Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TELES PEREIRA | ||
Descritores: | ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO PROCESSO | ||
Data do Acordão: | 09/16/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 1353º, 1354º E 1355º DO C.CIV. | ||
Sumário: | I – A adjectivação do direito de demarcação plasmado nos artºs 1353º a 1355º do C. Civ. assenta em “dois momentos” processuais sequenciais. II – O primeiro destes “momentos” refere-se aos elementos integrantes da causa de pedir e configura-se por referência à existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são incertas ou duvidosas. III – O “segundo momento” estrutura-se no plano da efectivação da delimitação dos prédios e opera em torno da aplicação dos critérios sequenciais de demarcação indicados no artº 1354º do C. Civ.. IV – Correspondem a cada um destes “momentos” regras probatórias específicas, gerando estas “regras de decisão” diferentes. V – No “primeiro momento” (causa de pedir da acção) vale, em matéria de ónus da prova, o artº 342º, nº 1, do C. Civ. e a correspondente “regra de decisão” decorrente do artº 516º do CPC. VI – No “segundo momento” (concretização da demarcação), valem, independentemente da forma de demarcação proposta por cada uma das partes, os critérios sucessivamente plasmados no artº 1354º do C. Civ. VII – A aplicação neste “segundo momento” das “regras de decisão” que emergem dos artºs 342º do C. Civ. e 516º do CPC, obrigaria o autor a provar uns concretos limites do seu prédio e, fracassando em tal demonstração, a suportar uma demarcação de sentido contrário à por ele propugnada ou uma “não decisão”, perpetuadora da incerteza quanto aos limites dos dois prédios. VIII – No quadro da actuação dos critérios do artº 1354º do C. Civ., a insuficiência do título quanto aos limites dos prédios conduz à aplicação do critério possessório e de outros elementos de prova indiciadores dos limites dos prédios confinantes. IX – Existindo uma situação de posse de boa fé, que possibilite o estabelecimento dos limites dos prédios, deve atender-se a essa posse na concretização da demarcação. X – Neste caso, traduzindo-se a posse numa actuação correspondente ao direito de propriedade e assentando tal actuação no desconhecimento de uma possível lesão de um direito alheio, gera ela um elemento fortemente sugestivo dos concretos limites do prédio. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – A Causa
1. A... e marido, B.... (AA. e neste recurso Apelados), demandaram C.... e marido, D.... (RR. e Apelantes no presente recurso), formulando contra estes os seguintes pedidos: Assentam estes pedidos na realidade predial que se expressa através da existência de dois prédios (o dos AA. e o dos RR.), outrora formando um prédio único (prédio matriz), pertencente aos pais da A. A...e da R. C..., cuja divisão entre estas duas (o evento gerador desses dois prédios) teria assentado – e estamos a reproduzir a tese dos AA. – na atribuição ao prédio dos RR. da parte urbana e de um quintal anexo a esta, ambos provenientes do prédio matriz, e ao prédio dos AA. de toda a parte rústica deste último, envolvente da urbana[3]. Em função disto, indicam os AA., a culminar o seu articulado inicial, “[…] para estrema do prédio dos RR., «encaixado» no dos AA., a face exterior das paredes da casa de habitação e quinteiro anexo” (artigo 30º da petição inicial a fls. 6).
1.1. Os RR. contestaram, adiantando ter sido fixada em tempos uma distinta divisão do prédio matriz[4], indicando ser esta a que conforma os limites do respectivo prédio[5].
1.2. Saneado o processo e condensados os factos até então provados (fls. 52/54), foi elaborada a base instrutória (fls. 54/56), posteriormente ampliada nos termos resultantes de fls. 56-A[6] e alterada posteriormente nos termos documentados na acta de fls. 185/188. Findo o julgamento, respondida a matéria de facto como consta de fls. 192/196, foi proferida a Sentença de fls. 199/213 (constitui esta a decisão objecto do presente recurso), contendo o seguinte pronunciamento decisório: 1.3. Inconformados, interpuseram os RR. o presente recurso de apelação, alegando-o a fls. 281/294, formulando as seguintes conclusões: Os AA. responderam, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
II – Fundamentação
2. Encetando a apreciação do recurso, importa ter presente que o âmbito objectivo deste ficou definido através das conclusões com as quais os Apelantes remataram as respectivas alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC[7]).
