Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10/18.1GBFTR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SENTENÇA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - o “exame crítico” das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

II - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que, em tal exame crítico, estejam exteriorizadas as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. O que não se exige, na fundamentação da decisão fáctica (quer na enunciação das provas produzidas, quer no exame crítico das mesmas), é uma qualquer operação épica, em que o juiz tenha de expor, um a um, passo por passo, com inteiro detalhe, todo o seu percurso lógico dedutivo.

III- Também não se exige ao juiz que, de forma exaustiva e meramente descritiva, referencie e analise todas as declarações e todos os depoimentos, e, depois disso, vá ainda, facto a facto, pormenor a pormenor, circunstância a circunstância, explicar onde foi retirar a prova de cada um deles.

IV - Exige-se, isso sim (mas é coisa diferente), a enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal, e o exame do seu valor e relevância probatórios, permitindo-se, assim, no contexto ambiental, de espaço e de tempo dos factos delitivos em apreço, compreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 10/18.1GBFTR, do Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre, e mediante pertinente acórdão, foi decidido:

“a) Absolver o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do Cód. Penal.

b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. a) e d), nº 2, 4 a 6, do Cód. Penal:

- Um na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, relativamente à ofendida CC.

- Um na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, relativamente à ofendida CA.

- Em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no art. 77º do Cód. Penal, condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

- Nos termos do art. 50º do Cód. Penal, suspende-se a execução da pena de prisão por igual período.

- Mais se condena o arguido na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida CC, pelo período de três anos, a contar da data de trânsito em julgado da presente decisão, com afastamento do arguido da residência e local de trabalho da ofendida, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

c) Julgar procedente, por provado, o pedido cível deduzido pela ofendida CA e, em consequência, condenar o arguido/demandado no pagamento de indemnização, por danos não patrimoniais, no valor de € 1.200 (mil e duzentos euros).

d) Nos termos do disposto no art. 82º-A do Cód. Proc. Penal, arbitra-se indemnização a favor da vítima CC, no valor de € 2.000 (dois mil euros).

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs”.
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão, formulando na respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. O Tribunal a quo, no douto acórdão recorrido, não fundamentou os factos dados como provados constantes dos pontos 22 a 27, 31 a 34, 62 e 63, e 78 a 90, conforme factos provados constantes do douto acórdão, omitindo qualquer referência em termos de fundamentação dos mesmos.

2. Por outro lado, o Tribunal a quo apenas considerou, para prova dos demais factos, as declarações das assistentes, o depoimento de FF e RR, descurando todos os demais depoimentos das testemunhas inquiridas, sem apresentar qualquer explicação e sem fundamentar o porquê de não considerar tais meios de prova merecedores de credibilidade.

3. A omissão total de fundamentação, quanto aos factos provados constantes dos pontos 22 a 27, 31 a 34, 62 e 63, 78 a 90, e ainda a insuficiente fundamentação de facto e de direito que fez relativamente aos demais factos provados e bem assim o exame crítico das provas insuficiente, enferma o douto acórdão recorrido de nulidade nos termos do artigo 379º/1 alínea a) e c) do CPP, por violação do disposto no artigo 374º/2 do CPP.

4. Acresce que, o Tribunal a quo, ao considerar as declarações para memória futura da assistente CC e CA como um dos meios de prova que sustentam os factos provados que fundamentou, sem terem as mesmas sido lidas em audiência e, consequentemente, submetidas a debate contraditório, gera a inadmissibilidade legal de valoração das mesmas.

5. O tribunal a quo, ao valorar prova não produzida nem examinada em audiência de julgamento, fora do âmbito das exceções previstas no artigo 356º, incorreu na violação de uma proibição de prova, na modalidade de proibição de valoração, que gera a nulidade da decisão, o que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos.

6. Ainda no que concerne às declarações da assistente CC constam dos autos quatro declarações, em momentos distintos a saber:- Auto de declarações para memória futura: 19-03-2018: - Auto de inquirição: 20-04-2018: - Auto de inquirição: 01-06-2018: - Auto de declarações para memória futura: 04-06-2018, tendo o Tribunal a quo, na motivação da matéria de facto provada, apenas referido que teve em consideração as declarações da assistente CC, não indicando em concreto quais as declarações que valorou.

7. Na verdade, CC, alegada vítima, foi ouvida por 4 (quatro) vezes no decurso do inquérito, recusando-se a prestar declarações duas vezes, e quando, na quarta e última vez, foi ouvida, conforme declarações gravadas em depoimento 20180604144227_1025115_2871427, minutos 00:00 a 41:25, dos factos relatados pela mesma não é possível sustentar os factos provados considerados pelo tribunal a quo.

8. O Douto acórdão enferma de erro de julgamento, porquanto o Tribunal a quo considera provados factos que deveriam ser considerados não provados, e, outros factos, que deveriam ser valorados, não foram sequer objeto de pronúncia por parte do tribunal a quo.

9. O Tribunal a quo deveria ter julgado não provados, por ausência de meios de prova, os factos vertidos nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 10, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 35, 36, 60, 61, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76 da decisão de facto.

10. Das 17 testemunhas e das declarações das assistentes o Tribunal a quo sustentou os factos provados que se sindicam nas declarações para memória futura de CC e CA, no depoimento de RR e no Depoimento de FF.

11. Sem prescindir do já invocado quanto à incorreta e ilegal valoração das declarações para memória futura de CC e CA, os depoimentos das alegadas vítimas e das testemunhas, respetivamente seu irmão e pai de CC, nas circunstância de modo, tempo e lugar, são contraditórias, imprecisas e vagas, e não permitem ao tribunal a quo fazer um correto exame critico das mesmas e sustentar a condenação do recorrente.

12. Concretamente, existem versões contraditórias entre os factos relatados por CC, CA e RR - vide Depoimento de CC, gravado em 20180604144227_1025115_2871427 (minutos 13:53 a 14h15) e de RR, Depoimento gravado em 20190613110740_1041652_2871413 (minutos 01:54 a 02:39).

13. Também na descrição dos factos dados como provados pelos pontos 29 a 32 as versões apresentadas são distintas nas circunstâncias de modo e lugar, o que não se pode aceitar - Depoimento gravado em 20190613110740_1041652_2871413 RR (minutos 12:43 a 13:24); Depoimento gravado em 20180604144227_1025115_2871427 CC.

14. Finalmente no que concerne ao episódio descrito nos factos 4 a 12, até ao minuto 07h25 do depoimento gravado em 20180604144227_1025115_2871427 a assistente CC em momento algum referiu que o recorrente a tenha agredido desferindo-lhe um pontapé na zona costal, versão corroborada pela filha, também assistente, CA.

15. Impõe-se, assim, que os factos constantes do douto acórdão recorrido nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 10, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 35, 36, 60, 61, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76 sejam considerados não provados, por insuficiência de prova e no uso legal do princípio in dubio pro reo.

16. Ainda que se considerem provados alguns dos factos sindicados, nomeadamente que discutiam com alguma regularidade, estes não são suficientes para a verificação do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, als. a) e d), e nºs 2, 4 a 6, do Código Penal, pelo que padece a sentença recorrida de erro de julgamento.

17. Para além das assistentes, as testemunhas que com elas conviviam regularmente não conseguiram circunstanciar, temporalmente, as descritas condutas.

18. Acresce que, dos episódios relatados pelas assistentes o Tribunal a quo não considerou que fosse o recorrente o agente dos danos no veículo da assistente CC, sendo que nos alegados episódios relatados nos pontos 22 a 27, 31 a 34, 62 e 63, 78 a 90 o tribunal a quo não concretizou em quais meios de prova sustentou os mesmos.

19. No que concerne às mensagens, não existe nos autos qualquer prova documental de que o número de telemóvel de onde as mesmas foram enviadas seja efetivamente o número do arguido, prova que se impunha, sendo que, a terem sido enviadas pelo recorrente, o que não se aceita, tais factos não assumem, só por si, gravidade suficiente para o preenchimento do tipo na redação dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.

20. Pelo que, por não preencherem os factos provados o respetivo tipo, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o arguido da prática do crime de violência doméstica.

21. Não procedendo o supra referido, entende-se que a decisão recorrida enferma de um certo exagero na determinação da medida das penas, nos critérios da sua escolha e quantum, devendo as penas aplicadas ao recorrente serem substituídas por penas próximas dos limites mínimos, tendo em consideração todas as circunstâncias a favor do recorrente, nomeadamente a inexistência de antecedentes criminais e o ter ficado sem o seu trabalho de há dez anos, sem casa e sem se poder deslocar à vila de Fronteira, onde tem os amigos e onde fez a sua vida pessoal, familiar e social.

22. Deve também a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida CC, pelo período de três anos, com afastamento do arguido da residência e local de trabalho da ofendida, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, ser revogada, por desajustada.

