Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3310/08.5TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE
BANCO
CHEQUE
APRESENTAÇÃO A PAGAMENTO
PRAZO
FALTA DE PROVISÃO
CONTA BANCÁRIA
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 29º E 32º DA LUCH; 483º DO C.CIV.; ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA Nº 4/2008
Sumário: I – Do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008, publicado no D. R., 1ª série, de 4/04/2008, resulta, no que respeita ao seu âmbito, que nele apenas se teve como único objecto “a apreciação da questão da licitude da conduta do Banco recorrente. De fora do âmbito desse acórdão ficaram as questões relativas aos demais pressupostos da obrigação de indemnizar”.

II - Face ao teor do dito Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, um Banco comete um acto ilícito ao negar, ao portador/legítimo beneficiário, o pagamento dos cheques que lhe tenham sido apresentados a pagamento no prazo de oito dias (previsto no artº 29º da LUCH), com fundamento em «falha ou vício na formação da vontade», considerando que, nos termos do artº 32º da LUCH, a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo legal de apresentação do cheque.

III - Sendo assim, deve esse Banco responder por perdas e danos perante a legítimo beneficiário do cheque, nos termos do artº 483º, nº 1, do C. Civ. e de direito em geral.

IV - Porém, para que assim possa acontecer é também necessário que de tal conduta do Banco tenha resultado um dano para o beneficiário do cheque.

V - Como resulta do próprio Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008, “a recusa do pagamento constitui o banco sacado, desde que verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, na obrigação de indemnizar o tomador do cheque. Como já resultou do que atrás se disse, a responsabilidade pelo não pagamento do cheque relativamente ao tomador não é contratual…- valem aqui as regras gerais da responsabilidade civil, mormente os artºs 483º, nº 1, 562º e 563º do C. Civ.” – Ponto II.B.5 do Acórdão.

VI - Assim sendo, no caso de um Banco sacado agir de forma ilícita e culposa para com um portador/legítimo beneficiário de um cheque que o apresenta a pagamento no prazo legal, não o pagando, com fundamento na sua revogação pelo sacador, para responder perante o portador, nos termos do artº 483º, nº 1, do C. Civ., terá de dar origem a um dano ao portador do cheque, que poderá efectivamente corresponder ao montante do cheque ou não.

VII - Porém, deve entender-se que só assim será se o banco sacado tiver meios financeiros à sua disposição, colocados pelo sacador na conta sacada, e deles não se servir, podendo e devendo fazê-lo.

VIII - Já assim não será se na conta sacada não houver ou não existirem esses meios, uma vez que o saque de um cheque sobre uma dada conta bancária pressupõe a existência de saldo na mesma – é o que resulta do artº 3º da LUCH: “o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque”.

Decisão Texto Integral:                 Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

            No 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, a sociedade comercial “...”, com sede na Rua ..., Marcos de Pedrulha, Eiras, Coimbra, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra o “Banco ..., com sede na Avenida..., em Lisboa, pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 11.909,25, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo pagamento, à taxa legal, calculados sobre o montante de € 11.530,00.

Alega para tanto e em resumo que, no exercício da sua actividade comercial, em 28/09/2007 vendeu à sociedade “Construções ..., S.A.”, um balde de 80 centímetros, pelo preço de € 2.117,50, para pagamento do qual esta sociedade, através do Presidente do seu Conselho de Administração, preencheu, subscreveu e entregou à A. um cheque do mesmo valor, datado de 26/11/2007 e sacado sobre uma conta existente na Ré, cheque este que, apesar de ter sido apresentado a pagamento em 27/11/2007, foi devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal, no dia 28/11/2007, com a menção de «falha ou vício na formação da vontade».

Que, ainda no exercício da sua actividade comercial, celebrou com a dita sociedade “Construções ..., S.A.”, um contrato de aluguer de uma máquina escavadora pela renda mensal de € 4.000,00, acrescidos de IVA à taxa legal, tendo esta sociedade utilizado a dita máquina entre Agosto e Dezembro de 2007, e que para pagamento de parte das rendas, que ascenderam ao valor global de € 24.200,00, a mesma sociedade preencheu, subscreveu e entregou à A. um cheque sacado sobre uma conta na Ré, datado de 5/11/2007, no montante de € 9.413,00, o qual foi apresentado a pagamento dentro do prazo legal, tendo sido devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal em 7/11/2007, com a menção de «falha ou vício na formação da vontade».

Que por carta de 1/02/2008, que a A. enviou ao Réu, foi este informado de que tais cheques se destinavam ao pagamento de dívidas à A. e foram-lhe entregues por um administrador das sociedades que emitiram e subscreveram esses cheques, pelo que a A. não aceitava a razão invocada para o não pagamento dos ditos cheques, solicitando ao Réu o pagamento dos mesmos.   

Que os motivos subjacentes à devolução dos cheques eram falsos; que o banco Réu devolveu os cheques sem se ter certificado da existência de justa causa para a sua devolução; que até hoje os montantes titulados pelos cheques se encontram por pagar, sendo a sua cobrança inviável; e que o banco é responsável, conforme jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 28 de Fevereiro de 2008, pelo ressarcimento do prejuízo que sofreu, correspondente ao valor dos cheques acrescido de juros de mora à taxa legal desde a sua data de vencimento, nos termos do artº 483º do C. Civ., do artº 32º da L.U. s/Cheques, e do artº 14º do Dec. nº 13.004, de 12/01/1927.


