Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
316/03.4GBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PERDÃO
EXCEPÇÕES
INTERPRETAÇÃO DE “CONDENADOS”
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2º, N.º 1, E 7º DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8
Sumário: O legislador considerou que os crimes enunciados no n.º 1, alíneas a) a h) do artigo 7.º não seriam objecto de clemência independentemente de existir ou não sentença de condenação transitada em julgado.
Decisão Texto Integral: ***

           Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


****

                                                                                                                             
            A - Relatório:                                                                                          

1. Nos Autos de Processo Comum (Tribunal Singular) que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Porto de Mós,, em 2/10/2023, foi proferido o seguinte Despacho:

A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, Lei do Perdão de penas e amnistia de infrações, entrou em vigor no recente dia 01 de Setembro de 2023.

A prática do ilícito objeto da Acusação deduzida reporta-se a 30.08.2003 e o arguido AA, nascido em ../../1980, tinha entre 16 e 30 anos àquela data – cfr. o artigo 2.º, n.º1: «estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º».

O Arguido foi acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, correspondendo-lhe a moldura abstrata aplicável de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

Com relevância para o presente caso, há que ter presente que «são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa» (cfr. o artigo 4.º).

Por outro lado, «não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: ii) Crimes de (…) condução de veículo em estado de embriaguez (…), previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal» (cfr. o artigo 7.º, n.º1, d)).

No seguimento do Despacho proferido em 13.09.2023, a Digna Magistrada do Ministério Público, em Promoção de 28.09.2023, verteu entendimento segundo o qual, “o Ministério Público entende que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez não se encontra amnistiado pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto”.

*

In casu, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, o crime objeto dos presentes autos é elegível para ser alvo da amnistia prevista no artigo 4.º da Lei sob apreço.

Da leitura do, também, citado artigo 7.º, em concreto do seu n.º1, d), ii), decorre a exclusão dos «condenados» pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Em caso, como o dos presentes autos, em que o Arguido foi julgado, porém a Sentença condenatória ainda não transitou em julgado, nem sequer tendo sido dela notificado, entender que não pode haver lugar à amnistia da infração por força daquela exceção exige – salvo melhor entendimento, que se admite e respeita, tanto mais no quadro de uma Lei recente como é esta –, uma interpretação contra a própria letra da lei, senão mesmo contra o seu espírito, que se refere, explicitamente, a «condenados».

Uma tal interpretação – contra, pelo menos, a própria letra da lei, senão também contra o seu espírito –, poderá ser defendida argumentando que a ideia do Legislador foi excluir de todo o crime de condução de veículo em estado de embriaguez das medidas de graça concedidas por esta Lei, e que a menção a «condenados» se tratou, por isso, de um lapso de escrita.

Contudo, uma tal interpretação – contra a letra da lei, senão também contra o seu espírito – parece olvidar a diferença entre estas duas medidas de graça – a amnistia e o perdão –, na sua natureza e nas suas consequências.

Deste modo, em sentido contrário uma tal interpretação, pode contrapor-se que, justamente, foi intenção do Legislador, relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, amnistiar as situações em que não há, ainda, uma condenação transitada em julgado, porém já não admitir o perdão das penas aplicadas por uma sentença transitada em julgado.

Nesta ordem de ideias, a menção a «condenados» foi pretendida pelo Legislador, que, então, admitiu, diante do plasmado no artigo 4.º, a amnistia da condução de veículo em estado de embriaguez quando ainda não tenha havido uma condenação transitada em julgado.

Afinal, é princípio constitucionalmente consagrado que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação» (cfr. o artigo 32.º, n.º2 da C.R.P.).

Por conseguinte, uma tal interpretação contrária à (letra e espírito desta) Lei – que se refere apenas e expressamente a «condenados» – afigura-se-me, com o devido respeito por opinião diversa, ser, igualmente, contrária e, mesmo, violadora daquele princípio constitucional, porquanto implica um tratamento dos (presumidos) inocentes como se de condenados (por sentença transitada em julgado) já se tratassem.

Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da  Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal.

*

Notifique.

*

Oportunamente, e sem olvidar o disposto do artigo 11.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, diligencie pela inscrição da presente Decisão no registo criminal do Condenado (cfr. art.º 6.º, al. f), da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio).”

