.

A ofendida ficou em observação clínica na unidade de cuidados intermédios do Hospital de Faro.

O arguido, tanto pelo meio utilizado, como pela região que decidiu atingir com a garrafa de oxigénio e também pelo número de pancadas, com a conduta acima descrita quis causar a morte de AA, o que só não veio a ocorrer por circunstâncias alheias a si.

Mais agiu ciente que a ofendida se tratava de médica no exercício de funções, e que prestava no momento dos factos serviço a toda a comunidade e que por esse facto lhe devia maior respeito, o que lhe foi indiferente por ter sido querida a sua conduta.

Agiu em tudo o arguido, livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era, como é, punida e proibida por lei.

Por acórdão transitado em julgado no dia 1 de Fevereiro de 2013, proferido no processo ---/12.9GBLLE, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova com acompanhamento psicológico, pela prática, em 6 de Março de 2012, dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal e de resistência e coacção sobre funcionário, este p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal.

São os seguintes os meios de prova meios de prova constantes dos autos e comunicados ao arguido:
(…)
Com efeito, da conjugação dos depoimentos das várias testemunhas inquiridas, com a reportagem fotográfica do local e relatórios de episódio de urgência, não restam dúvidas sobre a prática, pelo arguido, dos factos objetivos que lhe são imputados, sendo que de resto o arguido reconhece a sua prática, embora referindo não recordar alguns pormenores.

Já no que respeita à imputação subjetiva, no que respeita à intenção de o arguido retirar a vida à vítima, tal intenção pode aferir-se da conjugação da sua atuação com as regras da experiência comum.

Com efeito, conjugando o tipo de objecto utilizado (garrafa de oxigénio de 5Kg de conteúdo), com o facto de o arguido ter desferido duas pancadas, uma das quais quando a vítima se encontrava já prostrada no solo, estando ele de pé e mesmo após lhe ter sido gritado pela testemunha TT para o não fazer (fls. 34), persistindo ele na conduta. E, bem assim, que apenas largou a garrafa quando foi agarrado por terceiros e não por iniciativa própria, tudo é de molde a que, conjugado com as regras da experiência se conclua que o arguido quis retirar a vida à vítima.

Acresce que, contrariamente ao defendido pelo arguido através do seu defensor, não resulta dos elementos dos autos que o arguido tenha usado a botija de oxigénio como objecto perfurante. Não só tal não resulta das declarações prestadas pelo arguido, como a testemunha LL refere que o arguido pegou na bala metálica nas mãos em riste e tendo desferido com ela na cabeça da vítima. Também a testemunha AQ referiu que supôs que a vítima pudesse ter ficado sem vida (não resistido aos ferimentos), atenta a violência da pancada.

Assim sendo, terá de se concluir pela indiciação de o arguido ter atuado naquele momento com intenção de subtrair a vida a AA, ainda que o que tenha determinado a sua actuação sobre a mesma não tenha sido qualquer razão ligada à vitima, mas sim, como o arguido referiu, ter sido a forma que encontrou para que se pudesse sair daquele local, onde se encontrava incomodado e perturbado, mormente face, segundo o mesmo, ao estado da pessoa que se encontrava na cama ao seu lado (idosa que gritava a quem lhe retirava sangue) e, bem assim, de não o autorizarem a deslocar-se ao WC, não obstante o tenha solicitado por diversas vezes (ainda que assim não se entendesse, sempre retirar a vida à vítima teria constituído um meio necessário a alcançar o seu desiderato, que era, segundo o mesmo, sair dali, sendo aquela a única forma que viu para tal).

É certo que face à conjugação do relatório de episódio de urgência de fls. 60, com o discurso do arguido no âmbito deste interrogatório, a própria conduta que é adotada pelo mesmo, se impõe a realização de perícia psiquiátrica ao arguido, que poderá vir a concluir pela atuação de arguido em estado de inimputabilidade.

No entanto, por ora, face à ausência desse elemento e porque, por outro lado, à entrada do serviço de urgência o arguido apresentava discurso coerente e orientado (fls. 60), bem como porque no âmbito do processo ---/12.9GBLLE, em que o arguido foi condenado pela prática de crime de idêntica natureza àquele que lhe é imputado nos presentes autos, perpetrado sobre indivíduo seu familiar, o mesmo foi considerado imputável em relação a esses factos, não obstante submetido a perícia psiquiátrica (cfr. certidão fls. 46 e seguintes), conjugando todos estes elementos, não se pode, na ausência de uma perícia psiquiátrica ao arguido, concluir-se que o mesmo não tinha no momento da sua actuação capacidade de entender e querer relativamente a esses factos que praticou ou não possuía capacidade de avaliar a ilicitude da sua actuação ou de se determinar de acordo com a mesma.

Assim sendo, por ora não obstante os elementos dos autos resulte já em termos de indícios que o arguido padecia à data dos factos de anomalia psíquica consistente em psicose paranóide psico-genética (cfr. fls. 60 verso), daí não se pode extrair que por força desta anomalia psíquica o mesmo tenha atuado em estado de inimputabilidade, sendo certo que é previsível que mesmo que venha a considerar-se inimputável, também venha a ser considerado perigoso (cfr. condenação anterior e estes factos).