Dado que os Apelantes não discutem os factos apurados, aceitando a sua fixação nos termos em que a primeira instância a realizou, referindo-se a sua impugnação, tão-só, à valoração desses factos, importa aqui consignar, enquanto passo necessário à subsequente argumentação, qual a matéria de facto fixada, o que se fará transcrevendo o elenco desta constante da Sentença no trecho de fls. 200/203: 2.1. Está em causa, em função da configuração dada à lide pelos AA., prima facie, uma típica acção de demarcação, visando adjectivar, no quadro de uma relação de vizinhança fundiária entre AA. e RR., o correspondente direito de demarcação plasmado nos artigos 1353º a 1355º do Código Civil (CC).
Cumulativamente, formularam os AA. outros pedidos[8], um dos quais – o de condenação dos RR. a absterem-se de invadir a parte do prédio que os AA. consideram, em função da demarcação que propõem, pertencer ao seu prédio – foi acolhido pela Sentença, na alínea b) do pronunciamento decisório transcrito no item 1.2. supra[9].
Estrutura-se o recurso dos Apelantes, assim, em função dos dois pedidos acolhidos (o de demarcação nos termos propugnados pelos AA. e o relativo aos actos de perturbação imputados aos RR.), assentando, no que ao primeiro pedido respeita, nos seguintes fundamentos: (a) na invocação – que traduz o primeiro fundamento do recurso – do não preenchimento dos pressupostos da demarcação, por não caracterização pelos AA. da contiguidade dos prédios a demarcar; (b) numa errada aplicação – e este é o segundo fundamento do recurso – dos critérios do artigo 1354º do CC. E, enfim, no que tange ao segundo pedido acolhido na Sentença – e este constitui, residualmente, o terceiro fundamento do recurso –, (c) no carácter excludente que os argumentos dos Apelantes respeitantes à demarcação apresentam, relativamente a uma suposta invasão do prédio dos AA. pelos RR. (tratar-se-ia de actuar numa faixa de terreno que estes entendem pertencer-lhes).
São estas, pois, as três questões (fundamentos da apelação) que importa abordar na subsequente exposição.
2.1.1. Começando pela contiguidade predial [ponto (a) enunciado no item anterior, correspondente à conclusão 1ª da apelação], enquanto elemento condicionante do direito de demarcação[10], constata esta Relação que a ausência de uma referência explícita (nominal) na petição inicial à natureza contigua dos dois prédios se mostrou ultrapassada por uma linha argumentativa, presente em diversos trechos do mesmo articulado, contendo implícita a asserção dessa contiguidade. Com efeito, tenha-se presente a afirmação de terem os prédios formado anteriormente uma unidade territorial continua, completada pela subsequente afirmação, nuclear ao thema decidendum, de constituir a parte rústica desse prédio comum pretérito a envolvente do prédio dos RR. – diz-se na petição: “[t]udo na envolvente, parte rústica do prédio comum, é prédio dos AA.” (artigo 18º do articulado inicial a fls. 4) e acrescenta-se, estar o prédio dos RR. “encaixado” no dos AA. (artigo 30º do mesmo articulado a fls. 6).
Serve isto para sublinhar a existência de uma afirmação implícita (feita pelos AA.) da contiguidade dos prédios a demarcar, acrescentando-se que isto mesmo, aliás, não deixou de ser intuído pelos RR., ora Apelantes, ao estruturarem a sua defesa em função da existência de um espaço contíguo entre os dois prédios, carente de demarcação em termos distintos dos propugnados pelos AA.. Vale aqui, enquanto argumento de identidade de razão, o paralelismo que a situação apresenta com a prevista no artigo 193º, nº 3 do CPC, no qual se não atende a uma invocação de falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, quando seja patente que o réu “interpretou convenientemente a petição inicial”.
Esta Relação não tem qualquer dúvida quanto ao carácter contíguo dos dois prédios, percebe-o, além do mais, do teor da prova pericial e da inspecção realizada pelo Tribunal a quo e constata, enfim, que essa questão da contiguidade foi suscitada pela primeira vez no processo perante este Tribunal de recurso, configurando-se como “questão nova”, que sempre estaria subtraída ao conhecimento (legítimo) desta instância[11].
2.1.2. Assente isto – rectius, pressuposta a (evidente) contiguidade dos prédios –, cumpre-nos apreciar o segundo fundamento do recurso [ponto (b) enunciado no item 2.1.], respeitando à aplicação concreta dos critérios de decisão sequencialmente indicados no artigo 1354º do CC.
Em termos gerais, é possível caracterizar numa acção de demarcação (mesmo numa acção de demarcação revestindo, como sucede com esta, a forma comum) aquilo que referiremos como correspondendo a “dois momentos” de concretização. Um primeiro, cujos elementos de referência estruturam a causa de pedir, corresponde aos factos necessários à individualização da situação jurídica alegada pelo autor e configura-se por referência ao facto complexo (que corresponde à causa de pedir) da existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são incertas ou duvidosas[12]. O “segundo momento” da acção de demarcação, pressupondo a caracterização nos termos referidos da causa de pedir, estrutura-se já no plano da efectivação da delimitação dos prédios e opera em torno da aplicação dos critérios de demarcação indicados nos três números do artigo 1354º do CC, sendo a actuação destes critérios, como veremos adiante, sequencial e sempre decorrente da insuficiência do critério de demarcação anteriormente aplicado.
Prende-se esta particularidade – os tais “dois momentos” da acção de demarcação – com a génese histórica da adjectivação do direito de demarcação, no âmbito geral das acções divisórias do Direito Romano, as chamadas iudicia divisoria. Incluíam estas, além das formas destinadas à divisão de coisa comum (actio communi dividundo e, no caso da comunhão hereditária, a actio familiae herciscundae), a denominada actio finium regundorum, cujas características eram as seguintes: Tributário desta tradição romana, o Direito português começou por prever uma “acção de demarcação”, destinada à aposição de marcas nas estremas dos prédios, e a actio finium regundorum, propriamente dita, visando a determinação das estremas dos prédios quando fossem duvidosos os seus limites exactos. O Código Civil de 1966 “[…] conservou apenas [a actio finium regundorum] com o nome de demarcação [, pelo que,] só havendo dúvidas se procede à demarcação, como se deduz do artigo 1356º”[14], valendo, então, sucessivamente aplicadas, as regras do artigo 1354º do CC.
Estão em causa nos referidos “dois momentos” da acção de demarcação regras probatórias específicas, correspondendo estas a “regras de decisão”[15] diferentes, consoante esteja em causa o primeiro ou o segundo desses “momentos”.
Com efeito, no “primeiro momento”, tratando-se da caracterização da causa de pedir da acção de demarcação, vale, à partida, em matéria de ónus da prova, o artigo 342º, nº 1 do CC, com a consequente necessidade de o autor provar os factos constitutivos do direito que alega (o seu direito de demarcação), ou seja, retomando a caracterização da causa de pedir antes feita (v. o texto correspondente à nota 13, supra): a) que os prédios a demarcar são confinantes e pertencem a distintos titulares; b) que as estremas desses prédios são incertas ou duvidosas.
Subsequentemente, no “segundo momento”, correspondente já à concretização da demarcação através dos critérios de decisão plasmados no artigo 1354º do CC, deixa de valer (enquanto critério de decisão) o sucesso ou insucesso da actividade probatória da parte que, propondo a acção, forneça ao tribunal uma determinada forma (ou local) de fixação das estremas dos prédios. Importa ter presente que a aplicação genérica à acção de demarcação, no que identificámos constituir o seu “segundo momento” concretizador, dos artigos 342º do CC e 516º do CPC, obrigaria o autor a alegar e a demonstrar uma concreta forma de demarcação dos dois prédios e, face ao fracasso (do autor) em provar essa concreta forma ou local de separação, a suportar, mesmo que por ficção, uma decisão – rectius, uma demarcação – de sentido contrário à por ele propugnada[16] ou uma “não decisão” traduzida no perpetuar da incerteza quanto aos limites dos dois prédios.
Este seria, com efeito, o resultado da actuação dos mencionados artigos 342º e 516º. Porém, uma decisão deste tipo, ancorada no funcionamento puro da “teoria das normas”, traduziria, como justamente sublinha Pedro Ferreira Múrias, um resultado “claramente inadequado”, neste caso evitado pela “feliz solução salomónica”, decorrente do artigo 1354º, nº 2 do CC[17]. Esta inadequação de uma solução assente no regime do ónus da prova, em sede de demarcação, é demonstrada pelo mesmo Autor nos seguintes termos: 2.2. Revertendo ao caso concreto, aplicando-lhe estas considerações, temos, começando pelo chamado “primeiro momento” da adjectivação do direito de demarcação, que os AA. caracterizaram os elementos respeitantes à causa de pedir da acção, demonstrando a confinância (v. item 2.1.1., supra) e a incerteza quanto às estremas dos dois prédios.
Detalhando este último aspecto, o que se refere à situação de incerteza quanto à delimitação, importa ter presente que o teor do ponto 21 dos factos, referido a um acordo quanto à concreta linha divisória entre os dois prédios, não afasta a situação de dúvida quanto às estremas. Sendo evidente, neste caso, que a contraposição de argumentos entre os AA. e os RR. não deixa de expressar essa mesma situação de incerteza e, no sentido que aqui interessa, integrar a causa de pedir da acção de demarcação[19].
2.2.1. Assente isto – maxime, caracterizada a causa de pedir –, interessa-nos o chamado “segundo momento” da demarcação, respeitando este, no que interessa ao presente recurso, ao funcionamento concreto, no quadro do processo decisório seguido pela primeira instância, dos critérios do artigo 1354º do CC.
Diz-nos o nº 1 deste preceito que a demarcação se processa de acordo com os títulos de cada um dos interessados e, na falta de títulos suficientes, de acordo com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova. A inconcludência destes critérios conduz-nos, como já vimos, à chamada “solução salomónica” do nº 2, operando-se uma distribuição em partes iguais pelos dois interessados do terreno em litígio[20].
Tenha-se presente o processo decisório adoptado a este respeito pela Sentença apelada. Começou esta, com efeito, por afastar a relevância, no quadro da fixação da linha divisória dos prédios, do “acordo de demarcação” em causa nos itens 21 a 23 dos factos, acordo aceite pelos RR. e pelos AA.[21], e realizado aquando da divisão do prédio matriz nos dois prédios aqui em causa. Vale a pena reproduzir os argumentos em que assentou o afastamento da relevância desse acordo: Esta incerteza quanto ao posicionamento no tempo do acordo (antes ou depois da escritura de partilha), afigura-se-nos, todavia, no quadro de actuação dos critérios do artigo 1354º do CC, bem menos significativa que aquilo que se indica na decisão apelada. É que, anterior ou posterior à escritura, e sem esquecer – e neste aspecto é certo o que se diz na Sentença – que ele não pôs fim à situação de incerteza quanto às estremas, não deixou esse acordo de ser alcançado (é o que se diz na fundamentação da matéria de facto) num quadro que não deixou de ser o da concretização, por antecipação ou a posteriori, dessa mesma escritura, concretamente daquilo que esta pretendeu significar quanto aos limites de cada um dos prédios gerados pela divisão aí empreendida, valendo isso como um significativo elemento interpretativo da expressão contida no título representado por essa escritura.
Tanto assim foi, que se gerou, em função desse acordo – e continuamos no domínio dos factos provados –, uma legítima situação possessória contemporânea e posterior à escritura, aparentemente aceite pelos próprios AA (vejam-se as respostas aos quesitos 12º, 13º e 14º da base, correspondentes aos itens 18 a 20 dos factos). Daí que o “recuo” à literalidade formal do título, empreendido pela decisão apelada e que todos percebemos (a própria Sentença o diz) não ter correspondido exactamente ao espírito desse título, se nos afigure uma solução inadequada, por não captar devidamente o sentido do estabelecimento sequencial de critérios de demarcação no artigo 1354º do CC. É que, considerando a Sentença desmentido pelos factos esse sentido literal do título, acaba ela por se manter nele (no título) – rectius, por decidir em função dele –, não avançando para os outros critérios de demarcação, estabelecidos para as situações de insuficiência do título. Isto, quando os factos (v. os respectivos itens 18 a 20) o que traduzem é uma situação insuficiência do título.
Bem mais significativo nos parece, enquanto critério de decisão, o elemento possessório gerado pelo acordo[22], sendo irrelevante dizer (como o diz a Sentença na fundamentação e não nos factos) que esse elemento só terá perdurado por oito anos (v. fls. 195/196[23]). É que o que aqui nos interessa não é a usucapião, que tornaria inadequado o recurso à acção de demarcação[24], mas a valoração da situação possessória gerada em função do acordo quanto às estremas dos dois prédios.
Ora, tendo presente a natureza da posse gerada nos Apelantes pelo acordo, relativamente à faixa de terreno situada a Norte/Poente da casa de habitação (v. item 22 dos factos), posse que indubitavelmente deve ser qualificada como exercida de boa fé (v. artigo 1260º, nº 1 do CC), não vê esta Relação qualquer fundamento para que essa mesma posse não seja considerada como elemento fulcral – concretamente face à apontada inexpressividade do título consubstanciado na escritura de partilhas –, no quadro da aplicação dos critérios subjacentes ao artigo 1354º do CC. Vale aqui a consideração, presente na caracterização feita pela Doutrina alemã, num quadro legal paralelo do nosso artigo 1354º (v. nota 21, supra), de que uma posse pacífica, não violenta (artigo 1251º do CC)[25], constitui “o dado determinante” na demarcação operada por via judicial[26]. É que, traduzindo a posse uma actuação correspondente ao direito de propriedade (artigo 1251º do CC) e assentando ela, neste caso (no momento da aquisição), no desconhecimento de uma possível lesão de um direito alheio, gerou tal posse um elemento fortemente sugestivo, que ilustra – é o que aqui sucede – uma convicção profunda de ser esse (o direito de propriedade) o direito efectivamente exercido dentro daqueles concretos limites do prédio.
Assim, vendo esta Relação com enormes reservas, em função da globalidade dos factos provados, a interpretação do sentido do título expressa na decisão apelada, parece-lhe mais adequado (em qualquer caso, mais seguro e mais próximo da realidade) valorar a expressividade do elemento “posse”, não esquecendo – porque isso traduz a essência da demarcação obtida por referência aos critérios plasmados no artigo 1354º do CC –, como sublinha José de Oliveira Ascensão a propósito da prova numa acção de demarcação, “[…] que nenhum dos confinantes pode exigir a prova exaustiva da titularidade do outro”[27].
2.2.3. A Aplicação aqui feita do critério da posse, no quadro dos critérios elencados no artigo 1354º, nº 1 do CC, conduz a uma demarcação das estremas dos dois prédios distinta da da primeira instância. Fixa-se aqui, com efeito, como linha divisória, a que resultar da aplicação dos elementos de referência no terreno, constantes da resposta ao quesito 15º da base instrutória, no despacho de fls. 193 (que corresponde ao item 21 do elenco fáctico constante da Sentença impugnada e deste Acórdão), sendo eles os seguintes: tendo como referência a casa de habitação, a (linha divisória) que incluir no prédio dos Apelantes o terreno situado até uma linha que, partindo da ombreira Nordeste da porta que dava acesso à parte do terreno cultivado (a Norte/Nascente) se dirige para Sudoeste, para um peirão ou pilar de pedra situado, mais ou menos a meio do quinteiro (em frente à porta da adega da casa); deste peirão ou pilar (em plano superior) a estrema (a linha) continua para Sudoeste, até encontrar a face externa da parede que suporta a eira e que se situa entre essa parede e a casa; no fim das escadas (assinaladas na planta de fls. 146, ao nível da eira) a linha segue até encontrar o muro que separa a eira da parcela de terreno de acesso ao público a Sul/Nascente.
2.2.4. Delimitados os prédios por esta forma, perde sentido – e, assim, apreciamos o terceiro fundamento do recurso indicado no item 2.1. deste Acórdão [ponto (c) desse item] –, por evidente prejudicialidade com esta demarcação, o trecho correspondente à alínea b) da condenação de fls. 213[28].
2.3. Procede, assim, e este constitui o ponto de chegada e a conclusão desta indagação recursória, em função de uma demarcação distinta da efectuada pelo Tribunal a quo, a apelação, importando formular esse entendimento decisório, depois de se sumariarem os argumentos acima expendidos, na parte directamente respeitante à ratio decidendi do recurso:
III – Decisão
3. Assim, na procedência da apelação, revogando-se a decisão recorrida (a parte desta que se expressa nas alíneas a) e b) do pronunciamento decisório constante de fls. 213), fixa-se a demarcação entre os prédios dos Apelantes e dos Apelados (prédios identificados, respectivamente, nas alíneas a) e b) do item 2 dos factos) nos termos indicados no trecho a sublinhado do ponto 2.2.3. deste Acórdão.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos aqui Apelados.
24º Fizeram [os RR.] uma delimitação com peirões (esteios de pedra) ligados por arame, seccionando o prédio dos AA..25º E lavraram mesmo a parte sul deste («Chão da Baça» dos AA.).[…]” [transcrição de fls. 5] [2] Desta feita, remetem os AA. para os seguintes trechos do articulado inicial: “[…] 4º Os dois prédios constituíram, em tempos, desde há mais de 50 anos, uma unidade predial e o caminho de acesso, então, processava-se pelo caminho público que, a nascente/sul, vinha dar à eira, situada no plano superior do prédio,[…] 19º Prédio este [o dos AA.] que deve ao prédio dos RR. uma servidão de passagem, de pé ou carro agrícola, a nascente e no sentido E/W, numa extensão de cerca de 20 metros.20º A partir do caminho público que entronca na estrema junto do prédio da I... e de uma sobrinha dos RR., M..., como se aludiu supra (artigo 4º desta).[…]” [transcrição de fls. 2 e 4/5] [3] A formação dos dois prédios é assim descrita no articulado inicial: “[…] 1º Por escritura de habilitação e partilha, lavrada no Cartório Notarial de Vouzela em 24/10/1990, do património imóvel do dissolvido casal dos pais da A. e da R.,2º Aos AA. coube o prédio «Chão da Baca», rústico, com a área de 290 m2, nos limites de Sacorelhe, a confrontar de nascente com J..., poente com H... Fundo d’ Aldeia, norte com o caminho e sul com L...; descrito no registo predial e inscrito na matriz sob o artigo 6338.3º E aos RR., o prédio urbano formado de «Casa de Habitação», com quintal, com a área coberta de 70 m2 e descoberta de 20 m2, nos mesmos limites, a confinar de nascente e norte com viso, poente com H... e sul com I...; na matriz artigo 1035 urbano.[…]” [transcrição de fls. 2] [4] Caracterizam os RR., na contestação, essa outra divisão nos seguintes termos: “[…] 5º Essa divisão foi feita, no terreno, por acordo entre todos os seus herdeiros, ficando, a parte urbana, constituída pela casa propriamente dita, pelo quinteiro situado a nascente, até uma linha que, partindo da ombreira nascente da porta que dava acesso à parte rústica (a norte/nascente) se dirige para sul, para um peirão ou pilar de pedra situado, mais ou menos, a meio do dito quinteiro (em frente à porta da adega da casa); deste peirão ou pilar, a estrema continuava para sul, até encontrar a face externa da parede que suporta a eira (em plano superior), no local onde esta parede faceia com as escadas de acesso à dita eira e que se situam entre essa parede e a dita casa; no fim destas escadas (ao nível da eira), a estrema continuava em frente, no seguimento da parede, até encontrar o muro que separa a eira do caminho público a sul/nascente […].[…] 7º Esta parte rústica que ficou a integrar o prédio urbano era constituída por dois «bocados» cultos, um com a área de cerca de 30 m2 e outro com a área de cerca de 180 m2, tudo conforme consta do levantamento topográfico [referem-se os RR. ao documento de fls. 44 por eles junto]. […][…]” [transcrição de fls. 38] [5] Embora pugnem, a culminar a contestação, pela improcedência da acção, intui-se da lógica argumentativa que subjaz a tal articulado, pretenderem os RR. a fixação como estremas do seu prédio dos limites por eles indicados. [6] Isto em resultado do despacho de fls. 65/69 que deferiu, parcialmente, uma reclamação dos RR.. [7] Este último, por estar em causa processo iniciado antes de 1 de Janeiro de 2008, na redacção que apresentava anteriormente ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1 do mencionado diploma). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do CPC citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL 303/2007, o é na versão anterior a tal Diploma. [8] A abolição da acção de demarcação como processo especial, decorrente da revogação pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro do artigo 1058º do CPC, remeteu a adjectivação do direito de demarcação para o domínio declarativo comum (v. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., 3ª reimpressão, Lisboa, 2006, p. 220), colocando-se a questão da cumulação de pedidos nos termos da regra geral decorrente da compaginação entre os artigos 31º e 470º, nº 1 do CPC. [9] O mesmo não aconteceu com o terceiro pedido (transcrito no item 1. supra; alínea c) de fls. 7), que não foi atendido na Sentença e que aqui não está em causa. [10] Presente, desde logo, na formulação do artigo 1353º do CC (“[o] proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes […]”). Refere a este respeito, António Carvalho Martins, que “[a] demarcação tem […] como factor essencial a contiguidade dos prédios “, acrescentando que “[n]ão há necessidade alguma de fazer demarcação entre prédios já separados por uma via pública, um rio ou terreno baldio” (Demarcação, 2ª ed., Coimbra, 1999, p. 31). [11] A vinculação temática às conclusões do recorrente pressupõe que estas se refiram a questões suscitadas perante a instância recorrida e das quais esta devesse ter tomado conhecimento, pois, “[…] os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento [,…] significa[ndo isto] que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997). [12] Utilizámos aqui, por corresponder a um entendimento jurisprudencial muito comum quanto à causa de pedir numa acção de demarcação, a formulação constante do Acórdão desta Relação de 11/12/2007 (Hélder Roque), proferido no processo nº 1832/05.9TBCVL.C1, disponível em www.dgsi.pt/jrtc.nsf [no mesmo sentido e no mesmo sítio, v. o Acórdão de 14/02/2006 (Ferreira de Barros), proferido no processo nº 4315/05]. [13] Paul Jörs, Wolfgang Kunkel, Derecho Privado Romano, tradução da 2ª ed. alemã, por Luís Prieto Castro, Barcelona, 1937, pp. 358/359. [14] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, I vol., Lisboa, 1979, pp. 601/602. E, acrescenta este Autor: “[n]ão havendo dúvidas, qualquer titular pode colocar marcos no seu extremo ao abrigo do seu direito de tapagem, como resulta do artigo 1356º [do CC]” (p. 602). [15] A referência a “regras de decisão” assenta, em grande medida, num entendimento tributário da chamada “teoria das normas”. Esta traduz a construção teórica que subjaz aos artigos 342º do CC e 516º do CPC. Tal teorização, cuja origem remonta aos trabalhos do processualista alemão Leo Rosenberg (1879-1963), no início do Século XX, e já foi qualificada como “direito consuetudinário mundial”, assenta na consideração “[…] de que nenhuma norma pode ser aplicada sem que o juiz se convença da verificação de todos os seus pressupostos [, extraindo-se] daí que a recusa de aplicação sucederá tanto quando o juiz se convença da não verificação de um ou mais dos elementos da facti species (Tatbestand) da norma a aplicar, quanto quando o juiz não se convença quanto à sua não verificação. Quer isso dizer, então, que «a parte cuja pretensão processual não pode ter sucesso sem a aplicação de determinada norma jurídica suporta o ónus da alegação e da prova de que os elementos da facti species dessa norma se verificaram de facto na situação» […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 18 e 43/44; importa sublinhar que este Autor expõe a chamada “teoria das normas” numa perspectiva crítica, entendendo ser esta inadequada, como adiante veremos, a uma série de situações, expressando, aliás, a acção de demarcação um modelo paradigmático dessa inadequação). Ora, as chamadas “regras de decisão” ou “normas de decisão” – e continuamos a seguir aqui a exposição de Pedro Ferreira Múrias – podem ser caracterizadas nos seguintes termos: “[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […, são] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i. e., através da ficção […]” ( Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 62/63). [16] Os Apelantes, argumentando erradamente, como de seguida demonstraremos, propugnam este critério de decisão no seu argumentário recursório, ao pretenderem que se decida (v. a conclusão 3ª do recurso) com base numa suposta indemonstração de que os limites dos prédios sejam os indicados pelos AA.. [17] Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., p. 99 e nota 267. Recorda-se aqui o texto do nº 2 do artigo 1354º: “[s]e os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais”. [18] Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 99/100. [19] A questão das dúvidas coloca-se nos termos indicados por António Carvalho Martins: “[n]ão havendo quaisquer dúvidas acerca dos limites dos prédios, assim como o proprietário de qualquer deles o pode murar, valar, rodear de sebes ou tapá-lo, também pode limitar-se, na esfera do seu direito de propriedade, a colocar marcos divisórios. Se o proprietário vizinho se conforma com eles, não há problemas a resolver; se não se conforma, é porque há dúvidas quanto aos limites, e são então aplicáveis as disposições dos artigos 1353º e seguintes […]” (Demarcação, cit., p. 35). [20] Este critério de solução residual é comum a muitos ordenamentos. Por exemplo, o § 920º/1 do Código Civil alemão determina, a respeito da confusão de limites (grenzverwirrung) que se não se puder determinar o limite exacto de um prédio, “a posse real determina a demarcação” e, se esta não puder ser determinada, “uma parte igual da área em disputa será outorgada a cada prédio” (v. Harry Westermann, Harm Peter Westermann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, Derechos Reales, tradução da 7ª ed. alemã, Heidelberg, 1998, Madrid, 2007, vol. II, p. 883. [21] O item 23 fala em o acordo ter sido aceite pelos RR e pelos demais herdeiros, importando sublinhar que os AA. integram os “demais herdeiros” de E... e de G.... [22] Tenha-se presente que tal acordo, fixando os limites e não o conteúdo do direito de propriedade não careceria de forma especial, não sendo incompatível com um acordo verbal (António Carvalho Martins, Demarcação, cit., p. 33), sendo, nesse sentido, apto a gerar, como aparentemente gerou, uma posse de boa fé. [23] O que, aliás, até se nos afigura contraditório com a posição dos AA. ao proporem, em Maio de 2005, a presente acção, indicando no articulado inicial (e situando-o, numa espécie de “confissão”, contemporaneamente à propositura da acção) que os RR. continuariam a praticar actos possessórios relativamente à faixa de terreno que (eles AA.) entendiam não lhes pertencer (a eles RR.). E esses actos possessórios seriam tão significativos, na expressão dos AA. no articulado inicial, que até incluiriam a colocação de marcos e a tapagem, sob a forma de peirões ligados por arame (v. artigo 24 da petição inicial a fls. 5). [24] V. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/01/2008 (Henrique Araújo), proferido no processo nº 0722611, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf. [25] A posse obtida pela força própria proibida é considerada viciada no § 858º do Código Civil alemão. [26] Harry Westermann, Harm Peter Westermann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, Derechos Reales, cit., p 883. [27] Direito Civil Reais, 5ª ed. (reimpressão), Coimbra, 2000, p. 436. [28] Já que o local em causa nessa condenação integra, em função da presente decisão, o prédio dos Apelantes. |