Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
105/05.1TBTNV-C.
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: ALIMENTOS
MENORES
FUNDO DE GARANTIA
CESSAÇÃO DE PAGAMENTOS
Data do Acordão: 10/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: LEI Nº 75/98 DE 19/11, DL Nº~164/99 DE 13/5, ART.189 OTM
Sumário: 1. Estando o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor ( FGADM ) a prestar alimentos a favor do menor residente em Portugal, em substituição do progenitor obrigado a prestá-los, não deve o juiz ordenar a cessação da prestação de alimentos pelo dito Fundo quando se apure que tal progenitor trabalha em país estrangeiro auferindo determinado salário.
2. Ainda que houvesse lugar à cessação das prestações a cargo do Fundo, tal cessação só poderia ocorrer a partir do efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor.
Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE NESTA RELAÇÃO DE COIMBRA:

I - Relatório:

No âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor R (…), filho de G (…) e de M (…), foi proferida decisão em 06/12/2008 a fls. 148 a 150, determinando que o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, em substituição do pai do menor, suportasse o pagamento de uma prestação mensal no valor de 125,OO€ em benefício do menor, mais se decidindo que o montante fixado pelo tribunal manter-se-ia enquanto se verificassem as circunstâncias subjacentes à concessão da garantia e até que cesse a obrigação a que o devedor está vinculado.

O despacho proferido em 20-05-2011, a fls. 281 a 282, manteve a decisão de atribuição da prestação de 125,00€ a favor do menor a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (FGADM).
Em 12-10-2011, a fls. 295 a 297, foi proferida decisão que ordenou a cessação do pagamento pelo Fundo, com a seguinte fundamentação:

«Resulta do disposto no artigo 1 da Lei nº 75/98, de 19-11, que um dos requisitos para que o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, assegure o pagamento da pensão de alimentos que seja omitido pela pessoa obrigada a prestar alimentos a menores, será o de que este não se encontre em condições de satisfazer os mesmos nos termos do artigo 189º do DL nº 314/78, de 27-10, ou seja da OTM. Consequentemente, aquele Fundo apenas garantirá o pagamento da pensão de alimentos, caso não seja possível obter o mesmo através da penhora dos bens do obrigado. Designadamente, tal ocorrerá quando não seja possível proceder aos descontos no vencimento do executado, nos termos daquele artigo 189º,
nomeadamente porque o mesmo não se encon
tra a trabalhar, ou por ser desconhecida a sua entidade patronal.

Ora, resulta da informação agora prestada pelas autoridades Luxemburguesas, que se encontra junta a fls. 292, verso, que o obrigado a prestar alimentos ao menor R (…), ou seja, o requerido M (…), encontra-se actualmente a trabalhar no Luxemburgo, para a empresa indicada naquela informação, auferindo um vencimento mensal de 1.900 euros. Consequentemente, existem condições para obter o pagamento pelo requerido do valor da pensão de alimentos que ele está obrigado a pagar ao menor Ruben, seu filho, através do desconto no vencimento pelo trabalho que ele presta para aquela empresa.

Conclui-se assim que desapareceu assim o requisito referido supra, de impossibilidade de obter o cumprimento pelo obrigado à prestação de alimentos através da penhora de algum dos seus bens, designadamente de parte do seu vencimento, e que, por estar preenchido, tinha permitido a prolação da decisão junta a fls. 148 a 150, que havia determinado a obrigação por parte do instituto de Gestão financeira da segurança Social em garantir o pagamento do valor da pensão de alimentos a favor do menor.

Tendo em conta o desaparecimento desse requisito essencial, não se poderá renovar a decisão que determinou que aquele instituto de Gestão Financeira procedesse ao pagamento da prestação de alimentos a favor dos menores, nos termos do nº 4 do artigo do DL nº 164/99, de 13-5.

Consequentemente, deverá ordenar-se a cessação desta prestação pelo Instituto. ( .. )

Em conformidade, determina-se a cessação da prestação pelo Instituto de Gestão Financeira e Social do valor da pensão de alimentos a que está obrigado o requerido M (…) em relação ao seu filho R (…). Determina-se assim a cessação desta prestação».

Inconformado, o Ministério Público recorre desta decisão, concluindo a sua alegação:

1º Por despacho proferido em 12-10-2011 (…).

2.° Tal decisão teve como fundamento (…).

3.° Tal decisão é porém contrária à lei, violando o disposto no artigo 1º da Lei nº 75/98 de 19-11 e no artigo 3.°, nº 1, alínea a) do DL 164/99, de 13- 05, bem como o disposto no artigo 189.° da O.T.M. e 69.° da Constituição.

4º Na verdade a Lei estabelece que o Estado assegura os alimentos, quando o obrigado não os satisfizer pelas formas previstas no artigo 189º da O.T.M. (DL 314/78, de 27-10).

5º O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores visa garantir, como se pode ler no próprio preâmbulo do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, o "(..) acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado, as prestações essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.".

6º O escopo prático que os vários preceitos sobre esta matéria visam atingir é o da garantia, por parte do Estado, de que todas as crianças tenham acesso a condições mínimas de subsistência, cumprindo-se desse modo, não só os imperativos constitucionais (artigo 69º da CRP), mas também as normas vinculativas do direito internacional.

7.0 O artigo 189.0 da O.T.M. visa a cobrança coerciva da prestação de alimentos através de um procedimento especial pré-executivo, por não implicar a instauração de uma acção executiva autónoma, e por ser célere, simples e linear, permitindo a cobrança de prestações vencidas e vincendas, no próprio processo de regulação do poder paternal.

8.0 "Considerando a finalidade dos (…) diplomas - Lei nº 75/98 e DL 164/99 - assegurar o direito aos menores de condições de subsistência mínimas - tem de concluir-se ser apenas elevante para a intervenção do Fundo que não seja possível a satisfação pelo devedor das quantias em divida através dos meios previstos no art. 1890 da OTM, único meio que assegura a celeridade necessária para que a cobrança dos alimentos devidos ao menor garanta a sua sobrevivência» - cf. o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 20-01-2011 in www.dgsi.pt.

9.0 Não é requisito da lei (Lei 75/98 e DL 164/99) - para que o Estado pague através do F.G.A.D.M. a prestação devida pelo requerido - que seja impossível a cobrança coerciva mediante recurso a uma acção executiva, quer em sede de execução especial por alimentos, quer em sede de cobrança de alimentos de estrangeiro, ao abrigo de Convenção Internacional - v. g. do Convenção de Nova Iorque de 20-06-1956 ou do Regulamento CE 4/2009 que entrou recentemente em vigor.

10º Pelo que, não sendo possível/admissível notificar a entidade empregadora do requerido, com sede no Luxemburgo, para "descontar" no respectivo salário as prestações de alimentos devidas ao menor, por tal atentar contra o princípio da soberania do respectivo Estado, não se mostra no caso concreto afastado o requisito de impossibilidade de cobrança dos alimentos pelos meios previstos pelo artigo 189.0 da O.T.M.

11º Consequentemente, deverá a decisão recorrida ser revogada, e ser proferida decisão a manter a obrigação de o Fundo de Garantia de Alimentos a Menores continuar a suportar a prestação de alimentos de 125,00€ fixada anteriormente em benefício do menor.

12.° Ainda que assim não se entenda, sempre se deveria ter mantido a prestação a suportar pelo F.G.A.D.M. «...até ao início do efectivo cumprimento da obrigação» pelo requerido, nos termos previstos pelo artigo 3.°, nº 1, do DL 164/99 de 13-05 e não determinar a imediata cessação de tal pagamento.

13.0 Pelo que, ao determinar a imediata cessação do pagamento pelo Fundo de Garantia da prestação de alimentos fixada anteriormente, sem que, no mínimo, o devedor (pai do menor) iniciasse o pagamento coercivo de tal prestação com recurso ao procedimento executivo previsto no Regulamento (CE) nº 4/2009, violou o Mmo juiz a quo o preceituado no citado artigo 3.°, nº 1, do DL 164/99 de 13-05 e os preceitos constitucionais que vigoram nesta matéria, a saber, o art. 69.° da Constituição.

14º Deverão assim V. Exas. conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinado que se mantenha a obrigação de o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores pagar em benefício do menor Ruben a prestação de alimentos fixada em 125,00€.

Foi proferido despacho tabelar, que manteve a decisão.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II- Fundamentos:

Os factos provados relevantes são os que constam dos primeiros dois parágrafos do relatório e ainda os seguintes: o pai do menor R (…) encontra-se actualmente a trabalhar no Luxemburgo como estucador, para uma identificada empresa sedeada nesse país, auferindo um vencimento mensal de 1.900 euros (fl. 292 e 321 e seg).

A questão essencial de direito consiste em saber se, estando o dito Fundo a prestar alimentos a favor do menor residente em Portugal em substituição do progenitor obrigado a prestá-los, se deve o juiz ordenar a cessação imediata da prestação de alimentos pelo dito Fundo quando se apure que tal progenitor trabalha em país estrangeiro (no caso o Luxemburgo) auferindo determinado salário, no caso 1900 euros.

A Lei nº 75/98, de 19-11, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 164/99, de 15-05, criou o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Social) e preceitua no seu artigo 1º que:

«Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda de encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação».

É através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores que o Estado assegura essas prestações. E assegura-as quando – essa é uma das condições – o obrigado, no caso o progenitor, não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º da OTM.

Este artigo 189º estatui no seu nº 1, al. a) e b), que: «Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, observar-se-á o seguinte:

a) Se for funcionário público, ser-Ihe-ão deduzidas as respectivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade competente;

b) Se for empregado ou assalariado, ser-Ihe-ão deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respectiva entidade patronal, que ficará na situação de fiel depositária».

Trata-se do chamado “incidente de descontos”, incidente que, por razões de celeridade e simplicidade processual, atendendo à premência na obtenção dos alimentos, corre termos no próprio processo, em vez do recurso a uma acção executiva autónoma ([1]).

Ora, estando o originário devedor da prestação de alimentos a residir no Luxemburgo, onde trabalha por conta de uma empresa aí sedeada, não é possível recorrer ao preceituado no artigo 189.°, nº 1, aI. b) da O.T.M. para tornar efectiva a prestação de alimentos devida ao menor. Como muito bem defende o Ministério Público, não é legalmente possível ordenar nesta acção à entidade patronal sediada no Luxemburgo que desconte nos salários as quantias necessárias para garantir o pagamento das prestações alimentares vencidas ou vincendas.

Tal como acrescenta o Ministério Público recorrente, mesmo com o recurso ao Regulamento (CE) nº 4/2009 de 18-12-2008 que entrou em vigor em 18/06/2011, apenas um tribunal luxemburguês pode decidir adjudicar os rendimentos ou bens do devedor de alimentos auferidos naquele país ao menor, por via de um requerimento executivo dirigido às respectivas autoridades. O que, além de estar nos antípodas da celeridade e simplicidade processual visadas pelo dito artigo 189º, mostra a impossibilidade de cobrança dos alimentos pelos meios previstos pelo artigo 189.° da OTM.

Consequentemente, no caso concreto não se mostra afastado o requisito de impossibilidade de cobrança dos alimentos pelos meios previstos pelo artigo 189.° da OTM. E, por essa razão, o M.mo Juiz não devia ter ordenado a cessação das prestações a cargo do Fundo.

Ainda que, porventura – e não é o caso –, houvesse lugar à cessação das prestações a cargo do Fundo, não devia ter sido ordenada a cessação imediata, como bem nota o Ministério Público. É que, como expressamente consta do artigo 1º da citada Lei nº 75/98, (…) «o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação». O que vale por dizer que, a cessação das prestações a cargo do Fundo só poderia ocorrer a partir do efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor.

Em conclusão e síntese final:

- Estando o dito Fundo a prestar alimentos a favor do menor residente em Portugal em substituição do progenitor obrigado a prestá-los, não deve o juiz ordenar a cessação da prestação de alimentos pelo dito Fundo quando se apure que tal progenitor trabalha em país estrangeiro auferindo determinado salário.

- Ainda que houvesse lugar à cessação das prestações a cargo do Fundo, tal cessação só poderia ocorrer a partir do efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor.

 

III- Decisão:

Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, pelo que se mantém a obrigação de pagamento através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores.

Sem custas pelo recurso.

Coimbra, 2012-10-09

Virgílio Mateus ( Relator )

Carvalho Martins

Carlos Moreira

[1] Segundo o Acórdão do S.T.J. de 07/04/2011 (relator: Lopes do Rego), publicado in www.dgsi.pt, este artigo 189º prevê um "procedimento pré-executivo" e tem por finalidade específica a cobrança coerciva de alimentos devidos a menores, processando-se, por razões de celeridade e simplicidade processual, incidentalmente no próprio processo em que foi proferida decisão a fixar os alimentos e em que foi proferida decisão a condenar o devedor ao seu pagamento.

1. Estando Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor ( FGADM ) a prestar alimentos a favor do menor residente em Portugal, em substituição do progenitor obrigado a prestá-los, não deve o juiz ordenar a cessação da prestação de alimentos pelo dito Fundo quando se apure que tal progenitor trabalha em país estrangeiro auferindo determinado salário.

2. Ainda que houvesse lugar à cessação das prestações a cargo do Fundo, tal cessação só poderia ocorrer a partir do efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor.