Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
858/09.8TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
RELAÇÕES MEDIATAS
EXCEPÇÕES
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.17, 28 LULL
Sumário: 1. A integração na previsão legal da segunda parte do artigo 17.º da LULL, não se basta com a simples má fé, traduzida no conhecimento do vício anterior, revelando-se ainda necessário que o portador, ao adquirir as letras, tenha agido com a consciência de prejudicar o devedor.

2. Não tendo a executada (sacada e aceitante), alegado quaisquer factos de onde se possa concluir que o banco exequente ao adquirir as letras tenha procedido conscientemente em seu detrimento, deverá este ser considerado legítimo portador do título cambiário.

3. Situando-se no domínio das relações mediatas, a relação estabelecida entre a executada e o banco exequente, não pode a executada opor validamente ao legítimo portador das letras, excepções resultantes da sua relação com a sacadora, nomeadamente no que se refere a eventuais pagamentos que lhe possa ter efectuado, dado que só o pagamento ao legítimo portador da letra poderia exonerá-la da obrigação cambiária incorporada no título.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
O Banco (…), SA, instaurou contra A (…)Lda, a acção executiva n.º 858/09.8TBVIS, apresentando como títulos executivos as quatro letras de câmbio (originais) juntas a fls. 64 a 67 dos autos, onde consta como sacadora a B (…)Lda, e como sacada e aceitante a executada.
A executada A (…) Lda deduziu oposição à execução, alegando em síntese que as letras apresentadas como títulos executivos se encontram pagas, tendo sido tais pagamentos efectuados à sociedade B (…) Lda, com quem mantinha relações comerciais, e ao seu administrador após ter sido declarada a insolvência.
O exequente contestou a oposição, alegando que nunca reformou qualquer letra, nunca recebeu qualquer valor por conta das mesmas, situando-se a relação cambiária no âmbito das relações mediatas, não sendo oponível ao banco exequente excepções referentes à relações comerciais entre a sacadora e a aceitante das letras.
Realizou-se uma audiência preliminar, na qual, conforme consta da acta de fls. 68, se determinou a suspensão da instância executiva, com fundamento no facto de o crédito exequendo ter sido reclamado pelo ora exequente nos autos de insolvência n.º 509/08.8TBSCD, considerando que o eventual pagamento no âmbito da insolvência determinaria a extinção da instância na execução, por inutilidade da lide.
Tal suspensão veio a ser reiterada no despacho de fls. 98, onde se determinou «suspende-se esta instância até ao pagamento aos credores a efectuar nos referidos autos de insolvência ou até ao momento em que no dito processo seja possível determinar com certeza (por ex. por rateio ali efectuado) que o valor dos bens ali apreendidos não permitirá o pagamento do crédito ali reclamado pelo exequente Banco (…) SA».
Através do ofício de fls. 104, o Administrador da Insolvência informou o tribunal acerca do mapa de rateio parcial (junto a fls. 105 a 112), e do pagamento, judicialmente autorizado “dos créditos privilegiados dos trabalhadores e da Fazenda Nacional”.
Perante tal informação, foi proferido despacho a declarar a cessação da suspensão da instância (fls. 113), após o que se proferiu sentença que julgou improcedente a oposição.
Não se conformando, a executada/oponente interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões:

a) Nos autos de execução Processo n.º 858/09.8TBVIS, são títulos executivos quatro letras de câmbio nas quais figura como sacado e aceitante a executada, oponente e ora recorrente

b) Letras de câmbio entregues pela executada oponente e ora recorrente à Sociedade B (…), sacador

c) B (…)que foi declarada insolvente por douta sentença em 10-09-2008, cujo processo corre termos pelo Tribunal Judicial de Santa Comba Dão sob o n.º 509/08.9 TBSCD 2° Juizo

d) Em 18-03-2009 foi interpelada a ora recorrente pelo Administrador para proceder ao pagamento da dívida desta para com a insolvente e em nome desta

e) Em 14/04/2009 foi aceite o pagamento do valor em dívida em quatro prestações pelo Administrador da Insolvência

f) Em 23-04-2009 envia a oponente ora recorrente ao Administrador da Insolvente, quatro cheques pré-datados do Banif, emitidos por esta à ordem da massa insolvente (…) Lda.

