Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
572/11.4TBCND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA NOVA DE OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARADA NULA
Legislação Nacional: ARTº 3º, Nº 3 DO CPC.
Sumário: I – O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil.

II - Não obstante, importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.

III - O cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes.

IV - A decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.

V - Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.

Decisão Texto Integral: Atenta a simplicidade da questão a decidir, entendo ser de proferir, ao abrigo do disposto no art.º. 705º do Código do Processo Civil, decisão sumária, o que passo a fazer de imediato.

1.Relatório
O Sr. Juiz da 1.ª instância profere decisão que pôs fim à acção, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287.º, al. e) do Código de Processo Civil.
Escreve nessa decisão:
“Compulsados os autos deles há a reter o seguinte:
Introduzida em juízo a presente acção através dela visam substancialmente os Autores seja partilhada quantia monetária de que, alegam, se apoderaram os Réus, sem que a mesma tenha sido levada aos autos de inventário aberto para partilha dos bens deixados por óbito de A… e E…, autos de inventário esse que, sob o n.º …, correram termos pelo 1.º Juízo deste Tribunal.
Visam pois mediante a presente acção sejam os Réus condenados a reconhecerem que a quantia de €11.753,38 euros que referem faz parte da herança aberta por óbito de E…; sejam os Réus condenados a devolver a tal herança aquela quantia a fim de aí ser partilhada segundo as regras da sucessão legítima.
Tudo isto adrede referido deflui da petição inicial.
Antolha-se desde logo, que a questão enunciada cabe na íntegra na previsão normativa ínsita no art. 1395.º do Código de Processo Civil que dispõe: “Quando se reconheça, depois de feita a partilha judicial que houve omissão de alguns bens, proceder-se-á no mesmo processo a partilha adicional, com observância, na parte aplicável, do que se acha disposto nesta secção e nas anteriores.”
Assim, é perfeitamente desnecessário o recurso a esta acção autónoma ponderando que a questão a dirimir o deverá ser nos quadros dos autos de inventário referidos pelos Autores.
Ocorre assim a impossibilidade superveniente da lide a determinar a extinção da instância nos termos do art. 287.º, al. e) do Código de Processo Civil que se determina.
Custas a cargo dos Autores que pela propositura da acção dão causa à apontada impossibilidade”.

Inconformados, os autores interpuseram recurso, formulando as seguintes con­clusões:
...
Não foi apresentada resposta.

2.O Objecto da instância de recurso:

Estando, nos termos do art. 684° e 685.º- A do CPC, o objecto do recurso delimitado pelas alegações dos recorrentes, a questão dos autos é muito singela - saber se ocorreu decisão-surpresa e se existe nos autos fundamento para se extinguir a instância por impossibilidade superveniente da lide.

3. Do Direito
Dizem os apelantes ter sido violado o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil, na dimensão normativa aí estatuída que impede que o tribunal emita pronúncia ou profira decisão nova sem que, previamente, accione o contraditório.
Diz tal norma que, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Este princípio assume-se como corolário ou consequência do princípio do dispositivo, emergente, para além de outras disposições, do nº1 deste preceito, destinando-se a proteger o exercício do direito de ação e de defesa.
Na verdade, “quer o direito de ação, quer de defesa, assentam numa determinada qualificação jurídica dos factos carreados para o processo, que as partes tiveram por pertinente e adequada quando procederam à respetiva articulação. Deste modo qualquer alteração do módulo jurídico perfilhado, designadamente quando assuma um grau particularmente relevante, é suscetível de comprometer a posição das partes…e daí a proibição imposta pelo nº3” - Abílio Neto in Breves Notas ao Código do Processo Civil, Ano 2005, pág.10 -.
Como é sabido, o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, e, na estrita perspetiva das partes, quiçá o mais relevante.
Na verdade, “o processo civil reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars)… - esta estruturação dialéctica ou polémica do processo tira partido do contraste de interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões…para o esclarecimento da verdade” - Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, pág.379 -.
Não obstante importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.
Por outro lado certo é que os advogados que patrocinam as partes devem conhecer o direito, e, consequentemente, uma vez na posse dos factos, devem, de igual modo, prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são susceptíveis.
Verifica-se, assim, que o cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes.
Vale por dizer que os apelantes alegam que o Tribunal se pronunciou sobre uma questão não versada nem pelos autores nem pelos réus, pelo que deveria, prévia a uma decisão, convidar as partes a pronunciarem-se ou a exprimirem a sua posição quanto à questão que tinha intenção de vir a emitir.
Não subsistirão dúvidas de que na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.
Trata-se de emanações dos princípios de cooperação, boa-fé processual e colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal.
O artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil exige do juiz uma diligência aturada de observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, salvo os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade.
O que deve entender-se por manifesta desnecessidade constitui-se como o “busílis” da questão e só a Jurisprudência pode ajudar a desbravar e obtemperar.
Pensamos que a arguição de nulidade de uma decisão pode vingar quando, e se, a solução seguida pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade.
Vale por dizer que as partes terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo.
Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos - novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão - que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova”, oficiosamente assumida pelo tribunal, então as partes terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório.
Nesta situação, poderemos dizer que o tribunal apartou-se do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição supra partes constitucionalmente atribuído ao Julgador.
Nesta conformidade, e de uma razoável interpretação concatenada destes preceitos, importa concluir que a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.
A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as decisões que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas.
O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspetivado como sendo possível.
Ou seja, estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito.
A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 201º, nº 1 do Código do Processo Civil - a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa.
E dada a importância do contraditório é indiscutível que a sua inobservância pelo Tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa.
Porque a omissão da audição das partes - salvo no caso de falta de citação -, não constitui nulidade de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente, a eventual nulidade daí decorrente, deve ser invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo  - artºs 203º nº 1 e 205º nº 1 do citado diploma -, sendo que, porém, estando a mesma coberta por decisão judicial nada obsta a que este Tribunal conheça da referida nulidade quando invocada em sede recurso nas respectivas alegações – neste sentido, entre outros, os  Acórdãos do STJ de 13.01.2005 e do Tribunal da Relação do Porto de 18.06.2007, ambos retirados do site www.dgsi.pt .
O Tribunal da Relação de Évora, em acórdão muito recente - de 25.10.2012 e retirado do site www.dgsi.pt - decidiu que ,”…tendo a sentença recorrida sido proferida em sede despacho saneador sem do facto ter sido dado conhecimento prévio às partes e ao invocar nela fundamento não alegado pelas partes, concluindo por uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, violou o disposto no artº 3º, nº 3 do CPC, constituindo a sentença recorrida uma decisão-surpresa”.
No caso destes autos, poderemos afirmá-lo, as partes ao longo dos seus articulados não afloraram/perspectivaram, sequer, a solução encontrada pelo Sr. Juiz da 1.ª instância para pôr fim ao processado.
Estamos, por isso, perante um caso em que as partes não tiveram a oportunidade de debater esta questão – a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide - perante o Tribunal da 1.ª instância.
Esta decisão não era, nem devia ser previsível para qualquer dos pleiteantes.
A decisão recaiu sobre factos /direito não debatidos pelas partes nos seus articulados.
Esta decisão, além de estar juridicamente errada – a lide torna-se impossível, apenas, quando sobrevêm circunstâncias que, de todo o modo, inviabilizariam o pedido, não em termos de procedência, pois então estar-se-ia no âmbito do mérito mas por razões relacionadas com a não possibilidade adjectiva de lograr o objectivo pretendido com aquela acção, por já ter sido atingido por outro meio ou já não poder sê-lo, que não é manifestamente o caso dos autos -, foi proferida fora do momento processual próprio – o despacho saneador.
Concluímos pois que a decisão em crise, da forma como foi proferida, sem conhecimento prévio das partes, constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório, termos em que em que se revoga a decisão recorrida.
4.Decisão
Pelo exposto, declara -se nula a decisão recorrida e, em consequência, determino que os autos voltem ao Tribunal recorrido para que aí se dê cumprimento ao princípio do contraditório e, após, se determine o prosseguimento dos autos conforme for entendido de direito.
Custas pela parte vencida a final.

José Avelino Gonçalves (Relator)