II


Contestou o Réu impugnando, por desconhecimento, a matéria de facto alegada e atinente aos contratos celebrados entre a Autora e os sacadores dos cheques, e invocando que inexiste nexo causal entre a recusa motivada de pagamento do cheque e o prejuízo, uma vez que as contas sacadas não tinham provisão para pagamento dos cheques, que, assim, sempre veriam o seu pagamento recusado.

Mais alega que o eventual prejuízo, a existir, não pode corresponder ao montante titulado pelos cheques, estando limitado aos incómodos, despesas acrescidas, lucros cessantes e, no limite, acrescido risco na cobrança da quantia, sendo que a Autora nada alegou quanto a estes.

Invoca que, face ao contrato de mandato que celebrara com o sacador se encontrava vinculada a respeitar a instrução que recebeu, sob pena de responder pelos prejuízos decorrentes desse incumprimento contratual; e que o portador dos cheques se não enquadra no domínio subjectivo de aplicação da norma ínsita no art. 32º da LU, pelo que não está preenchida a previsão do art. 483º, nº1, do Código Civil, e que nem sequer se verificou nenhuma ordem de revogação, antes uma ordem de não pagamento motivada em falta ou vício de vontade, que constitui justa causa, abstractamente considerada, de não pagamento dos mesmos, incumbindo à Autora a prova da inveracidade da causa motivadora do não pagamento dos cheques.

Concluiu pela improcedência da acção.


III


A Autora apresentou articulado de resposta na qual impugnou a factualidade invocada na contestação e reiterou a responsabilidade do Réu pelo pagamento do valor correspondentes aos cheques.

IV


Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade adjectiva da acção, tendo sido seleccionada a matéria de facto alegada e tida como relevante para efeitos de instrução e para a discussão da causa.

Também aí foi fixado o valor da acção em  € 11.909,25.

Seguiu-se a realização da audiência de julgamento, com gravação da prova testemunhal produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação.


V

            Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção procedente, com a condenação do Réu no montante do pedido.


VI

            Desta sentença interpôs recurso o Réu, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que apresentou o Apelante concluiu, com utilidade, do seguinte modo:

            1ª – A Apelada não tem o direito em que pretende assentar os alicerces da responsabilidade civil da Apelante, isto é nos artºs 483º, nº 1, CC; 29º e 32º da LU s/Cheques; e artº 14º do Dec. nº 13004.

            2ª – Não tem esse direito desde logo porquanto a segunda parte do artº 14º do Dec. nº 13004 se encontra tacitamente revogado, atendendo a que o Estado Português não formulou qualquer reserva ao artº 32º da LU, o qual, ao entrar em vigor no ordenamento jurídico interno afastou o regime daquela norma que até aí vigorava.

            3ª – Depois, porque o interesse que o artº 32º da LU visa salvaguardar é apenas e tão somente o interesse do portador do cheque, mas enquanto sujeito cambiário integrado na cadeia cambiária, cadeia esta à qual é totalmente alheia a Apelada que não é obrigada cambiária.

            4ª – Acresce que o presente caso não se enquadra na previsão da norma do artº 32º da LU, porquanto não se verificou no caso concreto nenhuma revogação dos cheques.

            5ª – O que se passou foi, ao invés, uma ordem de não pagamento dos cheques dirigida pela sacadora à Apelante, com fundamento em falta ou vício da vontade que, abstractamente considerada, é uma justa causa de não pagamento.

            6ª – Com efeito, não faz sentido considerar como revogação de um cheque algo que não envolve uma válida relação jurídica cambiária, designadamente por falta de consciência da declaração, sujeição a coacção física ou moral ou erro na declaração (artºs 246º e 247º do C. Civ.).

            7ª – Os próprios trabalhos preparatórios da LU não integram no âmbito de aplicação do artº 32º os casos em que se verifique a justa causa para o não pagamento de cheques, designadamente os casos de furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou de qualquer outra situação de falta ou vício na formação da vontade do emitente, cujo regime foi deixado ao critério de cada uma das Altas Pares Contratantes.

            8ª – Não pode ser imputada culpa ao Apelante na aceitação da ordem de não pagamento dos cheques, porquanto o banco não violou o dever de zelo ou de diligência.

            9ª – Não é ao banco que cabe ajuizar e concluir sobre o enquadramento ou não dos alegados fundamentos invocados pelo sacador na respectiva ordem de não pagamento, no juízo conclusivo da existência ou não de uma falha ou vício na formação da vontade.

            10ª – É o sacador do cheque que tem a responsabilidade de decidir se vai ou não ordenar o não pagamento dos cheques, porque só ele conhece a relação causal; o banco é um mero recipiendário dessa decisão.

            11ª – Quanto aos danos e sua quantificação, não se aceita a correspondência entre o montante dos cheques e o prejuízo da Apelada.

            12ª – O prejuízo da Apelada advém apenas do aparente incumprimento de uma relação causal que nunca esteve em discussão nestes autos, desde logo porque a mesma ocorreu com a sacadora dos cheques, que não foi sequer accionada, e não com a Apelante.

            13ª – A aceitação da ordem de não pagamento não impediu nem impede a Apelada de accionar a relação cambiária ou a relação causal, até porque é ela quem detém a posse dos cheques.

            14ª – Assim, a existirem danos motivados pela recusa de pagamento do Apelante, então os mesmos estão limitados aos incómodos, despesas acrescidas, lucros cessantes e, no limite, ao risco acrescido na cobrança da quantia que e devida à Apelada.

            15ª – No âmbito da relação contratual que tem com a sacadora dos cheques o Banco sacado não pode ignorar uma ordem desta natureza que lhe é dada na vigência desse contrato de mandato e que coloca directamente em causa a validade da própria relação cambiária em si, isto é, o acto gerador da mesma que é a emissão do cheque: a existência de vício na formação da vontade da sacadora, existência esta que o Apelante não tem qualquer hipótese de sindicar em ordem a aquilatar da bondade da mesma.

            16ª – Termos em que deve ser julgado procedente o recurso interposto.            


VII


            Contra-alegou a Apelada, onde defende a manutenção da sentença recorrida, com a improcedência do recurso interposto.


VIII

            Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual passa pela reapreciação da decisão de mérito proferida, designadamente pela reapreciação da alegada e decidida obrigação de indemnizar por parte do Réu/Recorrente e pela reapreciação da quantificação dos danos peticionados e em que a Apelante foi condenada, aspectos da sentença contra os quais esta se revela.

            Para assim procedermos importa, desde já, que enunciemos os factos dados como assentes e como provados em 1ª instância, os quais não foram motivo de impugnação por parte do Apelante, nem se vislumbrando razões para uma qualquer alteração oficiosa dos mesmos.

            São eles os seguintes, tal como constam da sentença recorrida:   



1) No dia 27 de Novembro de 2007 foi apresentado a pagamento no Balcão... o cheque n.º 8422838346, sacado sobre a conta n.º 00131300230, do Banco..., titulada pela sociedade Construções ...., no montante de € 2.117,00 (dois mil, cento e dezassete euros), com data de emissão de 26.11.2007 (alínea A) dos factos assentes).

2) No dia 28 de Novembro do mesmo ano este cheque foi devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal com a menção de «falha ou vício na formação da vontade» (alínea B) dos factos assentes).

3) A Autora procedeu à apresentação a pagamento do cheque n.º 9322838345, sacado sobre a conta n.º 00131300230, do Banco ..., no montante de € 9.413,00 (nove mil, quatrocentos e treze euros), com data de emissão de 05.11.2007 (alínea C) dos factos assentes).

4) No dia 7 de Novembro do mesmo ano este cheque foi devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal com a menção de «falha ou vício na formação da vontade» (alínea D) dos factos assentes).

5) Um dos legais representantes da sociedade Construções ... solicitou ao Banco Réu que os cheques nºs 8422838346 e 9322838345 não fossem pagos, invocando para tal falta ou vício na formação da vontade (alínea E) dos factos assentes).

6) Por carta datada de 1 de Fevereiro de 2008, registada com aviso de recepção, a Autora comunicou ao Gabinete de Empresas de Leiria da Ré o seguinte: «Junto anexamos cópia de carta remetida ao n/ comum cliente referenciado em assunto. Conforme poderão constatar pela leitura da mesma, pretendemos pela presente denunciar a inconformidade relativa ao motivo de devolução dos cheques aí enunciados» (alínea F) dos factos assentes).

7) Na mesma missiva, a Autora asseverou que «os cheques sacados pelo cliente em assunto, sobre o vosso banco, com os nºs 8422838346, (datado de 26/11/2007, no valor de € 2.117,00) e 9322838345 (datado de 05/11/2007, no valor de          € 9.413,00), destinavam-se ao pagamento de uma dívida à nossa empresa e foram-nos entregues pelo administrador Exmo. Senhor Eng. ..., pelo que não aceitamos que invoquem extravio ou falta ou vício na vontade para fundamentar a devolução dos mesmos. Pelo exposto, solicitamos a V. Ex.ª que procedam ao pagamento dos valores referidos nos identificados cheques, atenta a falsidade do fundamento da devolução dos mesmos» (alínea G) dos factos assentes).

8) A Ré não procedeu ao pagamento dos cheques nºs 8422838346 e 9322838345 (alínea H) dos factos assentes).

9) A Autora dedica-se ao comércio, importação, exportação e aluguer de veículos automóveis ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e industriais, peças e acessórios e assistência técnica a tais veículos, designadamente mecânica, chapa e pintura e estação de serviço (resposta ao quesito 1º).

10)  No exercício desta actividade, a Autora vendeu, em 28.09.2007, um balde de 80 cms à sociedade Construções ...A. (resposta ao quesito 2º).

11)  Foi estabelecido entre as partes que o preço deste equipamento seria regularizado mediante a entrega de um cheque, no valor de € 2.117,50 (dois mil, cento e dezassete euros e cinquenta cêntimos) (resposta ao quesito 3º).

12)  Para efectuar tal pagamento, o Presidente do Conselho de Administração da sociedade Construções ..., sr. ..., preencheu, subscreveu e entregou à autora, o cheque n.º 8422838346, sacado sobre a conta n.º 00131300230, do Banco..., naquele montante, e com data de emissão de 26.11.2007 (resposta ao quesito 4º).

13)  No âmbito da sua actividade, a Autora e a sociedade Construções ..., por documento escrito e em 9 de Agosto de 2007, acordaram a cessão temporária e onerosa do gozo de uma máquina escavadora de rodas marca Volvo, modelo EW180B, chassis n.º 8751090, pertencente à Autora (resposta ao quesito 5º).

14)  Acordo que foi formalizado em 9 de Agosto de 2007, por escrito denominado contrato de Aluguer n.º 01/07 (resposta ao quesito 6º).

