Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2786/10.5TBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DESPACHO LIMINAR
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.237, 238 CIRE
Sumário: 1. São de verificação cumulativa os requisitos do indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante previstos na alínea d) do nº1 do artigo 238º do CIRE;

2. Não integra o conceito normativo de “prejuízo” aí contido o simples aumento da situação passiva do devedor pelo avolumar de juros vencidos, ainda que este não se haja apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


*

I.RELATÓRIO

1. No âmbito de processo de insolvência requerido pela devedora A (…), cujo requerimento inicial deu entrada em 01.10.2010, veio esta, além do pedido da sua declaração de insolvência, requerer que lhe seja concedida exoneração do passivo restante.

Realizada a Assembleia de Credores, foi facultada a possibilidade à Administradora da Insolvência e aos credores presentes de se pronunciarem acerca da requerida exoneração do passivo.

A Administradora da Insolvência manifestou a sua não oposição ao pedido de exoneração do passivo restante.

O Ministério Público absteve-se de tomar posição, nos termos e pelos fundamentos constantes de fls. 128.

A Credora C (…)s opôs-se ao pedido de exoneração do passivo restante, alegando as seguintes razões:

- A insolvente deixou de pagar o crédito vencido a partir de 01/05/2009 (contrato designado "VALOR TOP" - cfr. artº 7º da reclamação de créditos), conforme comprovam também os extractos da conta anexos à reclamação de créditos e que se encontram na posse da Srª Administradora.

- Tal implica que o pedido de exoneração deva ser liminarmente indeferido, visto que a insolvente, tendo consciência, há muito tempo da sua situação de impossibilidade de pagamentos - cfr. ela própria diz nos artºs 12º a 17º da P.I., - apenas se apresentou à insolvência em 01/10/2010, isto é, muito para além do prazo de 6 meses que é referido na alínea d) do nº1 do artº 238º do CIRE;

- Com tal omissão (não apresentação no prazo de 6 meses, como impõe o referido art. 238º.º, nº 1, alínea d) do CIRE) causou prejuízos à Cofidis, visto que não possibilitou oportunamente a resolução do contrato de crédito e causou a perda de juros correspondentes ao período em falta;

- A insolvente, segundo a declaração do IRS que apresentou, auferiu no ano transacto o rendimento total é 54.885,64€ que correspondem a 4.573,75€ /mês, quando dividido por doze, ou 3920,36€ quando dividido por catorze, rendimentos que são de tal ordem que permitiriam liquidação das dívidas;

- Em todo o caso e na hipótese de o tribunal assim não entender e venha a ser concedida a exoneração do passivo restante deve ser fixado que quaisquer rendimentos que a Insolvente aufira ou venha a auferir e que exceda 2,5SMN, devem ser cedidos à massa insolvente, para posterior rateio pelos credores.

O Banco (…) também manifestou a sua oposição ao pedido de exoneração do passivo restante, referindo que a situação da insolvente se iniciou durante o ano de 2008 e a mesma só se apresentou à insolvência em Outubro de 2010, sendo certo, que não se logrou provar nos autos que não ignorava existir qualquer perspectiva séria da sua melhor situação económica.

Foi ordenado que se solicitasse o certificado do registo criminal da devedora, bem como a notificação da Administradora de Insolvência para vir indicar as datas dos vencimentos dos créditos reclamados e por si reconhecidos, o que foi efectuado.

Após tais diligências, foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo, nos termos do artigo 238º, nº1, d) do CIRE, com fundamento no facto de a requerente, “tendo há muito consciência da sua situação de impossibilidade de pagamentos - conforme resulta dos artºs 12º a 17º da P.I.” - apenas se ter apresentado à insolvência em 01.10.2010, “muito para além do prazo de 6 meses acima aludido, sendo certo que se verifica ainda um prejuízo para os credores com o avolumar das dívidas da insolvente e o protelamento do pagamento dos seus créditos”.

2. Por não se conformar com tal decisão, dela interpôs a insolvente recurso de apelação para esta Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

“A. A Requerente veio no seu requerimento inicial pedir, para além da declaração da sua insolvência, que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, nos termos e para os efeitos do artigo 236.º do CIRE.

B. Sucede que, o referido pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente indeferido, por não se encontrarem verificadas as circunstâncias aludidas na

alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, baseando-se na constatação de que a apresentação à insolvência foi tardia.