23. A decisão recorrida, neste segmento, violou o disposto nos artigos 71º e 40º do Código Penal, violando ainda os princípios da proporcionalidade e adequação das penas.

24. Deverão também as indemnizações fixadas serem reduzidas, por excessivas.

25. Atendendo ao dano que a atuação do arguido seria capaz de causar, bem como às condições económicas deste, a indemnização fixada pelo Tribunal a quo deve ser substancialmente reduzida.

26. Conforme ficou provado, e consta do relatório social, o recorrente é trabalhador agrícola, com uma condição escolar baixa, fatores que não lhe permitem, nem permitirão, encontrar trabalho onde consiga auferir rendimentos mensais muito acima do salário mínimo nacional.

27. Impor ao recorrente o pagamento de indemnizações no valor global de € 3.200,00 é remeter o mesmo para uma situação de insolvência, pelo que o acórdão recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 483º, 494º e 496º do Código Civil.

Termos em que, e nos melhores de direito que V.Exªs doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se o douto acórdão recorrido”.
*
O Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo do seguinte modo (em transcrição):

“1. O itinerário argumentativo contido na decisão proferida revela-se claro e coerente, sendo a pena aplicada o seu desfecho natural.

2. A factualidade dada como provada mostra-se claramente suportada pelos elementos de prova enunciados, não havendo qualquer erro na apreciação da matéria de facto ou insuficiência, sendo as declarações das vítimas de primordial importância.

3. Neste particular, entendemos não assistir razão ao recorrente, ao pugnar pela não valoração das declarações para memória futura das ofendidas. A este propósito, interessa analisar a argumentação do Acórdão de Fixação da Jurisprudência nº 8/2017, publicado em DR nº 224/2017, Série I, de 21/11/2017.

4. Por outro lado, mostram-se verificados todos os elementos objetivos do crime de violência doméstica, tal como descritos no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, de modo que se afigura assertiva a condenação nestes exatos termos.

5. Bem sabemos da ausência de antecedentes criminais por parte do recorrente. Contudo, considerando, desde logo, a pluralidade de crimes em que foi condenado, e as elevadas exigências de prevenção ínsitas a este tipo de crime, não se afigura desproporcional o quantum da pena aplicada e, muito menos, a imposição da sanção acessória.

6. Assim sendo, julga-se, sem delongas, que o recurso interposto pelo condenado deverá improceder”.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Atendendo às conclusões apresentadas pelo recorrente, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem (nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal), são sete, em muito breve síntese, as questões suscitadas no presente recurso:

1ª - Nulidade do acórdão revidendo, por falta de fundamentação e ausência de exame crítico das provas.

2ª - Nulidade do acórdão sub judice, por indevida e ilegal valoração das declarações para memória futura (por não terem sido “lidas” na audiência de discussão e julgamento).

3ª - Impugnação alargada da matéria de facto (nomeadamente com invocação da violação do princípio in dubio pro reo).

4ª - Qualificação jurídica dos factos (ausência de preenchimento, in casu, dos elementos do tipo legal de crime de violência doméstica).

5ª - Determinação da medida concreta das penas (penas parcelares e pena única).

6ª - Aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a ofendida CC.

7ª - Montantes das indemnizações fixadas às ofendidas.

2 - A decisão recorrida.

O acórdão revidendo é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados - e no tocante à motivação da decisão fáctica):

“a) Factos provados:
1. A assistente, CC e o arguido AA casaram civilmente a 11 de Janeiro de 2000, na Conservatória de Registo Civil de Elvas, sem convenção antenupcial.

2. Na constância deste casamento nasceu, a 12 de Agosto de 2001, CA.

3. O casal começou por fixar residência na habitação…, em São Bento do Ameixial.

4. Durante a constância do matrimónio, o arguido, sempre que ingeria bebidas alcoólicas, batia na CC com as mãos, desferindo-lhe chapadas e, em diversas vezes, apertou-lhe o pescoço.

5. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 21 e 22 de Outubro de 2005, o arguido e a assistente começaram a discutir, por causa não concretamente apurada, na residência de ambos, sita em São Bento do Ameixial.

6. Nessas circunstâncias de tempo e modo, o arguido desferiu um pontapé na assistente, que a atingiu do lado esquerdo da grelha costal.

7. Em consequência de tal atuação, a assistente precisou de ser socorrida no Hospital do Espírito Santo, em Évora.

8. Onde, no dia 23 de Outubro de 2005, lhe foi extraído o baço, que apresentava uma extensa laceração da cápsula, o que provocou, na superfície de secção, vários focos de hemorragia.

9. A assistente teve alta hospitalar a 26 de Outubro de 2005.

10. Em consequência da atuação do arguido a assistente sentiu dores.

11. Em data não concretamente apurada, mas entre os anos de 2005 a 2013, o casal fixou residência na cidade de Estremoz, em residência cuja morada não se conseguiu apurar.

12. O arguido atribuía amantes à assistente.

13. Em Abril de 2013, o casal e a filha menor passaram a residir no Monte do Cego, em Fronteira.

14. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 15 e 21 de Agosto de 2017, o arguido, a assistente e a menor CA estavam na casa de FF, …em Santa Eulália, concelho de Elvas, uma vez que eram as festas de verão.

15. Nessas circunstâncias de tempo, modo e lugar, cerca das 05h:00 da madrugada, o arguido dirigiu-se à casa de FF, após ter consumido bebidas alcoólicas.

16. Ali chegado, o arguido começou aos gritos à assistente, culpando-a pelo namoro da menor CA.

17. De seguida, o arguido dirigiu-se à assistente e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de chapadas, e apertou-lhe o pescoço.

18. Após, o arguido disse à assistente e à filha menor, CA, que regressariam imediatamente ao Monte do Cego, em Fronteira.

19. A assistente e a menor CA acataram a ordem do arguido porque estavam com medo.

20. Ao chegarem ao Monte do Cego, em Fronteira, o arguido voltou a discutir com a assistente, tendo-lhe desferido um número não concretamente apurado de estalos na face.

21. Durante a discussão, o arguido agarrou a assistente pela zona do pescoço e desferiu-lhe um número não concretamente apurado de murros que a atingiram na face e na cabeça.

22. A filha menor do casal, CA, vendo isto, colocou-se à frente da assistente, dizendo ao arguido para parar.

23. Ato contínuo, o arguido desferiu uma chapada na menor CA, que a atingiu na face.

24. Em virtude da atuação do arguido a assistente sentiu dores.

25. Em virtude da atuação do arguido a menor CA sentiu dores e ficou com os óculos partidos.

26. De seguida, o arguido voltou a dizer à assistente e à filha menor CA para entrarem para o veículo automóvel, pois iam para Estremoz.

27. A assistente e a menor CA acataram tal ordem porque estavam com medo do arguido.

28. Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que tinha consumido bebidas alcoólicas, o arguido apertava o pescoço à ofendida CC.

29. No dia 10 de Março de 2018, cerca das 04h:00 da madrugada, o arguido chegou à residência comum do casal, após ter ingerido bebidas alcoólicas e dirigiu-se ao quarto do casal.

30. Como ali estava hospedado um casal amigo do irmão da assistente, o arguido dirigiu-se à sala da residência comum do casal, onde dormiam a assistente, a filha menor CA e RR, irmão da assistente.

31. Na sala da residência comum do casal o arguido começou a discutir com a assistente.

32. Ato contínuo, o arguido dirigiu-se à assistente e apertou-lhe o pescoço.

33. No dia 11 de Março de 2018 a assistente saiu da residência comum do casal, com a filha menor CA.

34. As duas foram acolhidas em casa de TM,… em Fronteira.

35. No dia 21 de Março de 2018, cerca das 22h:15m, o arguido dirigiu-se à Rua …,em Fronteira, e bateu à porta.

36. Como a assistente não lhe abriu a porta, o arguido, através do seu telemóvel de número 934---, começou a enviar mensagens de texto escrito para o telemóvel da denunciante, com o número 9341---, o que ocorreu entre as 23h:19 e as 00h:55.

37. Com o seguinte conteúdo: “Ganhas-te um inimigo, foste telefonar á GNR”.

38. “Ok não venhas para o monte, queres desgraçar a minha vida, responde, preso não vou, responde vou me vingar e a seguir mato-me, não te ficas a rir da mim, não tenho nada a perder, eu vou-me vingar”.

39. “Tens 24 horas para estares em casa, eu perco tudo mas tu não gozas a vida, olha a tua filha, eu apanho 25 anos de prisão aproveita enquanto é tempo”.

40. “Tu sabes que ninguém me fica a dever nada, pensa bem, eu vou até ao fim do mundo”.

41. “Responde caralho, queres que o pai da tua filha seja preso, não gozas comigo”.

42. “Responde se fores mulher.

43. “Eu já percebei o que tu queres vou dar-te mas não vais dar cabo da minha vida”.

44. “Telefonas-te logo para a GNR, eles não guardam tudo e tu sabes que ninguém me fica a dever nada, nem que tenha que ser preso, não te quero mal nenhum, ensinei-te tudo e tu dasme um pontapé, não é justo, eu vou até ao fim, dou-te 24 horas e vou preso e tu não ficas a rir de mim, ninguém me fica a dever nada”.

45. “Quanto mais tempo demoras mais eu estou disposto a tudo, não saias de casa, estou por perto e agora pensa enquanto é tempo, não atendes ainda é pior, já te esqueceste o quanto te ajudei, não das valor nenhum”.

46. “Atende ou responde, eu fico mais nervoso, estou disposto a mamar 25 anos se tu não me responderes”.

47. “Tu não percebes que me estas a enervar”.

48. Quando o arguido foi intercetado junto à residência sita na Rua…, em Fronteira, pela GNR de Fronteira, acatou voluntariamente ausentar-se do local.

49. No dia 22 de Março de 2018, o arguido, através do seu telemóvel de número 9341---, enviou várias mensagens de texto escrito para o telemóvel da assistente, com o número 93411---.

50. Com o seguinte conteúdo: “És a pessoa que mais me deu cabo da vida, tiraste-me tudo, não quero mulheres assim, vaca”.

51. “A minha depressão foste tu, não prestas para nada, eu vou-me lixar e tu és a culpada”.

52. “Tem cuidado que dás cabo da minha vida mas eu dou-te cabo da tia; não vens para casa mas eu vou tratar disso”.

53. “Não prestas para nada mas tens a mania”.

54. “Tu não falas comigo mas ainda é pior, eu vou-te matar, não falas comigo mas tu sabes do que eu sou capaz, amanhã não vens com o Augusto, vens comigo”.

55. “Se te vejo com o BB mato-me e não duvides se estou dente foste tu a culpada, tiraste-me tudo mas não fica assim, amanhã se vens com o BB eu trato do resto”.

56. “Eu estou cá não duvides, eu durmo dentro do carro mas estou-te a ver, ensinei-te tudo desde o broxe até ao cusar o grelo, eu vou matar-te não duvides já te esqueceste o que fiz por ti vaca do caralho, falsa doente, não me ficas a dever nada”.

57. “Eu estou a tua espera depois vens queres ver”.

58. “Eu vou matar-te vaca do caralho vem com o BB tiraste-me tudo não”.

59. No dia 23 de Março de 2018, o arguido mandou uma mensagem de texto escrito através do seu telemóvel de número 9341---, para o telemóvel da assistente, com o número 93411---, com o seguinte conteúdo: “olha sempre para trás, que eu posso lá estar”.

60. A assistente tem medo do arguido, receando que este atente contra a sua integridade física ou até contra a sua vida.

61. O arguido tem problemas com a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso.

64. Entre as 23h:00 do dia 30 de Maio de 2018 e as 06h:30 do dia 31 de Maio de 2018, o veículo automóvel de matrícula --MP, que se encontra na posse da assistente, estava aparcado no terreiro do Monte do Cego, em Fronteira.

65. Um individuo concretamente não identificado, munido de objeto cortante não concretamente apurado, fez um corte longitudinal em cada um dos quatro pneus do veículo automóvel, logrando furá-los.

66. Nessas circunstâncias de tempo, modo e lugar, um individuo não concretamente identificado fez vários riscos na parte lateral do veículo automóvel.

67. Em consequência o veículo automóvel ficou riscado.

68. E os quatro pneus do veículo automóvel ficaram totalmente inutilizados e tiveram de ser substituídos.

69. O que importou para a assistente uma despesa de aproximadamente € 360,00 (trezentos e sessenta euros).

70. O arguido, nas condutas supra descritas em relação à assistente CC, atuou sempre com o propósito concretizado de a constranger, com o intuito de levá-la a ser-lhe submissa e a comportar-se do modo que ele entendia conveniente, controlando os movimentos da mesma, indiferente ao facto daquela ser sua esposa e mãe da sua filha e indiferente aos deveres de respeito e cooperação que lhe devia e dos quais estava bem ciente.

71. O arguido não se coibiu de agir da forma supra descrita contra a assistente CC, causando-lhe sofrimento, humilhação, perturbação e medo, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar na assistente, como provocaram, marcas psicológicas que afetaram o seu equilíbrio emocional e que ocorreram no interior do domicílio comum e na presença da filha de ambos, ainda menor.

72. O arguido, ao agir da forma supra descrita sobre a assistente CC, pretendeu atingi-la por diversas vezes no seu corpo, provocando-lhe mazelas e dor, o que efetivamente logrou conseguir.

73. O arguido, nas condutas supra descritas em relação à filha CA, atuou sempre com o propósito concretizado de a constranger a não defender a progenitora, perturbando-a e amedrontando-a, com a exposição da mesma a sucessivas moléstias físicas e psicológicas e que este comportamento era idóneo a provocar-lhe, como provocou, marcas psicológicas que lhe afetaram o equilíbrio emocional.

74. O arguido, ao agir da forma supra descrita sobre a CA, quis atingi-la no seu corpo, provocando-lhe mazelas e dor, o que efetivamente logrou conseguir, indiferente à relação de filiação que os ligava e ao dever de respeito que lhe devia e de que estava bem ciente, e aproveitando-se da circunstância de a mesma, sendo parte do seu agregado familiar e encontrar-se a estudar, não possuir meios de subsistência que lhe permitissem ser independente, estando, por isso, dependente economicamente de si.

75. O arguido, em todos os factos supra elencados, agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente.

76. O arguido sabia que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei e tinha liberdade e capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação.

77. O arguido não possui antecedentes criminais.

78. AA é o primogénito de nove filhos de um casal estruturado, de baixa condição económica, resultante do trabalho dos pais, no setor agrícola por conta de outrem, fator que implicava a deslocação da família pelos montes e herdades onde desenvolviam a atividade.

79. Há cerca de 20 anos o agregado estabeleceu-se em Estremoz, passando o pai a trabalhar na Câmara Municipal e a mãe numa Adega de J. Portugal Ramos.

80. O arguido frequentou a escola até ao termo da 4ª classe, iniciando aos 10 anos de idade a sua vida laboral conjuntamente com os pais.

81. Cumpriu o serviço militar, permanecendo 10 anos e 4 meses em serviço no Colégio Militar e nas Escolas Práticas de Cavalaria de Santarém e de Estremoz.

82. Posteriormente começou a trabalhar com máquinas agrícolas, na Herdade --- em Fronteira, onde se manteve 11 anos, tendo sido despedido na sequência do presente processo e regressado ao agregado de origem em Estremoz.

83. À data dos factos de que se encontra indiciado, AA vivia com o ex-cônjuge e filha de menor idade.

84. AA nega os consumos abusivos de bebidas alcoólicas e não reconhece a prática de atos agressivos.

85. Há cerca de um ano iniciou nova relação afetiva.

86. O casal reside na morada constante nos autos; trata-se de uma habitação arrendada por 250€ mensais, que reunirá boas condições de habitabilidade.

87. AA trabalha por conta de outrem, desenvolvendo trabalhos indiferenciados no sector agrícola ou construção civil, auferindo 30€/dia.

88. A companheira também vai exercendo atividade em limpezas.

89. O casal tem despesas fixas, para além da renda da habitação a prestação de 150€ para compra de um veículo e despesas de consumos de eletricidade, agua e redes móveis de aproximadamente 150€ mensais.

90. Dispõem do apoio dos pais de ambos, a nível afetivo e económico.

91. O arguido e a filha CA mantêm laços recíprocos de afeto e mostram vontade em manter contacto.

92. A assistente CC sempre teve atividade profissional, auferindo rendimento próprio.

b) Factos não provados:
- Que a extração do baço, referida em 8, tenha sido consequência do pontapé que o arguido lhe desferiu.

- Que, no período temporal referido em 11, o arguido, em datas não concretamente apuradas e com uma frequência não determinada, quando discutiam, dizia à assistente: “Acabo contigo”.

- Nas circunstâncias referidas em 29 a 32, o arguido foi agarrado por RR, que intercedeu, e a menor CA colocou-se diante da assistente.

- Enquanto o arguido gritava à assistente: “dou-te com a moca e rebento-te os miolos” e “eu vou mas não vou sozinho, dás cabo da minha vida, mas eu dou cabo da tua”.

- Que foi o arguido o autor dos factos descrito em 64 a 68 e sabia que a sua conduta era idónea a provocar, como logrou conseguir, estragos no veículo automóvel de que a assistente tem a posse.

c) Motivação da decisão de facto:
A convicção do tribunal quanto à factualidade provada e não provada baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida em audiência.

A factualidade vertida em nº 1 e 2 dos factos provados resulta do teor dos documentos de fls. 70 a 75 dos autos, consubstanciados nas respetivas certidões de nascimento e casamento.

Os factos constantes nos nºs 3, 4, 11, 12, 13 e 28, relativo às sucessivas moradas do arguido e da assistente CC, bem como ao procedimento do arguido ali descrito reportado a cada uma dessas fases da vida do casal, resultam em primeiro lugar das declarações de CC.

Com efeito, pese embora em momento inicial não tenha querido prestar declarações, fê-lo em momento posterior, justificando a sua atuação pela persistência do arguido nos contactos ameaçadores de que era alvo.

Ainda assim, da audição de tais declarações, devidamente sujeitas ao contraditório, percebe-se o carácter coerente, sincero e objetivo de tais declarações.

Assim, referiu a mesma que as condutas que imputa ao arguido começaram aproximadamente quando a filha de ambos, a ofendida CA, tinha quatro anos.

Foi absolutamente clara na afirmação de que o arguido apenas agia dessa forma quanto estava embriagado ou tinha bebido em excesso. Tal ocorria habitualmente aos fins de semana, apesar de não em todos.

As discussões surgiam sem motivação e invariavelmente as agressões traduziam-se em chapadas e/ou apertões de pescoço, sendo que o arguido dizia que CC tinha amantes.

Esclareceu que aguentou esta situação porque pensava que o dia seguinte seria sempre melhor, bem como por medo que o arguido lhe tirasse a sua filha, algo com que ameaçava muitas vezes, tendo inclusivamente numa ocasião levado a sua filha para a casa da sua mãe, dando credibilidade à sua ameaça.

As declarações da filha, também ofendida, CA, foram de idêntico teor.
Apesar da sua juventude, desde sempre assistiu a agressões por parte do pai, reiterando que tal acontecia sempre que ele bebia.

O progenitor e avô das assistentes, FF, referiu igualmente que o arguido sempre bateu na filha, que sempre a tratou mal.

Pese embora seja invisual, sempre se apercebeu do medo da filha e da neta pela reação delas. Muitas vezes a sua filha dizia, “pai, não digas nada se não é pior”.

Mas, especialmente elucidativo, considerámos o depoimento de RR, irmão de CC e tio e padrinho da CA.

Esta testemunha, num depoimento objetivo e credível, sempre referiu que não sabia que o arguido tratava a sua irmã da forma descrita na acusação.

Referiu que apenas assistiu a um episódio, a que infra nos referiremos, e que o resto só soube o que a irmã lhe contou mais tarde.

Todavia, no decurso das suas declarações, sempre foi referindo que uma ocasião, em data que não conseguir concretizar, por altura do Carnaval, a irmão ligou para se ir embora porque o arguido a tinha tratado mal. Quando chegou a local onde se encontraria, a irmã disse que já não havia problema, que já estava tudo resolvido. Lembrou-se e referiu que ficou aborrecido por ter lá ido em vão.

Em seguida, ainda se lembrou de uma ocasião, há cerca de 6 anos, quando levou os sogros a casa dos pais, o ora arguido “pegou” na mulher e na filha e foram embora, sem qualquer justificação.

Pese embora estes episódios, a testemunha reputa que o arguido talvez falasse “um bocado mais brusco, ok”, mas “é a personalidade da pessoa”, citando as suas palavras.

Efetivamente, estes depoimentos fundam a profunda convicção de que o depoimento de CC corresponde à verdade, sendo uma situação que ocorria sobretudo na intimidade de casa. Quem estava à volta, não agia ou fazia de conta que nada via, desvalorizando todos os indícios.

A factualidade constante nos nºs 5 a 10 resulta igualmente do teor do depoimento da CC e da credibilidade que o mesmo mereceu, da forma como referimos.

Foi esta a situação que reputou de mais grave e que ocorreu mais uma vez quando o arguido chegou embriagado a casa.

Especificou, contrariamente ao local incerto que constava na acusação, que tal ocorreu na residência de S. Bento de Ameixial.

Assim, referiu que, depois de chegar a casa e de a agredir com palavras, quando tinha a sua filha ao colo e se preparava para a deitar, o arguido pontapeou-a.

Ficou com dores, mas pensava que passava. Apenas no dia seguinte, porque não estava melhor, foi às urgências, local de onde a enviaram para Évora, onde foi submetida a intervenção cirúrgica de remoção do baço.

Levou-se igualmente em consideração o teor dos documentos de fls. 161 a 193 e 197 a 224, elementos clínicos relativos a CC.

A factualidade constante em 14 a 19 dos factos provados, relativa à situação ocorrida em Agosto de 2017, em Santa Eulália, quando ocorriam as férias de verão, resulta mais uma vez, em primeiro lugar, do teor das declarações de CC.

Referiu assim que tal ocorreu quando a filha começou a namorar.

Apesar de ser contra esse namoro, nesse dia, em momento anterior, tinha conversado com o namorado da filha. A conversa teria corrido bem. Todavia, chegou a casa embriagado, mostrando descontentamento com a situação e começou a agredi-la da forma descrita.

Tendo recebido a ordem para irem para Fronteira, por medo acatou-a. Naquele local continuou a discussão e as agressões como descrito em 20 e 21, pelo que a sua filha se interpôs entre os dois. Nessa ocasião, o arguido deu uma estalada na filha, em consequência do que os seus óculos caíram e se partiram.

Mais uma vez o arguido ordenou, desta vez para que fossem para Estremoz, o que as ofendidas acataram, mais uma vez, por medo.

CA relatou os factos de forma idêntica, esclarecendo que o pai só lhe batia quando se interpunha entre o seu pai e a sua mãe.

FF, pese embora não tenha assistido a agressões, por ser invisual, apercebeu-se das altercações, porque o “rapaz da minha neta foi lá falar”, disse. Sentiu, pela reação da filha e da neta, o medo que sentiram, referindo que a neta deu um grito de assustada, em seguida do que a sua filha disse “pai, a gente vai-se embora”.

A factualidade constante nos nºs 29 a 30, relativa ao episódio ocorrido em 10 de Março de 2018, resulta do teor dos depoimentos de CC e CA, as quais, de forma idêntica, o relataram da forma que resultou provado, tendo a primeira referido que voltou a deitar-se na companhia do arguido porque o mesmo a ameaçou que, se não se deitasse nesse momento, não voltava a deitar-se.

A testemunha RR, já referida, que nessa ocasião estava de visita e dormia no mesmo espaço que a sua irmã, referiu que havia regressado a casa na companhia do arguido.

Explicou que “já tinham bebido um bocadinho”. Depois de já ter adormecido, acordou subitamente com um grito da irmã e com a sobrinha a acender a luz. Após a irmã afastou-se, mas voltou a dormir com o arguido porque ele lhe disse que “ou deitas já aqui ou nunca mais deitas ao pé de mim”.

Ficou sem reação, e voltaram todos a dormir.

A factualidade vertida nos nºs 35 a 48 resultou do teor das declarações da assistente, que os relatou, do teor das mensagens de telemóvel de fls. 250 a 263 e 297 a 298, onde as mensagens em causa forma recolhidas, do teor do depoimento do militar da GNR, OP, que foi ao local e referiu que o arguido acolheu a ordem de retirada prontamente, e da testemunha E, filha de TM, que recebeu um telefonema de CC, que “estava cheia de medo”, a pedir-lhe para chamar a policia.

Os factos descritos nos nºs 49 a 59, relativos a mensagens de telemóvel remetidas pelo arguido a CC, resultam do teor de fls. 250 a 263 e 297 a 298, já referidas.

O referido em 60 a 61 resulta à saciedade de toda a prova testemunhal produzida e já referida, reiterando-se o que já se disse relativamente aos motivos pelos quais a ofendida CC manteve o relacionamento com o arguido apesar dos factos em causa.

Da mesma forma, das declarações de CC e da sua filha, CA, resultou que os episódios de agressão aconteciam sempre e só quando o arguido bebia.

O constante em 64 a 69 resulta das declarações de CC, do teor do auto de notícia de fls. 296 e da fatura de fls. 596.

Face a tudo o referido, resultaram igualmente provados os factos constantes em 70 a 77, relativos ao elemento subjetivo.

Com efeito, como referiu CC, todos os episódios acabavam da mesma maneira, com o arguido a pedir desculpas e a dizer que não queria fazer mal. Ainda assim, não reconhecia qualquer problema com a bebida e reiterava sempre o seu consumo e os atos agressivos subsequentes. A assistente CA tinha 4 anos quando as situações em causa se iniciaram, encontrando-se ainda a estudar, e, por isso, na dependência dos seus pais, com que sempre viveu e coabitou.

A ausência de antecedentes criminais resulta do teor do CRC junto aos autos.

A matéria de facto relativa às condições económicas e pessoais do arguido resultam do teor do relatório social elaborado, o qual se encontra devidamente fundamentado, fazendo menção das suas fontes.

O facto constante em 91 resulta do teor das mensagens de telemóvel juntas pelo arguido em sede de contestação, mas é também realidade afirmada desde logo pela assistente CA e por CC nas suas declarações. Esta última, aliás, referiu que, apesar dos factos, sempre promoveu a existência de um bom relacionamento entre pai e filha, reputando que o conseguiu.

O facto constante em 92 resulta, se mais não fosse, das declarações da própria, que, questionada, respondeu em conformidade.

A matéria de facto não provada resulta da ausência de prova quanto à mesma.

Pese embora a cirurgia de remoção do baço realizada a CC seja contemporânea da agressão que o arguido lhe fez no dia anterior e o nexo de causalidade entre um facto e outro seja plausível, na ausência de prova pericial adequada, difícil de fazer tendo em consideração o tempo decorrido, não é possível afirmar com toda a certeza a existência de tal nexo.

Da mesma forma não resultaram das declarações das ofendidas e de RR as expressões assinaladas na matéria de facto não provada, nem a intervenção da referida testemunha da forma descrita.

De igual forma, pese embora a convicção da ofendida, não é possível afirmar, na ausência de outros elementos probatórios, que foi o arguido o autor dos factos descritos em 64 a 68 dos factos provados”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da nulidade do acórdão, por falta de fundamentação.

Alega o recorrente, em breve resumo, que, por um lado, não está fundamentada, no acórdão revidendo, a matéria de facto constante dos pontos 22 a 27, 31 a 34, 62 e 63, e 78 a 90, e, por outro lado, que o tribunal a quo apenas considerou as declarações das assistentes e os depoimentos das testemunhas FF e RR, descurando todas as demais testemunhas (sem explicar porquê).

Tudo isso, na opinião do recorrente, traduz a existência de insuficiente fundamentação da decisão fáctica tomada em primeira instância, nomeadamente sendo insuficiente o exame crítico das provas, o que acarreta a nulidade do acórdão recorrido (nos termos do disposto nos artigos 379º, nº 1, als. a) e c), e 374º, nº 2, do C. P. Penal).

Cumpre decidir.
Dispõe o artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, sobre os “requisitos da sentença”: “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que, conjugadamente, determinaram o sentido da decisão (isto é, que a “fundamentaram”).

A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo -.

Por sua vez, o “exame crítico” das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que, em tal exame crítico, estejam exteriorizadas as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

O que não se exige, na fundamentação da decisão fáctica (quer na enunciação das provas produzidas, quer no exame crítico das mesmas), é uma qualquer operação épica, em que o juiz tenha de expor, um a um, passo por passo, com inteiro detalhe, todo o seu percurso lógico dedutivo.

Não se exige, pois, que o juiz explane todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenvolveu a dinâmica dos factos em determinada situação, e, muito menos, que o juiz equacione todas as possibilidades (muitas delas até desrazoáveis, e, mesmo, absurdas) suscitadas, ao sabor das suas conveniências, pelos diferentes sujeitos processuais.

Também não se exige ao juiz que, de forma exaustiva e meramente descritiva, referencie e analise todas as declarações e todos os depoimentos, e, depois disso, vá ainda, facto a facto, pormenor a pormenor, circunstância a circunstância, explicar onde foi retirar a prova de cada um deles.

Exige-se, isso sim (mas é coisa diferente), a enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal, e o exame do seu valor e relevância probatórios, permitindo-se, assim, no contexto ambiental, de espaço e de tempo dos factos delitivos em apreço, compreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.

Ora, e retomando o caso concreto posto nestes autos, foi isto que aconteceu na fundamentação da decisão fáctica constante do acórdão revidendo, a qual não nos merece qualquer reparo ou censura.

Senão vejamos.
Numa primeira ordem de ideias, e à luz dos anteriores considerandos, carece de sentido a alegação do recorrente segundo a qual não está fundamentada, no acórdão em análise, a matéria de facto constante dos pontos 22 a 27, 31 a 34, 62 e 63, e 78 a 90.

É certo que tais factos não foram especificamente mencionados, com referência à sua numeração, na fundamentação da decisão fáctica constante do acórdão sub judice.

Só que, e ao contrário do que entende o recorrente, não tinham de o ser, porquanto resulta do texto da aludida fundamentação da decisão fáctica que os elementos de prova relativos aos factos em causa foram devidamente ponderados pelo tribunal de primeira instância, que, por essa forma, justificou a razão pela qual considerou os mesmos como provados.

Assim, e ao contrário do invocado pelo recorrente, está suficientemente fundamentada, no acórdão revidendo, a matéria de facto constante dos pontos 22 a 27, 31 a 34, e 62 e 63 (a mesma baseou-se, no essencial, nas declarações das assistentes e, ainda, nos depoimentos das testemunhas FF e RR - prova, toda ela, abundantemente explicitada e analisada no acórdão em causa -).

De igual modo, estão suficientemente fundamentados os factos dados como provados sob os nºs 78 a 90 (relativos às condições de vida do arguido). Com efeito, escreve-se no acórdão revidendo que “a matéria de facto relativa às condições económicas e pessoais do arguido resulta do teor do relatório social elaborado, o qual se encontra devidamente fundamentado, fazendo menção das suas fontes”.

Numa outra ordem de ideias, lendo a motivação da decisão fáctica constante do acórdão objeto do recurso, verifica-se, sem qualquer dificuldade, que o tribunal a quo fundamentou a sua decisão fáctica de forma clara e transparente, sendo apreensível o processo da sua convicção, ou seja, permitindo-nos acompanhar, de forma linear, as provas enunciadas, a respetiva análise e, bem assim, os raciocínios explicitados relativamente a tais provas.

O que acontece é que o recorrente não concorda com a análise da prova feita pelo tribunal de primeira instância, discordando dos raciocínios levados a cabo por esse tribunal relativamente aos elementos de prova produzidos.

Porém, essa discordância do recorrente, como é evidente, não configura a existência da invocada nulidade por falta de fundamentação.

Por último, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, no acórdão revidendo não tinham de ser enunciados, analisados e sopesados os depoimentos de todas as testemunhas, nomeadamente daquelas (as não referenciadas na motivação da decisão fáctica constante do acórdão sub judice) que nada sabiam acerca dos factos delitivos em apreço.

Isto é, não era exigível ao tribunal a quo que, expressamente, testemunha a testemunha, enunciasse, de forma repetitiva e absurda, que a mesma nada sabia sobre os factos criminosos imputados ao arguido nos presentes autos.

Em conclusão: o acórdão recorrido, ao nível da fundamentação da decisão fáctica, deixa transparecer, por forma clara e suficiente, os motivos da decisão que tomou, designadamente indicando as razões pelas quais deu credibilidade às declarações das assistentes e às testemunhas conhecedoras da vivência do casal (e testemunhas que, além disso, presenciaram alguns dos episódios relatados pelas assistentes).

Por conseguinte, o acórdão recorrido não enferma de nulidade, por insuficiência de fundamentação, ao contrário do que alega o recorrente.

Assim sendo, e neste primeiro segmento, é de improceder o recurso do arguido.

b) Da nulidade do acórdão, por valoração ilegal das “declarações para memória futura”.

Alega o recorrente, em síntese, que o acórdão sub judice enferma de nulidade, porquanto, nele, foram valoradas as declarações prestadas pelas assistentes para memória futura, sem que tais declarações tenham sido lidas na audiência de discussão e julgamento.

Entende o recorrente que o tribunal a quo, ao considerar essa prova (declarações para memória futura) para fundamentar a respetiva decisão fáctica (prova não produzida nem examinada na audiência de discussão e julgamento), agiu em “violação de uma proibição de prova, na modalidade de proibição de valoração”, o que acarreta a nulidade do acórdão objeto do presente recurso.

Cabe decidir.

Sob a epígrafe “declarações para memória futura”, preceitua o artigo 271º do C. P. Penal:

1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.

3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.

5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º.

7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.

8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.

Reunidos os pressupostos processualmente exigidos para a respetiva produção (nos termos enunciados no preceito legal acabado de transcrever), as declarações para memória futura constituem um modo de produção de prova pessoal submetido a regras específicas, mas acautelando sempre, bem vistas as coisas, o respeito pelos princípios estruturantes do processo penal, designadamente (e sobretudo) pelo princípio do contraditório (como resulta, claramente, do disposto no nº 3 do preceito acabado de transcrever).

Ora, as declarações para memória futura levadas a cabo no âmbito do presente processo obedeceram a todos os requisitos legais e salvaguardaram todos os aludidos princípios norteadores do processo penal, nomeadamente o princípio do contraditório (note-se, neste ponto, que o arguido/recorrente foi representado, no ato processual onde decorreu a prestação das declarações para memória futura, pelo seu Ilustre defensor).

Por outro lado, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, a circunstância de as declarações para memória futura não terem sido lidas na audiência de discussão e julgamento não impede que tais declarações sejam tomadas em consideração, quer por banda do tribunal recorrido (para efeitos de formação da sua convicção), quer por parte deste tribunal ad quem, não ocorrendo, nesta situação, qualquer violação, por parte do tribunal de primeira instância, do disposto no artigo 355º do C. P. Penal.

Neste mesmo sentido foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2017 (publicado no D.R., nº 224, 1ª Série, de 21-11-2017), onde se fixou a seguinte jurisprudência: “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, alínea a), do mesmo Código”.

Acerca da eficácia dos acórdãos de uniformização de jurisprudência, fora dos processos em que tenha lugar a respetiva prolação, dispõe o artigo 445ºº, nº 3, do C. P. Penal: “a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão”.

Este regime legal procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre, por um lado, a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do Direito, e, por outro lado, o princípio da independência dos tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, tal como estabelecido no artigo 203º da Constituição da República Portuguesa.

Ao contrário do antigo instituto dos “Assentos”, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, muito duvidosa e questionável, os atuais “Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência” possuem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.

A esta luz, e a nosso ver, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil a institucionalização dos Acórdãos de uniformização de jurisprudência, os tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida nessas decisões perante razões ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo Supremo Tribunal de Justiça é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico fundamental, comumente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas.

Ora, nada disso sucede com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2017 (cuja decisão ficou acima transcrita), que tratou, diretamente, de uma situação idêntica àquela com que estamos confrontados nos presentes autos, e que nenhuma dúvida nos suscita, quer sobre uma possível violação de algum princípio jurídico essencial, quer sobre o desrespeito por qualquer norma constitucional.

Isto é, nenhuma razão existe, em nosso entender, para não ser acolhida a decisão constante do aludido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.

Perante o decidido em tal Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, e face ao que vem de dizer-se, não ocorre a nulidade invocada pelo recorrente e agora em apreciação (nulidade do acórdão revidendo, por valoração ilegal das “declarações para memória futura”), improcedendo o recurso também nesta segunda vertente.

c) Da impugnação alargada da matéria de facto.
Alega o recorrente, em súmula, que não deveriam ter sido considerados como provados, por ausência de meios de prova, os factos vertidos na factualidade dada como assente no acórdão revidendo sob os nºs 4, 5, 6, 7, 8, 10, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 35, 36, 60, 61, 70, 71, 72, 73, 74, 75 e 76.

Ou seja, o recorrente entende, no fundo e bem vistas as coisas, que não se fez prova de toda a factualidade que consubstancia a prática dos crimes pelos quais vem condenado em primeira instância.

E isso, em resumo, porquanto as declarações das assistentes não são atendíveis, nem são credíveis, nem são suficientes para a prova desses factos, nem nenhuma das testemunhas os presenciou, ou, quando alguma testemunha presenciou certos factos, revela incongruência com as declarações das assistentes, ou, por último, porquanto as declarações das assistentes são incongruentes entre si, ou, quando analisadas diacronicamente (nos diferentes momentos processuais em que foram prestadas), revelam discrepâncias e aspetos contraditórios.

Entende o recorrente, por tudo isso, que toda a referida factualidade não pode ser considerada como assente, pelo menos em obediência ao princípio in dubio pro reo (essa factualidade não é isenta de dúvida razoável), impondo-se decisão diversa da que foi proferida, ou seja, decisão absolutória.

Há que decidir.
I - Invoca o recorrente que as declarações das assistentes não servem (não são suficientes) para se considerarem como provados os factos delitivos em apreço nestes autos (repete-se o já acima dito: todos os factos efetivamente relevantes para o preenchimento dos tipos legais de crime em apreço).

Com o devido respeito, tal invocação carece de fundamento válido.

É que, nada obsta, por princípio, a que a convicção do tribunal se forme exclusivamente com base no depoimento de uma única testemunha ou nas declarações de um único assistente (ou de um único demandante) ou de um único arguido. Esse depoimento e estas declarações, como qualquer meio de prova oral, estão sujeitos ao princípio da livre convicção, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Ou seja, e no caso destes autos: acreditar o tribunal (quer este tribunal ad quem, quer o tribunal a quo) na versão, naquilo que é essencial, das assistentes, é uma questão de convicção e entronca no princípio da livre apreciação da prova.

II - Alega o recorrente que as declarações das assistentes, quer quando confrontadas as de uma assistente com as da outra assistente, quer quando analisadas, cada uma de per si, nos diferentes momentos processuais em que foram colhidas nos autos, revelam fragilidades, inconsistências, contradições e manifestas discrepâncias.

Em primeiro lugar, verificamos que a afirmação do recorrente não é, na sua expressão relevante, rigorosa e verdadeira (com o devido respeito), pois que, no essencial, as declarações das assistentes são (e sempre foram) consistentes e coincidentes, relatando, nos seus traços efetivamente definidores e significativos, os “episódios de vida” em que participaram (e nos quais foram agredidas pelo arguido) de modo uniforme, homogéneo, seguro e claro.

Existem, é evidente, pequenas discrepâncias, ou de modo, ou de lugar, ou de tempo (conforme se salienta na motivação do recurso, profusamente e como se mais não houvesse).

Mas, em boa verdade, essas discrepâncias são, sempre, de mero pormenor, respeitando àquilo que é acessório, e, nunca, ao fundamental.

Em segundo lugar, e ao contrário do que parece entender o recorrente, a existência de divergências entre os depoimentos (e/ou as declarações) produzidos por pessoas que presenciaram uma mesma factualidade não é necessariamente sintoma do carácter inverídico do respetivo conteúdo, podendo ser, bem pelo contrário, demonstrativa da sua natureza não estereotipada e da sua espontaneidade.

Ora, é perante um contexto probatório com estas características que nos encontramos no caso em apreço, pelo que as invocadas discrepâncias existentes nas declarações das assistentes (que, bem vistas as coisas, e repete-se, o recorrente reporta a meras “circunstâncias” e a puros “pormenores” atinentes aos factos) não são de molde a pôr em causa a credibilidade que o acórdão recorrido lhes atribuiu, e que este tribunal ad quem também lhes atribui (sem qualquer dúvida).

III - Alega o recorrente que a prova produzida não é suficiente para a condenação, devendo ter-se como não provada toda a factualidade (relevante) dada como assente em primeira instância.

O recorrente questiona até (com algum espanto nosso, note-se), a “autoria” das mensagens de telemóvel enviadas pelo arguido à assistente CC, alegando que não se fez prova de terem as mesmas sido enviadas do telemóvel do arguido.

Com o devido respeito, nada disso faz qualquer sentido.

Desde logo, no tocante à “autoria” das mensagens de telemóvel em causa, basta ler e sopesar o respetivo conteúdo para, inquestionavelmente (utilizando as mais elementares regras da normalidade e da experiência comum), sabermos que quem as enviou foi, fora de qualquer dúvida, o arguido.

Com efeito, o teor de tais mensagens, nomeadamente olhando aos pormenores constantes das mesmas e relacionados com a vida do casal (até com a vida íntima do mesmo), revelam-nos, à saciedade, que foi o arguido o autor da escrita e do envio das mesmas.

Depois, e nos demais factos delitivos em apreço nos autos, este tribunal de recurso, privado embora da oralidade e da imediação, após ponderação dos argumentos invocados na motivação do recurso e após análise das provas produzidas, subscreve inteiramente (sem quaisquer reservas ou dúvidas) os raciocínios formulados pelo tribunal recorrido e a conclusão a que o mesmo chegou para fixar a matéria de facto.

Também a nosso ver as declarações das assistentes e os depoimentos das testemunhas de acusação ouvidas na audiência de discussão e julgamento e referidas na motivação da decisão fáctica constante do acórdão revidendo (as quais, de um modo ou de outro, corroboraram as declarações das assistentes), em conjugação com a prova documental referenciada no acórdão sub judice, justificam e impõem, sem margem para hesitações, a opção fáctica tomada em primeira instância.

IV - Por último, entende o recorrente que o tribunal a quo, ao considerar que a prova é suficiente, violou o princípio in dubio pro reo.

Também aqui nenhuma razão assiste ao recorrente.

O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1981, Vol. I, pág. 205).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção de inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).

Com efeito, dispõe a C.R.P. (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa(Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).

Este princípio tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto no sentido que mais favorecer o arguido.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais, de forma a ilidirem a certeza contrária (cfr. Ac. do S.T.J. de 01-07-2004, Processo nº 4P2791, in www.dgsi.pt), jamais podendo assentar na mera existência de versões contraditórias entre si ou na mera negação dos factos por parte dos arguidos.

Revertendo ao caso em apreço, e apesar das considerações do recorrente na motivação do seu recurso, o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida quanto à prática pelo arguido/recorrente da totalidade dos factos que foram dados como provados no acórdão recorrido, bem como também este tribunal de recurso, perante a prova produzida, com nenhuma dúvida fica relativamente à prática dos factos em causa por parte do arguido (conforme acima exposto).

Dito de outro modo: a fundamentação da decisão de facto constante do acórdão revidendo não evidencia a existência de qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido, e, por outro lado, face à prova produzida nestes autos, resulta, também para nós, a certeza da prática pelo arguido da totalidade dos factos atinentes ao crime pelo qual vem condenado.

Por isso, não existindo dúvidas no espírito do julgador, afastada está, obviamente, a possibilidade de aplicação do princípio in dubio pro reo.

O acórdão sub judice não merece, pois, também neste último aspeto da impugnação da decisão fáctica, a censura que lhe foi dirigida pelo recorrente (violação do princípio in dubio pro reo).

Improcede, perante o exposto, todo este segmento do recurso (impugnação alargada da matéria de facto), considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto dada como provada no acórdão revidendo.

d) Da qualificação jurídica dos factos (dos elementos do tipo legal de crime de violência doméstica).

Alega o recorrente, em breve resumo, que os comportamentos e as ações levados a cabo pelo arguido sobre as pessoas das assistentes não se enquadram no tipo legal de crime de violência doméstica.

Cabe decidir.

Verifica-se, desde logo (e é decisivo - perante o concreto conteúdo das alegações constantes da motivação do recurso -), que, para chegar ao entendimento jurídico-penal pretendido (segundo o qual os comportamentos e as ações levados a cabo pelo arguido sobre as pessoas das assistentes não se enquadram no tipo legal de crime de violência doméstica), o recorrente parte do pressuposto, errado (como acima dissemos), de que os factos dados como provados no acórdão proferido em primeira instância não o deviam ter sido.

Ou seja, aquilo que o recorrente alega, nesta matéria, é, em boa verdade, a ausência de preenchimento dos elementos (objetivos e subjetivos) do tipo legal de crime de violência doméstica perante uma factualidade que não foi a tida como assente no acórdão revidendo, mas sim uma outra, totalmente diferente daquela.

De todo o modo, independentemente das concretas alegações do recorrente neste ponto, compete-os proceder à verificação da correção do enquadramento jurídico-penal dos factos operado no acórdão revidendo.

Ora, a nosso ver, perante os factos dados como provados no acórdão recorrido, é inquestionável que o arguido incorreu na prática dos crimes de violência doméstica pelos quais vem condenado em primeira instância (dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, als. a) e d), e nº 2, do Código Penal).

Senão vejamos.

Sob a epígrafe “violência doméstica”, dispõe o artigo 152º, nºs 1 e 2, do Código Penal:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

Quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação, e como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos (…)”.

Mais esclarece o mesmo ilustre Professor (ob. e local citados), que a ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.

No dizer de Plácido Conde Fernandes (in “Violência Doméstica - Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305),o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”.

A nosso ver, preenche este tipo legal de crime a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa determinada realidade conjugal e/ou familiar.

Conforme bem salienta Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

Ora, em conformidade com o que vem de dizer-se, os factos dados como provados nestes autos são suficientes para o preenchimento dos elementos dos crimes de violência doméstica pelos quais o arguido foi condenado em primeira instância.

Com efeito, analisada a factualidade dada como provada, na sua globalidade complexiva, verifica-se que o arguido, de modo repetido (e durante vários anos), praticou diversos atos sobre a pessoa da assistente CC, que vão das injúrias, à violência física e à ameaça, conforme resulta da factualidade dada como provada no acórdão recorrido sob os nºs 5 e 6, 14 a 27 e 29 a 32.

Além disso, esses atos, de injúria, de violência física e de ameaça, foram cometidos de modo grave e intenso.

De modo idêntico, e relativamente à assistente CA (filha menor do casal e pessoa dependente economicamente do mesmo), verifica-se que o arguido a agrediu fisicamente, de modo grave, quando é certo que a mesma já tinha quase 18 anos de idade, e sendo os “motivos” do arguido totalmente incompreensíveis e inaceitáveis (mesmo do estrito ponto de vista da explicação dos comportamentos humanos), como, por exemplo, a discordância do arguido relativamente ao “namoro” dessa sua filha, ou a mera intervenção de tal menor em defesa da sua mãe (quando esta era agredida pelo arguido) - cfr., designadamente, os factos dados como provados no acórdão recorrido sob os nºs 22 a 25.

Por outras palavras: ao atuar nos moldes dados como provados no acórdão revidendo, o arguido praticou atos que, em nosso entender, constituem atitudes de degradação, humilhação e secundarização das duas vítimas em causa nestes autos, afetando-as, de modo significativo e relevante, não só no seu bem-estar (físico e psíquico), como também na sua dignidade humana.

Com o devido respeito por diferente opinião, a reiteração e a gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido permitem-nos, sem dúvidas ou hesitações, considerar a existência, in casu, de um grau de ilicitude que não se compadece com a eventual condenação do arguido por outros crimes (parcelares) que não os de violência doméstica (por exemplo, pelos crimes de injúria, pelos crimes de ofensa à integridade física, ou pelos crimes de ameaça).

Dos factos provados resulta, pois, demonstrado um estado de agressão (física e verbal) muito persistente e intenso, que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio do arguido sobre as vítimas, com vista a diminuir a sua dignidade como pessoas.

Em resumo: considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos estarem preenchidos os tipos legais de crime de violência doméstica em questão, porquanto as condutas levadas a cabo pelo arguido contra as assistentes constituem um atentado à dignidade pessoal das mesmas.

Como bem se escreve no Ac. deste T.R.E. de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), “a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Ora, neste caso, repete-se, as condutas do arguido, pela sua gravidade e reiteração, constituem um atentado, relevante, à dignidade pessoal das duas ofendidas.

Face ao predito, e também nesta vertente, o recurso é de improceder.

e) Da determinação da medida concreta das penas.

Alega o recorrente que a decisão recorrida enferma de “um certo exagero” na determinação da medida concreta das penas, devendo substituir-se as penas aplicadas no acórdão revidendo por penas próximas dos “limites mínimos”.

Em suporte dessa sua pretensão, o recorrente convoca todas as circunstâncias a seu favor, “nomeadamente a inexistência de antecedentes criminais e o ter ficado sem o seu trabalho de há dez anos, sem casa e sem se poder deslocar à vila de Fronteira, onde tem os amigos e onde fez a sua vida pessoal, familiar e social”.

Há que apreciar e decidir.
Os crimes de violência doméstica pelos quais o arguido vem condenado em primeira instância (dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, als. a) e d), e nº 2, do Código Penal) são puníveis, em abstrato, com pena de prisão de 2 a 5 anos.

Dentro da moldura penal abstrata prevista para cada um dos crimes em causa (pena de prisão de 2 a 5 anos), o arguido, no acórdão revidendo, foi condenado nas seguintes penas concretas:

- 3 anos e 4 meses de prisão, relativamente ao crime cometido sobre a pessoa da assistente CC.

- 2 anos e 4 meses de prisão, relativamente ao crime praticado sobre a pessoa da assistente CA.

- Em cúmulo jurídico dessas duas penas parcelares, na pena única de 4 anos e 4 meses de prisão (suspensa na sua execução).

É de acordo com o disposto no artigo 71º do Código Penal que há de fazer-se a pertinente determinação da pena em concreto adequada.

Dispõe o artigo 71º, nº 1, do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Vários modelos têm surgido para solucionar a questão de saber a forma como estas entidades distintas (culpa e prevenção) se relacionam no processo unitário da medida da pena.

De todo o modo, face ao disposto no artigo 40º, nº 1, do mesmo Código Penal, as finalidades da punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A medida da pena há de, primordialmente, ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expetativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma “moldura de prevenção”, isto é, que fornece um “quantum” de pena que varia entre um ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.

A culpa - juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito, conforme se expendeu no acórdão do S.T.J. de 10-04-1996 (in C.J., Acs. S.T.J., ano IV, tomo II, pág. 168) - constitui o limite inultrapassável da medida da pena, funcionando assim como limite também das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio de respeito pela dignidade da pessoa do agente.

Como muito bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, págs. 186 e 187), o modelo de determinação da medida concreta da pena consagrado no Código Penal vigente “comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente”.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável -, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

Ainda, no dizer da Prof.ª Fernanda Palma (in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, ed. 1998, AAFDL, pág. 25), “a proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”.

Como bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, pág. 214), “culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena)”.

No caso dos autos, a prevenção geral, no sentido de prevenção positiva (ou seja, no dizer do Prof. Figueiredo Dias - ob. agora citada, pág. 72 - o “reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida”), faz-se sentir de forma premente e clara. Com efeito, este tipo de criminalidade (violência doméstica) tem sido fonte de crescente alarme social, dadas as suas nefastas consequências para as vítimas e para a sociedade em geral, pelo que grandes são as necessidades de prevenção geral agora em análise.

Também ao nível da prevenção especial, entendida como dissuasão do próprio delinquente, as necessidades reveladas são elevadas, ponderando o modo de execução dos factos, o prolongado tempo de execução, e a postura revelada pelo arguido perante os atos que ia praticando.

Ora, ponderando todos estes elementos, e atendendo à medida abstrata da pena aplicável (pena de prisão de 2 a 5 anos), afigura-se-nos que as penas aplicadas no acórdão revidendo (3 anos e 4 meses de prisão, relativamente ao crime cometido sobre a pessoa da assistente CC, e 2 anos e 4 meses de prisão, relativamente ao crime praticado sobre a pessoa da assistente CA) o foram em medida justa e correta, nada justificando a respetiva compressão (note-se que a pena aplicada ao crime relativo à assistente CA está situada quase no limite mínimo da respetiva moldura penal abstrata, e, além disso, a pena aplicada ao crime praticado sobre a pessoa da assistente CC está fixada abaixo do meio de tal moldura penal abstrata).

Conclui-se, assim, que a medida concreta das penas (parcelares) não é excessiva, ao contrário do que alega o recorrente (não se mostrando violado, por conseguinte, o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal).
*
Importa, por último, aquilatar da pena única encontrada (4 anos e 4 meses de prisão).

A moldura abstrata da pena do concurso tem como limite máximo a soma das penas de prisão concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, nº 2, do Código Penal).

No caso destes autos, o limite máximo da pena a ponderar é de 5 anos e 8 meses de prisão (soma das penas parcelares aplicadas ao recorrente), e o limite mínimo dessa mesma pena é de 3 anos e 4 meses de prisão (pena parcelar mais elevada).

Dentro da moldura abstrata assim encontrada, é determinada a pena do concurso, para a qual a lei estabelece que se considere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º, nº 1, do Código Penal), sem embargo, obviamente, de ter-se também em conta as exigências gerais da culpa e da prevenção a que manda atender o artigo 71º, nº 1, do mesmo Código Penal, bem como os fatores elencados no nº 2 deste artigo, referidos agora à globalidade dos crimes (e porque aqui se atende a tais fatores referidos ao conjunto dos factos, enquanto que nas penas parcelares esses fatores foram considerados em relação a cada um dos factos singulares, intocado fica o princípio da proibição da dupla valoração).

Como bem salienta o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, págs. 291 e 292), tudo deve passar-se, por conseguinte, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

No caso, é acentuada a gravidade do ilícito global (além do mais, os factos praticados pelo arguido e ora em apreciação ocorreram num período de tempo que decorre durante vários anos).

No contexto da personalidade unitária do arguido, os elementos conhecidos permitem dizer que a globalidade dos factos é reconduzível a um desvalor que radica, claramente, na personalidade (do arguido), manifestamente desconforme aos valores sociais que o direito penal tutela.

Pelo que fica exposto, e tendo também em devida conta os elementos diretamente conexionados com as condições de vida do arguido, tem-se como adequada a pena única fixada em primeira instância - 4 anos e 4 meses de prisão (abaixo do ponto médio da moldura do cúmulo).

Face a tudo quanto fica dito, e nesta parte (medida concreta das penas), soçobra, pois, o recurso do arguido.

f) Da pena acessória de proibição de contacto com a assistente CC.

Entende o recorrente que deve revogar-se a pena acessória de proibição de contacto com a assistente CC, por ser uma pena desajustada.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “violência doméstica”, estabelece o artigo 152º, nºs 4 e 5, do Código Penal:

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.

A pena acessória de proibição de contacto com a vítima, que pode incluir o afastamento do arguido da residência ou do local de trabalho da mesma, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, e como resulta da sua própria natureza, não visa, em primeira linha, finalidades de natureza retributiva, pretendendo, sobretudo, dar satisfação a exigências preventivas, ligadas, por um lado, à necessidade da efetiva proteção da vítima, e, por outro lado, à tentativa de o arguido mudar o rumo da sua vida, de modo a não repetir a prática de atos da mesma natureza.

Ora, in casu, face à matéria de facto dada como provada, nomeadamente ponderando a reiteração da conduta do arguido, naturalmente debilitadora da saúde física e psíquica da assistente CC, justifica-se, plenamente, a aplicação da referida pena acessória, por forma a garantir a defesa, no futuro, da pessoa de tal vítima.

Além disso, só o afastamento do arguido da assistente CC permitirá, cabalmente, que o mesmo “mude de vida”, não cometendo, de novo, ilícitos da mesma natureza da dos agora em apreciação.

Dito de outro modo: vista a concreta situação posta nos presentes autos, a pena acessória de proibição de contacto com a assistente CC (com o afastamento do arguido da residência e do local de trabalho da mesma e com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância) mostra-se ajustada e proporcional, nada justificando a respetiva revogação.

Mais: as condutas levadas a cabo pelo arguido contra a assistente CC, pela sua gravidade e insistência, impõem (e não apenas justificam ou aconselham) a aplicação de tal pena acessória.

Para assim concluirmos, e com o devido respeito por diferente opinião, basta ponderar o teor das mensagens de telemóvel enviavas pelo arguido à referida assistente (nos termos constantes da factualidade dada como provada no acórdão recorrido), teor do qual se depreende, claramente, que o arguido possuiu intenções persecutórias contra essa assistente e que a pretende intimidar e amedrontar.

Acresce que a assistente CC, perante todas as condutas delitivas do arguido (nos moldes tidos como assentes na decisão revidenda), e recorrendo nós às mais elementares regras da experiência comum, sentirá medo, temor e ansiedade se estiver na presença do arguido.

Em conclusão: a pena acessória de proibição de contacto com a assistente CC revela-se, no presente caso, ajustada, proporcional, necessária, justa e inteiramente adequada.

Consequentemente, e neste segmento, o recurso do arguido é manifestamente de improceder.

g) Dos montantes das indemnizações fixadas às ofendidas.
Falta, por último, apreciar a questão suscitada pelo recorrente relativamente à vertente civil da decisão (questão restringida aos montantes atribuídos, no acórdão revidendo, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelas duas ofendidas).

A este respeito, importa que tenhamos presente o disposto no artigo 400º, nº 2, do C. P. Penal: “sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.

Os artigos 427º e 432º do mesmo C. P. Penal dispõem sobre as competências das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça respetivamente, em matéria de recursos, não relevando para a questão que agora nos cumpre apreciar.

O nº 1 do artigo 31º da Lei nº 52/08, de 28/08, fixou em 5.000 a alçada dos tribunais de primeira instância em matéria cível, valor que foi mantido inalterado pelo nº 1 do artigo 44º da Lei nº 62/13, de 26/08, atualmente em vigor.

Nos presentes autos, a ofendida CA deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 1.200 euros, pedido que foi jugado totalmente procedente.

Por sua vez, a ofendida CC não deduziu pedido de indemnização civil, tendo o tribunal arbitrado à mesma, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do C. P. Penal, uma indemnização de 2.000 euros.

Os referidos valores situam-se abaixo dos parâmetros fixados pelo transcrito nº 2 do artigo 400º do C. P. Penal, pelo que a vertente civil do acórdão agora recorrido não é suscetível de impugnação por meio de recurso autónomo, isto é, que não seja mera decorrência da procedência da pretensão recursiva em matéria penal.

Por outras palavras: por um lado, não foi deduzido nestes autos qualquer pedido de indemnização civil de valor superior a 5.000 euros, e, por outro lado, o arguido não foi condenado a pagar, em nenhum desses pedidos, quantia superior a 2.500 euros.

O mesmo é dizer que, quer o montante dos pedidos quer o valor da sucumbência do ora recorrente estão abaixo dos parâmetros fixados no artigo 400º, nº 2, do C. P. Penal.

Por conseguinte, a vertente civil do acórdão revidendo não é suscetível de impugnação por meio de recurso autónomo, porquanto nenhuma questão cível se coloca que possa considerar-se, minimamente, decorrência da procedência da pretensão recursiva em matéria penal (aliás, in casu, não ocorreu qualquer procedência da pretensão recursiva em matéria penal).

Face ao exposto, está vedado a este Tribunal da Relação a cognição da pretensão formulada pelo recorrente relativamente aos montantes das indemnizações civis em que foi condenado em primeira instância (devidas a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelas ofendidas).

Em jeito de síntese de tudo o que ficou dito:
1º - Não é de conhecer (por irrecorribilidade) do recurso interposto pelo arguido na parte relativa à matéria das indemnizações civis fixadas nestes autos.

2º - Quanto a tudo o mais, é de negar provimento ao recurso, sendo, assim, de manter, em toda a sua plenitude, o decidido no acórdão sub judice.

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Não conhecer do presente recurso na parte relativa às indemnizações civis arbitradas às ofendidas.

b) No mais, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 19 de dezembro de 2019
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(João Manuel Monteiro Amaro)
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(Laura Goulart Maurício)