15)  No qual se estabeleceu que a sociedade Construções ... pagaria a quantia de € 4.000,00 (não incluindo IVA à taxa legal), de renda mensal pela utilização do equipamento (resposta ao quesito 7º).

16)  A mencionada máquina foi utilizada pela sociedade Construções ..., durante o período compreendido entre Agosto a Dezembro de 2007, tendo sido restituída em 28 de Dezembro de 2007 (resposta ao quesito 8º).

17)  A Autora debitou à sociedade Construções ... as rendas resultantes da utilização da máquina escavadora da marca Volvo, modelo W 180, chassis n.º 00000000, no montante global de € 24.200,00 (resposta ao quesito 9º).

18)  Para pagamento parcial de tal montante, a sociedade Construções ..., através do Presidente do Conselho de Administração, Sr. ... entregou à Autora o cheque n.º 9322838345, sacado sobre a conta n.º 00131300230, do Banco ..., no montante de    € 9.413,00 (nove mil, quatrocentos e treze euros), com data de emissão de 05.11.2007 (resposta ao quesito 10º).

19)  A sociedade Construções ... não procedeu ao pagamento da quantia tituladas pelos cheques nºs 8422838346 e 9322838345 (resposta ao quesito 11º).

20)  Nas instalações da sociedade Construções ... encontra-se a laborar uma outra empresa, a que a primeira vendeu todo o seu património (resposta ao quesito 12º).

21)  A conta n.º 00131300230, do Banco, não tinha provisão para pagamento dos cheques nºs 8422838346 e 9322838345 (resposta ao quesito 13º).



Sendo estes os factos a ter em conta na apreciação que cumpre efectuar, começamos por dizer que nela vamos procurar cingir-nos ao Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008, de 28/02/2008, publicado no D.R., 1ª série, de 04/04/2008, no qual se baseou a sentença recorrida para decidir como decidiu; na tese de doutoramento do Prof. Dr. Paulo Olavo Cunha, publicada posteriormente àquele Acórdão (pela Almedina - Coimbra), com o nome de “Cheque e Convenção de Cheque”, cuja essência procuraremos não desvirtuar; e também nas anotações do mesmo autor ao referido acórdão, publicadas em “Cadernos de Direito Privado”, nº 25 - Janeiro/Março 2009, pgs. 17 a 23.

Isto, claro está, sem prejuízo de recorrermos e citarmos eventuais outras fontes ou obras que se tiverem por relevantes e oportunas para a melhor compreensão e fundamentação da decisão a ser proferida, designadamente jurisprudência dos Tribunais das Relações e do S. T. J..

Repetimos que vamos procurar cingir-nos a tais obras de jurisprudência e de doutrina por, no nosso modesto entender, se nos afigurar serem as mais pertinentes na actualidade sobre as questões que neste recurso são colocadas, reconhecendo razão à Recorrente quando diz que “acontece que o Acórdão nº 4/2008 está muito longe de ser pacífico, desde logo na sua oportunidade e campo de aplicação, estando inclusivamente fora de consenso vertido no aresto que estivessem reunidos e verificados os requisitos processualmente necessários à sua prolação, conforme se extrai dos muitos votos de vencido que granjeou”.

Assim, do dito Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, publicado no D. R., 1ª série, de 4/04/2008, resulta, desde logo, que, no que respeita ao seu âmbito, nele apenas se teve como único objecto “a apreciação da questão da licitude da conduta do Banco recorrente. De fora do âmbito do recurso estão, assim, as questões relativas aos demais pressupostos da obrigação de indemnizar. Isto é tanto mais evidente quanto o dano se apresenta como condição essencial da responsabilidade… Se não houver dano não há responsabilidade delitual ou contratual, nada impondo que tenha sido praticado um facto ilícito” – Ponto II.B1 do Acórdão.

Mais se escreve no referido Ponto II.B1 que “A opção adoptada no recurso, de critica exclusiva do entendimento subscrito pela decisão recorrida quanto à ilicitude, implica a aceitação do decidido quanto aos demais pressupostos e, particularmente, quanto ao dano”.

Nesse entendimento, no citado Acórdão apenas foi abordada a questão de: “a) saber se não ocorreu nenhum facto ilícito praticado pelo banco sacado, quando aceitou uma ordem de revogação fundada em justa causa, não podendo, nesse caso, o banco ser responsabilizado; b) formular jurisprudência de carácter uniformizador, no sentido do entendimento de que a revogação de um cheque só é admissível durante o período de apresentação a pagamento (artº 29º LUCH) se sustentada em justa causa”.

Donde que tenhamos de entender tal Acórdão Uniformizador de Jurisprudência como apenas configurado ao (nele) citado âmbito, cujo teor de uniformização de jurisprudência é o seguinte: “Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artº 29º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação de sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artºs 14º, 2ª parte, do Dec. nº 13.004, e 483º, nº 1, do C. Civ.”.

Por outras palavras, afigura-se-nos que fora do âmbito de tal Acórdão ficou a apreciação do pressuposto do (eventual) dano causado e resultante da citada recusa de pagamento de cheque apresentado a pagamento ao banqueiro no prazo legal para o efeito.              

O referido Acórdão apenas trata e aprecia a questão de saber se ocorreu ou não algum facto ilícito e culposo praticado pelo banco sacado, quando, tendo-lhe sido apresentado, pelo seu portador e legítimo beneficiário, um cheque para pagamento no prazo do artº 29º da LUCh, aceitou uma ordem de revogação desse cheque dada pelo sacador, fundada em alegada justa causa, não o pagando, com vista à sua eventual responsabilização civil por dano decorrente de um facto ilícito – ou seja, a apreciação da questão da licitude ou da ilicitude da conduta do Banco sacado numa situação destas.