Do enquadramento jurídico
Assim sendo, terá de se concluir que os factos praticados pelo arguido são susceptíveis de integrar a prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p. pelos art.º 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, n.º 1 e 2 al. e) todos do Código Penal.

Dos perigos
Verifica-se a existência de um forte perigo da continuação da actividade criminosa por parte do arguido, porquanto o mesmo já sofreu condenação pela prática de crime de idêntica natureza e, bem assim, o mesmo sofre de anomalia psíquica, tendo deixado de tomar medicação psiquiátrica a que se encontra sujeito, a qual não soube precisar, mas que reconheceu ter-lhe sido prescrita por médico que presta serviço, além do mais, no departamento de psiquiatria do Centro Hospitalar Universitário do Algarve.

Além de o arguido se ter deslocado à urgência da referida unidade hospitalar no dia 5 de outubro, mencionando a falta de adesão à terapêutica há quatro semanas, reconheceu a mesma no âmbito das declarações prestadas nestes autos, esclarecendo ter tido iniciativa de cessar a toma da medicação enquanto se encontrava a trabalhar na Alemanha, por se sentir bem, tendo- se passado a sentir mais alegre e enérgico após cessar uma tal toma.

Da factualidade ora praticada pelo arguido, bem como daquela que o arguido praticou no âmbito do processo ---/12.9GBLLE resultam actuações imprevisíveis e impulsivas por parte do arguido, intensificando, assim, o perigo de continuação de actividade criminosa, perigo por certo acrescido quando o arguido cessa a toma da medicação psiquiátrica, sendo que o mesmo parece não aceitar ou ter discernimento para a necessidade da toma permanente dessa medicação.

Verifica-se, por outro lado, perigo de perturbação da tranquilidade pública, porquanto este tipo de crime, ainda que sem consumação mas perpetrado com os contornos em causa nos autos, ou seja, em unidade hospitalar pública e contra profissional de saúde em exercício de funções, provocam intranquilidade na população, em particular a que aflui a unidades hospitalares do sistema nacional de saúde.

Por fim, embora o arguido possua residência fixa e viva com a sua família, beneficiando, ao que tudo indica de apoio familiar, subsiste ainda, embora com menos intensidade que os anteriores, perigo de fuga, porquanto o arguido exerce periodicamente a sua profissão de bate-chapas em vários países da Europa, como referiu, e se encontra ciente da sua anterior reclusão pela prática de factos de idêntica natureza.

No que respeita à medida de coacção que seja suficiente e adequada a acautelar os referidos perigos, entende-se que apenas a prisão preventiva reúne tais requisitos, sendo assim necessária a tal, sendo ainda proporcional à gravidade dos factos e da pena que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido.

Com efeito, qualquer medida de coacção de natureza não detentiva não se revelaria suficiente a acautelar os referidos perigos, tanto mais que, como referido a actuação do arguido se mostra imprevisível. Qualquer outra medida, incluindo a medida de obrigação OPH ainda que com este controlo à distância, não seria eficaz para afastar o arguido da prática de crimes, mormente contra as pessoas, tanto mais que, além da já referida imprevisibilidade da sua conduta, o mesmo já perpetrou factos idênticos contra familiar.

Verificando-se, no entanto, que o arguido padece de anomalia psíquica (como já referido, psicose paranóide psico-genética – fls. 60 verso), afigura-se que, enquanto a anomalia persistir, em vez da prisão preventiva, deva antes ter lugar internamento preventivo em Hospital Psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, adoptando as cautelas necessárias para prevenir os perigos de fuga e de cometimento de novos crimes.

Face a tudo o exposto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 191º, 192º, 193º, 194º, 202º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2, e 204º, al. a) e c), determina-se que o arguido, MM, aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva, sendo esta, enquanto a anomalia psíquica do arguido persistir, substituída por internamento preventivo em Hospital Psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado.
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Mais se determina, como requerido pelo Ministério Público e para aferir da eventual inimputabilidade do arguido e melhor clarificação da sua patologia, se solicite a realização de perícia psiquiátrica ao mesmo, devendo os senhores peritos esclarecer se (…)
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

I. Em 7 de Dezembro de 2016, o Arguido foi presente ao Tribunal a quo de Faro, o qual, em sede de Primeiro Interrogatório Judicial, decretou a sua prisão preventiva, enquanto suspeito da prática de um crime de homicídio na forma tentada;

II. O Arguido encontra-se preso no Estabelecimento Prisional de Caxias;

III. Na sua fundamentação o Tribunal a quo invocou que dados o antecedente criminal do Arguido resulta no perigo de continuação de actividade criminosa e perigo por o Arguido cessar a toma da medicação psiquiátrica;

IV. Bem como no perigo de perturbação da tranquilidade pública uma vez que “(…) ainda que sem consumação mas perpetrado com os contornos em causa nos autos, ou seja, em unidade hospitalar e contra profissional de saúde em exercício de funções, provocam intranquilidade na população (…)”;

V. E, “(…) embora o arguido tenha residência fixa e viva com a família, beneficiando, ao que tudo indica de apoio familiar, subsiste ainda, embora com menos intensidade que os anteriores, perigo de fuga, porquanto o arguido exerce periodicamente a sua profissão de bate-chapas e, vários países da Europa (…)”;

VI. Conforme veremos, não se verificam as condições e os pressupostos legais exigíveis para a aplicação de medida tão gravosa como a prisão preventiva;

VII. O Arguido é pai de dois filhos menores, com quem reside habitualmente, bem como com a sua mulher;

VIII. O Arguido é totalmente independente financeiramente e providencia sustento à sua família com quem reside;

IX. Dos autos, bem como especialmente da prova documental, é patente que o Arguido se dirigiu à Unidade de Urgência do Hospital de Faro em virtude de alucinações que padecia no dia 05 de Outubro de 2019;

X. O Arguido não demonstrou qualquer hostilidade seja com enfermeiros da ambulância que o transportou, com a enfermeira na triagem daquela Unidade, nem mesmo com outros profissionais de saúde, mormente médicos durante o período que se encontrou naquele Hospital;

XI. Conforme resulta do próprio despacho que se recorre, pode-se concluir que os factos em investigação nos autos, a confirmarem-se, constituem um episódio acidental e em estado de inimputabilidade que, até aqui tem sido orientada como bom pai de família e devidamente medicado para o efeito;

XII. É evidente a ingenuidade, simplicidade e honestidade do Arguido pela forma como se comportou aquando da sua detenção e prisão e no próprio interrogatório judicial, bem como no facto de não se ter furtado à justiça, tendo inclusive colaborado com esta;

XIII. Antes de ser preso, o Arguido tinha paradeiro fixo e certo, vivendo com a sua mulher e os seus dois filhos menores, sendo um óptimo pai e marido;

XIV. Na verdade, para além da sua família, todos os seus amigos ficaram chocados, perturbados e preocupados com o sucedido;

XV. Acresce que, o Arguido é o pilar económico do agregado familiar;

XVI. Socialmente o Arguido é tido como uma pessoa pacífica, respeitadora e humilde, encontrando-se plenamente inserido no meio onde vive e trabalha;

XVII. Ou seja, estamos perante uma pessoa plenamente inserida do ponto de vista familiar e social;

XVIII. Um dos princípios basilares de um Estado de Direito é o princípio da liberdade do cidadão, o qual está, no nosso ordenamento jurídico, consagrado no número 1 do artigo 27.º da
Constituição da Republica Portuguesa;


XIX. Assim, só em situações de maior gravidade e por imperativo social relevante tal princípio poderá ser limitado;

XX. A aplicação da prisão preventiva está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191° a 195° do Código de Processo Penal em que avultam os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, como aos requisitos gerais previstos no art. 204° daquele código;

XXI. Lê-se no número 1 do artigo 191.º do Código de Processo Penal que "(…) a liberdade das pessoas só pode ser limita, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei";

XXII. Por outro lado, prevê o número 1 do artigo 193.º do Código de Processo Penal que "(…) as medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas";

XXIII. Com efeito, a aplicação de medidas de coação, maxime da prisão preventiva, tem, necessariamente, de se pautar pelo princípio constitucional da presunção da inocência, bem como respeitar os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.

XXIV. Sendo certo que tais princípios impõem, conforme ensina João Castro e Sousa, " (…) que qualquer limitação à liberdade do arguido anterior à condenação com trânsito em julgado deva não só ser socialmente necessária mas também suportáve (…)”;

XXV.A prisão preventiva trata-se, pois, de uma medida de coação excepcional e de aplicação subsidiária, apenas podendo ser determinada quando as outras medidas de coação se revelem manifestamente insuficientes, devendo dar-se prioridade a outras menos gravosas por ordem crescente (cfr., conjugadamente, o número 2 do artigo 28.° da Constituição da República Portuguesa e o número 2 e 3 do artigo 193.º do Código de Processo Penal);

XXVI. Na verdade, a prisão preventiva é uma medida de coação de ultima ratio, pelo que o Tribunal apenas pode aplicar quando se verifica algum dos requisitos consagrados no artigo 204.º do Código Processo Penal e sempre que as demais medidas de coação menos gravosas se demonstrem como efectivamente inadequadas e insuficientes;

XXVII. No caso concreto, não se verificam os pressupostos da prisão preventiva;

XXVIII. Tal medida, aplicada ao Arguido, assentou, sobretudo, na possibilidade continuação da actividade criminosa;

XXIX. Porém, o perigo aqui em causa, "deve ser real e eminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação de factos vários, como sejam toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade, bem como quaisquer outros, como a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar" cfr. acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.01.2011 in www.dgsi.pt (no Processo número 2221/10.9PBAVR-A.C1);

XXX. Assim, obriga, pois a um juízo de prognose dos factos indiciados conjugados com a personalidade do Arguido neles revelada e a personalidade do Arguido em si;

XXXI. Conforme se lê no sumário do mencionado acórdão que o perigo "(…) terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica) ...o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coação, maxime a prisão preventiva".