C. Ora, da análise do artigo 238.º n.º 1, d) do CIRE, verifica-se que, para além do incumprimento de apresentação à insolvência no prazo de seis meses seguintes à verificação da respectiva situação, torna-se necessário, como requisitos cumulativos, que disso advenha prejuízo para os credores e, ainda, que o devedor saiba, ou não possa ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

D. Afigura-se que no presente caso não foi dado como provado qualquer prejuízo para os credores da Insolvente, uma vez que nada se diz ou concretiza quanto a prejuízos concretos sofridos pelos mesmos.

E. Conforme resulta da letra da lei e conforme tem sido entendido uniformemente pela nossa jurisprudência, os requisitos enunciados na citada norma são cumulativos.

F. Sucede que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo partiu do pressuposto de que a mera omissão do dever de apresentação atempada à insolvência pressupõe o prejuízo para os credores pelo acumular de juros e pelo aumento do passivo da insolvente.

G. Ora, se assim fosse, o prejuízo decorreria sempre do simples facto de o devedor não se ter apresentado atempadamente à insolvência.

H. Então, se fosse essa a intenção do legislador, revelava-se suficiente a exigência desse primeiro requisito, ou seja, o atraso na apresentação à insolvência.

I. No entanto, o prejuízo dos credores deve decorrer do aumento do passivo, no caso do devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da situação de insolvência, ou da diminuição do activo, na sequência da prática de actos de delapidação do património por parte do devedor entre a verificação da situação de insolvência e o momento tardio em que ela se vem apresentar.

J. Apenas nesses casos, a apresentação tardia à insolvência resultará num real prejuízo para os credores, o que não sucede no caso da Recorrente.

K. Revelando-se o simples acumular de juros insuficiente para ditar o concreto prejuízo dos credores.

L. Acresce que, o comportamento da aqui Recorrente também não se vê reflectido no segundo requisito estabelecido pela d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, uma vez que não se pode imputar àquela culpa grave pelo facto de ter perspectivado a melhoria da sua situação económica.

M. Pelo que, a aqui Recorrente reúne assim todas as condições para poder beneficiar do regime da exoneração do passivo restante, para que não fique inibida de começar de novo.

N. Assim sendo, deve ser concedida à aqui Recorrente uma “segunda oportunidade”, como forma de se reabilitar, libertando-se de algumas das suas dívidas, com vista a alcançar o verdadeiro objectivo decorrente deste Instituto – o “fresh start”.

O. Ora, o facto de a Insolvente ter revelado um comportamento recto e honesto no âmbito da sua situação económica e do seu processo de insolvência, faz dela claramente merecedora do benefício resultante da concessão da exoneração do passivo restante, conforme se espera e requer.

Termos em que procedendo o presente recurso, e revogando-se a decisão recorrida, deverá

a) Ser concedida a Exoneração do Passivo Restante à Insolvente A(...)”.

Não foram apresentadas contra – alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

 Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente a questão do deferimento ou indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante por ela formulado.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

São os seguintes, para além dos descritos no relatório supra, os factos relevantes para a apreciação do objecto do presente recurso:

1.A recorrente requereu que fosse declarada insolvente através de processo de insolvência que deu entrada em juízo em 1 de Outubro de 2010.

-2. Na respectiva petição inicial alega a impossibilidade de “cumprir pontualmente as obrigações que tinha assumido perante diversas entidades, através das quais contraiu créditos”.

3. Alega ainda na mesma peça processual que:

- Celebrou com o B(...), S.A. três contratos de crédito ao consumo, tendo deixado de cumprir as obrigações decorrentes desses contratos, devendo aproximadamente a quantia global de € 1.063,00;

- Celebrou um contrato de Leasing Mobiliário, para aquisição de veículo automóvel com o Banco (…), S.A., encontrando-se em dívida aproximadamente o montante de € 3.132,00;

- Não conseguiu cumprir as obrigações decorrentes de um outro crédito concedido pelo Banco (…), S.A., encontrando-se em dívida cerca de € 19.488,00;

- Incumpriu o pagamento respeitante aos cartões de crédito concedidos pelo B (…), PLC, sendo devedora do montante de cerca de € 11.298,00;

- Incumpriu o pagamento das dívidas decorrentes de créditos ao consumo concedidos por (…), encontrando-se em dívida, aproximadamente, as quantias de € 9.082,00 e € 2.857,00, respectivamente;

- Deixou de cumprir as obrigações que assumiu perante a C(...), devendo a quantia aproximada de € 24.883,00;

- Deve, a título de IRS, às Finanças a quantia de € 2.963,09, que não conseguiu liquidar.

4. A recorrente trabalha no Hospital de S. Teotónio, S.A., em Viseu, com a categoria de enfermeira graduada, tendo auferido as quantias líquidas de € 1.388,21, € 1.357,97, € 1.388,70, € 2.214,35, € 2.324,72, € 1.797,46, € 3.148,81, € 2.172,12, respectivamente, nos meses de Dezembro de 2009, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho de 2010.

5. A mesma não é titular de nenhum estabelecimento comercial.

6. Por sentença de 20.10.2010, foi declarada insolvente.

7. São os seguintes os créditos reclamados e reconhecidos pela Administradora da Insolvência:

- Pelo Banco (…), S.A., no valor de € 9.293,60, que se encontra em cumprimento;

- Pelo Banco (…) S.A., no valor global de € 23.208,61, resultante de contrato de empréstimo, no valor de € 19.933,18, em incumprimento desde 26.10.2010, e conta de depósitos à ordem a descoberto, em incumprimento desde 09.11.2010;

- Pelo B (…) PLC, resultante de contrato de crédito ao consumo, contrato de adesão a cartão de crédito com um plafond de € 6.000,00, declarado antecipadamente vencido em 19.11.2010, de contrato de crédito ao consumo, contrato de adesão a cartão de crédito com um plafond de € 5.000,00, declarado antecipadamente vencido em 19.11.2010;

- Pela C (…)s, resultante de contrato de crédito “Valor Top”, através do qual foi concedido à recorrente empréstimo no montante de € 20.000,00, em incumprimento total desde 01.05.2009;

- Pela Fazenda Nacional, a título de IRS, com vencimento em 30.09.2010;

- Pela G (…), Instituição Financeira de Crédito, S.A., em resultado de contrato de crédito, mediante o qual foram emprestadas à recorrente quantias que perfazem o valor de € 9.751,00, resolvido por incumprimento contratual, em 08.02.2010.

8. A recorrente vive em casa arrendada, com o pai, pagando uma renda mensal de € 350,00.

9. Por decisão de 8 de Fevereiro de 2008, da Conservatória do Registo Civil de Viseu foi decretado o divórcio da requerente e do seu marido, C (…), tendo no acordo relativo ao exercício do poder paternal dos filhos menores do casal, nela homologado, sido determinado que a recorrente, a título de alimentos devidos aos menores, contribuirá com a quantia mensal de € 500,00, anualmente actualizada com uma taxa de 4%, suportando ainda metade das despesas médicas e medicamentosas dos filhos.

10. Foram relacionados no âmbito do processo de insolvência os seguintes bens da recorrente:

- Veículo automóvel, em regime de Aluguer de Veículo Sem Condutor, sendo a mesma locatária e locadora Santander Consumer, que, em caso de antecipação do contrato, fixa o valor de € 8.406,05;

- Recheio da casa de habitação, composto de móveis e electrodomésticos, no valor de € 1.000,00.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            A solução da questão em debate no presente recurso pressupõe a indagação acerca da verificação, em concreto, dos requisitos enunciados na alínea d) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, em que se apoiou a decisão impugnada para indeferir o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolventes, ora apelante.

De acordo com o artigo 1º do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.

Já do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar: “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credor”.

Não obstante o objectivo fundamental do processo de insolvência se traduzir na satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o CIRE, através da exoneração do passivo restante, figura inovadora, que o CPEREF não previa, permite, em certas circunstâncias, que os insolventes, pessoas singulares, se libertem das dívidas que os oneram e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica.

Ou seja: através do recurso à exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente é concedida a faculdade, em casos previamente delimitados e previstos, que, decorridos cinco anos - período durante o qual terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário -, obter a extinção das suas dívidas não satisfeitas ou satisfeitas apenas em parte, através da liquidação da massa insolvente, ou através daquela cessão do rendimentos, desvinculando-se da obrigação de no futuro proceder ao seu pagamento integral.

A exoneração do passivo restante constitui, deste modo, “uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”[3].

Como sustenta Luís Menezes Leitão[4], a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste», visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior”[5].

Assim caracterizada a figura da exoneração do passivo restante, torna-se evidente que a sua concessão não pode ser feita de forma automática, mas antes está dependente e condicionada pela necessidade de preenchimento de determinados requisitos: “a concessão da exoneração do passivo restante tem de ser pedida pelo devedor, mas depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”[6].

Para além disso, pressupõe um processamento próprio, onde se destacam, como principais fases, o pedido de exoneração, o despacho liminar ou despacho inicial e o despacho final.

O artigo 238º do CIRE enumera nas suas diversas alíneas, que não pressupõem, entre si, qualquer preenchimento cumulativo, os diversos casos que haverão de conduzir ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Se é certo que o preceito em causa aponta, elencando-as, as diversas situações de indeferimento liminar da exoneração do passivo, dele se pode também extrair, através da sua análise a contrario, que a ausência dessas situações constituem requisitos de admissibilidade dessa mesma exoneração, que, porém, não se esgota aí, antes apelando também ao preenchimento de outros pressupostos que, nomeadamente, encontram acolhimento nos artigos 237º e 239º do CIRE.

O artigo 238º, nº1 do CIRE contém uma enumeração taxativa das causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo. Para que não ocorra indeferimento liminar, exige-se que nenhuma delas se verifique.

De acordo com a alínea d) do nº1 do mencionado artigo 238º, “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Para fundamentar o indeferimento liminar com base no circunstancialismo descrito na aludida alínea exige-se o preenchimento cumulativo das condições nela consignadas:

a) Que o devedor não se tenha apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;

b) Saber o mesmo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, inexistir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

c) Que dessa situação resulte ou advenha prejuízo para os credores.

A apelante, pessoa singular, não titular de empresa à data da ocorrência da situação de insolvência, não estava obrigada a requerer a declaração de insolvência[7].

Mas, pretendendo, como o manifestou, beneficiar da possibilidade de exoneração do passivo restante, impunha-se que o fizesse nos seis meses seguintes à verificação do estado de insolvência.

Quando a recorrente se apresentou a requerer judicialmente a declaração de insolvência encontrava-se em situação de incumprimento há mais de seis meses relativamente a obrigações que tinha contraído, pelo menos, com dois credores: C (…) (desde 01.05.2009) e GE (…), S.A. (desde 08.02.2010).

Esse atraso na apresentação à insolvência não deve, porém, ser negativamente valorado, em termos de justificar o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, se, simultaneamente, não se configurarem os demais pressupostos exigidos pela mencionada alínea d) do nº1 do artigo 238º do CIRE.

Impõe-se, antes de mais, indagar se desse atraso resultaram prejuízos para os credores.

Não tem sido pacífico na jurisprudência o alcance a conferir ao conceito de prejuízo plasmado no citado normativo.

Assim, para certa corrente jurisprudencial basta a não apresentação atempada do devedor à insolvência, com a decorrência daí resultante do vencimento de juros e avolumar dos créditos, com o consequente aumento do seu passivo, para judicialmente se poder presumir a existência do prejuízo em causa[8].

Outra, pelo contrário, entende que o mero decurso desse prazo não permite presumir a existência de prejuízo para os credores, o qual antes deverá ser objecto de demonstração[9].

Sem embargo da pertinência dos argumentos dos defensores da primeira daquelas posições, não parece que os mesmos espelhem o fim prosseguido pela alínea d) do nº1 do artigo 238º do CIRE, ao exigir a verificação do prejuízo dos credores em decorrência do atraso na apresentação do devedor à insolvência: esse conceito de “prejuízo” não se esgota no aumento do passivo pelo vencimento de juros.

Como salienta o já mencionado Acórdão da Relação do Porto de 19.05.2010, “não pode considerar-se que o conceito normativo de prejuízo previsto na alínea d) do nº 1 do art. 238º do C.I.R.E. inclua no seu âmbito o típico, normal e necessário aumento do passivo em decorrência do vencimento dos juros incidentes sobre o crédito de capital, sob pena de se esvaziar de sentido útil a referência legal a tal requisito (prejuízo dos credores) – tivesse sido esse o sentido e alcance da lei, bastaria estabelecer o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo quando o devedor se abstivesse de se apresentar à insolvência no semestre posterior à verificação da situação de insolvência. Não basta, pois, o simples decurso do tempo (seis meses contados desde a verificação da situação de insolvência) para se poder considerar verificado o requisito em análise (pelo avolumar do passivo face ao vencimento dos juros) – tal representaria valorizar um prejuízo ínsito ao decurso do tempo, comum a todas as situações de insolvência, o que não se afigura compatível com o estabelecimento do prejuízo dos credores enquanto requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente. Enquanto requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente, o prejuízo dos credores acresce aos demais requisitos – é um pressuposto adicional, que aporta exigências distintas das pressupostas pelos demais requisitos, não podendo por isso considerar-se preenchido com circunstâncias que já estão forçosamente contidas num dos outros requisitos. Valoriza-se aqui (…) a conduta do devedor – apurar se o seu comportamento foi pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica, devendo a exoneração ser liminarmente coarctada caso seja de concluir pela negativa. Ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei não visa mais do que os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles comportamentos geradores de novos débitos (a acrescer àqueles que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer). São estes comportamentos desconformes ao proceder, honesto, lícito, transparente e de boa fé cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade (verificados os demais requisitos do preceito) de se libertar de algumas das suas dívidas, e assim, conseguir a sua reabilitação económica. O que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem”[10].

Também o Acórdão do STJ, de 21.10.2010, já mencionado, afastando o entendimento de que do simples atraso do devedor na apresentação à insolvência advêm prejuízos para os credores, refere: “…se se entende que pelo facto de o devedor se atrasar a apresentar-se à insolvência resultavam automaticamente prejuízos para os credores, então não se compreendia por que razão o legislador autonomizou o requisito de prejuízo.
Só se compreende esta autonomização se este prejuízo não resultar automaticamente do atraso, mas sim de factos de onde se possa concluir que o devedor teve uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé e que dessa conduta resultaram prejuízos para os credores. Assim o exige o pressuposto ético que está imanente na medida em causa.

Mas - e esta é a segunda razão – de qualquer forma, o atraso na apresentação à insolvência não pode causar prejuízo aos credores com a invocação de que os juros se avolumam na medida em que continuam a ser contados até àquela apresentação.

Na verdade, o regime estabelecido na primeira parte do nº2 do artigo 151º no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que estabelecia a cessação da contagem dos juros “na data da declaração de falência” deixou de existir com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, passando os juros a ser considerados créditos subordinados, nos termos da alínea b) do nº1 do artigo 48º deste Código – neste sentido, ver Carvalho Fernandes e João Labareda “in” ob. cit., em anotação ao artigo 91º.

Quer dizer, actualmente e em face do regime estabelecido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os créditos continuam a vencer juros após a apresentação à insolvência, pelo que o atraso desta apresentação nunca ocasionaria qualquer prejuízo aos credores.

Dito doutro modo: se no regime anterior, estabelecido no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência se podia pôr a hipótese de quanto mais tarde o devedor se apresentasse à insolvência, mais tarde cessaria a contagem de juros, com o consequente aumento do volume da dívida, no regime actual, que se aplica ao presente processo, tal hipótese não tem cabimento, uma vez que os credores continuam a ter direito ao juros, com a consequente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência para o avolumar da dívida”.

No caso aqui em análise, os credores que se opuseram ao deferimento do pedido de exoneração do passivo formulado pela devedora fundamentaram essa oposição essencialmente na sua apresentação tardia à insolvência.

A credora C(...) argumenta que a não apresentação da devedora à insolvência no aludido prazo de seis meses lhe causou prejuízos, “visto que não possibilitou oportunamente a resolução do contrato de crédito e causou a perda de juros correspondentes ao período em falta”.

Argumentos que não colhem: nada obstava que a referida credora resolvesse o contrato que havia celebrado com a devedora, mesmo antes da sua apresentação à insolvência, face a uma situação de incumprimento que se prolongava há mais de um ano, sendo que o atraso na apresentação à insolvência não afecta o vencimento dos juros.

Por sua vez, o B (…), que também se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante, refere que a situação da insolvente se iniciou durante o ano de 2008 e a recorrente só se apresentou à insolvência em Outubro de 2010, sendo certo, que não se logrou provar nos autos que não ignorava existir qualquer perspectiva séria da sua melhor situação económica.

Para além da apresentação tardia da recorrente à insolvência, não invocam aqueles credores factos, demonstrativos ou sequer indiciários, de prejuízos concretos causados aos credores em resultado dessa situação.

A sentença recorrida, ancorando-se no artigo 238º, nº1, d) do CIRE, indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento no facto de a recorrente ter deixado de pagar o crédito vencido à Cofidis a partir de 01.05.2009, tendo se apresentado à insolvência apenas em 01.10.2010, para, sem qualquer suporte factual, retirar a conclusão de que a mesma tinha há muito consciência da sua situação de impossibilidade de pagamento e que, pelo facto de se apresentar à insolvência decorridos mais de seis meses sobre a data dessa situação, daí resultou “um prejuízo para os credores com o avolumar das dívidas da insolvente e protelamento do pagamento dos seus créditos”.

Ora, apesar de a apelante não se ter apresentado à insolvência nos seis meses subsequentes à verificação da insolvência, nenhum facto se apurou que permita sustentar a conclusão que a mesma, após essa situação, tenha adoptado qualquer comportamento passível de diminuir o seu acervo patrimonial, de o onerar ou de aumentar o passivo.

Por demonstrar ficou, pois, a verificação do prejuízo patrimonial dos credores em consequência da apresentação tardia à insolvência, o que, dada a natureza cumulativa dos requisitos descritos na alínea d) do nº1 do artigo 238º do CIRE, torna dispensável, desde logo, a indagação do terceiro requisito - que a recorrente soubesse, ou não pudesse ignorar sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Não estando demonstrada a verificação de todos os requisitos exigidos pela alínea d) do nº1 do artigo 238º do CIRE, designadamente que o atraso na apresentação à insolvência por parte da devedora, ora apelante, tenham causado prejuízos aos seus credores, não existe fundamento para o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, pelo que, com a procedência do recurso, se impõe a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que admita o incidente, nos termos do artigo 239º do CIRE.

Síntese conclusiva:

- São de verificação cumulativa os requisitos do indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante previstos na alínea d) do nº1 do artigo 238º do CIRE;

- Não integra o conceito normativo de “prejuízo” aí contido o simples aumento da situação passiva do devedor pelo avolumar de juros vencidos, ainda que este não se haja apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação de insolvência.


*

Pelo exposto, julgando procedente a apelação, decide-se revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que seja proferido o despacho inicial a que alude o artigo 239º do CIRE, dando prosseguimento ao incidente de exoneração do passivo restante.

Sem custas.

Coimbra, 6 de Setembro de 2011


Judite Pires ( Relatora )

Carlos Gil

Fonte Ramos



[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma legal.
[3] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, p. 183 e segs.,
[4] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, 4ª ed., págs. 236, 237 e segs.
[5] Cfr. também em idêntico sentido, Catarina Serra, “O novo regime português da insolvência – Uma introdução”, Coimbra, Almedina, 2008 (3ª edição), págs. 102 e 103.
[6] Luís A. Carvalho Fernandes, “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, págs. 276, 277.
[7] Artigo 18º, nº2 do CIRE.
[8] Cf., entre outros, Acórdão desta Relação de 07.09.2010, processo nº 72/10.0TBSEI-D.C1, de 02.11.2010, Processo nº 570/10.5TBMGR-B.C1, Acórdãos da Relação do Porto de 15/07/2009, Processo 6848/08.0TBMTS.P1; da Relação de Lisboa de 02/07/2009, processo nº 4432/08.8TBFUN-E.L1-2 e de 28/01/2010, Processo nº 1013/08.0TJLSB-D.L1-8, de 24.11.2009, Processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1-1, todos em www.dgsi.pt.
[9] Cfr., entre outros, Acórdãos desta Relação, de 23/02/2010, Processo nº 1793/09.5TBFIG-E.C1, subscrito, enquanto adjunta, pela ora relatora; Relação do Porto de 11/01/2010, Processo nº 347/08.8TBVCD-D.P1, e de 19/05/2010, Processo nº 1634/09.3TBGDM-B.P1; da Relação de Lisboa de 14/05/2009. Processo nº 2538/07.0TBBRR.L1-2; do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/10/2010, Processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1, todos em www.dgsi.pt.
[10] Neste mesmo sentido, cf. ainda Acórdãos da mesma Relação, de 21.10.2010, Processo nº 3916/10.2TBMAI-A.P1, e de 11.01.2010, já referido, ambos em www.dgsi.pt.