Pretendemos, com o supra exposto, tornar muito claro que nesta exposição teremos em absoluta conta o referido Acórdão, como o fez a 1ª instância, no que respeita à reapreciação da licitude ou ilicitude da conduta do Banco Recorrente no caso concreto, mas já não no que respeita à verificação do dano alegadamente causado ao Recorrido, questão que o Réu/Recorrente sempre recusou aceitar, desde logo em sede de contestação, quando alegou que “a conta sacada em questão, titulada por Construções Cardoso & João, S. A., não tinha provisão para pagamento da quantia titulada pelos cheques a que alude a p. i., pelo que desde logo inexistia por parte da Ré qualquer obrigação de os pagar à A.; estes cheques sempre veriam o respectivo pagamento recusado por falta de provisão, conforme se constata do doc. 2, que constitui o extracto da conta bancária…, o que se manteve até para além do dia 31/12/2007; o eventual dano da A. só poderia ocorrer se, além do mais, houvesse provisão na conta de depósito da sacadora que fosse suficiente para o pagamento dos cheques e, não obstante, a Ré aceitasse a ordem de não pagamento por esta dada. Não se configura, assim, a existência de nexo causal entre a recusa de pagamento da Ré (mesmo que ela constituísse acto ilícito) e a produção do alegado dano, sendo certo que tal nexo é conditio sine qua non da responsabilidade civil que se pretende assacar à Ré“ – pontos 12, 13, 14 e 15 da contestação.

Tal precisão torna-se particularmente necessária, parece-nos, na medida em que na sentença recorrida é citado um trecho do referido Acórdão que est(ar)á totalmente fora do âmbito da dita uniformização de jurisprudência, no qual se diz que “Temos, então, que o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos…”.

Do antes exposto podemos desde já concluir, face ao dito Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, como o faz a sentença recorrida, isto é que a C. G. D. cometeu um acto ilícito ao ter negado à A. o pagamento dos cheques em causa, com fundamento em «falha ou vício na formação da vontade», uma vez que os mesmos lhe foram apresentados a pagamento no prazo de oito dias, previsto no artº 29º da LUCH, considerando que, nos termos do artº 32º da LUCH, a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação (o que não é o caso em apreço).

Sendo assim, deve o Réu responder por perdas e danos perante a Autora, nos termos do artº 483º, nº 1, do C. Civ. e de direito em geral.

Porém, para que assim possa acontecer é necessário, desde logo, que de tal conduta do Réu tenha resultado um dano para a A.

O dano alegado pela A. e cuja reparação pede é o valor dos cheques apresentados a pagamento, mais juros de mora, não quaisquer outros danos.

Ora, ficou também provado que a conta sacada, com n.º 00131300230, do Banco ..., não tinha provisão para pagamento dos cheques nºs 8422838346 e 9322838345, isto é, os cheques em causa na acção.

Será que, mesmo assim, se deve entender que com o referido não pagamento foi pelo Réu causado um dano à A.?

Como resulta do próprio Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008, “a recusa do pagamento constitui o banco sacado, desde que verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, na obrigação de indemnizar o tomador do cheque. Como já resultou do que atrás se disse, a responsabilidade pelo não pagamento do cheque relativamente ao tomador não é contratual…- valem aqui as regras gerais da responsabilidade civil, mormente os artºs 483º, nº 1, 562º e 563º do C. Civ.” – Ponto II.B.5 do Acórdão.

Assim sendo, no caso de um banco sacado agir de forma ilícita e culposa para com um portador/legítimo beneficiário de um cheque que o apresenta a pagamento no prazo legal, não o pagando, com fundamento na sua revogação pelo sacador, para responder perante o portador, nos termos do artº 483º, nº 1, do C. Civ., terá de dar origem a um dano ao dito portador do cheque, que poderá efectivamente corresponder ao montante do cheque ou não.

Porém, entendemos que só assim será se o banco sacado tiver meios financeiros à sua disposição, colocados pelo sacador na conta sacada, e deles não se servir, podendo e devendo fazê-lo.

Já assim não será se na conta sacada não houver ou não existirem esses meios, uma vez que o saque de um cheque sobre uma dada conta bancária pressupõe a existência de saldo na mesma – é o que resulta do artº 3º da LUCH: “o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque”.

Como escreve Abel Pereira Delgado in “Lei Uniforme sobre Cheques anotada”, notas ao artº 3º, “o sacador está obrigado a ter, antecipadamente, uma provisão de fundos em poder do sacado; acresce que é necessário que tais fundos estejam disponíveis. Portanto, a emissão dum cheque supõe a existência duma provisão disponível, isto é, de fundos previamente depositados no estabelecimento bancário sobre o qual é sacado o cheque”.

Também o Prof. Dr. Paulo Olavo Cunha in “Cadernos de Direito Privado”, obra já antes referida, escreve a pags. 17 e nota (2) que “o cheque é, em si mesmo, um título de crédito que, pressupondo um acordo entre o sacado (banqueiro ou banco) e o sacador (cliente) – a convenção de cheque (acordo que a instituição de crédito, o banco, celebra com o cliente/sacador, pelo qual este, com recurso ao cheque, levanta dinheiro ou efectua pagamentos a terceiros à custa de fundos depositados naquela ou por ela disponibilizados) -, se constrói e concebe autonomamente, isto é, à margem da relação contratual que o consubstancia… Este título (documento) permite a uma pessoa ou entidade proceder ao levantamento de fundos ou efectuar um pagamento a terceiro a partir de meios que se encontram disponíveis para o efeito numa instituição de crédito de que é cliente. Assim, através da emissão de um cheque, o sacador institui (unilateralmente) o sacado para satisfazer uma determinada importância, com base em fundos previamente disponibilizados (a provisão); e o sacado, dispondo desses meios, está vinculado a efectuar o pagamento, pelo menos no decurso do prazo legalmente estabelecido para apresentação do cheque (a pagamento)… A lei dispõe que, nesse prazo (legal) de apresentação a pagamento, o cheque não possa ser revogado pelo sacador (artº 32º,I), devendo o sacado encontrar-se vinculado ao seu pagamento, se dispuser de fundos para o efeito;…consideramos o sacado um verdadeiro obrigado cartular, ainda que a sua situação jurídica passiva esteja condicionada à disponibilidade de fundos que lhe deve ser assegurada pelo sacador… Não temos motivos para discordar da afirmação transcrita (do Ac. STJ), mas, diversamente do STJ e da generalidade da doutrina, consideramos o banco um obrigado cambiário, não carecendo de qualificação expressa como tal, uma vez que, por natureza, não se pode furtar ao pagamento do cheque se dispuser de fundos, não fazendo sentido ser accionável em via de regresso, já que só não paga (i. e., só não é obrigado a pagar) se não existir provisão para o efeito”.

Em jeito de (aparente) conclusão escreve o dito autor na citada anotação - nota (27), a fls. 23: “Até estar concluído o prazo para apresentação, o sacado não só não está obrigado a obedecer à ordem de revogação como, estando vinculado ao cumprimento da obrigação inerente à sua posição cambiária, deve proceder ao pagamento do cheque, caso disponha de provisão (e não exista uma justa causa comprovada para não efectuar o pagamento)”.

Afigura-se-nos, aliás, que tal opinião deste Prof. é também a que ele próprio deixa transparecer ao longo da sua tese de doutoramento, antes referida, designadamente a fls. 223/224 (Posição adoptada sobre a natureza jurídica do cheque – “o cheque é um título de crédito, à ordem ou ao portador, pelo qual uma pessoa (o sacador) instrui o seu banco (o sacado) para, à custa de dinheiro previamente depositado ou de crédito por este concedido, proceder ao pagamento da quantia nele inscrita ao sujeito (o beneficiário e portador) que o apresentar com essa finalidade, dentro do prazo legalmente estabelecido”); 344/346 (Cheque e convenção de cheque: uma mesma realidade ou realidades diferentes – “… As características deste título de crédito e a sua natureza jurídica – de meio de pagamento – confluem para que o mesmo beneficie da tutela da aparência e da confiança inerente ao crédito do respectivo sacador, justificando que o sacado seja uma instituição de crédito e fazendo depender o pagamento da quantia titulada da existência de provisão”; 349/353 (Problematização e indicação de sequência); 415 (Abertura de conta, depósito, convenção de cheque e conta corrente: interpenetração contratual – “… A celebração e o funcionamento da convenção de cheque pressupõem a abertura de uma conta bancária e o seu provisionamento, através do depósito de fundos suficientes, permitindo, com recurso ao cheque, a sua movimentação, sendo a conta-corrente o reflexo (ou efeito) dos meios depositados (creditados) e sacados, em cada momento expresso no saldo dos movimentos efectuados”); 459/462 (O cliente: Direito de emitir cheques; direito a obter o pagamento do cheque – “O cliente tem, como principal direito decorrente da celebração da convenção de cheque, uma permissão específica para movimentar os fundos disponíveis no banco através de cheques… O direito que o cliente e sacador do cheque tem, por efeito e como aspecto do regime da convenção de cheque, a que a quantia representada pelo título de crédito venha a ser pontualmente paga… pressupõe necessariamente o cumprimento dos seus deveres, designadamente o dever de provisionar suficientemente a conta sacada”); 471/476 (Dever principal do banco – “O dever principal do banco, em matéria de convenção de cheque, é naturalmente proceder ao pagamento dos cheques que sejam sacados sobre uma determinada conta, nele sediada, à custa dos fundos que nessa conta se encontrem disponíveis”; 509/510 (A provisão – “É à custa da provisão que o banco irá proceder ao pagamento dos cheques que, com referência à mesma, sejam sobre si sacados, encontrando-se legalmente obrigado a pagar todos os cheques regularmente sacados que lhe sejam oportunamente apresentados a pagamento, cujas importâncias globais não ultrapassem o montante que ela representa. A provisão define, assim, a medida da responsabilidade do banco, que pode recusar o pagamento de cheques cujos montantes somados correspondam a uma quantia superior à que neles se encontra inscrita na conta aberta para o efeito, estabelecendo os limites dentro dos quais o banqueiro se obriga a pagar cheques”); 514/518 (Preexistência, suficiência e disponibilidade da provisão. A Relação de provisão); 541/544 (Vicissitudes no cumprimento); 577/627 (A revogação da ordem consubstanciada no cheque – “…O sacado só não paga se não houver provisão, até porque, ao pagar, ele actua por conta do sacador, e não em interesse próprio. Por isso, não faz sentido exigir-lhe, agora, em via de regresso, que satisfaça a pretensão dos demais subscritores do cheque porque, não dispondo de provisão, continua desobrigado de pagar o cheque… No cheque o sacado é especial: é uma instituição de crédito que paga, contra a apresentação do título, a quantia nele inscrita com base em fundos do sacador ou que lhe são creditados – artº 3º LUCh… Se existir provisão, e se a apresentação a pagamento, promovida pelo portador legitimado, ocorrer dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito, o cheque deverá ser pago, sendo irrelevantes a intenção e instruções do sacador e a disponibilidade de a instituição de crédito em aceitar tais instruções… Deste modo, com ou sem acordo expresso, o banco deve, no decurso do prazo de apresentação a pagamento, pagar os cheques que lhe sejam apresentados com esse fim, salvo se não dispuser de provisão suficiente, ou se tiver oportunamente tido conhecimento de uma situação que, excepcionalmente, justifique a sua recusa de pagamento… Consideramos que, até estar concluído o prazo para apresentação, o sacado não só não está obrigado a obedecer à ordem de revogação como, estando vinculado ao cumprimento da obrigação inerente à sua posição cambiária, deve proceder ao pagamento do cheque, caso disponha de provisão (e não exista uma justa causa comprovada para não efectuar o pagamento)… O sacado é um verdadeiro obrigado cartular, ainda que a sua situação jurídica passiva esteja condicionada à disponibilidade de fundos que lhe deve ser assegurada pelo sacador” ); 701/706 (Responsabilidade do banco sacado pelo não pagamento do cheque. Responsabilidade perante o portador); 807 a 819 (Teses, designadamente tese 1ª, tese 3ª, tese 4ª, tese 5ª, tese 8ª, tese 10ª,  tese 13ª, tese 40ª e tese 47ª).       

 

Aliás, do voto de vencido do Conselheiro Salvador da Costa, constante do citado Acórdão Uniformizador nº 4/2008, também consta que “…tal como se considerou no acórdão deste Tribunal de 22 de Novembro de 2007, Processo nº 2946/2007, 2ª secção, a conclusão é a de que o quadro de facto provado não revela que da recusa de pagamento dos cheques por parte do recorrente, cumprindo a ordem do sacador, tenha advindo algum prejuízo para a recorrida… Por virtude da convenção de cheque, o recorrente só ficou vinculado perante o titular da conta de depósitos ao pagamento dos cheques por si emitidos e que lhe fossem apresentados a pagamento, naturalmente se para tal houvesse provisão (artºs 406º, nº 1, e 1161º, nº 1, al. a), do C. Civ.) … A circunstância de o cheque não haver sido pago não significa necessariamente a existência de algum prejuízo para o respectivo portador, porque ele continua titular do direito substantivo derivado da relação jurídica subjacente. O cálculo do prejuízo na esfera jurídica da recorrida não podia, por isso, ser aferido por via da mera correspondência ao valor inscrito nos cheques, mas em concreto, o que os factos provados não revelam. Além disso, como o sacador não dispunha de fundos na sua conta de depósitos para o pagamento dos cheques, não havia por parte do recorrente obrigação de pagar à recorrida o valor neles inscrito… A situação (da causa virtual negativa de um dano) não se configura no caso, porque o eventual dano da recorrida só poderia ocorrer se, além da mais, houvesse provisão na conta de depósitos do sacador que fosse suficiente para o pagamento dos cheques e, não obstante, o recorrente aceitasse a ordem de não pagamento. No fundo, na espécie teria de haver a cumulação de, pelo menos, dois elementos objectivos, isto é, existência de provisão suficiente para o pagamento dos cheques e a recusa de pagamento com base nas instruções do sacador para a sua interdição… Resulta, assim, do exposto, não revelarem os factos provados que a atitude do recorrente de não pagar os referidos cheques à recorrida a esta provocasse, em termos de causalidade adequada, algum prejuízo, além de mais porque para tal pagamento não havia provisão de conta. Sem a existência de tal prejuízo não se podia configurar a situação hipotética actual, que constitui uma das vertentes da diferença que constitui o critério da medida da indemnização a que se reporta o artº 566º, nº 2, do C. Civ…. O acatamento pelo recorrente da ordem do sacador de não pagamento dos cheques não podia causar à recorrida algum prejuízo reparável porque a conta de depósitos do segundo não tinha provisão para o respectivo pagamento”.

Vejam-se, neste “voto de vencido”, as posições da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria (em discussão) e a posição deste Conselheiro – pontos 1, 3, 4, 7 e 8 desse voto.

Também na jurisprudência tal entendimento tem sido seguido, embora de forma não unânime.

Assim, logo em 29/04/2008, isto é, no mesmo mês da publicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2008, o próprio STJ, no Processo nº 07A4768 (disponível em www.dgsi.pt), relatado pelo sr. Conselheiro Mário Mendes, veio limitar o alcance do citado Acórdão Uniformizador, num caso em tudo idêntico ao tratado no dito e no presente processo.

Com efeito, aí se escreve: “Tendo-se por certo, no entendimento acolhido no referido AUJ (contrário, aliás, às posições doutrinais maioritárias), que o artigo 14º, 2ª parte, do Decreto nº 13004 permanece em vigor, não poderá deixar, no entanto, de colocar-se a questão de saber se nas condições concretas apuradas deve o Banco responder por perdas e danos (conforme aquela referida disposição legal) em resultado da aceitação dessa ordem de revogação ou mais propriamente ordem de não pagamento. Tudo depende, e nesse sentido se pronuncia igualmente o Acórdão Uniformizador mencionado, de estarem ou não preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – artº 483º CCiv, para o qual necessária e expressamente se remete.

Mas já em 27/03/2008, o mesmo STJ, no Processo nº 0831069, relatado pelo sr. Conselheiro Mário Fernandes (igualmente disponível em www.dgsi.pt), havia considerado que “Temos, assim, como adquirido -…- que a regra é a imposição ao sacado do pagamento do cheque apresentado a pagamento no prazo legal, sob pena de, não o fazendo, na base do cumprimento duma mera ordem de revogação dirigida pelo sacador, poder incorrer em responsabilidade por perdas e danos perante o portador do cheque.

…não vindo questionada a existência de danos para o autor, os mesmos não têm necessariamente de ser medidos pelo valor do cheque.

      Com efeito, tendo o título em questão sido apresentado a pagamento e devolvido pela Ré no prazo legal, nem por isso o portador-autor perdeu o direito de acção contra o sacador.

Como refere Menezes Cordeiro, a responsabilidade do banqueiro numa tal situação não corresponde ao valor do cheque, mas aos incómodos, maiores despesas, lucros cessantes e, no limite, ao acrescido risco que o seu comportamento ilícito cause ao tomador do cheque – in «Manual de Direito Bancário», 3ª ed., pg. 484.

Devendo nesses termos ser delimitada a indemnização que devida é ao tomador do cheque pela referida actuação ilícita do banco sacado e não vindo apurados os concretos danos sofridos pelo autor por força dessa mesma actuação, outra solução não resta senão a de deixar para momento posterior a liquidação do quantum indemnizatório que àquele cabe, como é facultado pelo nº 2 do artº 661º do CPC”.

    

Em 03/12/2009 voltou o STJ a proferir acórdão sobre esta temática, no Processo nº 588/09.0YFLSB, relatado pelo sr. Conselheiro Garcia Calejo (igualmente disponível em www.dgsi.pt), onde se escreve: “Decorre do artº 3º da LUCh que, na base da emissão de um cheque, ocorrem duas relações jurídicas distintas, a relação de provisão e o contrato ou convenção de cheque.

A possibilidade de emissão de cheques pressupõe a existência no banco sacado de fundos (provisão) de que o sacador ou emitente aí disponha. Para além da existência de fundos no banco sacado, essa possibilidade de emissão depende ainda da realização do acordo de contrato ou convenção de cheque, mediante a qual é concedido ao titular da provisão, pelo banco, o direito de dispor de numerário através de cheques. Mediante este contrato (ou convenção), o banco assume a obrigação de efectuar o pagamento do numerário inscrito no cheque, desde que, evidentemente, o sacador possua na sua conta bancária, os necessários fundos”.

Do supra exposto retiramos a conclusão de que a conduta ilícita e culposa cometida pelo Recorrente, por violação do artº 32º da LUCH, no presente caso, não pode nem deve necessariamente conduzir à sua condenação em indemnizar a aqui Autora pelo valor dos dois cheques que foram apresentados a pagamento em prazo legal e devolvidos com a menção de «falha ou vício na formação da vontade», como foi decidido em 1ª instância, uma vez que, para que tal pudesse verificar-se necessário era que se encontrassem preenchidos os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, do artº 483º, nº 1, do C. Civ., designadamente a verificação de um dano daí resultante.

Tal não ficou provado nem podia verificar-se dado que na conta sacada, existente no Banco/Recorrente, não existia provisão para este poder pagar tais cheques, na ocasião, conforme ponto 21 supra.

Assim sendo, mesmo que o Réu/Recorrente não tivesse considerado a ordem de não pagamento que recebeu do seu cliente e sacador dos ditos cheques, sempre teria recusado o pagamento dos mesmos, por falta de provisão da conta sacada, dispondo sempre a Autora, em qualquer dos casos, da possibilidade real e efectiva de demandar o sacador, para obter o pagamento pretendido, designadamente através de acção executiva.

Logo, não foi a conduta do Recorrente que limitou ou impediu a A. de fazer valer os seus direitos de crédito sobre o sacador, em tempo oportuno.

Apenas terá evitado que o subscritor desses cheques possa ter sido imediatamente demandado por ilícito penal, dado que a emissão de um cheque sem provisão pode fazer incorrer o seu sacador em crime – Dec. Lei nº 454/91, de 28/12.    

     Donde resulta, pois, que não foi a referida conduta do Réu/Recorrente que causou qualquer dano à A., porquanto este apenas poderia pagar esses cheques se dispusesse de meios efectivos colocados pelo sacador à sua disposição, na conta sacada, pagamento esse que, no caso, nunca poderia ter tido lugar, por falta de provisão para o efeito na dita conta.

Logo, nenhum dano se verifica no caso em apreço, pelo que não faz qualquer sentido a condenação do Réu/Recorrente no pagamento à Autora do valor dos ditos cheques, nem no pagamento de qualquer eventual outro dano (o que nem sequer foi alegado ou pedido), impondo-se, pois, a revogação da sentença recorrida, com os fundamentos expostos, e a absolvição do Réu/Recorrente do pedido indemnizatório formulado pela A., o que se decide.


IX


DECISÃO:
Face ao exposto, julga-se procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o Réu do pedido.
 

Condena-se a Autora no pagamento das custas da acção e do presente recurso.