XXXII -
ln casu, não foram mencionados factos susceptíveis de permitir a aplicação de medida tão gravosa ao Arguido, tendo a mesma assentado apenas em meros juízos abstratos, não concretizados em factos, tal como exige o artigo 204.°, do Código de Processo Penal;

XXXIII. Por outro lado, não estão indiciados quaisquer factos que façam depreender a continuação da actividade criminosa e o perigo de perturbação do inquérito, nem a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas;

XXXIV. Na verdade, o comportamento colaborante, pacífico e humilde do Arguido, revela uma faceta da personalidade que, conjugada com o seu historial clinico psiquiátrico, a sua plena inserção social e familiar e a gravidade da conduta criminal indiciada, permite, indesmentivelmente, afirmar que estamos perante uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua prisão preventiva - cfr. acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 16.11.2011 in www.dgsi.pt (no âmbito do processo número 828/10.3JAPRT-D.Pl);

XXXV. Acresce que face à personalidade do Arguido, e à sua inserção social as necessidades cautelares que eventualmente existissem podiam ser igualmente satisfeitas através de outras medidas de coação menos gravosas, nomeadamente e por ordem crescente, as constantes dos artigos 196.º, Termo de Identidade e Residência ou 198.°, Obrigação de Apresentação Periódica;

XXXVI. De facto, a prisão preventiva decretada ao Arguido é manifestamente desproporcional;

XXXVII. Como salienta o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 02.12.2010, in www.dgsi.pt (no âmbito do processo número 30/10.4PEVRL-A.Pl): "Na verdade, não faria sentido que ao arguido fosse aplicada uma medida preventiva mais gravosa do que aquela em que se prevê ele venha a ser condenado. Isto porque aquela tem um carácter meramente instrumental e dependente desta - o que se visa não é mais do que assegurar a aplicação de uma sanção, pelo que seria absurdo que a medida preventiva ultrapassasse em gravidade a pena final." – que é o caso, uma vez que o próprio Tribunal a quo, bem como o Digno Procurador do Ministério Público que afirmam a forte probabilidade de o Arguido ter agido em estado de inimputabilidade;

XXXVIII. A prisão preventiva, na senda do princípio da proporcionalidade desempenha uma função de ser limitada às situações em que a pena previsível é a prisão efectiva – o que não se demonstra pelo despacho que se recorre;

XXXIX.In casu, atendendo aos factos existentes no processo, é pouco provável que a pena previsível seja de prisão efetiva, pelo que a prisão preventiva que lhe foi aplicada não é, de forma alguma, harmonizável com a pena que lhe vier a ser aplicada;

XL. Consequentemente, por esse motivo, a prisão preventiva não poderia ter sido aplicada;

XLI. A decisão que decretou a prisão preventiva ora impugnada, o tribunal a quo não valorou, conforme devia, a inserção familiar e social do recorrente e a sua personalidade;

XLII. Pelo que se pode concluir que a aplicação da prisão preventiva em causa não observou os princípios e regras que lhe estão subjacentes, designadamente, os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, o que torna a mesma ilegal, por violação, entre outros, do número 2 do artigo 18°, número 2 do artigo 28°, número 2 do artigo 32° todos da Constituição da República Portuguesa e do número 1 do artigo 191º, número 2 do artigo 192º, artigo 193º, artigo 202º e artigo 204º, todos do Código de Processo Penal;

XLIII. Com o devido respeito por opinião superior, os referidos preceitos legais deveriam ter sido aplicados ao caso, face às circunstâncias do caso, à aplicação de outra medida de coação menos gravosa como o Termo de Identidade e Residência ou a Obrigação de Apresentação Periódica e, no limite, a Obrigação de Permanência na Habitação;

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento, e, consequentemente, deve revogar-se a decisão recorrida que ordenou a medida de coação de prisão preventiva e aplique a este outra medida de coação que respeite os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e menor intervenção, designadamente e por ordem crescente de gravidade, ficando o Arguido a aguardar os ulteriores termos do processo na situação prevista no artigo 196.º do Código de Processo Penal, e assim que não se considere seja aplicada a medida constante no artigo 198.º do Código de Processo Penal (obrigação de apresentação periódica) e, apenas no limite, no artigo 201.º (Obrigação de Permanência na Habitação - cumulativamente como sistema de vigilância electrónica, nos termos da Lei nº 122/99, de 20-08) do Código de Processo Penal, respeitando-se, desse modo, os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade previstos no artigo 193.º do Código de Processo Penal, garantindo-se, assim, a costumada Justiça.
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A Exma. Procuradora-Adjunta do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:

1. No dia 07 de Outubro de 2019 foi aplicada ao arguido MM a medida de coação de prisão preventiva e, enquanto persistir a anomalia psíquica do arguido, substituída por internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado.

2. O despacho que aplicou a referida medida de coação, considera fortemente indiciada a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea e) do Código Penal.

3. O arguido, não se conformando com tal decisão, interpôs recurso, pugnando pela revogação do despacho proferido, na medida em que este não teve em linha de conta as exigências quer pessoais, quer profissionais e familiares do arguido, nem se verificam, em concreto, os perigos de continuação de atividade criminosa, o perigo de fuga e o perigo de perturbação do inquérito.

4. Pretende o arguido a revogação e substituição da medida de coação de prisão preventiva, por outra, designadamente, termo de identidade e residência, obrigação de apresentação periódica e, no limite, a obrigação de permanência na habitação.