****

           2. Inconformado, recorreu o Ministério Público, em 7/11/2023, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

A. Nos presentes autos o arguido AA, nascido em ../../1980, foi acusado pela prática em 30.08.2003 (para além do demais), do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal;

B. Em 01.09.2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto que consagra no seu artigo 2.º, n.º 1 que “estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”; e no seu artigo 4.º que “são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”;

C. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas encontra-se previsto no artigo 292.º do Código Penal que consagra no seu n.º 1 que “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”

D. Ora, considerando-se a data dos factos: 30.08.2003, logo anteriores a 19.06.2023, e a idade do arguido à data da prática dos mesmos: 23 anos de idade, o Tribunal a quo decidiu que por Despacho proferido em 02.10.2023 que “Por conseguinte, uma tal interpretação contrária à (letra e espírito desta) Lei – que se refere apenas e expressamente a «condenados» – afigura-se-me, com o devido respeito por opinião diversa, ser, igualmente, contrária e, mesmo, violadora daquele princípio constitucional, porquanto implica um tratamento dos (presumidos) inocentes como se de condenados (por sentença transitada em julgado) já se tratassem. Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal”;

E. Salvo melhor entendimento, não se antolhe arrimo a este entendimento porquanto ainda que em face da excecionalidade deste direito de graça/clemência não se possa ‘lançar mão’ de uma interpretação analógica, extensiva ou restritiva, a verdade é que desde logo o artigo 9.º do Código Civil impõe-se ao Aplicador da Lei efetuar uma correta interpretação declarativa das normas, e não bastar-se com a mera letra da lei;

F. Foi no artigo 7.º da referida Lei que o Legislador elencou os crimes que considerou incluídos na criminalidade muito grave, e entre eles está o crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto     no     artigo     292.º     do     Código     Penal,     mais concretamente no n.º 1, alínea d), ii);

G. É certo que o Legislador consagrou nesta norma o seguinte texto: “1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (…) ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal” (sublinhados nossos), mas em nosso entendimento o vocábulo ‘condenados’ usado no texto legal não poderá ser lido de forma meramente literal, desenquadrado de todo o demais texto legal, preâmbulo e exposição de motivos;

H. É que o artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto foi «decalcado» da Lei n.º 9/2020, de 10.04, que fixou o regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, o qual apenas visou a aplicação de perdão, e não de amnistia, e aquando da ‘transcrição’ da Lei de 2020 para a Lei de 2023 o que nos parece ter ocorrido foi um ‘descuido’ do Legislador na utilização deste vocábulo, não o alterando, o que desde logo também é visível pela leitura da ‘Informação de Redação Final’ do projeto de Decreto, no âmbito do processo legislativo da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto – disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c79396 8636d356c6443397a6158526c63793959566b786c5a79394562324e3162575675644

7397a5357357059326c6864476c32595339695a4445325a446c6d5a4330794e6a457 a4c54526d4e5449744f546c6c5a69316c4e7a45775932457a4e544d794e6d45756347

526d&fich=bd16d9fd-2613-4f52-99ef-e710ca35326a.pdf&Inline=true onde se escreveu “informamos que remeteremos apenas o texto do projeto de decreto AR com as respetivas sugestões de aperfeiçoamento devidamente realçadas, que, na maioria dos casos, se cingem à confirmação de remissões e referências legislativas, e à correção de lapsos que foi possível detetar (…) Destacamos as seguintes sugestões:     Artigo 7.º ‐ Alínea l) do n.º 1. Considerando que as restantes alíneas do presente número referem sujeitos (condenados, reincidentes, funcionários, membros das forças armadas, das forças policiais e de segurança): Onde se lê: «l) No âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool (…)» Sugere‐se: «l) Os responsáveis pelas” (sublinhados nossos) denota que a única preocupação foi a de que o artigo 7.º falasse de sujeitos e daí decorre, inclusive a alteração à alínea l).

                 I. Assim, tendo o Legislador optado por não considerar perdoáveis nem amnistiáveis os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, ao escrever no artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto “Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei”, entendemos que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, conforme expressamente já foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 25.10.2001, no processo 00P3209, disponível em www.dgsi.pt;

                  J. Pelo exposto, entendemos que a única leitura possível dos artigos 4.º e 7.º da referida Lei de 2023, quanto aos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal é a de que o Legislador não pretendeu amnistiar ou perdoar estes crimes, quer se tratassem de crimes indiciados, quer se tratassem de crimes já acusados, quer se tratassem de crimes já julgados, com sentença proferida, transitada em julgado, ou ainda não;

                  K. Pelo que não se pode restringir a leitura do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto à interpretação de que nos casos em que já há uma sentença, já transitada em julgado, que condena o arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto no artigo 292.º do Código Penal, este crime não é perdoável, nem amnistiável, mas que já é amnistiável o mesmo crime nos casos em que o processo já foi julgado e já há uma sentença, mas que esta ainda não transitou em julgado, meramente com assento na leitura do vocábulo ‘condenado’;

                 L. Entendemos que o que seria violador do princípio da igualdade seria amnistiar os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que ainda não foram julgados, ou cujas sentenças ainda não transitaram em julgado, e não amnistiar os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas já julgados e que já têm sentença transitada em julgado;

                  M. In casu, sendo certo que o arguido à data da prática dos factos, tinha 23 anos de idade, entendemos que não poderia ter sido declarado amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática se encontra sentenciado, nos presentes autos, ainda que por sentença não transitada em julgado, e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal, por ser ato contrário à Lei;

                 N. Pelo que deveria o Tribunal a quo ter procedido à prolação do Despacho que considerasse que a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, não é aplicável nos autos, decidindo pelo prosseguimento dos mesmos;

                 O. Nestes termos teremos sempre que concluir que o Tribunal a quo ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 4.º e 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, no artigo 9.º do Código Civil, e consequentemente nos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 2 e 292.º do Código Penal, porquanto este crime, ainda que não haja sentença transitada em julgado, se encontra excluído do beneficio da amnistia consagrada pela supra referida Lei.

                                                                       ****

            3. O recurso, em 15/11/2023, foi admitido.

****

            4. Não foi apresentada resposta ao recurso.

****

5. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, em 6/2/2024, emitiu douto parecer no qual defendeu a improcedência do recurso.

                                                           ****

           6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

                                                                       ****

7. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

****

II. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se deve ser declarado extinto o procedimento criminal, por amnistia, ao abrigo do disposto no artigo 4.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n. º, ambos do Código Penal.

                                                           ****

                                                           ****

É inegável que a questão suscitada é controvertida, como decorre, desde logo, da posição divergente que o Ministério Público traz aos autos, em momentos diferentes. Por um lado, o recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público visa a revogação do despacho ora em crise e, por outro lado, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto defende que o recurso não merece provimento.

Pois bem, o Tribunal da Relação de Coimbra já tomou posição quanto à questão ora em apreço, em recente Acórdão de 21/2/2024, Processo n.º 233/19.6GAPMS, relatado pela Exma. Desembargadora Alcina da Costa Ribeiro, in www.dgsi.pt, no qual pode ser lido o seguinte:

1) “1. Em causa está a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (Perdão de Penas e Amnistia da Infrações), diploma a que de ora em diante nos referiremos sem menção do contrário, que aprova um regime de «perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude» [art.º 1.º] para «as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4» [art.º 2.º n.º 1].

Nos termos do artigo 4.º «são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.».

E, sendo o crime dos autos (de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no art.º 292.º n.º 1 do Código Penal) punível com pena de prisão até um ano de prisão ou com pena de multa não superior a 120 dias, estaria, em princípio abrangido pela amnistia.

Sucede que, sob a epígrafe “Exceções”, dispõe o artigo 7.º:

1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:

i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;

ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;

iii) Crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina, de tráfico de órgãos humanos e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artigos 144.º, 144.º-A, 144.º-B e na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal;

iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º-B e 158.º a 162.º do Código Penal;

v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal;

b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:

i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;

ii) Por crime de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código Penal;

c) No âmbito dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os condenados por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, incluindo na forma grave, previstos nos artigos 240.º, 243.º e 244.º do Código Penal;

d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

i) Crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, de incêndio florestal, danos contra a natureza e de poluição, previstos nos artigos 272.º, 274.º, 278.º e 279.º do Código Penal;

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal;

iii) Crime de associação criminosa, previsto no artigo 299.º do Código Penal;

e) No âmbito dos crimes contra o Estado, os condenados por:

i) Crimes contra a soberania nacional e contra a realização do Estado de direito, previstos nas secções i e ii do capítulo i do título v do livro ii do Código Penal, incluindo o crime de tráfico de influência, previsto no artigo 335.º do Código Penal;

ii) Crimes de evasão e de motim de presos, previstos nos artigos 352.º e 354.º do Código Penal;

iii) Crime de branqueamento, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;

iv) Crimes de corrupção, previstos nos artigos 372.º a 374.º do Código Penal;

v) Crimes de peculato e de participação económica em negócio, previstos nos artigos 375.º e 377.º do Código Penal;

f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:

i) Crimes de terrorismo, previstos na lei de combate ao terrorismo, aprovada pela Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto;

ii) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no setor privado, dando cumprimento à Decisão Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003;

iii) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º-A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva;

iv) Crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artigos 36.º, 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;

v) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar, aprovado em anexo à Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro;

vi) Crime de tráfico e mediação de armas, previsto no artigo 87.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que aprova o regime jurídico das armas e suas munições;

vii) Crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime;

viii) Crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional;

ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

x) Crimes previstos nos artigos 27.º a 34.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;

g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;

h) Os condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas, designadamente aqueles previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções;

j) Os reincidentes;

k) Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;

l) Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

2 - As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções.

3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

À primeira vista, numa interpretação meramente literal, parece que o legislador só excluiu da amnistia e do perdão os arguidos já condenados pela prática de um dos crimes enunciados nas diversas alíneas a) a h) do n.º 1, do citado artigo 7.º, tendo sido este o entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido.

Opinião diferente tem o Recorrente.

Que decidir?

 (…).

Na verdade, na hermenêutica jurídica o sentido da norma não pode deixar de atender ao texto da lei. Mas não só. Importa ter presente os termos e o lugar da regra legal, a correlação directa ou indirecta com outras regras, a razão de ser e a finalidade e bem assim as circunstâncias em que foi elaborada, reportados essencialmente à unidade do sistema jurídico e à justificação social da lei.

Os métodos de interpretação não se bastam com o texto e o espirito da lei, sendo, também essencial a própria ordem social em que o texto se situa.

Como ensina Oliveira Ascensão[15] «As palavras da lei são indecifráveis se não forem integradas naquela ordem social. O espírito da lei é o que resulta dessa integração. Os chamados elementos lógicos da interpretação – histórico, sistemático e teleológico – só têm sentido à luz dessa ordem social. (…)

Há que rejeitar a ilusão positivista de que a lei é autossuficiente, e que a “norma” pode ser vista com abstração da ordem social. Pelo contrário: a lei só logra ganhar sentido se integrada numa ordem social.

O direito é mais que a lei. O direito é a ordem da sociedade. A lei é um texto intencionalmente imposto para inovar a ordem normativa, mas que só se compreende como um trecho da ordem global em que é colocada. O todo repercute-se necessariamente sobre as partes».

De acordo com o disposto no artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação da norma não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. [artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil].

Porém, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. [artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil].

(…)

Analisado todo o processo legislativo[18] e a divulgação pública que o mesmo suscitou, não nos restam dúvidas, que uma das preocupações do legislador foi a de excluir da amnistia a criminalidade de muito gravidade, incluindo nesta os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.

Tal resulta da Proposta da Lei n.º 97/XV/1.ª que esteve na base da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto e bem assim da discussão que suscitou no público em geral e, na Assembleia da República[19] em particular.

No Comunicado 19 de junho de 2023[20] o Conselho de Ministros anunciou a aprovação da proposta de lei que estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens, esclarecendo:

«O diploma estabelece um perdão de um ano a todas as penas de prisão até oito anos, sendo adicionalmente fixado um regime de amnistia que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda €1.000 e as infrações penais cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de pena de multa.

A Proposta de Lei compreende ainda exceções ao perdão e amnistia, não beneficiando, nomeadamente, quem tiver praticado crimes de homicídio, de infanticídio, de violência doméstica, de maus-tratos, de ofensa à integridade de física grave, de mutilação genital feminina, de ofensa à integridade física qualificada, de casamento forçado, de sequestro, contra a liberdade e autodeterminação sexual, de extorsão, de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, de tráfico de influência, de branqueamento ou de corrupção.

(…).

Pela falta de menção aos crimes rodoviários, como a condução com álcool, o Ministério da Justiça sentiu a necessidade de, em 28 de junho de 2023[21] esclarecer que (…) a proposta de lei do Governo “contém limites substantivos da sua aplicação", nomeadamente para crimes rodoviários.

O Executivo detalha que não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados por crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, nem, no âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool ou de drogas. (…)».

E, de facto, a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª faz referência àquele tipo de ilícito, primeiro na Exposição de Motivos e, depois, no articulado do diploma.

Aí se lê: «Uma vez que a JMJ[22] abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda € 1.000, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa». (negrito nosso).

Os casos de criminalidade violenta excluídos do perdão e da amnistia foram identificados no já citado artigo 5.º da Proposta de Lei, contendo, desde inicio a alínea d), ii) a ii) a referência aos condenados por crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal, redacção que viria a figurar na versão final, no artigo 7.º, nº 1, alínea d), ii).

Por outro lado, conforme assinalado pelo Recorrente, a Sr.ª Ministra da Justiça, BB na discussão da generalidade da Proposta de Lei[23], declarou:

«Assim, nesta proposta, visa-se perdoar e amnistiar infrações praticadas por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos, idade limite dos peregrinos desta Jornada. O perdão estabelecido na presente proposta é parcial e, por isso, será abolida uma parte da execução da pena —um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos —, assim como serão perdoadas as penas de multa fixadas até 120 dias, a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, a pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e as penas de substituição.

Já com a amnistia pretende-se que seja abolida a incriminação e serão amnistiadas as contraordenações cuja coima aplicável não exceda 1000€.

A presente proposta de lei define também limites substantivos à sua aplicação. De forma a evitar o alarme social —e tomando como base a natureza e gravidade de determinados crimes, o bem jurídico que tutelam e as qualidades especiais da vítima ou do agente —, elenca-se, por isso, um conjunto de crimes que não poderá beneficiar destas medidas, como (…) a condução perigosa de veículo rodoviário, condução de veículo em estado de embriaguez. (…)

Nesta lista de exclusões, seguiu-se a bitola já utilizada em amnistias e perdões anteriores, mas foi-se mais além, ampliando o elenco das exclusões.

Também as medidas previstas nesta proposta de lei em sede de contraordenações sofrem exclusões, não se aplicando àquelas contraordenações que sejam praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo. É importante frisá-lo, pelo muito que de irrefletido já se disse sobre o assunto na praça pública».

(…).

Como e bem assinala o Acórdão desta Relação de 24 de janeiro de 2024[25], a intenção do legislador foi a de incluir nas excepções do artigo 7.º todos os sujeitos e não apenas os condenados.

«E daí decorre, inclusive a alteração à alínea l). Pelo que, por esta via, entendemos que nem o argumento de que o Legislador pretendeu distinguir arguido e condenado - pois usou nessa alínea o termo responsável - pode ser tida em linha de interpretação quanto à sua concreta intenção».

Aliás, não faria qualquer sentido que os autores (todos eles, tout court) das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo» [alínea l) do n.º 1 do art.º 7.º] não beneficiassem da amnistia e os autores de uma conduta mais grave qualificada como crime viessem a ter a clemência de uma amnistia ou perdão nos casos em que não tenha havido condenação.

A este propósito não podemos deixar de convocar a jurisprudência obrigatória fixada no Acórdão n.º 4/97[26] - pese embora, se reportar a uma situação diferente - artigo 9.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio - aplica-se mutatis mutandis à presente.

A mencionada alínea previa a exclusão da amnistia e do perdão «os transgressores ao Código da estrada e seu Regulamento, quando tenham praticado a infracção sob o efeito do álcool ou com abandono do sinistrado, independentemente da pena.

Numa interpretação rigorosamente literal, lê-se no Acórdão, «o autor de um crime de um crime de ofensas corporais por negligência cometido sob a influência do álcool veria a infracção amnistiada, pois a referida alínea só é impeditiva da medida de clemência aos transgressores do Código da Estrada e seu Regulamento.».

Porém, continua o mesmo Aresto «não se pode esquecer o preceituado no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil: na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Assim, logo se vê que seria ilógico excluir da amnistia os transgressores do Código da Estrada e permitir que dela beneficiassem os autores dos crimes de homicídio ou de ofensas corporais por negligência, quando as infracções fossem cometidas sob a influência do álcool.

(…).

E, de facto, nenhum cidadão comum compreenderia porque é que um condutor com a taxa de alcoolémia superior 0,5 g/l (0,2g/l em certos casos) e inferior a 1,2 g/l era julgado e condenado pela prática de uma contraordenação e o condutor com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,2 g/ (v.g. 2,5g/l) não sofria qualquer condenação.

É igualmente ilógico que o artigo 7.º exclua do perdão as penas pela condenação da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e, por outro lado, viesse a admitir a amnistia do mesmo ilícito criminal.

Como é ilógico beneficiar com a amnistia os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que ainda não foram julgados, ou cujas sentenças ainda não transitaram em julgado, e não amnistiar, nem perdoar as penas dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas já julgados e, portanto já têm sentença, e dos que já têm sentença transitada em julgado.

Tamanha incoerência violaria claramente o principio da igualdade, conforme já decidido no já citado Acórdão desta Relação de 24 de janeiro de 2024.

Com efeito, a prática do mesmo facto ilícito pelos jovens com idades compreendidas entre 16 e 30 anos no mesmo período temporal [artigo 2.º] conduziria à responsabilização penal de uns e à ilibação da mesma responsabilidade penal de outros. O que no limite, poderia exigir a realização de audiência para demonstração da prática do crime e consequente condenação. A não ser assim, o mesmo evento naturalístico e histórico praticado pelas pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos, durante o mesmo período temporal, era, para uns objecto de incriminação e, para outros não, o que afronta o principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Vale por dizer que nunca esteve no pensamento legislativo amnistiar ou perdoar os crimes enunciados no artigo 7.º, n.º 1 praticados por pessoas ainda não condenadas, muito menos por sentença transitada em julgado, (expressão nem sequer é mencionada texto do artigo 7.º, em análise).

Note-se, que a condução de veículos automóveis em estado de embriaguez não foi considerada pelo legislador como uma incriminação que possa ser apagada do mundo das infracções rodoviárias, precisamente pelas elevadas exigências de prevenção geral que tal ilícito implica. A sociedade não toleraria um apagão de crimes tão graves como os enunciados no artigo 7.º, tenham sido praticados por pessoas condenadas ou não.

É a gravidade do desvalor da acção, do interesse e bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora e não a qualidade da posição processual do agente, suspeito, arguido ou condenado, que impediu a amnistia de determinados crimes.

A interpretação da palavra “condenados” no sentido de exigência de condenação por sentença transitada em julgado não tem o mínimo de correspondência nem no pensamento jurídico nem na justificação social da Lei do Perdão e da Amnistia, em virtude de estender a amnistia a crimes que clara, objectiva e expressamente o legislador, pela sua gravidade, não quis abolir do sistema legal punitivo.

Assim, com o devido respeito por opinião contrária, parece-nos incontornável que o legislador, embora amnistiando as infracções referidas nos artigos 2.º, 4º e 6.º e perdoando as sanções e penas indicadas no artigo 3.º e 5.º, considerou que os crimes enunciados no n.º 1, alíneas a) a h) do artigo 7.º não seriam objecto de clemência independentemente de existir ou não sentença de condenação transitada em julgado.

E, por isso, assiste inteira razão ao Recorrente, ao concluir, que a amnistia não é aplicável ao caso dos autos, por se subsumir à exceção à sua aplicação e a que alude o artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o pensamento do legislador, com a coerência sistemática do Diploma e com o elemento histórico, não sendo tal interpretação contrária à letra da lei e nela encontrando um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” – no mesmo sentido ver o Acórdão do TRC, Processo n.º 477/22.3GAPMC. C1, relatado pela Exma. Desembargadora Alexandra Guiné e o Acórdão do TRE, Processo n.º 330/22.0GTABF.E1, relatado pela Exma. Desembargadora Laura Maurício.

            Salvo o devido respeito, não vislumbramos razão para divergir da orientação que consta do citado acórdão, fazendo nossas, por inteiro, as considerações ali constantes, razão pela qual entendemos que o procedimento criminal, nos presentes autos, não deve ser declarado extinto por amnistia.

                                                                       ****

                                                                       ****

            C - Decisão:

           Face ao exposto, é concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, determinando-se o normal prosseguimento dos autos.                    

            Sem custas.

****
       (Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

                                                                       ****

    Coimbra, 10 de abril de 2024


José Eduardo Martins

Isabel Valongo

João Peral Novais