Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
188/16.9T9LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REQUISITOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JI CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º E 287.º DO CPP; ARTS. 217.º E 218.º DO CP
Sumário: I - O requerimento de abertura de instrução, formulado pelo assistente, além de dever incluir uma súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou arquivamento, tem de incluir a indicação dos factos que, em face dos meios de prova constantes do inquérito e que venham a ser produzidos em sede de instrução, o assistente prevê vir a provar.

II - No requerimento para abertura da instrução formulado por assistente devem ser narrados os factos que fundamentam a aplicação de uma pena e indicadas as disposições legais aplicáveis.

III - Delimitando o RAI os poderes de cognição do juiz de instrução e sendo nele que o arguido assenta a defesa, dúvidas não podem existir de que a descrição factual do crime tem que ser apresentada de uma forma clara e insusceptível de qualquer confusão, não só para o tribunal como também, e muito especialmente, para o arguido.

IV - Quando do conjunto de factos que integram o RAI não é possível encontrar aqueles em que se alicerçaria a astúcia que determina o engano, necessário ao preenchimento do elemento objectivo do crime de burla, é evidente que não são narrados os factos que fundamentam a aplicação de uma pena.

V – O que é fundamento de rejeição do requerimento para abertura da instrução.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

No âmbito do processo acima identificado, foi proferido o despacho que passamos a transcrever na parte relevante:

“(…)

O assistente [A...] veio requerer a abertura de instrução reagindo assim ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

(…)

Impõe-se, pois, apreciar e decidir se o requerimento apresentado para a abertura de instrução cumpre os requisitos exigidos para ser admitido nos autos.

(…)

Ora, no caso concreto pretende a assistente que seja proferido despacho de pronúncia por entender que existem indícios da prática de crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, nº. 1; 218º e artigo 202º, al. b) todos do Código Penal. Ora, sendo a instrução requerida pelo assistente impunha-se ao mesmo que no requerimento de abertura de instrução fizesse constar uma narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, a indicação do lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação do arguido e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

(…)

Da leitura do requerimento apresentado pelo assistente verifica-se que no mesmo se faz constar uma análise do despacho de arquivamento, manifestando a sua discordância. No entanto e no que concerne à descrição dos factos que estiveram subjacentes ao surgimento de um documento intitulado de “declaração de divida, no montante total de €150.000, 00 com data de 23 de Outubro de 2006” os mesmos foram já objecto do julgamento que foi realizado no processo comum colectivo nº. 522/06.0 JALRA, onde era arguido C... , cuja certidão do Acórdão se encontra unto aos autos a fls. 56 e ss. Assim e nesta parte impunha-se o arquivamento dos autos nos termos determinados pelo MP e por força do princípio ne bis in idem. No que concerne aos factos alegados pelo assistente e que justificam o aparecimento de uma segunda declaração de dívida, datada de 20 de Outubro de 2006 e na qual consta que “ A... e B... … declaram ter uma divida para com o Sr. C... … no montante de € 501.714, 00 “tal factualidade encontra-se descrita na acusação deduzida pelo Ministério Publico tendo sido proferida acusação contra o arguido e pela prática de crime de falsificação de documento. Entende o assistente que deverá o ser pronunciado pela prática de crime de burla qualificada. No que concerne ao crime de burla importa considerar que dispõe o artigo 217º do Código Penal que: “1- Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com a pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”. Ora, para se determinar se se verificam, ou não indícios suficientes da prática de crime de burla, necessário se torna verificar se o arguido utilizou algum “meio enganoso tendente a induzir a assistente num erro que, por seu turno, a levou a praticar actos de que resultaram prejuízos patrimoniais próprios ou alheios”. Mais necessário se torna verificar se esse meio enganoso consubstancia a causa efectiva da situação de erro em que se encontrou a assistente. Ora não consta do requerimento de abertura de instrução a descrição de factos (natureza objectiva e subjectiva) que permitam imputar ao arguido a prática de crime de burla. Analisando a factualidade descrita pela assistente verifica-se que a actuação do denunciado não constitui uma actuação que revele astúcia. Não consta do requerimento de abertura de instrução a descrição de factos integradores de um comportamento astucioso ou ardiloso praticado pelo arguido e que tenha sido em consequência dessa astúcia ou ardil que o assistente tenha praticado actos que lhe causaram um prejuízo de natureza patrimonial. Sendo de referir que essa astúcia ou ardil tem de ser determinante para a prática dos actos por parte da vítima e determinante de um prejuízo para a mesma. Do requerimento apresentado pelo assistente consta a descrição de factos que na sua opinião traduzem um clima de medo e de temor em que o assistente vivia, sendo ainda referido que essa vulnerabilidade era conhecida do arguido e que o mesmo aproveitando-se dessa situação e usando ainda de “logros” e de ameaças (perda de bens, processos judiciais) determinou que o assistente assinasse documentos em branco, para posteriormente transformar um deles na declaração referida, nela forjando e apondo na mesma os dizeres que dela constam, para a usar como um titulo executivo e conseguir desta forma penhorar os bens do assistente.” Ora tal factualidade não integra a prática de crime de burla, uma vez que o assistente não descreve factos integradores de um comportamento astucioso ou ardiloso praticado pelo arguido e que tenha sido em consequência dessa astúcia ou ardil que o assistente tenha praticado actos que lhe causaram um prejuízo de natureza patrimonial. Face ao exposto, verifica-se que o requerimento de instrução é omisso no que concerne à narração de factos indispensáveis à responsabilização criminal do arguido. Ou seja, a assistente não delimitou no requerimento apresentado para a abertura de instrução os factos que seriam objecto de apreciação em sede de instrução com o rigor que se impunha. Sendo que como já se deixou exposto tal exigência se impõe em nome de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente o direito de defesa e a estrutura acusatória do processo penal. Importa ainda sublinhar que no caso não há lugar a qualquer convite para aperfeiçoamento do RAI e na sequência da Jurisprudência fixada pelo Ac nº. 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no Diário da República, I Série – A, nº. 212, de 4 de Novembro de 2005, nos termos da qual o convite ao aperfeiçoamento contende com o princípio das garantias de defesa do arguido, consagrado no art. 32º, nº. 1 da CRP. Com efeito a apresentação do requerimento da assistente para a abertura da instrução para além do prazo previsto no art. 287º do CPP violaria as garantias de defesa do arguido, pois estabeleceria um novo prazo para a abertura de instrução, sendo que tal se aplica aos casos em que há total omissão da narração dos factos, como quando a omissão é apenas parcial. Pelo exposto, não se pode considerar como válido o requerimento apresentado para a abertura de instrução, já que o mesmo não respeita o disposto no art.º 283º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, aqui aplicável por remissão do n.º 2 do art.º 287º do mesmo diploma legal. Pelo exposto, rejeita-se por inadmissibilidade legal o requerimento apresentado para a abertura de instrução pelo assistente (art. 287º, nº. 3 do CPP).”

Inconformado, o assistente recorreu. Apresentou as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso é interposto do douto despacho proferido pela Meritíssima Senhora Juiz de Instrução do Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 3 da Comarca de Leiria, queentendeu não constar do seu requerimento de abertura de instrução a descrição de factos que permitam imputar ao arguido a prática de crime de burla, em virtude de, da análise da factualidade descrita pelo assistente, se verificar que a actuação do denunciado não revela astúcia.

B. Decidiu a Mma. Juiz a quo, fazendo um juízo de prognose póstuma, que não constavam do requerimento em questão factos susceptíveis de permitir a imputação ao arguido da prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelos art.ºs 218, 217/1 e 202/al. b) do C.P.

C. Não se conformando com tal entendimento, defende o assistente que, atenta a factualidade explanada no seu requerimento de abertura de instrução, se impunha à Mma. Juiz a quo abrir a instrução e ordenar a execução das diligências instrutórias requeridas e outras que se revelassem necessárias ao apuramento da verdade material, ao invés de tentar fundamentar o seu Douto despacho de rejeição em meras conjecturas e juízos prévios.

D. Com efeito, os autos terminaram, na fase de inquérito, com um despacho de arquivamento parcial, segundo o qual os factos apurados em sede de inquérito consubstanciavam apenas a comissão de um crime de falsificação de documento, sem proceder a uma análise mais aprofundada dos factos carreados para os autos no que concerne à eventual comissão do crime de burla qualificada com base na invocação do princípio “non bis in idem”, ignorando, assim, o conjunto de novos factos que o assistente descreveu na sua participação criminal.

E. Não se conformando com tal decisão, o assistente requereu abertura de instrução, no estrito cumprimento do disposto nos art.ºs 287/2 e 283/3, ambos do C.P.P.

F. A Mma Juiz a quo rejeitou o requerimento de instrução invocando a sua inadmissibilidade legal do (art.º 287, n.º 3 do C.P.P) apesar de não ter logrado demonstrar que o mesmo não continha, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente arquivamento parcial dos autos, ou por ausência de indicação dos actos de instrução pretendidos, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se esperava provar, ou o mesmo não respeitou o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do C.P.P.

G. Ao invés, limitou-se a presumir que a factualidade descrita pelo assistente não integra a prática de crime de burla em virtude de não existirem factos integradores de um comportamento astucioso ou ardiloso praticado pelo arguido e que tenha sido em consequência dessa astúcia ou ardil que o assistente tenha praticado actos que lhe causaram prejuízos de natureza patrimonial,

H. O que fez sem fundamentos concretos, decidindo com base em meras conjecturas e presunções, sem aquilatar, como lhe cabia, se os factos carreados para os autos indiciam ou não a prática de crime de burla qualificada, atendendo particularmente à circunstância de o arguido ter sido acusado da prática de crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.ºs 256, n.º 1, als. e) e f) e 255, al. a), ambos do C.P..