5. O Ministério Público concorda com a decisão sob recurso.

5. No que respeita ao perigo de fuga, o recorrente alega que tem residência fixa em Portugal e aí vive com a sua esposa e dois filhos menores, que apenas se desloca para o estrangeiro por razões profissionais, que fica hospedado num hotel, sempre que termina o trabalho executado no estrangeiro, regressa a Portugal, pelo que tem paradeiro fixo.

7. Não concordamos com os argumentos do recorrente, pois como o próprio arguido referiu, em primeiro interrogatório judicial, que tem ligações a vários países europeus, onde trabalha, aí auferindo o rendimento necessário para a sua subsistência e a da sua família.

8. Importa também referir os antecedentes criminais do arguido, tendo já sido condenado, por acórdão transitado em julgado, em 1.2.2013, na pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova com acompanhamento psicológico, pela prática, em 6.3.2012, do crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º e 23.º do Código Penal e do crime de resistência e coação sobre funcionário, este p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal.

9. É expectável, atenta a referida anterior condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, que, em caso de condenação nestes autos, lhe venha a ser aplicada pena de prisão efectiva, o que torna real e concreta a possibilidade do arguido fugir do país para se eximir ao cumprimento de tal pena.

10. A doutrina tem entendido que a lei não presume o perigo de fuga, exige antes que esse perigo seja concreto, não bastando a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, devendo-se fundamentar os elementos de facto que indiciem o perigo, como é o caso da personalidade do arguido, a situação financeira, familiar, profissional e social, ligações a países estrangeiros.

11. O mesmo se diga quanto à Jurisprudência, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.05.2011, proferido no processo 867/09.7PRPRT-A.P1 (Relator Des. Ricardo Costa e Silva e disponível em http://www.dgsi.pt pode ler-se: “(…) perigo de fuga deve ser avaliado em concreto, aliás, a ideia é pacificamente aceite. Mas isso não significa que o perigo tenha que se adensar até à iminência ou ao início de execução da fuga. Ou seja, não é necessário que haja indícios materiais de que a fuga está num horizonte factual próximo, para que se possa afirmar que há perigo de fuga. Um juízo sobre a existência de perigo de fuga, tem de basear-se na pessoa concreta que está em causa, com a sua personalidade e as circunstâncias conhecidas da sua vida e daí partir, cotejando essa imagem com a experiência comum para se averiguar da probabilidade de se verificar uma fuga.”

12. Compulsada a prova existente no presente processo, máxime as declarações proferidas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial (fls. 73 a 84), o certificado de registo criminal (fls. 6 e 7) e a certidão do acórdão proferido no âmbito do processo ---/12.9GBLLA (fls. 46 e seguintes), e considerando que aquele é conhecedor dos fortes indícios contra si existentes nos presentes autos, bem como de que o arguido se encontra consciente da forte probabilidade de lhe vir a ser aplicada pena de prisão efectiva nestes autos e ainda o forte e real perigo de que abandone o país para se eximir ao cumprimento da pena, estamos em crer que a aplicação da medida de coacção imposta se mostra adequada.

13. O recorrente vem também alegar que não se verifica o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução pois em momento algum manifestou resistência verbal e física aquando da detenção, a maior parte da prova já se encontrar reproduzida nos autos, bem como de não tem relação ou possibilidade de intervir ou influenciar qualquer dos testemunhos.

14. Porém, o despacho em crise não se fundamenta na existência desse perigo (de perturbação do decurso inquérito).

15. O recorrente argumenta ainda no seu recurso que, nos presentes autos, não se verifica em concreto o perigo de continuação de atividade criminosa, atenta a personalidade do arguido demonstrada tanto no cometimento dos factos, como no decurso do primeiro interrogatório judicial. Alega ainda que a confissão dos factos é reveladora de que se apresenta como uma pessoa com os valores mais elementares de vivência em sociedade.

16. Não podemos concordar com tal argumentação, uma vez que, dos elementos de prova elencados na decisão recorrida, resulta o eminente perigo de continuação da atividade criminosa, perigo este que diz respeito à prática de crimes da mesma natureza por parte do arguido.

17. A aplicação de uma medida de coação com base neste perigo deve servir para prevenir comportamentos que sejam prolongamento da atividade já iniciada, o que não significa a continuação da execução do mesmo crime, mas a prática de crimes análogos ou da mesma natureza daqueles pelos quais se encontra indiciado.

18. O perigo de continuação da atividade criminosa deve, identicamente, fundar-se num juízo de probabilidade atentas as circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade.

19. Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11/10/2017, proferido no processo 343/17.4JAAVR-A.P1 diz-se que: “Se em face das circunstâncias do caso e da incapacidade do arguido de controlar os seus ímpetos, é de emitir um juízo de prognose de perigosidade social do arguido verifica-se em concreto o perigo de continuação da atividade criminosa.” – sublinhado nosso.

20. Resulta assim que, o perigo de continuação da atividade criminosa decorre de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, que leva em devida conta as circunstâncias anteriores ou contemporâneas manifestadas na conduta praticada pelo arguido, pelo que, no caso dos autos, constata-se que é forte e claro o perigo de continuação da atividade criminosa, considerando quer os factos descritos nos autos, quer o facto de o arguido já ter sido anteriormente condenado pela prática do mesmo tipo de crime.

21. Como se adiantou supra em 8, o arguido já foi condenado, para além do mais, pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, por acórdão transitado em julgado em 1.3.2013 (cfr. C.R.C. junto).

22. E, nos presentes autos, encontra-se novamente indiciado da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 alínea e) todos do Código Penal.

23. Assim, atento o supra exposto, é manifesto que o arguido exibe comportamentos imprevisíveis, inesperáveis e impulsivos.

24. De facto, a incapacidade manifestada pelo arguido em controlar os seus ímpetos, encontra-se evidenciada nos presentes autos, uma vez que pelos (simples) factos de se encontrar num hospital, de achar que não podia ir ao «wc» e estar ao seu lado uma outra paciente a quem era retirado sangue tal situação “foi demais para ele” pelo que, sem mais, o arguido empunhou uma garrafa de oxigénio de 5 de kg e desferiu duas pancadas na cabeça da médica AA, quando esta se encontrava de costas para si, impedida de prever aquela acção e dela se afastar e/ou, por algum meio, se defender.

25. Como o próprio arguido referiu em sede de primeiro interrogatório, “quando pegou na garrafa, pensou que era a única maneira de sair dali, foi o que lhe veio naquele momento à cabeça”.

26. O arguido não conhecia AA, pelo que foi aleatória a escolha da vítima a fim de poder atingir o seu intuito, ou seja, abandonar o hospital, local onde se encontrava perturbado e incomodado pelas banais razões já acima aludidas.

27. A actuação supra descrita indicia um juízo de prognose de perigosidade social por parte do arguido, verificando-se, em concreto, o perigo de continuação da atividade criminosa.

28. Há ainda que referir que o perigo de continuação de atividade criminosa se encontra acrescido devido ao facto de o arguido ter cessado a toma de medicação psiquiátrica que lhe foi prescrita, há pelo menos quatro anos, contra a opinião de familiares e amigos, tal qual relatou em sede interrogatório.

29. Tal facto, é verdadeiramente demonstrador de que o arguido não aceita e não tem discernimento para a necessidade da toma permanente da medicação psiquiátrica que lhe foi prescrita.

30, Quanto ao perigo de perturbação de ordem e tranquilidade pública, o facto de o arguido se encontrar inserido familiar e profissionalmente e uma alegada personalidade pacífica, calma e humilde (contraditória com os factos em apreço), não são sinónimos de que, no caso em concreto, não se possa verificar tal perigo.

31. Para a verificação do perigo de perturbação de ordem e tranquilidade pública, é necessário a existência de circunstâncias que alterem a tranquilidade e ordem públicas, pelo que se deve atender quer à natureza e circunstâncias do crime, quer à personalidade do arguido.

32. Pelo que é possível concluir que, efetuada a devida ponderação das referidas circunstâncias, o arguido, em concreto, cria um grave perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

33. O crime de homicídio é potenciador de sentimentos de insegurança e de intranquilidade, pelo que a libertação do arguido elevaria o alarme social decorrente da prática do crime. Para além de que os contornos em que o mesmo foi praticado – em serviço de saúde de atendimento ao público - provocam intranquilidade na população.

34. Ora, atendendo aos perigos verificados (fuga, continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade pública), à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente será aplicada, não vislumbramos qualquer desproporcionalidade na medida de coação imposta ao arguido, entendemos antes ser legal, necessária e adequada como única forma de conter a impulsividade e perigosidade social que o arguido encerra, pelo que pugnamos pela sua manutenção, face à forte indiciação da prática pelo arguido do crime de homicídio na forma tentada.

Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu, como é seu timbre, douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que não existem indícios de que o arguido quisesse matar a ofendida; e

2.ª – Que a prisão preventiva é no caso uma medida coactiva excessiva, por não existir perigo de fuga nem de continuação de actividade criminosa, devendo antes ser substituída pela de apresentações periódicas à autoridade policial ou, quando muito, pela de permanência na habitação mediante vigilância electrónica.
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Vejamos:

No tocante à 1.ª das questões postas:
A propósito da intenção com que o arguido no hospital, enquanto aguardava tratamento, agrediu a médica que estava sentada ao computador de costas para o arguido e sem ter nada a ver com ele, expendeu assertivamente a Senhora Juíza "a quo" que:

Já no que respeita à imputação subjetiva, no que respeita à intenção de o arguido retirar a vida à vítima, tal intenção pode aferir-se da conjugação da sua atuação com as regras da experiência comum.

Com efeito, conjugando o tipo de objecto utilizado (garrafa de oxigénio de 5Kg de conteúdo), com o facto de o arguido ter desferido duas pancadas, uma das quais quando a vítima se encontrava já prostrada no solo, estando ele de pé e mesmo após lhe ter sido gritado pela testemunha TT para o não fazer (fls. 34), persistindo ele na conduta. E, bem assim, que apenas largou a garrafa quando foi agarrado por terceiros e não por iniciativa própria, tudo é de molde a que, conjugado com as regras da experiência se conclua que o arguido quis retirar a vida à vítima.

Acresce que, contrariamente ao defendido pelo arguido através do seu defensor, não resulta dos elementos dos autos que o arguido tenha usado a botija de oxigénio como objecto perfurante. Não só tal não resulta das declarações prestadas pelo arguido, como a testemunha LL refere que o arguido pegou na bala metálica nas mãos em riste e tendo desferido com ela na cabeça da vítima. Também a testemunha AQ referiu que supôs que a vítima pudesse ter ficado sem vida (não resistido aos ferimentos), atenta a violência da pancada.

Assim sendo, terá de se concluir pela indiciação de o arguido ter atuado naquele momento com intenção de subtrair a vida a AA, ainda que o que tenha determinado a sua actuação sobre a mesma não tenha sido qualquer razão ligada à vitima, mas sim, como o arguido referiu, ter sido a forma que encontrou para que se pudesse sair daquele local, onde se encontrava incomodado e perturbado, mormente face, segundo o mesmo, ao estado da pessoa que se encontrava na cama ao seu lado (idosa que gritava a quem lhe retirava sangue) e, bem assim, de não o autorizarem a deslocar-se ao WC, não obstante o tenha solicitado por diversas vezes (ainda que assim não se entendesse, sempre retirar a vida à vítima teria constituído um meio necessário a alcançar o seu desiderato, que era, segundo o mesmo, sair dali, sendo aquela a única forma que viu para tal).

É certo que face à conjugação do relatório de episódio de urgência de fls. 60, com o discurso do arguido no âmbito deste interrogatório, a própria conduta que é adotada pelo mesmo, se impõe a realização de perícia psiquiátrica ao arguido, que poderá vir a concluir pela atuação de arguido em estado de inimputabilidade.

No entanto, por ora, face à ausência desse elemento e porque, por outro lado, à entrada do serviço de urgência o arguido apresentava discurso coerente e orientado (fls. 60), bem como porque no âmbito do processo ---/12.9GBLLE, em que o arguido foi condenado pela prática de crime de idêntica natureza àquele que lhe é imputado nos presentes autos, perpetrado sobre indivíduo seu familiar, o mesmo foi considerado imputável em relação a esses factos, não obstante submetido a perícia psiquiátrica (cfr. certidão fls. 46 e seguintes), conjugando todos estes elementos, não se pode, na ausência de uma perícia psiquiátrica ao arguido, concluir-se que o mesmo não tinha no momento da sua actuação capacidade de entender e querer relativamente a esses factos que praticou ou não possuía capacidade de avaliar a ilicitude da sua actuação ou de se determinar de acordo com a mesma.

Assim sendo, por ora não obstante os elementos dos autos resulte já em termos de indícios que o arguido padecia à data dos factos de anomalia psíquica consistente em psicose paranóide psico-genética (cfr. fls. 60 verso), daí não se pode extrair que por força desta anomalia psíquica o mesmo tenha atuado em estado de inimputabilidade, sendo certo que é previsível que mesmo que venha a considerar-se inimputável, também venha a ser considerado perigoso (cfr. condenação anterior e estes factos).

A esta argumentação bastará apenas acrescentar ser do senso comum que dar com um objecto de cinco quilos duas vezes na cabeça de uma pessoa por forma a que logo ao primeiro golpe ela vai ao chão e desmaia, é uma das formas adequadas para a matar. Sendo certo que, se não tivesse sido interrompido por colegas da vítima, o arguido continuaria a golpeá-la. Se o arguido não quisesse matar, ter-se-ia ficado pelo primeiro golpe, uma vez que a ofendida foi logo ao chão e perdeu os sentidos; ou tê-la-ia atingido noutra parte do corpo. Se lhe vai duas vezes à cabeça com uma botija de oxigénio com o peso de 5 kg e ainda iria mais se não tivesse sido dominado, é para a matar ou, pelo menos, prevendo que a pode vir a matar e não se importando que isso venha a acontecer.

Não tem, pois, razão de ser a argumentação do arguido.
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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que a prisão preventiva é no caso uma medida coactiva excessiva, por não existir perigo de fuga nem de continuação de actividade criminosa, devendo antes ser substituída pela de apresentações periódicas à autoridade policial ou, quando muito, pela de permanência na habitação mediante vigilância electrónica:

A Constituição consagra, nos primeiros artigos do catálogo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, o direito à liberdade e à segurança – art.º 27.º.

O direito à liberdade engloba, entre os mais reconhecidos sub-direitos, o de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos e termos prevenidos nos n.º 2 e 3 do mesmo preceito.

Também o art.º 18.º, n.º 2, estabelece que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Ora o reconhecimento, constitucionalmente afirmado, do carácter excepcional da prisão preventiva (art.º 28.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), envolve a consideração, além do mais, de que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença que o condene (art.º 32.º, n.º 2, da Constituição), sendo certo que estes comandos têm de cumprir-se em concreto, vale dizer, têm de ser respeitados pelas autoridades públicas e, designadamente, pelos Tribunais.

Posto isto, com a solenidade e a força dos preceitos da Lei Fundamental, a definição precisa dos pressupostos da prisão preventiva impunha-se ao Código de Processo Penal.

Prescreve o art.º 204.º, do Código de Processo Penal, que a aplicação de qualquer uma das medidas coactivas previstas naquele diploma depende – à excepção de prestação de termo de identidade e residência – da verificação, no momento da aplicação da medida, de uma das seguintes ocorrências:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Só depois de se constatar que se está perante alguma destas circunstâncias é que se pode ir ao leque das medidas coactivas propostas pelo Código de Processo Penal escolher, para além da já mencionada prestação de termo de identidade e residência, uma delas (ou várias, desde que compatíveis) para aplicar ao arguido.

E como é que se faz esta escolha?

Responde o art.º 193.º, daquele diploma legal:
«1 – As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

«2 – A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

«3 – Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.

«4 – A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.»

Ora no caso dos autos, considerou a Senhora Juiz recorrida que se verificavam em concreto duas das circunstâncias previstas no mencionado art.º 204.º, a da al.ª a) e a da al.ª c).

E, olhando para o caso concreto que agora temos em análise, o que se segue é que é já a 2.ª vez que o arguido, num espaço de cerca de 7 anos, de forma inesperada e aparentemente sem nada que tanto o justifique, tenta matar uma pessoa (sem esquecer, claro, que neste 2.º caso ainda estamos só perante fortes indícios de que foi isso que aconteceu).

Da primeira vez e de acordo com o que ficou provado no processo ---/12.9GBLLE, o arguido apareceu de faca em punho na cozinha aonde a sua companheira estava a fazer o jantar em disposição tal que ela desatou aos gritos e saltou pela janela, tendo aparecido à porta um primo do arguido a ver o que se passava e a quem o arguido, sem qualquer razão apurada, deu 7 facadas. Na altura foi sujeito a perícia psiquiátrica e foi dado como imputável. Agora, parece que, estando na urgência de um hospital à espera de ser tratado a uma anomalia psíquica, consistente em psicose paranóide psico-genética, aparentemente causada por o arguido ter decidido deixar de tomar a medicação anteriormente prescrita para prevenir essa situação, irritou-se por não o deixarem ir à casa de banho e por estar uma velhota ao lado a berrar enquanto lhe tiravam sangue para análises, e… pegou numa botija de 5 kg e deu com ela duas vezes na cabeça de uma médica que estava sentada ao computador, de costas para o arguido e que não tinha nada a ver com ele. E continuaria a dar-lhe com ela se não fosse terem aparecido duas pessoas que o dominaram. Que dizer: este indivíduo, seja lá por deixar de tomar a medicação, seja lá por mais o quer que seja, é um perigo para os cidadãos que lhe estejam aleatoriamente circundantes, pois que estes não sabem quando é que ele vai explodir, não lhes dá tempo de reacção ou para fugirem, apanha-os à falsa fé, não têm hipóteses de evitar o atentado. Há tempos foi à facada a um primo na cozinha de sua casa, agora foi à pancada com uma botija na cabeça a uma médica na urgência de um hospital. Bem, se em face das circunstâncias do caso e da incapacidade do arguido de controlar os seus ímpetos, é de emitir um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, então é porque se verifica em concreto o perigo de continuação da actividade criminosa. E claro que estes fenómenos aleatórios e imprevistos de violência quase mortal em locais públicos, como foi o caso do hospital, assustam seriamente as pessoas, deixam-nas temerosas e apreensivas, perturbando, pois, gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (art.º 204.º al.ª c), do Código de Processo Penal).

Certo que aplicando ao arguido a obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica (OPHMVE), pareceria ficar acautelado o perigo de perturbação da tranquilidade pública – o qual assim passaria forçosamente a confinar-se apenas às pessoas da casa. Acontece que, a ocorrer de repente um novo surto psicótico, não vai ser a pulseira electrónica que o vai segurar em casa. E nessa altura, o opróbrio do prejuízo público do que possa então acontecer não cairá sobre ele, mas sobre o tribunal que permitiu que tal pudesse vir a suceder – risco que não vamos correr.

Assim e tendo já sido solicitada perícia psiquiátrica ao arguido, se a mesma o considerar inimputável, não vemos como o possa ser destituído de perigosidade, pelo que será então internado compulsivamente em hospital psiquiátrico. Até lá, tem de ficar em prisão preventiva, que é, por ora, a única medida de coacção adequada a acautelar os perigos em causa.

Depois, também é certo que, embora tenha a vida estabelecida no Algarve, o arguido tem o know-how de como facilmente se movimentar e refugiar numa das várias localidades estrangeiras para onde de vez em quando se ausenta para trabalhar, o que torna real e concreto o perigo de que, já com uma pena suspensa de 5 anos por homicídio tentado (e uma subsequente resistência e coacção sobre funcionário) e agora outra acusação por outro homicídio tentado, ele abandone o país para assim se eximir ao cumprimento da pena efectiva que previsivelmente lhe será aplicada, no caso de ser considerado imputável (art.º 204.º al.ª a), do Código de Processo Penal).

III
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro Ucs (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5, do RCP e tabela III anexa).
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Évora, 4-2-2020

(elaborado e revisto pelo relator)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito