Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P1139
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
CONEXÃO
PROCESSO
Nº do Documento: SJ200410060011393
Data do Acordão: 10/06/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :  I  -   A competência em processo penal - a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial - é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural.

II - O princípio, no entanto, e respeitando ainda exigências mínimas, pode sofrer adequações, previstas na lei e formadas segundo critérios objectivos, organizando-se um só processo para uma pluralidade de crimes, assim se afastando a competência primária relativamente a alguns dos crimes, desde que entre os vários crimes se verifique uma ligação (pressupostos de natureza objectiva ou subjectiva, previstos no art. 24.º do CPP, als. c), d) e e) os primeiros e a) e b) os segundos) que torne conveniente para melhor realização da justiça - evitando contradições de julgados - que todos sejam apreciados conjuntamente.

III -      Na verificação da existência de conexão de processos, respeitantes a crimes de tráfico de estupefacientes, há que ter em atenção que o crime de tráfico, como crime exaurido, consuma-se imediatamente aquando da ocorrência de um qualquer dos vários momentos ou das condutas implicados na ampla descrição típica do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, sendo, por isso, indiferente a ocorrência e a adjunção, posterior ou sequente, de um outro dos vários momentos de tipicidade; qualquer deles determina, por si, a consumação do crime.

IV -      O STJ colocado perante a resolução de um conflito negativo de competência, assente em divergência quanto ao fundamento das regras de conexão, não pode ratificar nenhuma das decisões se conclui que aqueles pressupostos estão errados e não se verificam quaisquer elementos de conexão.

V  -      Neste caso, deve o STJ remeter o processo para o tribunal onde se encontra o processo para que este observe os procedimentos necessários para aplicação das regras gerais sobre competência funcional e territorial.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. O magistrado do Ministério Público de Viseu deduziu acusação contra AA, pela autoria material de um crime de tráfico, na forma consumada, p. e p. no artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro; BB, CC e DD, pela; autoria material de um crime de tráfico de menor gravidade, na forma consumada, previsto e punido o art 25º, alínea a), do DL 15/93; EE, pela autoria material, em concurso real efectivo, de um crime de tráfico agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 21º, n°1, e 24º, alíneas b) e c) do DL 15/93, e um crime de detenção ilegal de arma previsto e punido peio art. 6, n°1, da Lei 22/97 de 27/6, na redacção dada pela Lei 98/2001 de 25 e Agosto; FF, pela autoria material de um crime de tráfico agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 21º, n°1, e 24, alíneas b) e c) do DL 15/93; GG, pela autoria material de um crime de tráfico agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 21º, n°1, e 24º, alíneas b) e c) do DL 15/93; HH, pela autoria material, em concurso real efectivo, de um crime de tráfico agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 21º, n°1, e 24º, alíneas b) e c) do DL 15/93, e um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo art. 6º, n°1, da Lei 22/97 de 27 de Junho, na redacção dada pela Lei 98/2001, de 25 de Agosto, e de um crime previsto e punido pelos artigos 275º, n°s 2 e 3 do Código Penal e 3º , alínea f) e n°2, alínea c) do DL 297/A/75, de 17 de Abril e art. 4° do DL 48/95 de 15 de Março.
A acusação deduzida foi recebida pelos factos e qualificação que dela constavam, tendo o juiz do processo declarado que não existiam «nulidades, excepções ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e obstem ao conhecimento do mérito da causa». Foi determinado o cumprimento dos artigos 313º, nº 2 e 315º do Código de Processo Penal (CPP).

2. Posteriormente, em promoção autónoma, o magistrado do Ministério Público suscitou a questão relativa à competência do tribunal de Viseu, considerando que o processo deveria ser remetido ao tribunal de Valença, fundamentando-se nas regas relativas à conexão de processos.
Antes do início da audiência de julgamento, o tribunal colectivo decidiu atender a promoção do Ministério Público, uma vez que todos os crimes pelos quais os arguidos estão acusados se encontrariam em «estrita conexão», nos termos do artigo 24º, alíneas b), c) e d) do CPP.
Fundamentou a decisão pelo modo seguinte: «O art° 28° alínea a), do C.P.P. dispõe que " se os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas....é competente para conhecer de todos o competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave».
«Os arguidos EE, FF, GG e HH estão acusados do crime mais grave dos que vêm imputados na acusação-tráfico agravado (com uma moldura penal máxima de prisão até 16 anos)».
«O crime de tráfico consuma-se por actos sucessivos, pelo que somos remetidos para o disposto no art° 19°, n° 2 do C.P.P. que refere ser competente para conhecer deste tipo de crimes o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto».
«Ora, o último acto do crime referido imputado aos arguidos EE e FF consuma-se no dia 25/11/2002, por outro lado, o último acto do crime de tráfico agravado aos arguidos GG e HH consumou-se em Valença, em 26/11/2002».
«Deste modo, seria o Tribunal Judicial de Braga o competente para conhecer dos crimes de tráfico agravado imputados aos arguidos EE e FF e seria o de Valença o competente para conhecer dos crimes imputados a GG e HH - isto no âmbito das regras gerais».
«Contudo, como está em causa a competência por conexão, temos de socorrer-nos agora do disposto na alínea b) do art° 28°; ou seja a competência, em caso de crimes de igual gravidade, é do tribunal a cuja ordem estiver preso o arguido ou, havendo vários arguidos presos (que é o caso dos autos), aquele à ordem do qual estiver preso o maior número».
«No que respeita aos crimes de tráfico agravado consumados em Braga apenas o arguido EE se encontra preso; quanto aos crimes de tráfico agravado consumados em Valença, estão presos os arguidos GG e HH - pelo que a competência recai no Tribunal Judicial de Valença».
«O citado art° 28° permite assim determinar a competência territorial quando as regras estabelecidas nos art°s anteriores entram em conflito. A alínea a) é a primeira norma a funcionar subsidiariamente e as alíneas. b) e c) funcionam sucessivamente para o caso de não poder ser aplicada a 1ª».
Assim, declarou o tribunal de Viseu incompetente para conhecer dos crimes imputados aos arguidos, considerando competente para o efeito o Tribunal Judicial de Valença (art°s 28° alínea b), 32°, n°s l e 2 alínea b)do C.P.P.), pelo que deu sem efeito a audiência designada.

3. Remetido o processo ao tribunal de Valença, o juiz, por seu lado, declarou o tribunal incompetente, por se não verificarem, no caso, os pressupostos formais (pluralidade de processos) das regras da competência por conexão.

4. Cumprido o disposto no artigo 36º, nº 2 do CPP, os magistrados em conflito nada disseram.
Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta entende que «deverá ser remetido o processo ao Tribunal de Viseu e considerar-se o mesmo competente, porque já havia sido considerado competente por decisão transitada em julgado, e ainda que tal não seja considerado, foi o primeiro tribunal que teve a notícia do crime, por não se estar perante um caso de conexão».
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
A competência em processo penal - a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial - é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural.
O princípio, no entanto, e respeitando ainda exigências mínimas, pode sofrer adequações, previstas na lei e formadas segundo critérios objectivos, organizando-se um só processo para uma pluralidade de crimes, e assim afastando a competência primária relativamente a alguns dos crimes, desde que entre os vários crimes se verifique uma ligação que torne conveniente para melhor realização da justiça que todos os crimes sejam apreciados conjuntamente.
A ligação entre os crimes «que determina excepções à regra de que a cada crime corresponde um processo e às regras de competência material, funcional e territorial, definidas em função de um só crime, chama a lei conexão, e consequentemente a denominada competência por conexão»; representa um desvio às regras normais de competência em razão da organização de um único processo para uma pluralidade de crimes ou de apensação de vários processos que hão-de ser julgados conjuntamente (cfr., GERMANO MARQUES DA SILVA, "Curso de Processo Penal", I, p. 177).
A conexão de processos é, pois, determinada por conveniências de justiça. Deve existir entre os crimes que hão-de ser julgados conjuntamente uma tal ligação, que se presume que o esclarecimento de todos será mais fácil ou completo quando processados conjuntamente, evitando-se contradições de julgados e realizando-se consequentemente melhor justiça: é o que resulta das regras sobre conexão dos artigos 24º e seguintes do CPP.
A competência determinada por conexão - q. est - a modificação das regras de competência que resultam da intervenção do princípio de que a cada crime corresponde um processo - supõe, pois, a verificação de algum dos pressupostos fixados no artigo 24º do CPP.
Tais pressupostos de conexão são ou de natureza subjectiva (previstos em função do arguido - alíneas a), b)), ou de natureza objectiva (pela relação específica que intercede entre os factos (alíneas c), d) e e)).

5. As circunstâncias do caso sub specie, em que se manifestou o conflito dos tribunais sobre a competência, não permitem, porém, estabelecer as base da determinação da competência por conexão - e o estabelecimento dos elementos relevantes é pressuposto necessário para a determinação da competência.
Com efeito, nos crimes de perigo, como é classificado o crime de tráfico de estupefacientes, a protecção é recuada a momentos iniciais da acção, independentemente da produção de qualquer resultado. Por isso, a acção do agente não se destina à produção de um resultado, mas tem de ser apenas determinada à execução de um facto que por si só constitui o elemento gerador do perigo típico para os bens jurídicos tutelados.
Nos casos em que o elemento típico em que se consume o crime pela criação do perigo se projecta em variadas e plurais (tanto no plano da conformação típica como no plano da execução) acções ou dimensões típicas, mesmo com autonomia material, a consumação do crime revela-se, logo no momento de integração de qualquer uma das projecções de tipicidade.
O crime de tráfico, como crime exaurido, consuma-se, pois, imediatamente no momento da ocorrência de um qualquer dos vários momentos ou das condutas implicados na ampla descrição típica do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 15 de Janeiro,, sendo, por isso, indiferente a ocorrência e a adjunção, posterior ou sequente, de um ou outro dos vários momentos de tipicidade; qualquer deles determina, por si, a consumação do crime.
Mas, sendo assim, não se verifica, no presente caso, qualquer elemento de conexão subjectiva que determine o afastamento das regras comuns sobre competência territorial e funcional: nenhum dos arguidos cometeu, na descrição da acusação, vários crimes através da mesma acção ou omissão, ou vários crimes na mesma ocasião e lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou ocultar os outros - alíneas a) e b) do artigo 24º do CPP.
Mas também não concorrem elementos objectivos de conexão. Voltando à natureza e à construção típica e dogmática do crimes de tráfico (os crimes de tráfico são independentes, pelo perigo que as actividades criam, não sendo, nesta perspectiva, causa e efeito uns dos outros), os factos, como decorre da acusação, não foram praticados por vários agentes em comparticipação, na mesma ocasião ou lugar sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros, nem vários agentes cometeram diversos crimes reciprocamente na mesma ocasião ou lugar - alíneas c), d) e e) da referida disposição.
Verdadeiramente, o que se descreve são três conjuntos factuais, com elementos objectivos e subjectivos próprios e independentes, com lugar em Valença (factos imputados aos arguidos GG e HH), Braga (factos que a acusação refere aos arguidos EE, FF, CC e, igualmente, AA [embora relativamente a este a imediata projecção processual da intervenção em flagrante possa também apontar, dada a equivalência dos momentos de tipicidade, para a competência referida ao território onde foi surpreendido no transporte]), e Viseu (os restantes), que deveriam ter determinado, no momento processual adequado, e na aplicação do princípio-regra sobre competência, processos autónomos relativamente a cada série de factos e arguidos segundo as regras sobre competência territorial; os elementos de conexão que, nas circunstâncias do caso, podem existir, respeitam apenas à vertente subjectiva e intra-territorial relativamente a cada conjunto de factos ocorridos em cada um dos diversos locais.
Não tendo sido assim decidido, ficaram afectadas as regras sobre a competência, com as consequências que a lei determina - artigo 119º, alínea e) do CPP.

6. Perante tais elementos, o Supremo Tribunal ao qual foi deferida a resolução do conflito, tendo de decidir sobre a competência, não está limitado aos estritos termos do conflito quando, como no caso, as decisões em conflito se movem ambas em pressupostos que divergem das construções legais.
Com efeito, sendo caso em que os termos do conflito assentam em divergência quanto ao funcionamento das regras sobre conexão, pressupondo que se verificam, quando não se verificam, elementos de conexão, a decisão do conflito não pode ratificar alguma das decisões, movendo-se, em registo de ficção, como se estivessem verificados os elementos pressupostos.
Também não poderá ter aplicação a regra residual do artigo 28º, alínea c), do CPP (o tribunal das área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes), que, como regra subsidiária de delimitação da competência territorial determinada pela conexão, supõe, previamente, a verificação de algum dos elementos que são pressupostos da conexão de processos.

7. Nestes termos, por se não verificar qualquer elemento de conexão que afaste as regras gerais sobre competência, e não existir, em tal perspectiva, a base ou pressuposição em que assenta o conflito, deve o tribunal onde se encontra o processo observar os procedimentos necessários para aplicação das regras gerais sobre competência funcional e territorial - artigos 14º, nº 1, 19º, nº 1 e 119º, alínea e) do CPP.
Não é devida taxa de justiça.

Lisboa, 6 de Outubro de 2004

Henriques Gaspar (relator)

Antunes Grancho

Silva Flor