I. O assistente tinha alegado no seu requerimento em apreço que o arguido se aproximou de si em 2006, em altura que não consegue precisar, a propósito da construção de uma moradia sita na localidade de K..., cuja construção havia sido parcialmente da responsabilidade da “ D... , Lda.” de que era, à data, sócio e gerente, a qual havia sido contratada pelo promotor da obra, E... para tratar da parte estrutural e muros de vedação,

J. O que fez com o objectivo de conseguir obter para si enriquecimento ilegítimo, com recurso a esquemas astuciosos, de forma a determinar o assistente a praticar actos que causaram graves prejuízos para si e para a sua família.

K. Ainda em 2005, a referida empresa participou na construção de algumas moradias em K..., tendo o assistente detectado algumas vulnerabilidades na respectiva construção, que reportou ao dono da obra, o qual não se preocupou com nada.

L. O arguido comprou uma dessas moradias, na sequência do que exigiu uma indemnização ao promotor da obra, o qual solicitou ao assistente que se deslocasse lá para verificar as anomalias e corrigi-las, acusando-o de ser o responsável, s bem sabendo da falsidade da sua acusação.

M. O assistente, revoltado com aquela forma de tratamento, ficou muito preocupado com o que poderia suceder na obra, bem como com o bom nome e reputação da sua empresa, pelo que aceitou ir ao local verificar, na presença do arguido, quais os danos causados que motivavam o pedido de indemnização daquele, tendo concluído que os problemas encontrados estavam relacionadas com as queixas que tinha apresentado ao promotor da obra.

N. Em conformidade, deu a sua opinião ao arguido e tentou convencê-lo que a sua empresa nada tinha que ver com tais problemas.

O. Contudo, a situação acabou por ser levada ao Tribunal de Leiria e, nessa sequência, o assistente veio a ser convocado, já em 2006, para depor como testemunha do dono da obra, contra a sua vontade.

P. Aproximando-se o dia de prestação do seu depoimento, o assistente deslocou-se à moradia e pediu ao arguido que o deixasse fazer uma vistoria para avaliar os riscos de segurança e a evolução das anomalias surgidas, atento o lapso de tempo volvido desde a sua primeira visita ao local.

Q. O assistente procurou dialogar com o arguido, que o acusou de estar a agir de má fé uma vez que era testemunha de quem o tinha enganado.

R. O assistente esclareceu que tinha sido indicado como testemunha contra a sua vontade e que iria apenas esclarecer em audiência o que sucedera com a construção.

S. Foi então que o arguido, apercebendo-se da vulnerabilidade do assistente, se aproximou deste e começou a conquistar a sua confiança, convencendo-o de que era uma pessoa séria.

T. Após ter entrado na moradia do arguido, o assistente, preocupado com a situação e seu possível impacto na sua vida empresarial e pessoal, ofereceu-se para ajudar o arguido a resolver os seus alegados problemas.

U. O arguido afirmou então que já tinha visto que o assistente era uma pessoa honesta mas que já havia dado entrada de uma providência cautelar contra si, assegurando-lhe, contudo, que, se este lhe pagasse as despesas do tribunal, levantaria a referida providência, com o que deixou o assistente muito nervoso e visivelmente preocupado, circunstâncias de que tirou, então, partido, agindo conscientemente e com dolo.

V. O assistente acreditou na existência da providência cautelar e nas boas intenções do arguido, acabando por aceitar a sua proposta.

W. Sensivelmente uma semana depois, o assistente foi chamado ao Tribunal Judicial de Leiria como testemunha e, alguns dias depois, recebeu um telefonema de um sujeito que se identificou como funcionário de uma firma de avaliações escolhida pelo Tribunal Judicial de Leiria para apurar de que bens o mesmo era proprietário para realização de futura penhora.

X. Muito preocupado, o assistente contactou imediatamente o arguido para saber o que o mesmo havia feito relativamente à providência cautelar de que lhe tinha falado, e este assegurou-lhe que iria resolver o assunto.

Y. Uma semana depois, o arguido telefonou ao assistente para lhe comunicar que o promotor da obra tinha instaurado um processo-crime contra ele e que ia dar entrada de uma providência cautelar para “penhorar” os seus bens.

Z. O assistente ficou em pânico, facto de que o arguido se aproveitou para o ludibriar ainda mais, dirigindo-lhe palavras tranquilizadoras e assegurando-lhe que o iria ajudar, designadamente prontificando-se para descobrir o que se passava, convencendo-o, contudo, a manter absoluto sigilo, com o pretexto de, assim, evitar manchar o seu nome, e a não arranjar nenhum advogado sozinho e na sua área geográfica, por suspeitar que o promotor da obra conheceria todos os advogados de Leiria,

AA. Acrescentando que tinha entregue o seu processo a um bom escritório de advogados, da sua inteira confiança, de grande competência, que iria resolver os seus problemas, sempre enfatizando que ele, sozinho, não conseguiria resolver a situação.

BB. Frequentemente, referia ao assistente que este corria o risco de perder todos os seus bens pessoais e da empresa em processos judiciais, insinuando-se, acto contínuo, como o seu protector e salvador, com o que o levou a entregar-lhe documentos pessoais, assinar documentos e folhas em branco, alegadamente para aos advogados que contratara elaborarem procurações e requerimentos.

CC. Alguns dias depois, contactou o assistente e pediu-lhe as escrituras e certidões dos seus terrenos e de outros prédios urbanos indivisos de que fosse herdeiro ou comproprietário.

DD. Entretanto, o arguido apresentou uma queixa-crime e o assistente foi notificado pelo Ministério Público para ir prestar declarações como testemunha daquele.

EE. Muito preocupado com tal processo, o assistente dirigiu-se a casa do arguido para lhe mostrar a notificação que recebera, que lhe disse que não estivesse preocupado pois, se quisesse, podia não responder a nada.

FF. Em Outubro de 2006, o assistente compareceu nos Serviços do Ministério Público de Leiria e, no decurso do seu interrogatório, acabou por ser constituído arguido no âmbito do Proc. n.º 2140/06.3TALRA, que corria termos na 1ª secção daqueles Serviços, o que o deixou completamente aterrado e vexado.

GG. Nesse mesmo dia, o arguido apareceu na casa do assistente com vários papéis, alegadamente para saber como o interrogatório tinha corrido, mas, apercebendo-se do estado de desorientação do assistente, propôs-lhe que comparecesse no dia seguinte com a sua esposa num café sito na Av. (...) , em Leiria.

HH. O assistente apareceu com a sua esposa no local e hora marcados, onde se encontrava o arguido, o qual lhes apresentou uma folha onde estava aposta uma declaração de divida no valor de € 150.000, 00 para eles assinarem, com o pretexto de que a mesma serviria como garantia de que, caso lhes sucedesse algo, ele seria ressarcido de todas as quantias que tinha adiantado aos seus advogados por conta dos processos existentes contra aquele, afirmando que se não assinassem o documento não poderia garantir a sua protecção, da sua família e da sua empresa.

II. Desorientados e assustando, particularmente com a constituição de arguido do assistente acima referida, aceitaram assinar o documento.

JJ. Acto contínuo, o arguido conseguiu convencê-los a assinarem ainda algumas folhas em branco, dizendo-lhes que serviam para os seus advogados redigirem procurações para os representarem e requerimentos vários, sob pena de os processos existentes contra o assistente e a sua empresa terem desfechos desfavoráveis aos mesmos, com o perigo de perda de todos os seus bens.

KK. Com a sua astúcia, o arguido dominou o assistente, através da constante referência à existência de processos judiciais, risco de pagamento de indemnizações avultadas, penhoras e perda de bens, perda do bom nome e reputação quer pessoais, quer profissionais, destruição da sua actividade empresarial, etc., com os consequentes prejuízos para o seu bem-estar e saúde, bem como dos da sua família, com o que conseguiu determiná-lo a entregar-lhe documentos pessoais e assinar folhas em branco.

LL. O arguido manipulou o assistente ao longo de meses e meses com todo o tipo de estratagemas e ardis, de forma a que o mesmo desconfiasse de todos menos de si e anuísse a todas as suas exigências.

MM. Apercebendo-se do estado de saúde do assistente, a sua esposa levou-o a um médico psiquiatra que o alertou para a possibilidade de ser vítima de burla.

NN. Só depois dessa consulta é que a esposa do assistente decidiu contactar com uma sobrinha, funcionária na Conservatória do Registo Predial de Leiria, a qual, após tomar conhecimento do que se estava a passar, alertou os tios para o facto de terem “caído” nas mentiras de um burlão e comprometeu-se a contactar um advogado para os auxiliar.

OO. Foi então que o assistente relatou o sucedido à sua filha, residente em Lisboa, e esta aconselhou-o a dirigir-se uma mais rapidamente possível à Policia Judiciária de Leiria para apresentar queixa, o que este fez no dia seguinte.

PP. Mais tarde, o arguido esteve preso à ordem de outro processo criminal instaurado contra ele.

QQ. Durante quase quatro anos a denúncia do assistente foi alvo de investigação criminal, no âmbito do processo n.º 522/06.0JALRA que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no qual o arguido veio a ser absolvido com base no princípio in dubio pro reo (mas não por ter ficado demonstrado que não praticou os factos de que fora acusado).

