Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
263/23.3YREVR
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: ESCUSA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - O exercício prévio pela Senhora Juíza de Execução das Penas das funções de defensora/mandatária de um dos coarguidos do recluso, com este condenado como coautor, constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade, em termos suscetíveis de fazer concluir que a sua intervenção na fase de execução da pena de prisão não deverá ocorrer;
- Estão, assim, verificados os pressupostos da escusa, tal como previstos no artigo 43º, nrs. 1 e 4, do Código de Processo Penal, relativamente ao Processo Único de Recluso e todos os respetivos apensos, devendo a mesma ser concedida.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

i. No âmbito do PUR (Processo Único de Recluso) nº 555/23.1TXEVR e respetivos apensos, pendentes no Tribunal de Execução das Penas de Évora, veio a Exa Sra. Juíza de Direito Dra. AA suscitar incidente de escusa, nos termos dos arts. 43º, nrs. 1 e 4, e 45º, nº 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal.

Para o efeito alega que:

“1. O processo n.º 555/23.1TXEVR (liberdade condicional) que corre termos neste TEP de Évora (J3) respeita ao recluso BB;

2. O recluso BB foi condenado no processo n.º 5037/14.0TDLSB do J… do Juízo Central Criminal de … na pena única de seis anos de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, um crime de branqueamento e um crime de fraude Fiscal qualificada, por acórdão transitado em julgado a 08.09.2023;

3. Nesse mesmo processo (5037/14.0TDLSB) foi também condenado o co-arguido CC na pena única de nove anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, um crime de branqueamento e um crime de fraude Fiscal qualificada.

4. O processo n.º 5037/14.0TDLSB teve origem numa extracção de certidão do processo n.º 7447/08.2TDLSB do J… do Juízo Central Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de …;

5. Nesse processo n.º 7447/08.2TDLSB foram constituídos arguidos BB e CC;

6. Nesse processo n.º 7447/08.2TDLSB a signatária foi mandatária do arguido CC (certidão de fls. 968 a 971 e 975 do processo n.º 7447/08.2TDLSB);

7. Em face do exposto, entende a requerente que existe o sério risco de a sua intervenção no processo ser considerada suspeita por desconfiança sobre a sua imparcialidade, por ter sido mandatária de CC, co-arguido de BB, num processo de onde foi extraída a certidão que originou os autos onde foram ambos condenados em pena de prisão efetiva.

Termos em que,

Requer a Vossa Excelência se digne escusá-la de intervir no processo n.º 555/23.1TXEVR deste Tribunal e, em consequência, nomear para o efeito o juiz substituto.”

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ii. O pedido de escusa mostra-se suficientemente instruído, pelo que, após solicitado e obtido o acesso ao PUR nº 555/23.1TXEVR e respetivo apenso de Liberdade Condicional, não se revela necessária a produção de outras provas.

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iii. Colhidos os vistos, foi realizada a competente conferência.

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II - Factos relevantes para a decisão do presente incidente:

Resultam dos autos as seguintes circunstâncias:

1. No âmbito do Processo nº 555/23.1TXEVR procede-se ao acompanhamento da execução da pena única de 6 (seis) anos de prisão aplicada ao arguido BB no âmbito do Processo nº 5037/14.0TDLSB do J… do Juízo Central Criminal de … (condenação transitada em julgado em 08.09.2023);

2. A referida pena única foi aplicada ao recluso, para além do mais, pela prática em co-autoria dos crimes de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205º, nrs. 1 e 4, al. b), com referência ao artigo 202º, al. b), ambos do Código Penal, e de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1, als. a), b) e c), e 104º, nº 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias;

3. Como coautor desses mesmos crimes foi também condenado, no mesmo processo, para além de outros, CC (a quem foi aplicada a pena única de 9 anos e 6 meses de prisão);

4. Conforme consta da decisão final proferida no âmbito do Processo nº 5037/14.0TDLSB, a condenação dos referidos arguidos assentou, designadamente, nos seguintes factos:

“670. Os arguidos DD, CC e EE, nos anos de 2003 a 2008, e o arguido BB, nos anos de 2005 a 2008, receberam rendimentos do …, em razão do domínio que tinham na instituição bancária e do trabalho que lhe prestavam enquanto Administradores, que pretenderam ocultar da Administração Fiscal, mediante acordo, decisão e execução por parte de todos, em conjugação de esforços, plano a que o arguido BB aderiu aquando da sua designação como Administrador;

(…)

672. Os arguidos DD, CC e EE, mediante acordo, decisão e execução por parte de todos, e em conjugação de esforços, plano a que o arguido BB, em razão do domínio que tinham na instituição bancária e do trabalho que lhe prestavam enquanto Administradores, auferiram ainda rendimentos, no ano de 2007, com dinheiros do … que receberam por via da FF, que pretenderam ocultar da Administração Fiscal;

673. Nos anos de 2004 a 2009 (e de 2006 a 2009 no que respeita ao arguido BB), nas datas em que apresentaram as suas declarações fiscais, os arguidos não declararam os rendimentos auferidos, em conformidade com os planos que conjuntamente delinearam, visando o seu não pagamento e causando, por tal via, diminuição das receitas fiscais;

674. Os arguidos agiram conhecendo todos os factos supra descritos e querendo praticá-los, visando o não pagamento dos impostos devidos, sabendo ser proibida por lei tal conduta;

675. Os arguidos DD, CC, EE e BB (este a partir do ano de 2005) agiram à revelia da Comissão de Vencimentos e dos acionistas do … ao fazerem-se pagar, por comum acordo, decisão e execução, em conjugação de esforços, de remunerações não autorizadas pela Comissão de Vencimentos ou pelos acionistas, nomeadamente dos complementos “…”, prémios, outras remunerações para além das autorizadas e despesas da sua vida pessoal, no valor de 18.846.580,30 € (sendo de 17.090.853,90 € nos anos de 2005 a 2008), o que lograram por terem acesso aos fundos da instituição bancária, em virtude do domínio que sobre ela exerciam;

676. Os arguidos DD, CC e EE agiram à revelia da Comissão de vencimentos e dos acionistas do … ao ordenarem, por comum acordo, decisão e execução, em conjugação de esforços, a entrega de remunarações não autorizadas pela Comissão de Vencimentos ou pelos acionistas, nomeadamente (…) os ganhos que obtiveram através da FF, com dinheiros do …, no ano de 2007, no valor de 11.125.000,00€, neste último caso com o conhecimento e acordo do arguido BB;

677. Os arguidos DD, CC, EE e BB sabiam que retiravam do … aqueles fundos em conjugação de esforços, no valor de 31.280.619,60 (28.890.784,50€, no caso do arguido BB), e que os integravam nas suas esferas pessoais, sem autorização para tal, com conhecimento destes factos, querendo praticá-los e sabendo ser proibida por lei a sua conduta;

(…)”;

5. O processo nº 5037/14.0TDLSB teve origem em certidão extraída do processo nº 7447/08.2TDLSB;

6. Nesse processo n.º 7447/08.2TDLSB o arguido CC conferiu mandato judicial à Exma. Sra. Dra. AA e outros, por procuração datada de … de … de 2009;

7. Na data referida em 6. a Senhora Juíza de Direito ora requerente de escusa exercia a advocacia, fazendo então parte da sociedade …, registada na Ordem dos Advogados, com sede na …, …, local onde então tinha o seu domicílio profissional;

8. Na sequência da comunicação da detenção do recluso BB pelo Estabelecimento Prisional de … em 10.10.2023, foi criado o PUR nº 555/23.1TXEVR e distribuído ao Juízo de Execução das Penas de Évora – Juiz …, de que é titular a Meritíssima Juíza de Direito Dra. AA.

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III - Fundamentação

Apreciando.

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Nenhum obstáculo se coloca ao conhecimento do mérito do pedido de escusa.

Efetivamente, o pedido foi tempestivamente deduzido, em conformidade com o disposto no artigo 44º do Código de Processo Penal, subsidiariamente aplicável nos termos do disposto no artigo 154º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante CEPMPL).

O pedido de escusa foi apresentado logo que, distribuído o PUR, foi autuado o apenso de Liberdade Condicional e concluso para despacho liminar.

No caso, o pedido de escusa foi formulado pela Exma. Senhora Juíza a quem o processo foi distribuído e, por isso, a quem competiria proceder à tramitação dos autos no TEP de Évora, em conformidade com o disposto no Artigo 138º do CEPMPL (1).

O pedido de escusa foi apresentado perante o Tribunal competente para dele conhecer - conforme dispõe o artigo 45º, nº 1, a), do Código de Processo Penal, o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior; Estando em causa o pedido de escusa de uma Sra. Juíza de Direito, mostra-se o mesmo corretamente apresentado perante a Relação competente.

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Cumpre conhecer do pedido.

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Dispõe o artigo 43º (recusas e escusas) do CPP:

1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

3. (...)

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.

Aos tribunais compete, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Nesta função, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º, da Constituição da República Portuguesa).

O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Constituição da República Portuguesa (cfr. art. 216º), e asseguradas pela lei ordinária (art. 4º da Lei da Organização do Sistema Judiciário). No nosso ordenamento processual penal a competência do tribunal está definida em termos unitários, de modo a que, com pré-determinação, se possa fazer corresponder a cada crime/processo um tribunal competente. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 2004 (2), “A competência em processo penal - a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial - é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural.” O Tribunal Constitucional, em numerosos Acórdãos, tem delimitado e esclarecido o âmbito normativo do princípio do juiz natural – exemplos dessa jurisprudência encontram-se nos respetivos Acórdãos nrs 393/89, 614/2003, 162/2009, 21/2012, 482/2014, 596/2015, 41/2016 e 255/2018.

No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/2003 (3), poderá ler-se: «O princípio do “juiz natural”, ou do “juiz legal”, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203º da Constituição)».

Num Estado de Direito Democrático, o acesso ao Direito e aos tribunais, para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e para que que as causas sejam objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, exige a garantia da imparcialidade dos Tribunais. A Constituição da República Portuguesa garante a todos os cidadãos o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (cfr. art. 20º, nºs 1 e 4) – essas garantias têm como pressuposto a imparcialidade de quem julga, condição sem a qual é impossível alcançar a realização do direito no caso concreto.

A figura processual da escusa (tal como a da recusa) constitui um mecanismo processual que visa garantir a efetiva imparcialidade do Juiz, obstando a que um juiz se veja forçado a intervir num processo quando exista um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

A imparcialidade, atributo do juiz, desdobra-se numa dupla perspetiva, subjetiva e objetiva. Na perspetiva subjetiva, a imparcialidade refere-se à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão. Na perspetiva objetiva, a imparcialidade prende-se com a imagem do Tribunal na comunidade, relevando circunstâncias funcionais ou externas que, sob o ponto de vista do cidadão comum (e não tanto do destinatário direto da decisão) possam afetar a imagem do juiz e, nessa medida, fazer surgir dúvidas sobre a sua imparcialidade.

Nesta dimensão objetiva, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta de uma especial relação sua com os sujeitos processuais ou algum deles, ou com o processo.

O incidente de escusa de juiz, previsto no artigo 43º do Código de Processo Penal, servirá como válvula de segurança, para uso em situações verdadeiramente excecionais, quando a intervenção do julgador, resultante do funcionamento das regras de atribuição de competência preestabelecidas, possa correr o risco de ser considerada suspeita. Esse carácter excecional pressupõe a existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

A derrogação da regra do juiz natural ou legal (regra da intervenção na causa do juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito) servirá, nesses casos excepcionais, para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade.

Porém, para que a derrogação opere, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.

O motivo sério e grave, referido na lei, tem de ter reflexo em factos que o evidenciem. O motivo a que alude o nº 1 do art. 43º do Código de Processo Penal, tem que resultar de uma concreta situação de facto, da qual resultem elementos processuais ou pessoais que se revelem adequados a consubstanciar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.

No caso concreto, os fundamentos invocados pela Exma. Sra. Juíza de Direito Dra. AA prendem-se com a circunstância de lhe ter sido distribuído, para tramitação e prolação das decisões compreendidas na fase da Execução da pena de prisão (designadamente a presidência dos Conselhos Técnicos e a prolação de decisão a conceder ou negar a medida de liberdade condicional), o processo em que figura como recluso o cidadão BB.

A Sra. Juíza de Direito requerente invoca a circunstância de ter sido mandatária judicial do coarguido CC, no âmbito do processo nº 7447/08.2TDLSB, do qual foi extraída a certidão que deu origem ao processo da condenação (processo nº 5037/14.0TDLSB).

A circunstância de, anteriormente, a Juíza de Direito em questão ter tido intervenção como advogada de um coarguido no âmbito do processo do qual proveio a certidão que deu origem ao processo da condenação, sendo certo que todas as circunstâncias estão relacionadas com o universo processual gerado pela problemática do … e, sobretudo, tendo em conta o facto de os arguidos BB e CC terem sido condenados por atuação em coautoria, poderá gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Juíza, colocando-a aos olhos da comunidade em geral numa posição de pré-juízo sobre o objeto da causa.

Este é o circunstancialismo que a Sra. Juíza entende ser suscetível de tornar suspeita a sua intervenção nos autos e, por essa via, constituir motivo sério, adequado a gerar a desconfiança da comunidade quanto à sua imparcialidade – a circunstância de ter sido mandatária judicial de CC em processo relacionado com a problemática do … e, agora, se ver confrontada com a atribuição de processo relativo a coautor daquele que foi seu constituinte.

Não definindo a lei os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, há que olhar para as circunstâncias do caso concreto com razoabilidade e bom senso.

Em matéria de imparcialidade, ao juiz, como repetidamente se refere, não basta sê-lo [imparcial], é também necessário parecê-lo.

No caso concreto, como supra se expôs, resulta da factualidade provada no processo da condenação (5037/14.0TDLSB) que BB e CC agiram no cometimento dos crimes de abuso de confiança qualificado e de fraude fiscal qualificada em comunhão de intentos e conjugação de esforços. Um e outro, como refletem os factos provados que supra se transcreveram, estiveram unidos no cometimento dos crimes, colocando-se de acordo na execução dos mesmos. Moveram-se no âmbito da Administração do …, sendo esse o pano de fundo do cometimento das infrações criminais pelas quais foram condenados. A circunstância de a Sra. Juíza de Direito de ter sido mandatária judicial de CC, nesse contexto, não poderá deixar de ser olhada como motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança da comunidade quanto à sua imparcialidade.

Aos olhos da comunidade seria muito díficil de aceitar, sem suspeita sobre a imparcialidade, que a antiga advogada de CC desempenhasse agora as funções jurisdicionais no âmbito da execução da pena de prisão aplicada ao recluso BB.

Objetivamente, em termos de perceção geral ou do ponto de vista do cidadão comum podem suscitar-se dúvidas da isenção da Sra. Juíza de Direito requerente. Essas dúvidas não assentam em fundamento de parcialidade subjetiva – aliás, a imparcialidade subjetiva presume-se. Mas assentam em parcialidade objetiva. Não questionando a personalidade do juiz ou sua capacidade de decidir imparcialmente elas devem relevar porque justice must not only be done, it must also be seen to be done.

Perante as circunstâncias do caso, objetivamente, há que considerar que para qualquer terceiro colocado numa posição independente, o exercício prévio pela Sra. Juíza de Direito do papel de defensora de um dos coarguidos/coautores, suscitará suspeita sobre a imparcialidade que deve ser mantida por quem tem a função de “julgar” (rectius, no caso concreto, de ajuizar sobre a possibilidade de concessão da medida de liberdade condicional ou sobre outro qualquer dos conteúdos que conformam a competência do Juiz de Execução das Penas).

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Em conclusão:

- O exercício prévio pela Senhora Juíza de Execução das Penas das funções de defensora/mandatária de um dos coarguidos do recluso, com este condenado como coautor, constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade, em termos suscetíveis de fazer concluir que a sua intervenção na fase de execução da pena de prisão não deverá ocorrer;

- Estão, assim, verificados os pressupostos da escusa, tal como previstos no artigo 43º, nrs. 1 e 4, do Código de Processo Penal, relativamente ao Processo Único de Recluso e todos os respetivos apensos, devendo a mesma ser concedida.

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IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em conceder à Exma Sra. Juíza de Direito Dra. AA a solicitada escusa no âmbito do PUR (Processo Único de Recluso) nº 555/23.1TXEVR e respetivos apensos, pendentes no Tribunal de Execução das Penas de Évora – J….

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Incidente sem tributação.

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D.N.

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 9 de janeiro de 2024

Jorge Antunes (Relator)

Laura Goulart Maurício (1ª Adjunta)

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares (2ª Adjunta)

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1 O artigo 138º do CEPMPL dispõe o seguinte: “1 - Compete ao tribunal de execução das penas garantir os direitos dos reclusos, pronunciando-se sobre a legalidade das decisões dos serviços prisionais nos casos e termos previstos na lei. 2 - Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal. 3 – Compete ainda ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a execução da prisão e do internamento preventivos, devendo as respectivas decisões ser comunicadas ao tribunal à ordem do qual o arguido cumpre a medida de coacção. 4 - Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria: a) Homologar os planos individuais de readaptação, bem como os planos terapêuticos e de reabilitação de inimputável e de imputável portador de anomalia psíquica internado em estabelecimento destinado a inimputáveis, e as respectivas alterações; b) Conceder e revogar licenças de saída jurisdicionais; c) Conceder e revogar a liberdade condicional, a adaptação à liberdade condicional e a liberdade para prova; d) Homologar a decisão do director-geral dos Serviços Prisionais de colocação do recluso em regime aberto no exterior, antes da respectiva execução; e) Determinar a execução da pena acessória de expulsão, declarando extinta a pena de prisão, e determinar a execução antecipada da pena acessória de expulsão; f) Convocar o conselho técnico sempre que o entenda necessário ou quando a lei o preveja; g) Decidir processos de impugnação de decisões dos serviços prisionais; h) Definir o destino a dar à correspondência retida; i) Declarar perdidos e dar destino aos objectos ou valores apreendidos aos reclusos; j) Decidir sobre a modificação da execução da pena de prisão relativamente a reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada, bem como da substituição ou da revogação das respectivas modalidades; l) Decidir sobre a homologação do plano de reinserção social e das respetivas alterações, as autorizações de ausência, a modificação das regras de conduta e a revogação do regime, quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação; m) Rever a medida de segurança de internamento de inimputáveis; n) Decidir sobre a prestação de trabalho a favor da comunidade e sobre a sua revogação, nos casos de execução sucessiva de medida de segurança e de pena privativas da liberdade; o) Determinar o internamento ou a suspensão da execução da pena de prisão em virtude de anomalia psíquica sobrevinda ao agente durante a execução da pena de prisão e proceder à sua revisão; p) Determinar o cumprimento do resto da pena ou a continuação do internamento pelo mesmo tempo, no caso de revogação da prestação de trabalho a favor da comunidade ou da liberdade condicional de indivíduo sujeito a execução sucessiva de medida de segurança e de pena privativas da liberdade; q) Declarar a caducidade das alterações ao regime normal de execução da pena, em caso de simulação de anomalia psíquica; r) Declarar cumprida a pena de prisão efectiva que concretamente caberia ao crime cometido por condenado em pena relativamente indeterminada, tendo sido recusada ou revogada a liberdade condicional; s) Declarar extinta a pena de prisão efectiva, a pena relativamente indeterminada e a medida de segurança de internamento; t) Emitir mandados de detenção, de captura e de libertação; u) Informar o ofendido da libertação ou da evasão do recluso, nos casos previstos nos artigos 23.º e 97.º; v) Instruir o processo de concessão e revogação do indulto e proceder à respectiva aplicação; x) Proferir a declaração de contumácia e decretar o arresto de bens, quanto a condenado que dolosamente se tiver eximido, total ou parcialmente, à execução de pena de prisão ou de medida de internamento; z) Decidir sobre o cancelamento provisório de factos ou decisões inscritos no registo criminal; aa) Julgar o recurso sobre a legalidade da transcrição nos certificados do registo criminal. bb) Decidir sobre o tratamento involuntário do condenado com necessidade de cuidados de saúde mental, nos termos da lei.”

2 Cfr. Acórdão do STJ de 06.10.2004 – Relator: Cons. Henriques Gaspar, acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c8a4967f9c40e6d7802571bc003a96ce?OpenDocument.

3 Cfr. Ac. TC 614/2003, proferido no âmbito do Processo n.º 684/03 - 2ª Secção – Relator: Cons. Paulo Mota Pinto – acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030614.html.