g) Foi considerado provado o pagamento do restante valor peticionado, sempre, tal como consta da aliás douta sentença ao sacador a sociedade B (…)Lda

h) O pagamento é uma excepção peremptória, art.º n.º 3 do CPC, importando a absolvição total ou parcial do pedido que consiste na invocação de factos que impendem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo aqui exequente

i) As quatro letras de câmbio dadas à execução foram reclamadas na insolvência

j) Crédito já reconhecido e graduado ao recorrido, pelo que não se compaginaria com a solução legal subscrita pela Meritíssima Juiz a quo, se a ora recorrente tivesse de pagar duas vezes, desequilibrando assim o já tão frágil tecido comercial, colocando em crise a tão desejada paz e segurança no comércio jurídico

k) Trata-se pois de uma questão prejudicial, devendo manter-se a suspensão da instância

I) Pagou, procedeu ao pagamento, a ora recorrente porque interpelada pelo Administrador da Insolvência, sob a cominação legal do seu incumprimento

m) Desta forma e por estas razões já sobejamente aduzidas, as letras de câmbio dadas à execução estão pagas e mesmo que se assim não se entendesse, o que desde já não se concebe, estão também reclamadas, reconhecidas e graduadas no processo de insolvência, pelo que não pode a executada, oponente e ora recorrente pagar duas vezes, por maioria de razão a exequente, oponida e ora recorrida receber duas vezes
O recorrido/exequente apresentou contra-alegações, nas quais reitera o entendimento da inoponibilidade por parte da aceitante das letras, ao seu legítimo portador, das excepções baseadas na relação subjacente.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões de conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: saber se a aceitante das letras dadas à execução (executada/oponente) pode opor ao exequente a excepção de pagamento à sacadora; saber se, face à reclamação do crédito por parte da exequente, nos autos de insolvência da sacadora, se deveria ter mantido a suspensão da instância.

2. Fundamentos de facto
O tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade, não impugnada:
2.1. Nos autos de execução nº 858/09.78 é titulo executivo quatro letras nas quais figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda.
2.2. As letras supra referidas foram entregues pela opoente à sociedade B (…) Lda.
2.3. Uma das letras tem como data de emissão e vencimento 08.02.10 e 2008.04.10 e a referência de reforma do aceite de 12.385.88 euros c/vem em 10.02.2008.
2.4. A outra tem como data de emissão e vencimento 08.03.12 e 2008.05.12 e a referência de reforma do aceite de 12.690.40 euros c/vencimento em 26.02.2008.
2.5. A outra tem como data de emissão e vencimento 08.03.22 e 2008.05.22 e a referência de reforma do aceite de 4 724.60 euros c/vencimento em 22.03.2008.
2.6. A outra tem como data de emissão e vencimento 08.03.30 e 2008.05.30 e a referência de reforma do aceite de 2 344.96 euros c/vencimento em 30.03.2008.
2.7. Como doc nº 3 a oponente juntou um cheque no valor de 4 128,63 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2007.10.15 e uma letra com data de emissão e vencimento 07.10.10 e 2007.12.10 e a referência reforma do aceite de 20.643.14 euros c/vem em 10.10.2007 na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda no valor de 16 514,51 euros.
2.8. Como doc nº 4 a oponente juntou um cheque no valor de 4 128,63 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2007.12.12 e uma letra com data de emissão e vencimento 07.12.10 e 2008.02.10 e a referência reforma do aceite de 16.514.51 euros c/vem em 10.12.2007 na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda no valor de 12 385,88 euros.
2.9. Como doc nº 5 a oponente juntou um cheque no valor de 4 128,63 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…), Lda em 2008.02.13 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.02.10 e 2008.04.10 e a referência reforma do aceite de 12.385.88 euros c/vem em 10.02.2008 na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda no valor de 8 257,25 euros.
2.10. Como doc nº 6 a oponente juntou um cheque no valor de 4 128,63 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.04.14 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.04.10 e 2008.06.10 e a referência reforma do aceite de 8.257.25 euros c/vem em 10.04.2008 na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda no valor de 4 128,62 euros.
2.11. Como doc nº 7 a oponente juntou um cheque no valor de 4 128,63 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.06.13.
2.12. Como doc º 8 juntou uma letra com data de emissão e vencimento 07.11.12 e 2008.01.12 e a referência liquidação das facturas nº 70332, nº 70333 na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda no valor de 15 863,00 euros.
2.13. Como doc nº 9 a oponente juntou um cheque no valor de 3 172,60 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.01.16 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.01.12 e 2008.03.12 e a referência reforma do aceite de 15.863.00 euros c/vem em 12.01.2008 no valor de 12 690,40 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda.
2.14. Como doc nº 10 a oponente juntou um cheque no valor de 3 172,60 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…), Lda em 2008.03.14 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.03.12 e 2008.05.12 e a referência reforma do aceite de 12.690.40 euros c/vem em 26.02.2008 no valor de 9 517,80 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda .
2.15. Como doc nº 11 a oponente juntou um cheque no valor de 3 172,60 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.05.14 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.05.12 e 2008.07.12 e a referência reforma do aceite de 9.517.80 euros c/vem em 12.05.2008 no valor de 6 345,20 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda .
2.16. Como doc 11 juntou documento emitido pelo BES comprovativo da entrega para depósito na conta 21110062 titulada por B (…), Lda em 09.06.08 de um cheque do BIF 30006448771 21618411 22 no valor de 3 172,60 euros.
2.17. Como doc 11 juntou documento intitulado remessa de efeitos proveniente do Millenium bcp no valor de 6 345,20 euros referente à reforma do aceite de 9 517,80 euros c/venc. em 12.05.2008 no qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda .
2.18. Como doc 12 juntou carta datada de 2009.03.18 que lhe foi endereçada por Rui Almeida administrador da insolvente B (…) Lda na qual lhe pede o pagamento da divida da oponente à insolvente no valor de 11 916 67 euros por cheque no prazo de 5 dias em nome da massa insolvente.
2.19. Como doc 13 juntou carta da oponente ao supra referido administrador datada de 09 de Abril de 2009 na qual a oponente reconhece dever o valor de 11 708,22 à insolvente o qual advém do saldo de uma conta corrente de desconto de letras que existia entre a insolvente e a oponente e se propõe pagar em oito prestações iguais e sucessivas de 1 463,52 euros mediante a entrega de cheques pré datados.
2.20. Como doc 14 juntou documento intitulado extracto de contas da empresa A (…) Lda.
2.21. Como doc 15 juntou carta que lhe foi enviada pelo mesmo administrador datada de 2009.04.14 na qual foi aceite o pagamento do valor em divida em 4 prestações duas de 2 927,06 e duas de 2 927,05 vencendo-se a primeira de imediato e as restantes em igual dia dos seguintes meses.
2.22. Como doc 16 juntou a oponente carta endereçada ao administrador já identificado datada de 23 de Abril de 2009 na qual a opoente a ceita a proposta de pagamento da quantia de 11 708,22 euros em 4 prestações duas de 2 927,06 e duas de 2 927,05 vencendo-se a primeira em 30 de Abril de 2009 e as restantes nos 30 dias de Maio, Junho e 30 de Julho de 2009.
2.23. Juntou quatro cheques pré datados do BANIF para serem descontados nas datas neles apostas: Cheque nº 6528012997 - € 2927.06 – 30/04/2009; Cheque n° 5628012998 - € 2927.06 – 30/05/2009; Cheque n° 3828013000 - € 2927.05 – 30/06/2009; Cheque n° 2928013001 - € 2927.05 – 30/07/2009.
2.24. Como doc nº 17 juntou a oponente cópias dos cheques Cheque nº 6528012997 - € 2927.06 – 30/04/200; cheque n° 5628012998 - € 2927.06 – 30/05/2009; cheque n° 3828013000 - € 2927.05 – 30/06/2009; e cheque n° 2928013001 - € 2927.05 – 30/07/2009 emitidos pela oponente á ordem da massa insolvente B (…), Lda
2.25. Como doc º 19 juntou uma letra com data de emissão e vencimento 07.11.22 e 2008.01.22 e a referência liquidação das facturas nº 70342, nº 70343 na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda no valor de 5 905,74 euros.
2.26. Como doc nº 20 a oponente juntou um cheque no valor de 1 181,14 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…), Lda em 2008.01.24 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.01.22 e 2008.03.22 e a referência reforma do aceite de 5.905.74 euros c/vem em 22.01.2008 no valor de 4 724,60 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda.
2.27. Como doc nº 21 a oponente juntou um cheque no valor de 1 181,14 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.03.26 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.03.22 e 2008.05.22 e a referência reforma do aceite de 4.724.60 euros c/vem em 22.03.2008 no valor de 3 543,46 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…) Lda .
2.28. Como doc nº 22 a oponente juntou um cheque no valor de 1 181,14 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.05.26 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.05.22 e 2008.07.22 e a referência reforma do aceite de 3.543.46 euros c/vem. em 22.05.2008 no valor de 2 362,32 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda.
2.29. Como doc n.º 23 juntou uma letra com data de emissão e vencimento 08.01.30 e 2008.03.30 e a referência liquidação da factura nº FA080038 no valor de 2 344,96 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…)Lda.
2.30. Como doc nº 24 a oponente juntou um cheque no valor de 468,99 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…),Lda em 2008.03.31 e uma letra com data de emissão e vencimento 08.03.30 e 2008.05.30 e a referência reforma do aceite de 2.344.96 euros c/vem em 30.03.2008 no valor de 1 875,97 euros na qual figura como sacada e aceitante a oponente, e como sacador a sociedade B (…), Lda.
2.31. Como doc nº 24 a oponente juntou um cheque no valor de 1 875,97 euros emitido pela oponente em Viseu à ordem de B (…) Lda em 2008.06.02.
2.32. Como doc 26 juntou documento emitido pelo BPN comprovativo da entrega para depósito na conta 29801461 titulada por B (…) Lda em 2008/06/04 do valor de 1 875,97 euros.

3. Fundamentos de direito
3.1. A inoponibilidade de excepções respeitantes à relação subjacente
Dispõe o artigo 17.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças: «As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor
Como refere Abel Delgado, em anotação à norma transcrita[1], de acordo com a melhor doutrina (Ferrer Correia e Pereira Coelho), “não basta a simples má fé – conhecimento do vício anterior; é necessário, ainda, que o portador, ao adquirir a letra, tenha agido com a consciência de prejudicar o devedor”.
Tal entendimento doutrinário tem merecido amplo acolhimento na jurisprudência, como se ilustra com o acórdão do Tribunal Constitucional, proferido no Processo n.º 686/06[2]: «A previsão do normativo em análise não se basta, porém, com a má fé do adquirente, ou seja, com o conhecimento do vício anterior, antes exige também a consciência, por banda do portador mediato demandante, de causar um prejuízo ao devedor por virtude dessa aquisição e subsequente demanda»[3].
Nos presentes autos de oposição à execução, a executada não alega factos integradores da previsão legal da parte final do artigo 17.º da LULL, ou seja, que o exequente, ao adquirir as letras, tenha procedido conscientemente em seu detrimento, centrando toda a argumentação nas suas relações com a sacadora, alegando no artigo 15.º do requerimento inicial, que “a existir alguma falta de pagamento (…) será entre a B (…)Insolvente e a exequente”.
Há dois níveis a considerar: o da “relação causal”, subjacente à emissão do título, também designada por “contrato originário” ou “relação jurídica fundamental”[4], estabelecida entre a sacada e aceitante (executada/oponente) e a sacadora B (…) Lda; a relação cartular, que emerge da relação causal, e dela se autonomiza.
Como escreve Pedro Pais de Vasconcelos[5], o direito emergente e incorporado no título é autónomo em relação ao direito não-cambiário, subjacente que lhe deu origem. Os títulos de crédito não surgem “ex nihilo” no mundo do direito, nem no tráfego comercial. Têm sempre na origem um negócio ou, pelo menos, uma situação jurídica para cuja documentação, circulação, mobilização ou cobrança são emitidos.
Mais refere o autor citado: «O sacado numa letra não a aceita, em princípio se não dever alguma quantia ao sacador. O sacador do cheque saca-o sobre um banqueiro a quem confiou fundos e à ordem de alguém a quem deve pagar essa quantia inscrita no cheque. O direito incorporado pelo título é diferente daquele que o originou, é outro direito. O direito incorporado no título designa-se por direito cartular; o direito que lhe deu origem designa-se por direito subjacente.».
A distinção entre relações imediatas e relações mediatas releva para determinar o campo de aplicação do citado artigo 17º da LULL, já que, como se referiu, por força deste normativo, no âmbito das relações mediatas, as excepções pessoais[6] não são oponíveis ao portador mediato, a não ser que se demonstre que tal portador, ao adquirir o título cambiário, procedeu conscientemente em detrimento do devedor.
Visa a previsão legal em apreço, proteger o portador mediato do título, pondo-o ao abrigo de vícios ocorridos em relações a que é alheio, fomentando assim a circulação cambiária.
Como refere Abel Delgado[7], a letra situa-se no domínio das relações imediatas, quando está no domínio das relações entre o subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacado-tomador, tomador-primeiro endossado, etc), isto é, nas relações em que os sujeitos cambiários o são comitantemente das relações cartulares, passando para o domínio das relações mediatas, quando na posse de um portador estranho às convenções extracartulares.
Na síntese de Pinto Furtado[8], as relações imediatas diferenciam-se das relações mediatas, num primeiro entendimento «pela circunstância de o portador do título ou subscritor do título de crédito estar colocado na cadeia de transmissões que sucessivamente foram ocorrendo imediatamente a seguir ao devedor accionado – ou, pelo contrário, separado dele por interpostos subscritores ou portadores, portanto, numa posição mediata em relação a tal devedor»[9].
Na situação sub judice, a executada subscreveu a letra na qualidade de sacada, obrigando-se pelo aceite a pagá-la na data do vencimento[10] (art. 28.º da LULL).
A relação estabelecida entre a sacada/executada e a sacadora (B (…) Lda), situa-se no domínio das relações imediatas, podendo a executada opor à sacadora quaisquer excepções emergentes da relação causal.
No entanto, a relação estabelecida entre a sacada/executada e o exequente, portador da letra[11], situa-se no domínio das relações mediatas.
Decorre da conclusão que antecede, que a executada/oponente, não pode opor ao legítimo portador das letras dadas à execução, excepções resultantes da sua relação com a sacadora, nomeadamente no que se refere a eventuais pagamentos que lhe possa ter efectuado, dado que nada alegou no sentido de o exequente, ao adquirir as letras, ter procedido em seu detrimento (previsão da 2.ª parte do art. 17.º da LULL).
Só o pagamento ao legítimo portador da letra poderia exonerar a executada da obrigação cambiária resultante do título.
Como se refere no sumário do acórdão da Relação de Lisboa, de 25.01.2011[12]: «No âmbito das relações mediatas, a alegação da relação subjacente existente entre o aceitante e o sacador, desacompanhada da alegação de que o portador ao adquirir a letra agiu com a consciência de causar com esse facto um prejuízo ao portador, torna a defesa do oponente legalmente inócua e como tal, manifestamente improcedente.».
No plano da ética comercial, revela-se compreensível a posição da executada (sacada e aceitante), face aos pagamentos que efectuou à outra interveniente no título (sacadora).
No entanto, como já se referiu, a Lei Uniforme elege como valor essencial a protecção da circulação cambiária, libertando o legítimo portador do título, no âmbito das relações mediatas, de todas as excepções referentes à relação subjacente que esteve na sua origem, característica essencial da autonomia da relação cambiária.
Como refere Paulo Sendim[13], citando doutrina alemã: «[…] o documento cambiário é portador do crédito, não é um simples documento probatório, no documento estão incorporados os créditos cambiários, com o documento transmitem-se os créditos […]; os direitos que resultam da letra – com isso a possibilidade de o devedor se libertar com o pagamento – pertencem, e apenas, ao proprietário do documento […]; os direitos estão na letra, no documento, documentalmente incorporados […]».
Da literalidade do título decorre que o direito nele incorporado é definido nos termos precisos que dele constam, e por isso considerou o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 7.10.2003[14], como condição de oponibilidade do pagamento da letra, ao portador legítimo, no âmbito das relações mediatas, a sua inscrição no próprio título: «o pagamento é oponível nas relações mediatas ao portador de boa fé quando conste do título, pois então fica ou deve ficar a saber que a dívida está paga. Constitui então uma excepção absoluta ou objectiva, no sentido de eficaz erga omnes. Há que considerar a teoria da aparência e a tutela da confiança, basilares no direito cambiário.».
No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 22.09.2005[15], que, apreciando questão idêntica à que se discute nestes autos (alegação pela executada/sacada, perante o portador da letra, de pagamento à sacadora), decidiu: «Ao sacador com quem contratou, com quem está nas relações imediatas, pode o aceitante opor a mais lata defesa; mas a terceiro, como é o Banco descontador e endossado, com quem está nas relações mediatas, não pode opor as excepções fundadas nas relações pessoais com o sacador/endossante, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor (art. 17º da LULL)».
Conclui-se no citado aresto, com a seguinte citação do Professor Ferrer Correia, que exprime de forma eloquente os critérios de autonomia, literalidade e incorporação: «o direito de crédito não se extingue com o pagamento se o título continuar em circulação; pagando o aceitante ao portador, mas deixando a letra nas mãos deste, pode ser compelido a pagar segunda vez - a pagar a um terceiro de boa-fé a quem esse portador tenha endossado a letra».
Em suma, no âmbito das relações mediatas, o único pagamento que pode exonerar o sacado e aceitante da letra, é aquele que é efectuado ao legítimo portador, só ocorrendo a total exoneração, com a quitação, normalmente traduzida na entrega do título, ou, caso se trate de pagamento parcial, com a consignação no próprio documento, desse facto extintivo da obrigação cambiária.
 De todo o exposto decorre, salvo o devido respeito, a improcedência do recurso, no que concerne à invocação da excepção baseada na relação subjacente à emissão do título – alegação de pagamento à sociedade que figura no título como sacadora.

3.2. A cessação da suspensão da instância
Alega a executada/recorrente, que deveria ter sido mantida a suspensão da instância, considerando que as quatro letras de câmbio dadas à execução foram reclamadas na insolvência, tendo sido tal crédito reconhecido e graduado, verificando-se uma relação de prejudicialidade entre a insolvência e a execução.
Como se refere no relatório do presente acórdão, está comprovada nos autos a seguinte factualidade decorrente da sua tramitação:
i) Na audiência preliminar (acta de fls. 68), foi determinada a suspensão da instância executiva, com fundamento no facto de o crédito exequendo ter sido reclamado pelo ora exequente nos autos de insolvência n.º 509/08.8TBSCD, considerando que o eventual pagamento no âmbito da insolvência determinaria a extinção da instância na execução, por inutilidade da lide.
ii) Tal suspensão veio a ser reiterada no despacho de fls. 98, onde se determinou «suspende-se esta instância até ao pagamento aos credores a efectuar nos referidos autos de insolvência ou até ao momento em que no dito processo seja possível determinar com certeza (por ex. por rateio ali efectuado) que o valor dos bens ali apreendidos não permitirá o pagamento do crédito ali reclamado pelo exequente Banco (...), SA».
iii) Através do ofício de fls. 104, o Administrador da Insolvência informou o tribunal acerca do mapa de rateio parcial (junto a fls. 105 a 112), e do pagamento, judicialmente autorizado “dos créditos privilegiados dos trabalhadores e da Fazenda Nacional”.
iv) Perante tal informação, foi proferido despacho a declarar a cessação da suspensão da instância (fls. 113).
Analisados o plano e mapa de rateio elaborados nos termos do artigo 178.º do CIRE (fls. 105), verifica-se que dos mesmos constam como beneficiários apenas titulares de créditos privilegiados: trabalhadores, Fundo de Garantia Salarial e Fazenda Nacional.
Na informação prestada a fls. 104, refere o Administrador de Insolvência, que o saldo é de € 826 680,73, está por receber a quantia de € 8 000,00, as custas judiciais provisionais rondam os € 80 000,00 e as despesas da massa ainda a suportar, cerca de € 50 000,00.
Considerando que o total dos pagamentos em rateio se cifra em € 712 509,54, concluímos que o valor sobrante (já incluídos os € 8 000,00 por receber), não se revela suficiente para garantir as restantes despesas, verificando-se um défice de € 17 828,81.
Perante este quadro, afigura-se correcta a decisão assumida pelo tribunal a quo, no sentido de declarar a cessação da suspensão da instância, face à nula expectativa de o exequente poder receber qualquer quantia referente ao seu crédito.
Por outro lado, como é óbvio, se o exequente recebesse qualquer quantia no âmbito da insolvência, sempre teria que a restituir à executada, na eventualidade de, entretanto, esta satisfazer o crédito titulado pelas letras dadas à execução.
Do exposto decorre a improcedência do recurso, também nesta parte.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, mantendo em consequência a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Apelante.
                                                         *
O presente acórdão compõe-se de quinze folhas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
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Coimbra, 21 de Junho de 2011
Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
Virgílio Mateus


[1] Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada, 5.ª edição, Livraria Petrony, pág. 133.
[2] Da 3.ª Secção, relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes.
[3] No mesmo sentido, a título meramente exemplificativo, vejam-se os seguintes arestos: desta Relação, de 10.01.2006, proferido no Processo n.º 2352/05; da Relação de Évora, de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 2785/07-2; do STJ, de 25.03.2004, proferido no Processo n.º 04B954 – todos acessíveis em http://www,dgsi.pt.
[4] Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada, 5.ª edição, Livraria Petrony, pág. 116.
[5] Direito Comercial, Títulos de Crédito, Reimpressão, AAFDL, 1997, pág. 11.
[6] Já assim não será no caso das excepções reais, como é o caso da falsidade da assinatura cambiária, vício oponível independentemente do título se achar nas relações imediatas ou mediatas (artigo 7º, da Lei Uniforme Relativas às Letras e Livranças).
[7] Ob. cit., pág. 118.
[8] Títulos de Crédito, Almedina 2000, página 68.
[9] Pedro Pais de Vasconcelos, na página 35 da obra citada na nota 5, estabelece uma distinção simplificada: «Quando entre dois intervenientes no título existe uma relação subjacente diz-se que a sua relação é imediata; quando esses não estão ligados por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata»
[10] O aceite é o negócio jurídico cambiário, unilateral e abstracto, pelo qual o sacado aceita a ordem de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador (neste caso, B (…) Lda) e promete pagar a letra no vencimento, ao tomador ou à sua ordem.
[11] Portador legítimo, na medida em que a executada não alegou, como se referiu, que ao adquirir o título, o exequente tenha procedido em seu detrimento.
[12] Proferido no Processo n.º 21931/09.7T2SNT-A.L1-7, acessível em http://www.dgsi.pt.
[13] Letra de Câmbio, LU de Genebra, Volume I, Circulação Cambiária, UCP e Almedina, pág. 93.
[14] Proferido no Processo n.º 03A2320, acessível em http://www.dgsi.pt
[15] Proferido no Processo n.º 6155/2005-6, acessível em http://www.dgsi.pt