RR. Não obstante, o arguido esperou pela decisão do referido processo-crime, e, convicto de estar livre de qualquer sanção criminal, instaurou contra o assistente e a sua esposa, um processo executiva, usando como título executivo uma declaração de dívida no valor de € 501.714, 00 datada de 20 de Outubro de 2006 (i.e., com data com 3 dias de antecedência relativamente à da declaração de dívida no valor de € 150.000, 00 que havia sido objecto de apreciação judicial no âmbito do aludido processo crime).

SS. O assistente e a sua esposa reconheceram nos referidos autos de processo criminal ter assinado, sob ameaça, a declaração de dívida no valor de € 150.000, 00, mas jamais assinaram qualquer outra declaração de dívida.

TT. No dia 25 de Novembro de 2011, o arguido instaurou contra o assistente e sua esposa, na Comarca De Leiria – Pombal – Juízo De Execução, o Proc. executivo n.º 6322/11.8TBLRA, para pagamento de quantia certa no valor de € 752.571, 00, bem sabendo que o seu conteúdo não correspondia à verdade e que fora elaborado contra a vontade dos mesmos.

UU. O assistente deduziu nos referidos autos oposição à execução (apenso A), no âmbito da qual pôs em causa quer a veracidade das assinaturas apostas na aludida declaração, quer a autenticidade do próprio documento,

VV. Tendo já sido proferida sentença a 12 de Julho de 2016, na qual o assistente e a sua esposa, foram absolvidos do pedido e foi determinada a extinção da execução, a qual se encontra actualmente em fase de recurso.

WW. O assistente alvitrou duas hipóteses para a “criação” por parte do arguido, em data que não sabe precisar, do documento dado como título executivo nos referidos autos:

XX. A redacção dactilografada dos dizeres constantes da folha A4 utilizada por este como título executivo e a falsificação da assinatura do assistente e da assinatura da sua esposa, ou

YY. a utilização de uma folha A4 assinada em branco na qual tenham sido apostos os dizeres nele dactilografados posteriormente à assinatura da sua folha de suporte pelo assistente e sua esposa nos termos acima melhor descritos (o arguido dizia ao assistente que tais folhas servirem para os seus advogados elaborarem procurações forenses e requerimentos vários).

ZZ. De acordo com as regras da experiência comum, em conformidade com critério do bonus pater famílias colocado diante de idêntica situação, não é credível que o assistente (e a sua esposa) tenham assinado, no espaço de apenas 3 dias, duas declarações de dívida cujos textos são em tudo idênticos (excepto quanto ao valor em dívida, ao número de prestações a pagar e respectivo valor e à respectiva data).

AAA. O assistente reconheceu no já identificado processo-crime, que foi constrangido a assinar a declaração datada de 23 de Outubro, dela constando o valor de € 150.000, 00, jamais tendo assinado a declaração utilizada pelo arguido como título executivo na acção executiva acima identificada, a qual tem uma data anterior àquela, (20 de Outubro de 2006) e diz respeito a uma alegada dívida de € 501.714, 00!

BBB. Nem o assistente, nem a sua esposa assinaram tal declaração, nem jamais receberam do arguido tal quantia monetária ou qualquer outra!

CCC. As assinaturas nela apostas ou foram falsificadas pelo arguido, ou resultaram da assinatura de folhas em branco, numa das quais o arguido apôs, a posteriori, o texto dactilografado, tendo como único objectivo o de obter para si, ilegitimamente, dinheiro ou bens do assistente.

DDD. Sem prescindir, em qualquer uma das hipóteses, os dizeres apostos na referida declaração foram forjados pelo arguido, com o que o mesmo conseguiu penhorar todos os bens imóveis existentes em nome do assistente ou em que o mesmo é herdeiro ou comproprietário, bem como o saldo de uma conta bancária.

EEE. Com a sua conduta reiterada e continuada no tempo, e agindo sempre com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, o arguido conseguiu, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar o assistente a praticar actos que causaram (e ainda causam) graves prejuízos patrimoniais quer para si, quer para a sua família.

FFF. Socorrendo-se dos logros acima descritos, o arguido logrou determinar o assistente e a sua esposa ou a assinar documentos em branco, para posteriormente transformar um dos mesmos numa “declaração de dívida”, nele forjando e apondo os dizeres que quis, ou a fornecer-lhe dados pessoais que lhe permitissem preencher um documento com os dizeres que entendeu e forjar as respectivas assinaturas,

GGG. Criando, assim, uma “declaração de dívida” para usar como título executivo e, consequentemente, penhorar todos os bens imóveis existentes em nome do assistente ou em que o mesmo figurasse como herdeiro ou comproprietário, bem como o saldo de uma conta bancária, de forma a tornar seus todos estes bens.

HHH. O assistente, actualmente endividado e quase na miséria, corre o risco de perder em definitivo todo o seu património para o arguido, estando privado de dispor do seu património desde Abril de 2014.

III. O arguido agiu livre e conscientemente e com dolo.

JJJ. Com a sua conduta reiterada, movida por uma única resolução criminosa, continuada no tempo, lesou gravemente e continua a lesar o assistente e a sua família, para mais atento o valor consideravelmente elevado em causa.

KKK. Atento o retro explanado, veio o assistente requerer abertura de instrução para que que o arguido fosse pronunciado pelo crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.º 218, conjugado com os art.ºs 217, n.º 1 e o 202, al. b), todos do Código Penal.

LLL. Feita a descrição sumária dos factos em apreciação, cumpre apreciar se os mesmos são susceptíveis de fundamentar a abertura de instrução (permitindo apurar devidamente se existem indícios da prática de crime de burla qualificada pelo arguido).

MMM. O arguido foi acusado apenas pela prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos art.º s 256, n.º 1, als. e) e f) e 255, al. a), ambos do C.P., com o que o assistente não se conformou pelas razões acima aduzidas.

NNN. Os elementos do crime de burla encontram-se previstos no art.º 217 do C.P..

OOO. A realização objectiva do ilícito pressupõe a existência de uma situação de erro ou de engano, astuciosamente provocada.

PPP. Para que se possa falar de astúcia tem de ocorrer uma actuação engenhosa por parte do agente do crime, algo ao nível do estratagema ardiloso, da encenação orientada a ludibriar,

QQQ. O que está inequívoca e sobejamente demonstrado nos autos!

RRR. O arguido agiu com intenção clara e inequívoca de enganar o assistente ao falsificar as assinaturas do mesmo e da sua esposa ou ao apor na folha em branco, eventualmente assinada por aqueles, os dizeres que satisfaziam os seus propósitos, transformando o documento, em qualquer destas hipóteses, numa “Declaração de dívida” e dando-o à execução como título executivo, com o que logrou a penhora de bens do assistente,

SSS. O arguido bem sabia que, com a sua conduta ardilosa, estava a apoderar-se, astuciosamente, dos bens do assistente, privando-o de aceder ao seu património,

TTT. Do qual desejou e deseja ainda vir a ser proprietário.

UUU. Existem factos que nunca foram objecto de decisão em nenhum tribunal criminal, designadamente uma burla com falsificação de documento, perpetrada pelo arguido com o objectivo de enriquecer ilegitimamente.

VVV. Não está aqui em apreço a mesma situação motivacional explanada no processo-crime n.º 522/06.0JALRA do 2.º Juízo Criminal, estando antes em causa acções distintas que, embora provindas de um contexto inicialmente coincidente, pressupõem condutas distintas e, no processo sub iudice, um desígnio criminoso particular: o de obter os bens do assistente por via de logros que levaram à criação de uma falsa declaração de dívida.

WWW. No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla dos art.ºs 256.º, n.º 1, al. a), e 217.º, n.º 1 do C.P., respectivamente, estamos diante de um concurso real ou efectivo de crimes.

XXX. Na senda de Almeida Costa in “Comentário Conimbricense do Código penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 300, o arguido foi capaz de uma conduta desleal e inadmissível para o ordenamento jurídico, violadora dos mais básicos ditames da boa fé, consubstanciadora do “desvalor característico do ilícito da burla, integrando, nessa medida, a expressão acabada do conteúdo da previsão do art. 217.º”.

YYY. Só o arguido teve acesso à folha utilizada como título executivo, sendo ainda o único que pode beneficiar com a interposição da acção executiva, o que fez, crente de estar acima de qualquer suspeita em virtude de ter sido absolvido do anterior processo-crime, com o único objectivo de se locupletar às custas do assistente,

ZZZ. Tendo, para tanto, levado o assistente a praticar actos que lhe causaram prejuízos patrimoniais (e morais), apelando astuciosamente à sua confiança, por um lado, e provocando no mesmo sensações de pânico e vulnerabilidade, para depois poder oferecer-lhe a sua “ajuda”.

AAAA. Face aos indícios de que o arguido ou falsificou as assinaturas apostas no documento utilizado por si como título executivo, ou elaborou e aditou uma declaração de dívida à folha assinada em branco, que depois utilizou como título executivo, agindo livre e conscientemente, contra a vontade do assistente e da sua esposa, impunha-se à Mma. Juiz a quo admitir o requerimento de abertura de instrução, legalmente admissível e devidamente fundamento, e ordenar as diligências de prova requeridas e pertinentes para a descoberta da verdade material.

BBBB. Atento o valor elevado do prejuízo patrimonial em causa, o arguido praticou o crime de burla qualificada, tal como previsto nos art.ºs 218 e 202 do Código Penal.

CCCC. O assistente vem, assim, requerer a V. Exas. se dignem ordenar que que seja revogado o despacho que rejeitou o seu requerimento de abertura de instrução e a sua substituição por outro que declare a abertura de instrução com as demais consequências legais, designadamente, a realização das diligências probatórias requeridas e outras que se tenham por pertinentes e do debate instrutório,

Porquanto só assim se fará Justiça!”

Respondeu o Ministério Público manifestando-se no sentido da improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer no mesmo sentido.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.

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Questão a decidir: inadmissibilidade legal da instrução

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Vejamos:

O RAI tem o seguinte teor:

“1. O Assistente apresentou denúncia contra o ora arguido pela prática dos crimes de burla qualificada, previsto e punido pelo art.° 218, conjugado com o 217, n.º 1 e o 202, al. b) do Código Penal, e extorsão, previsto e punido pelo art.º 223 do Código Penal.

2. Vejamos os factos alegados na participação do ora assistente, corroborados pelos documentos já juntos aos autos, que o mesmo entende preencherem, pelo menos, os elementos do tipo do crime de burla qualificada.

3. Alegou o assistente, em suma, que o arguido se aproximou de si em 2006, em altura que não consegue precisar, a propósito da construção de uma moradia sita na localidade de K..., cuja construção havia sido parcialmente da responsabilidade da sociedade comercial por quotas de que o ofendido era, à data, sócio e gerente, denominada “ D... , Lda.”, a qual havia sido então contratada pelo promotor da obra, E... , nomeadamente no que concerne à respectiva parte estrutural e muros de vedação,

4. O que fez com o objectivo de conseguir obter para si enriquecimento ilegítimo, com recurso a esquemas astuciosos e estratégias de verdadeiro terror psicológico, de forma a determinar o assistente a praticar actos que causaram para si e para a sua família graves prejuízos.

5. Ainda em 2005, a empresa de que o assistente foi sócio e gerente, acima mencionada, havia participado na construção de algumas moradias em K....

6. Sucedeu que o assistente detectou algumas vulnerabilidades na construção das moradias que transmitiu ao dono da obra, E... , mas este nada fez.

7. O arguido comprou uma dessas moradias, na sequência do que exigiu uma indemnização ao promotor da obra, o qual, sem saber o que fazer, procurou o assistente e pediu-lhe para se deslocar à aludida moradia para verificar as anomalias e corrigi-las, acusando-o de ser o responsável, mas bem sabendo que tal não correspondia à verdade.

8. O assistente, revoltado com a forma de tratamento do dono da obra e muito transtornado por estar associado àquela situação, estava muito preocupado com o que poderia suceder na obra, nomeadamente, com a possibilidade de se verificar alguma derrocada ou cedência do terreno, capaz de provocar graves danos na moradia e de causar ferimentos graves ou algo ainda mais grave aos seus habitantes.

9. Estava também muito preocupado com o bom nome e reputação alcançados pela sua empresa ao longo dos anos.

10. Assim, aceitou deslocar-se ao local e verificar, na presença do arguido, quais os danos causados que motivavam um pedido de indemnização por parte daquele.

11. Deslocando-se ao local, concluiu que os problemas encontrados estavam relacionadas com as queixas que havia apresentado ao promotor da obra no início dos trabalhos, tendo, de seguida, dado a sua opinião ao arguido e tentado persuadi-lo de que os problemas existentes não eram da responsabilidade da sua empresa.

12. Efectivamente, a situação foi levada ao Tribunal de Leiria.

13. Nessa sequência, já em 2006, o assistente foi convocado para comparecer em audiência de julgamento na qualidade de testemunha do dono da obra, contra a sua vontade.

14. Aproximando-se o dia de ir ao Tribunal prestar o seu depoimento, o assistente resolveu deslocar-se ao local da moradia e propor ao arguido que o deixasse fazer uma vistoria para analisar quais os riscos de segurança e evolução das anomalias surgidas, visto já ter passado algum tempo desde que o havia visitado pela primeira vez.

15. O assistente procurou dialogar calmamente com o arguido, mas este rapidamente o acusou de estar a agir de má fé em virtude de ser testemunha de quem o tinha enganado.

16. O assistente esclareceu que tinha sido indicado como testemunha do dono da obra contra a sua vontade e que iria apenas esclarecer em Tribunal o que havia sucedido com a construção.

17. Foi então que o arguido, apercebendo-se da vulnerabilidade do assistente, se aproximou deste, convencendo-o de que era uma pessoa séria e merecedora da sua confiança, tendo, inclusive, convencido o mesmo de que era médico e se dedicava a causas humanitárias.

18. O assistente estava em pânico, temendo pelas consequências que poderiam advir daquela situação para si e para a sua empresa, e, indirectamente, para a sua família.

19. Após ter entrado na moradia do arguido, ofereceu-se para o ajudar a resolver os respectivos problemas, na medida das suas capacidades, de forma a tentar evitar as consequências que tanto temia.

20. Nesse momento, o arguido dirigiu-se-Ihe e afirmou “Já vi que o Sr. A... é uma pessoa honesta mas acontece que eu já meti uma providência cautelar contra si, mas se me pagar as despesas do tribunal eu levanto-lhe a providência cautelar. “

21. Diante desta afirmação, o assistente ficou muito aflito e abandonou o local.

22. Naquela altura, em meados de 2006, o assistente atravessava uma fase de vida bastante complicada porquanto desde 2005 que sofria de depressão, provocada não só pelas preocupações advindas da progressiva diminuição do fluxo de trabalho da sua empresa, com a consequente falta de descanso e esgotamento intelectual, mas também por força do precário estado de saúde do seu pai, que se foi agravando.

23. Este quadro afectou bastante a sua saúde mental e a capacidade de raciocínio e de reacção, deixando-o frágil e esgotado.

24. Pessoa cumpridora e respeitadora das instituições e da lei, que vivia para o seu trabalho e a sua família, o assistente sempre teve “fobia” de qualquer problema com a Justiça.

25. Fazia muito tempo que não tirava férias e, àquela data, sentia-se muito doente e cansado, tendo já completado 60 anos de idade.

26. À data enfrentava graves problemas empresariais em virtude da progressiva diminuição da actividade da sua empresa.

27. Aproveitando-se da visível preocupação e vulnerabilidade demonstrada pelo assistente, o arguido, agindo conscientemente e com dolo, começou a intimidá-lo, alegando para tanto que havia já instaurado contra ele uma providência cautelar, acrescentando, contudo, que a levantaria se este lhe pagasse as despesas do tribunal.

28. O assistente vivia em estado de terror e pânico e o arguido foi bastante persuasivo, ardiloso e persistente a tirar partido da sua fragilidade.

29. Debilitado como estava, o assistente acreditou na existência da providência cautelar e ficou muito assustado.

30. Inicialmente crente nas boas intenções do arguido, acabou por ceder às suas pretensões.

31. Sensivelmente uma semana após a visita à casa do arguido, o assistente foi chamado ao Tribunal Judicial de Leiria como testemunha, onde foi interrogado acerca dos procedimentos da construção da moradia em questão.

32. Passados alguns dias, o assistente recebeu um telefonema de um sujeito que se identificou como funcionário de uma firma de avaliações escolhida pelo Tribunal Judicial de Leiria para ir ao seu encontro e apurar de que bens o mesmo era proprietário para procederem a uma penhora.

33. O assistente ficou em pânico e contactou de seguida o arguido para saber o que o mesmo havia feito relativamente à providência cautelar que dizia existir contra si, ao que o mesmo respondeu não saber de nada, assegurando-lhe que iria resolver o assunto.

34. Volvida uma semana, o arguido telefonou de novo ao assistente para lhe comunicar que o promotor da obra tinha instaurado um processo-crime contra si e iria dar entrada de uma providência cautelar para conseguir “penhorar” os seus bens.

35. O assistente ficou novamente em pânico, ao ponto de não conseguir reagir, facto de que o arguido se aproveitou para o ludibriar ainda mais.

36. De imediato lhe dirigiu palavras tranquilizadoras e de conforto e lhe assegurou que o iria ajudar, alegando saber que ele era uma pessoa honesta e que merecia ser ajudada.

37. Mais se prontificou para descobrir o que se estava a passar, pedindo-lhe, no entanto, que não contasse a ninguém o que se estava a passar pois nos meios rurais tudo se sabia, acrescentando que achava que ele não iria gostar de ser visto pela sua comunidade e por todos como vigarista, mau construtor e de ter o seu nome sujo.

38. O assistente ficou naturalmente aterrorizado: temia ser responsabilizado caso alguma coisa acontecesse à moradia e aos seus habitantes; sentia-se culpado por ter participado naquela construção, cujas consequências não podia prever; estava muito agastado, preocupado com as eventuais consequências daquela situação para o bem-estar e a saúde da sua família e para o seu bom nome e da sua empresa (a sua reputação pessoal e profissional fora construída a muito custo ao longo de 35 anos de trabalho árduo e cumprimento escrupuloso de todas as suas obrigações, do que muito se orgulhava).

39. Temia ainda a perda do alvará da sua empresa, da qual retirava o seu sustento e o da sua família.

40. O arguido aconselhou o assistente a não arranjar nenhum advogado sozinho e na sua área geográfica, alegando que o promotor da obra conhecia todos os advogados em Leiria.

41. Mais lhe transmitiu que havia entregue o seu processo a um bom escritório de advogados, da sua inteira confiança, de grande competência, que iria resolver os seus problemas, acrescentando que ele sozinho com um advogado não conseguiria resolver aquela situação.

42. Frequentemente, o arguido assustava (e, até, intimidava) o assistente com a possibilidade de perder todos os seus bens pessoais e da empresa em processos judiciais, para de seguida se insinuar como o seu “salvador” e foi assim que o levou a assinar documentos e folhas em branco, alegadamente para entregar aos seus advogados para estes elaborarem procurações e requerimentos.

43. Alguns dias depois, o arguido contactou de novo o assistente e pediu-lhe as escrituras e certidões dos seus terrenos e de outros prédios urbanos indivisos de que ele fosse herdeiro ou comproprietário.

44. Entretanto, o arguido apresentou uma queixa-crime e o assistente foi notificado pelo Ministério Público para ir prestar declarações como testemunha daquele acerca da questão da moradia.

45. Perturbado com a situação e muito preocupado, dirigiu-se a casa do arguido para lhe mostrar a notificação que recebera, ao que este lhe respondeu que não estivesse preocupado, que fosse lá e que se quisesse não respondesse a nada.

46. Já em Outubro de 2006, chegado o dia do interrogatório nos Serviços do Ministério Público de Leiria, o assistente compareceu à hora prevista, tendo sido identificado, interrogado sobre os problemas da construção e, por último, constituído arguido no âmbito do Proc. n.º 2140/06.3TALRA, que corria termos na 1 a secção daqueles Serviços, o que o deixou completamente dominado pelo medo e pela ansiedade, além de ter ficado a sentir-se destroçado e vexado- Doe, 1 junto com a participação criminal.

47. Nesse mesmo dia à noite, o arguido apareceu na casa do assistente, alegando que queria saber o resultado do seu depoimento e levando consigo papéis.

48. À data, o assistente estava aterrorizado, muito nervoso e desorientado em virtude de ter sido constituído arguido no processo acima identificado.

49. Apercebendo-se do estado do assistente, o arguido propôs-lhe que comparecesse no dia seguinte com a sua esposa num café sito na A v. (...) , em Leiria.

50. O arguido apareceu no local e hora marcados, acompanhado da sua esposa, onde estava sentado o arguido.

51. O arguido puxou então de uma folha onde estava aposta uma declaração de divida no valor de € 150.000, 00 para o assistente e a sua esposa assinarem, já junta na participação criminal como Doe, 2.

52. O arguido disse-lhes que tinham de assinar a declaração sob pena de não poder garantir a protecção do assistente, da sua família e da sua empresa, tentando convencê-los de que aquela serviria como garantia de que, caso lhes sucedesse algo, ele seria ressarcido de todas as quantias que havia adiantado aos seus advogados por conta dos processos existentes contra aquele.

53. Desorientados e cheios de medo, particularmente em virtude de o arguido ter apresentado queixa contra o assistente Proc. 2l40/06.3T ALRA, 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, aceitaram assinar o documento.

54. Acto contínuo, o arguido conseguiu convencer o assistente e a sua esposa a assinarem também algumas folhas em branco, dizendo-lhes que eram necessárias para os seus advogados poderem redigir procurações para os representarem e requerimentos vários, sem o que os processos existentes contra o assistente e a sua empresa não terminariam de forma que lhes fosse favorável e nunca mais teria sossego, podendo inclusive perder todos os seus bens.

55. Angustiado, deprimido, amedrontado, sem alegria para viver, o assistente já não conseguia trabalhar, nem lidar com os seus trabalhadores.

56. A ansiedade e mal-estar drenavam todas as suas forças. Sentia-se desgostoso, desanimado e derrotado, incapaz de proteger a sua família e de ajudar os seus filhos.

57. O arguido, consciente do estado de saúde mental do assistente, aterrorizava-o psicologicamente para o dominar, e depois dizia-lhe que iria ajudá-lo a eliminar todos os processos que corriam em Tribunal.

58. Com a sua astúcia, o arguido foi assustando e dominando o assistente, provocando nele sensações de insegurança, pânico, ansiedade e vulnerabilidade, mencionando constantemente processos judiciais, risco de pagamento de indemnizações avultadas, de penhoras e perda de bens, perda do bom nome e reputação quer pessoais, quer profissionais, destruição da sua actividade empresarial, etc., com os consequentes prejuízos para o seu bem-estar e saúde, bem como dos da sua família, com o que conseguiu determiná-lo a assinar folhas em branco e a “arrastar” consigo a sua esposa.

59. O assistente deixou de ter sossego, tremendo cada vez que o seu telefone tocava.

60. O arguido advertiu-o de que tinha de ter cuidado e que não podia arranjar problemas com ninguém porque, estando sob “fiança”, iria logo preso e que tal seria uma grande humilhação para si pois iria ser junto na cela com outros presos, ficando, inclusive, sujeito a abusos sexuais.

61. O arguido recorria a verdadeiro terror psicológico, para depois poder manipular o assistente de modo a este se sentir desesperado e assustado ao ponto de confiar nele cegamente.

62. Apavorado e amargurado, sem alento, o assistente, que tinha algumas obras em curso, temia ir parar ao Hospital e, até, morrer sem ter quem cuidasse das suas responsabilidades profissionais e quem zelasse pela sua esposa e pelos seus filhos, dos quais procurava esconder o estado das coisas, para não prejudicar o seu percurso universitário e profissional.

63. Chegou mesmo ao ponto de deixar de querer sair de casa. Tinha medo de tudo, estava doente.

64. Quando ouvia chegar uma viatura perto da sua residência ou quando via um carro da polícia na estrada ficava logo em pânico, aterrorizado com receio de ser preso.

65. Apercebendo-se do seu estado de saúde, a sua esposa levou-o a um médico psiquiatra que depois de o escutar o alertou para a possibilidade de estar a ser ludibriado, acrescentando que o facto de já andar severamente deprimido há algum tempo e, por isso, esgotado, confuso e vulnerável, havia contribuindo muito para que tivesse sido vítima de esquemas de burla.

66. Só mais tarde, depois de alertada pela consulta do marido com o psiquiatra, a esposa do assistente decidiu entrar em contacto com uma sobrinha, funcionária na Conservatória do Registo Predial de Leiria, o que comunicou ao assistente.

67. Ao final da tarde, a dita sobrinha foi a sua casa, onde A tia lhe contou o que estava a acontecer, particularmente desde Outubro de 2006.

68. De imediato, a sua sobrinha alertou os tios de que haviam caído nas mentiras de um burlão e afirmou que iria contactar um advogado para os auxiliar.

69. À medida que começou a aperceber-se de que era vítima dos esquemas ardilosos e logros do arguido, o assistente começou a sentir enorme vergonha e humilhação.

70. Contudo, naquela altura ganhou coragem para contar o sucedido à sua filha, residente em Lisboa, e esta aconselhou-o a dirigir-se uma mais rapidamente possível à Policia Judiciária de Leiria para apresentar queixa, o que este fez no dia seguinte.

71. Mais tarde, o arguido veio a ser preso à ordem de outro processo criminal instaurado contra ele.

72. Durante aproximadamente quatro anos a denúncia do assistente foi alvo de investigação criminal, no âmbito do processo n.º 522/06.0JALRA que correu termos no 2.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no qual o arguido veio a ser absolvido não por não ter praticado os factos mas antes com base no princípio in dubio pro reo.

73. O arguido esperou pela decisão do processo-crime acima identificado, que o absolveu do crime de que havia sido acusado e, convicto de estar livre de qualquer sanção criminal, instaurou uma acção executiva contra o assistente e a sua esposa, usando para tanto, como título executivo, uma declaração de dívida no valor de € 501. 714, 00 datada de 20 de Outubro de 2006 (nada mais nada menos que 3 dias antes da declaração de dívida no valor de € 150.000, 00 constante do aludido processo crime) ~~ Doc. 3 junto com a participação criminal.

74. Quer o assistente, quer a sua esposa reconheceram, no âmbito do aludido processo criminal, ter assinado sob ameaça a declaração de dívida no valor de € 150.000, 00, objecto de apreciação em sede criminal no processo acima identificado.

75. Contudo, o assistente e a sua esposa não assinaram mais nenhuma declaração de dívida.

76. Corre termos presentemente na Comarca De Leiria -- Pombal ~_ Juízo De Execução, a acção executiva pagamento de quantia certa (dívida civil), no valor de € 752.571, 00 (setecentos e cinquenta e dois mil quinhentos e setenta e um Euros), com o n.º de Proc. 6322/11.8TBLRA, a qual foi instaurada pelo arguido contra o assistente e sua esposa, no dia 25 de Novembro de 2011 _ 12:29:27GMT, por via electrónica, bem sabendo que o seu conteúdo não correspondia à verdade e que fora elaborado contra a vontade dos mesmos.

77. Do mesmo processo faz parte o Apenso A, que corresponde à oposição à execução por parte do assistente, no âmbito da qual foi questionada quer a veracidade das assinaturas apostas na aludida declaração, quer a autenticidade do próprio documento.

78. Foi proferida sentença no âmbito dos aludidos autos a 12 de Julho de 2016, na qual quer o assistente, quer a sua esposa, foram absolvidos do pedido contra eles formulado e, consequentemente, determinada a extinção da execução, conforme cópia que ora se junta como Doc. 1 e cuja emissão de certidão adiante se requer.

79. Inconformado, o arguido apresentou recurso e o assistente e a sua esposa contra-alegaram.

80. Da invocada sentença consta como tendo resultou provado que:

A) O exequente é portador de um escrito com o titulo “Declaração de dívida” onde consta:

“ A... e B... (…) declaram ter uma dívida para com o Sr. C... (…), no montante de 501. 714, 00 € (Quinhentos e Um mil Setecentos e Catorze Euros), obrigando-se a cumprir e a reconhecer as seguintes cláusulas:

Os declarantes obrigam-se a pagar a quantia em dívida em trinta de seis prestações mensais, sucessivas e iguais de 13.936, 50 euros, cada uma.

As prestações começam a ser pagas a primeira até ao dia 1 de Janeiro de 2007 e as restantes até ao dia 1 de cada mês seguinte.

O não pagamento de uma das prestações, faz vencer e torna exigíveis as restantes prestações em falta, vencendo-se de imediato juros à taxa legal sobre a quantia em dívida.

Sem prejuízo da cláusula anterior, pelo atraso do cumprimento desta declaração, estabelece-se uma cláusula penal no valor de 50% da dívida que existir no montante do incumprimento.

A dívida reconhecida nesta declaração resultou de um empréstimo efectuado pelo Sr. C... , aos ora declarantes.

A presente declaração tem força executiva e vale para todos os efeitos consagrados na alínea c) do art. 46° do Código Processo Civil.

Leiria, 20 de Outubro de 2006”;

B) No escrito referido em A) estão apostas manuscritamente duas assinaturas, uma das quais seguida da referência ao BI (...) emitido em 19/12/2001 Leiria e outra seguida da referência ao BI (...) 26/11/2002 Leiria;

C) Os dizeres do escrito referido em A) não correspondem à realidade, não sendo o escrito da autoria dos executados A... e B... ;

D) Os executados A... e B... são pessoas de baixa instrução escolar com dificuldade de entender alguns documentos escritos;

E) O exequente não entregou a quantia referida em A) aos executados nos termos ali referidos;

F) O exequente não auferia rendimentos capazes de gerar a entrega da quantia referida em A) aos executados nos termos ali referidos;

G) Durante mais de 20 anos, os executados A... e B... tiveram como actividade a construção civil de obras públicas e particulares.

81. O assistente alvitrou duas hipóteses para a “criação” por parte do arguido, em data que não sabe precisar, do documento dado como título executivo nos autos de execução acima identificados, designadamente:

a) A redacção dactilografada dos dizeres constantes da folha A4 utilizada por este como título executivo e a falsificação da assinatura do assistente e da assinatura da sua esposa, B... , ou

b) a utilização de uma folha A4 assinada em branco na qual tenham sido apostos os dizeres nele dactilografados posteriormente à assinatura da sua folha de suporte pelo assistente e sua esposa nos termos acima melhor descritos, porquanto o assistente se recorda de ter assinado, em conjunto com a sua esposa, folhas em branco que o arguido dizia servirem para os seus advogados elaborarem procurações forenses e requerimentos vários.

82. Por maioria de razão, e de acordo com as regras da experiência comum, aliadas ao critério do homem médio (bonus pater familias) colocado diante de idêntica situação, não é credível que o assistente (e a sua esposa) tenham assinado, no espaço de apenas 3 dias, duas declarações de dívida cujos textos são em tudo idênticos, excepto no que concerne ao valor em dívida, ao número de prestações a pagar e respectivo valor e à data do documento.

83. O assistente reconheceu no já identificado processo-crime que intentou contra o aqui arguido, que foi constrangido a assinar, sob ameaça com mal importante, a declaração datada de 23 de Outubro, dela constando o valor de € 150.000, 00.

84. Já o mesmo não sucedeu relativamente à declaração utilizada pelo arguido como título executivo na acção executiva acima identificada, a qual, REALCE-SE, não só tem uma data anterior àquela, i.e., data de 20 de Outubro de 2006, e diz respeito a uma alegada dívida de € 501.714, 00!!!

85. Nem o assistente, nem a sua esposa assinaram tal declaração, nem jamais receberam do arguido a quantia monetária escrita na referida declaração, nem qualquer outra!!!

86. As assinaturas nela apostas ou foram falsificadas pelo arguido, ou resultaram da assinatura de folhas em branco, numa quais foi aposto pelo arguido, a posteriori, o correspondente texto dactilografado, com o único objectivo de obter para si, ilegitimamente, dinheiro ou bens ao assistente.

87. Sem prescindir, dúvidas não remanescem de que os dizeres constantes da declaração que o arguido utilizou a seu proveito para interpor acção executiva contra o assistente e sua esposa, foram por si forjados.

88. E tanto assim é que o mesmo conseguiu que tenham sido penhorados todos os bens imóveis existentes em nome do assistente ou de que o mesmo é herdeiro ou comproprietário, bem como o saldo de uma conta bancária em nome deste — cfr. Doc. 4 junto com a participação criminal e documentos que se protestam juntar.

89. Com a sua conduta reiterada e continuada no tempo, o arguido, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, logrou, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar o assistente a praticar actos que causaram e ainda causam graves prejuízos patrimoniais quer para si, quer para a sua família.

90. O arguido, socorrendo-se de logros e ameaças (perda de bens, processos judiciais), determinou o assistente, cujo estado de saúde física e mormente psicológica era muito frágil, e a sua esposa, que confiava cegamente no seu marido, a assinar documentos em branco, para posteriormente transformar um dos mesmos numa “declaração de dívida”, nele forjando e apondo os dizeres transcritos no ponto 11, A), e usar corno título executivo e, consequentemente, penhorar todos os bens imóveis existentes em nome do assistente ou de que o mesmo é herdeiro ou comproprietário, bem como o saldo de uma conta bancária existente em seu nome, de forma a tornar seus todos estes bens.

91. O assistente, que está neste momento endividado e quase na miséria, corre o risco de perder em definitivo todo o seu património para o arguido,

92. Sem esquecer que desde Abril de 2014 que se começou a ser privado de dispor do seu património.

93. O arguido agiu livre e conscientemente e com dolo.

94. Com a sua conduta reiterada, movida por urna única resolução criminosa, continuada no tempo, lesou gravemente e continua a lesar o assistente e a sua família, ao ponto de este ficar em estado financeiro débil, com repercussões na sua vida pessoal e familiar, atento o extenso período de tempo ao longo do qual esta situação se vem mantendo até ao momento presente, e atento o valor consideravelmente elevado em causa.

95. Pelo exposto, deseja o assistente que o arguido seja pronunciado pelo crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.° 218, conjugado com os art.°s 217, n.” 1 e o 202, al. b), todos do Código Penal.

96. Entendeu o Ministério Público, doravante designado por M.P., acusar o arguido pela prática de um único crime, designadamente o crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. o 256, n. o 1, als. e) e f) e pelo art. o 255, al. a), ambos do Código Penal.

97. Pese embora o assistente concorde com alguns dos factos relatados na Douta acusação em apreço, considera o mesmo que, atenta a factualidade acima exposta, deve o arguido ser pronunciado pelo crime de burla qualificada.

98. Com efeito, entendeu o M.P., na sua Douta acusação, que, por força do princípio “non bis in idem”, estando em causa a repetição da alegação de eventos já objecto de apreciação judicial no âmbito de um processo criminal n.” 2140/06.3TALRA do 3.° Juízo Criminal, o qual nada tem que ver com os presentes autos, os presentes autos deviam ser parcialmente arquivados.

99. Mais entendeu proferir acusação com os seguintes fundamentos:

a) Em data indeterminada do ano de 2006, na sequência de ter travado conhecimento e obtido a confiança do assistente, convenceu-o de que E... havia instaurado uma acção judicial contra si para recuperar do prejuízo que havia sofrido decorrente de acção cível por defeitos de construção de uma vivenda.

b) O arguido disse ao ora assistente que ele iria perder todos os seus bens mas que estivesse descansado pois conhecia bons advogados e iria ajudá-lo.

c) Solicitou-lhe que assinasse, conjuntamente com a sua esposa, uma folha de papel A4 em branco, alegadamente para ser passada uma procuração aos referidos advogados.

d) Em data indeterminada de 2006, crendo no alegado pelo arguido, o assistente e a sua esposa apuseram manuscritamente as suas assinaturas numa folha A4, em branco, seguidas, respectivamente, uma da referência ao BJ (...) emitido em 19/12/2001, Leiria e a outra seguida de referência ao BI (...) , 26/11/2002, Leiria.

e) O assistente entregou a referida folha A4 ao arguido, que a fez sua.

f) Em data indeterminada, alguém apôs na referida folha A4, por cima das referidas assinaturas, o seguinte texto:

“ A... e B... (...) declaram ter uma dívida para com o Sr. C... ( ... ), no montante de 501.714, 00 € (Quinhentos e Um mil Setecentos e Catorze Euros), obrigando-se a cumprir e a reconhecer as seguintes cláusulas:

Os declarantes obrigam-se a pagar a quantia em dívida em trinta de seis prestações mensais, sucessivas e iguais de 13.936, 50 euros, cada uma.

As prestações começam a ser pagas a primeira até ao dia 1 de Janeiro de 2007 e as restantes até ao dia 1 de cada mês seguinte.

O não pagamento de uma das prestações, faz vencer e torna exigíveis as restantes prestações em falta, vencendo-se de imediato juros à taxa legal sobre a quantia em dívida.

Sem prejuízo da cláusula anterior, pelo atraso do cumprimento desta declaração, estabelece-se uma cláusula penal no valor de 50% da dívida que existir no montante do incumprimento.

A dívida reconhecida nesta declaração resultou de um empréstimo efectuado pelo Sr. C... , aos ora declarantes.

A presente declaração tem força executiva e vale para todos os efeitos consagrados na alínea c) do art. 46° do Código Processo Civil.

Leiria, 20 de Outubro de 2006”.

g) O assistente e sua esposa não receberam do arguido a quantia monetária escrita na referida folha A4.

h) Na posse da referida folha A4, bem sabendo que o seu conteúdo não correspondia à verdade, que havia sido elaborado por terceiros que não o assistente e sua esposa e contra a vontade dos mesmos, no dia 25 de Novembro de 2011 - 12:29:27GMT, por via electrónica, o arguido deu entrada de requerimento executivo de pagamento de quantia certa (dívida civil), no valor de € 752.571, 00 (setecentos e cinquenta e dois mil quinhentos e setenta e um Euros).

i) O título executivo apresentado pelo arguido era constituído pela referida folha A4 com assinaturas alegadamente do assistente e da sua esposa,

j) E deu origem ao Processo de Execução Comum n.º (...) e respectivos apensos, actualmente a correr na Comarca de Leiria - Pombal Juízo de Execução - La Secção (Ansião).

k) O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente.

1) Bem sabia que não havia entregue a quantia monetária de € 501.714, 00 (quinhentos e um mil setecentos e catorze Euros) ao assistente e sua esposa,

m) E que os escritos apostos na aludida folha A4 haviam sido elaborados e aditado sna folha em branco por outrem que não o assistente e sua esposa, contra a vontade e sem autorização dos mesmos.

n) Previu e quis usar a referida folha A4 corno título executivo em 25 de Novembro de 2011, em Leiria, para ser instaurada acção executiva e se locupletar de bens e valores monetários do assistente e sua esposa no valor de € 752.571, 00 (setecentos e cinquenta e dois mil quinhentos e setenta e um Euros), acrescido de juros à taxa legal em vigor desde a citação e até ao efectivo pagamento, sem que qualquer contraprestação tivesse existido, visando obter vantagem patrimonial ilegítima.

o) O arguido bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

100. Com o devido respeito, que é muito, o assistente não concorda com o tipo de ilícito pelo qual veio o M.P. acusar o arguido,

101. Pugnando pela pronúncia do mesmo pelo crime de burla qualificada.

102. Os elementos do crime de burla, previstos no art.º 217 do Código Penal, são:

a) O uso de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados;

b) Para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceiros, prejuízo patrimonial;

c) Intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo Leal-Henriques/Simas santos in “Código penal”, 2.a edição, Volume II, Rei dos Livros, 1997, pág. 537.

103. A realização objectiva do ilícito pressupõe, desde logo, a existência de urna situação de erro ou de engano, astuciosamente provocada.

104. Segundo o entendimento de José António Barreiros in “Crimes contra o Património, 1996, p. 165, “Haverá, para que de astúcia se possa falar, de ocorrer uma actuação engenhosa da parte do agente do crime, algo ao nível do estratagema ardiloso, da encenação orientada a ludibriar. “

105. Tal engenho astucioso está inequivocamente demonstrado nos presentes autos!

106. Dúvidas não podem restar de que o arguido, ao falsificar as assinaturas do assistente e da sua esposa ou ao apor na folha em branco, tamanho A4, eventualmente assinada pelo assistente e sua esposa, os dizeres acima transcritos, transformando-o (em qualquer uma destas hipóteses) numa “Declaração de dívida” e dando-o à execução como título executivo, com o que logrou a penhora de bens do assistente, agiu com intenção clara e inequívoca de o enganar.

107. Efectivamente, o arguido sabia que com a sua conduta estava a apoderar-se, astuciosamente, dos bens do assistente, privando-o de aceder ao seu património,

108. Do qual desejou e deseja ainda vir a ser proprietário.

109. Assim, e ao contrário do alegado no Douto despacho de arquivamento parcial e acusação pelo crime de falsificação de documento, por um lado existem factos que não foram objecto de decisão em nenhum tribunal criminal previamente ao presente, e, por outro lado, uma falsificação de escritos utilizados unicamente como meio de burlar alguém.

110. No caso dos autos, e fazendo alusão à matéria objecto de prova no âmbito do processo-crime n.” 522/06.0JALRA do 2.° Juízo Criminal, não está em causa a mesma situação motivacional, ou seja, estão em causa acções distintas, embora provindas de um contexto inicialmente coincidente em termos cronológicos, as quais pressupõem estarem em causa condutas distintas e in casu um particular e específico desígnio criminoso, o de obter os bens do assistente por via de uma falsa declaração de dívida.

111. Segundo o Assento n.º 8/2000, in DR 119 SÉRIE I-A, de 2000-05-23, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.°, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.°, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.

112. “Há pelo menos sete novos dados a impor a ultrapassagem da fixação da jurisprudência dos acórdãos do STJ quanto ao concurso de crimes de falsificação e burla.

113. Uma falsificação de escritos utilizados unicamente como meio de burlar alguém, está em concurso aparente (é consumida pelo) com o crime de burla (crime-fim), devendo a punição deste concurso ser encontrada na moldura penal mais grave, na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida da pena.” - Acórdão da Relação de Lisboa de 29-06-2010 in -www.dgsi.pt

114. Com o devido respeito, que é muito, sufragamos a segunda posição, segundo a qual uma falsificação de escritos utilizados unicamente como meio de burlar alguém, está em concurso aparente (é consumida pelo) com o crime de burla (crime-fim).

115. Contudo, se V. Exa. assim não entender, o que se admite por mera hipótese académica, o arguido deverá ser então pronunciado pela autoria, em concurso real, dos crimes de burla e falsificação de documento.

116. O comportamento do arguido revela uma conduta desleal e inadmissível para o ordenamento jurídico, violadora dos mais básicos ditames da boa fé e que consubstancia “o desvalor característico do ilícito da burla, integrando, nessa medida, a expressão acabada do conteúdo da previsão do art. 217.°”, Almeida Costa in “Comentário Conimbricense do Código penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 300.

117. Ora, só o arguido teve acesso à folha utilizada como título executivo, sendo ainda o único a beneficiar com a interposição da sequente acção executiva.

118. Dúvidas não remanescem de que o arguido falsificou o documento como meio de burlar o assistente com o inequívoco objectivo de se locupletar às custas do mesmo.

119. Ao interpor a acção executiva, crente de estar acima de qualquer suspeita em virtude de ter sido absolvido do anterior processo-crime, o único escopo do arguido era conseguir o seu enriquecimento ilegítimo,

120. Tendo, para tanto, levado o assistente a praticar actos que lhe causaram indubitavelmente prejuízos patrimoniais Ce morais), o que fez apelando à sua confiança, por um lado, e provocando no mesmo sensações de pânico e vulnerabilidade, para depois poder oferecer-lhe a sua “ajuda”.

121. Pelo exposto, tudo indica que o arguido ou falsificou as assinaturas apostas no documento utilizado por si como título executivo, ou elaborou e aditou à folha assinada em branco, que depois utilizou como título executivo, os dizeres nela apostos, o que fez livre e conscientemente, contra a vontade do assistente e da sua esposa.

122. O crime de burla assume, in casu, a forma qualificada em virtude de estar em causa o prejuízo patrimonial for de valor elevado, tal como previsto nos art. Os 218 e 202 do Código Penal.

123. Atento todo o retro exposto, o assistente vem requerer a V. Exa. se digne ordenar que sejam efectuadas as seguintes diligências, que não foram tidas em conta pelo Digníssimo M.P.:

1. Que o Tribunal Judicial de Pombal (Ansião) seja oficiado para fornecer aos autos certidão da sentença proferido no âmbito do processo executivo n.º (...) do Juízo de Execução, cuja cópia simples ora se junta como Doc.l.

2. Realização de exame pericial às assinaturas constantes do título executivo utilizado pelo arguido como título executivo nos autos com o n.º (...) , que correm termos na Comarca De Leiria- Pombal - Instância Central - 2a Secção De Execução - .TI (perícias caligráficas e outras que se revelem necessárias), por organismo oficial, no sentido de determinar se as mesmas correspondem à do arguido e da sua esposa, B... , residente na Rua (...) Leiria;

3. Realização de exame pericial ao documento referido no ponto anterior, por organismo oficial, destinado a provar se os dizeres dele constantes foram forjados, não correspondendo à realidade o teor nele consignado e não sendo o mesmo da autoria do assistente e da sua esposa (nomeadamente através de exames ao texto impresso no aludido documento e respectiva tinta, bem como à tinta das assinaturas, de modo a comprovar que o mesmo foi inserido na folha em data posterior às assinaturas nele apostas);

4. Para comprovar que o arguido não tinha capacidade financeira para lhe emprestar qualquer quantia em dinheiro, requer-se a V. Exa. se digne ordenar que sejam oficiados:

a) A Administração Tributária, para juntar aos autos certidão comprovativa das declarações de rendimentos apresentadas pelo arguido nos anos de 2005 a 2007, bem como cadernetas prediais referentes a eventuais bens imóveis existentes em nome do mesmo;

b) A Conservatória do Registo Automóvel de Leiria para informar os autos se existem veículos em nome do arguido;

c) As instituições bancárias em que existam contas tituladas pelo arguido, em que o mesmo detenha quaisquer saldos bancários ou quaisquer produtos financeiros, para fornecerem aos autos cópia dos extractos detalhados dos quais constem todos os movimentos bancários do mesmo de 2005 a 2007;

d) O Banco “ M..., S.A.”, no sentido de fornecer aos autos cópia dos extractos detalhados dos quais constem todos os movimentos bancários de 2005 a 2007 da conta n.” (...) , titulada pela empresa “ N...- Unipessoal, Lda.” de que o arguido foi, à data dos factos sub iudice. único sócio e gerente, na qual creditou cheques assinados pelo assistente;

e) Os Bancos “ O..., S.A.” e “ P..., S.A.” para fornecerem aos autos cópia dos extractos detalhados dos quais constem todos os movimentos bancários de 2005 a 2007 das contas tituladas pelo mesmo e pela sua esposa com os n.ºs, respectivamente, (...) e (...) .

5. A tomada de declarações do ora assistente, que nunca foi ouvido em sede do presente inquérito;

6. A inquirição de todas as testemunhas abaixo indicadas, várias das quais não foram ouvidas pelo M.P.

Termos em que e nos demais de direito requer-se a V. Exa.:

I. Seja admitida a constituição de assistente;

II. Seja declarada a abertura de instrução e, em consequência, proferido despacho de pronúncia do arguido pela prática do crime de burla qualificada, ou, caso V. Exa. assim não entenda, o que se admite por mero dever de patrocínio, pela prática, em concurso real, dos crimes de falsificação de documento e de burla qualificada.”

Continuando:

Uma vez que o processo penal se destina a efectivar a responsabilidade penal, apenas faz sentido prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, quando seja possível imputar a uma pessoa factos concretos que constituem crime.

Por isso, sendo a decisão instrutória um marco do prosseguimento do processo para julgamento, determina o artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal[[1]], que embora o requerimento para abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, caso seja apresentado pelo assistente, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação, bem como dos factos que se espera provar, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 283º nº 3, ou seja, o requerimento do assistente para abertura de instrução terá que conter, para além do mais, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Este formalismo legal é compreensível e inultrapassável porque, destinando-se o processo penal a efectivar a responsabilidade penal, apenas pode prosseguir quando estão presentes os pressupostos da punição, ou seja, como acima se disse, quando é possível imputar a uma concreta pessoa factos que constituem crime.

Por isso, como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Novembro de 2011[[2]], “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141).

Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.

Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução (cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº 7/2005). [[3]]

Aliás, consubstanciando este entendimento (ainda que respeite à acusação, as razões jurídicas são precisamente as mesmas), o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 - Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27 após explicar que têm de ser descritos “os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS. Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude), fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

Em suma: no requerimento para abertura da instrução formulado por assistente devem ser narrados os factos que fundamentam a aplicação de uma pena e indicadas as disposições legais aplicáveis, sendo certo que, delimitando o mesmo os poderes de cognição do juiz de instrução e sendo nele que o arguido assenta a defesa, dúvidas não podem existir de que a descrição factual do crime tem que ser apresentada de uma forma clara e insusceptível de qualquer confusão, não só para o tribunal como também, e muito especialmente, para o arguido.

Ora, basta a simples leitura do RAI para que se conclua que estamos perante uma peça processual de uma prolixidade imensa, onde proliferam conclusões misturadas com opiniões e afirmações e um ou outro facto mais ou menos inócuo, ou seja, que estamos perante uma peça processual onde foi olvidado que, nos termos do n.º 2, do artigo 287.º n.º 2, o requerimento de instrução, além de dever incluir uma súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou arquivamento, tem de incluir a indicação dos factos que, em face dos meios de prova constantes do inquérito e que venham a ser produzidos em sede de instrução, o assistente prevê vir a provar.

Grande parte do RAI é composta pela descrição de factos sem uma identificação subjectiva minimamente compreensível e até, muitas vezes, sem que dela se consiga extrair a utilidade que os mesmos poderão ter para a causa, o que leva a que seja deixado ao tribunal a inconcebível tarefa de desvendar nas entrelinhas a factualidade relevante para a decisão e o seu fio condutor, o que de imediato tem como consequência dificultar o pleno exercício do direito de defesa do arguido, o qual inelutavelmente assenta na enunciação delimitada e clara dos factos que constituem o crime que lhe é imputado.

Para além disso, tal como é entendimento do Meritíssimo Juiz “a quo”, do conjunto de factos que é possível coligir resulta que não é possível encontrar aqueles em que se alicerça a astúcia que determina o engano.

Aliás, em sede de recurso o recorrente afirma que tais factos se encontram descritos no RAI mas, ao invés de os especificar, volta a contar a história do princípio ao fim, ou seja, volta a deixar a cargo do tribunal a escolha dos factos que poderão fundamentar o erro ou engano provocado pelo arguido, sendo certo que não é a mera invocação da existência de uma providência cautelar ou de uma queixa crime que integra tal elemento típico.

Daí que não mereça qualquer censura o despacho recorrido, sendo certo que em termos factuais, atentas as vicissitudes de que padece o RAI e que foram por nós referenciadas, tem o Meritíssimo Juiz evidente suporte para afirmar que “do requerimento apresentado pelo assistente consta a descrição de factos que na sua opinião traduzem um clima de medo e de temor em que o assistente vivia, sendo ainda referido que essa vulnerabilidade era conhecida do arguido e que o mesmo aproveitando-se dessa situação e usando ainda de “logros” e de ameaças (perda de bens, processos judiciais) determinou que o assistente assinasse documentos em branco, para posteriormente transformar um deles na declaração referida, nela forjando e apondo na mesma os dizeres que dela constam, para a usar como um titulo executivo e conseguir desta forma penhorar os bens do assistente”, pelo que mais não havia do que considerar que “o assistente não descreve factos integradores de um comportamento astucioso ou ardiloso praticado pelo arguido e que tenha sido em consequência dessa astúcia ou ardil que o assistente tenha praticado actos que lhe causaram um prejuízo de natureza patrimonial” ou seja, que “o assistente não delimitou no requerimento apresentado para a abertura de instrução os factos que seriam objecto de apreciação em sede de instrução com o rigor que se impunha”.


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Em suma: o RAI incumpre o disposto no art.º 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal porquanto nele não constam todos os elementos do crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1, 218º, nº 2, alínea a. 202º, al. b) todos do Código Penal que o assistente imputava ao arguido.

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Deve, assim, concluir-se que o douto despacho recorrido, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal desta (artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal), não é merecedor de reparo.

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Assim sendo, bem andou o tribunal “a quo” quando rejeitou o requerimento para abertura da instrução.

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Face ao exposto, julga-se improcedente o recurso.

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Condena-se o assistente no pagamento de 5 UC de taxa de justiça.

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Coimbra, 10 de Janeiro de 2018

Luís Ramos (relator)

Paulo Valério (adjunto)


[1] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem
[2] Acessível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão cuja acessibilidade não seja localmente indicada

[3] No mesmo sentido, v.g., Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Novembro de 2014 (“Ao assistente, no RAI, não basta contrapor argumentos aos argumentos apresentados pelo Ministério Público aquando do arquivamento, sem cuidar de conformar esses argumentos à estrutura de uma acusação. O RAI tem que assumir as vestes de uma acusação, que o processo não tem, sendo este requerimento que, uma vez admitido, vai conformar o desenvolvimento de todo o processo.”), de 10 de Julho de 2014 (“Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução determinados deveres, entre eles, o de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela descrita conduta proibida”), de 25 de Junho de 2014 (“A exigência legal de o requerimento para abertura da instrução conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se tanto aos elementos objectivos como subjectivos do crime imputado, porquanto não existe crime/responsabilidade penal sem que uns e outros se mostrem preenchidos”) e decisão sumária de 27 de Novembro de 2013 (“Discordando o assistente do arquivamento do processo de inquérito por parte do Ministério Público e decidindo-se pela via processual do requerimento de abertura de instrução, fica este onerado à rigorosa observância das formalidades postuladas pelo n.º 2 do 287.º CPP, enunciando, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, bem como, sendo caso disso, a indicação dos atos de instrução que pretenda que o Juiz (JIC) leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e os factos concretos que através de uns e outros se espera provar, dos elementos constitutivos, objetivos e subjetivos de determinada/imputada infração criminal, que haverá, outrossim, que expressamente identificar, bem como da enunciação da concernente liberdade de determinação do(s) agente(s) e do pessoal conhecimento/consciência da respetiva ilicitude comportamental, ou seja, da culpa – em sentido estrito –, precisando (se tal for revelado no inquérito) as circunstâncias de tempo, lugar e modo da comissão infraccional, a motivação da respetiva realização, o grau comparticipativo do agente (autoria – imediata/material, mediata/moral ou coautoria – ou cumplicidade), e, ainda, quaisquer outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção aplicável, como, se for caso disso, as específicas menções ao passado criminal do alegado infrator, representativas, máxime, dos institutos jurídicos de delinquência por tendência, alcoolismo ou toxicomania (condicionantes de cominação de pena relativamente indeterminada), ou, subsidiariamente, de reincidência, sob pena de nulidade do próprio ato, naqueloutro dispositivo expressamente cominada; 2- A não realização por parte do assistente de tal ónus processual, constitui nulidade do requerimento de instrução que conduz á sua rejeição.”), e ainda, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Junho de 2014, de 6 de Julho de 2011, de 17 de Novembro de 2010, de 15 de Setembro de 2010, de 14 de Julho de 2010, de 3 de Fevereiro de 2010, de 20 de Janeiro de 2010, de 23 de Setembro de 2009 e de 7 de Janeiro de 2009, do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Setembro de 2011, de 27 de Maio de 2010 e de 1 de Abril de 2008, do Tribunal da Relação de Évora de 19 de Março de 2013, de 5 de Fevereiro de 2013, de 15 de Novembro de 2011, de 12 de Abril de 2011, de 11 de Março de 2014, de 13 de Abril de 2004, de 20 de Março de 2007 e de 17 de Maio de 2006 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de Dezembro de 2012 e de 28 de Maio de 2012.