Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
511/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 03/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 690º-A E 712º DO C.P.C, E 7º DO CÓD. DO REGISTO PREDIAL
Sumário: I. O recurso sobre a matéria de facto fixada pela 1ª instância destina-se a obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador; Está em causa, portanto, aferir da existência de erros notórios na apreciação da prova.
II. Atenta a natureza e função do registo – essencialmente declarativa e não constitutiva – a presunção do art.º 7 do Cód. do Registo Predial não abrange os elementos descritivos alusivos ao prédio (área e confrontações).
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

1. RELATÓRIO

A... , solteira, residente na X... , B... e mulher C... , residentes na Y.... , intentaram a presente acção, com forma de processo ordinário, contra D... e E... , residentes em W.... e contra F... e mulher G..., residentes em Z...., pedindo a condenação dos réus a:

a) reconhecerem que o terreno pertencente aos autores é aquele que está identificado nos arts 1º, 3º e 4º da petição inicial, com a área e a configuração aí definidas;

b) reconhecerem que a parcela de terreno identificada no artigo 6º da petição inicial (e ocupada pelos réus), com a configuração aí definida, faz parte integrante do prédio identificado nos artigos 1º, 3º e 4º desse articulado;

c) absterem-se de praticar qualquer acto ou facto que impeça ou estorve a ocupação, utilização, amanho e administração, por parte dos autores, da parcela de terreno identificada no art 6º da petição inicial, com a configuração aí definida;

d) pagarem aos autores a quantia de duzentos e cinquenta mil escudos pelos pinheiros e eucaliptos que venderam e se encontravam na referida parcela de terreno;

e) demolirem, à sua custa e risco, a totalidade das construções que foram construídas nessa parcela de terreno, bem como a colocar todo o terreno pertencente à mesma parcela no estado em que o mesmo se encontrava antes de ter sido ocupado;

ou, caso exista alguma impossibilidade, a:

f) pagarem aos autores a quantia de dezassete milhões e novecentos mil escudos, pela parcela que ocuparam e usurparam indevidamente;

g) pagarem aos autores a quantia de um milhão e quinhentos mil escudos pelos prejuízos não patrimoniais causados com a ocupação da parcela;

h) pagarem aos autores a quantia de três milhões de escudos pelos prejuízos resultante da ocupação por parte dos réus, para a parte sobrante do prédio;

i) pagarem aos autores uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, por todos os prejuízos que estes vierem a sofrer até à entrega da parcela de terreno, ou até ao pagamento integral de todos os prejuízos referidos nas alíneas supra.

Para fundamentarem a sua pretensão invocam, em síntese, que são proprietários de um prédio, que adquiriram por compra, a 1ª autora em 6 de Maio de 1991 e os demais em 7 de Março de 1957, prédio cuja aquisição registaram a seu favor, na Conservatória do Registo Predial e que os autores, por si e ante possuidores, há mais de 50 anos, vêm cavando, cortando o mato e lenha, nele colhendo produtos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de que exercem um direito próprio, sem prejudicarem terceiros, ininterruptamente; Os réus ocuparam uma parcela desse terreno, com a área de 895 m2, cortando pinheiros e eucaliptos e iniciando a construção de uma moradia, impedindo os autores de usufruírem do mesmo e causando-lhes prejuízos.     

Os réus contestam alegando, em primeiro lugar, a ilegitimidade dos réus F... e esposa.

Impugnam a matéria alegada pelos autores, invocando que os réus F... e esposa compraram e, posteriormente, doaram a seu filho, aqui também réu, uma parcela de terreno que pertencia a uma Quinta aí existente e que a parcela de que os autores reclamam a propriedade pertence ao terreno por si comprado e doado.

Em reconvenção pedem a condenação dos autores:

a) a reconhecer que o réu D... é dono e legítimo possuidor do prédio descrito no art 35º da contestação, com a configuração, confrontações e área constantes do terreno;

b) a abster-se da prática de actos que perturbem ou dificultem a posse por parte do réu D...;

c) a pagar aos réus quinhentos mil escudos, a título de indemnização por todos os danos que lhes causaram e causam com a presente acção, pois que actuaram com má fé e como tal devem ser condenados em litigância de má fé.

Para fundamentarem o pedido reconvencional alegam, em síntese, que o réu D...é dono e possuidor de um prédio, que adquiriu por usucapião e cuja aquisição registou a seu favor na Conservatória do Registo Predial, onde construiu uma moradia.

Os autores respondem impugnando as excepções invocadas pelos réus, tal como a matéria da reconvenção. Alegam que os réus litigam de má fé, pelo que devem ser condenados em importância não inferior a esc. 500.000$00 a favor dos autores.

Requerem a intervenção provocada da esposa do réu D... por ser necessária a sua intervenção, nos termos do art 28º-A nº 3 do CPC,

Os réus treplicam mantendo o que alegaram na contestação/reconvenção.

Foi admitida a intervenção principal da esposa do réu D....

Proferiu-se despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção de ilegitimidade suscitada e elaborou-se despacho fixando a factualidade assente e base instrutória.

Realizou-se o julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.

Proferiu-se sentença, que concluiu da seguinte forma:

“Pelo exposto decide-se ser a acção improcedente por não provada pelo que se absolvem os RR dos pedidos aí formulados.

Custas da acção pelos AA.

*

Mais se decide ser a reconvenção parcialmente procedente por provada pelo que se condenam os AA:

a) a reconhecer que o réu D... é dono e legítimo possuidor do prédio referido em D), do qual é parte integrante a parcela de terreno em causa nos autos referida em F), M) e O).

b) a absterem-se da prática de actos que perturbem ou dificultem a posse por parte do Réu D....

No mais improcede a reconvenção, absolvendo-se os AA/reconvindos do restante peticionado.

Custas da reconvenção por RR e AA na proporção de 1/5 para aqueles e 4/5 para estes”.

Não se conformando, os autores recorreram, peticionando a revogação da sentença.

Formulam, em síntese as seguintes conclusões: [ [i]  ]

(…)26) Analisando a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do tribunal, deparamo-nos com o facto de o Tribunal "a quo" apenas pelo depoimento das testemunhas arroladas pelos Réus considerar como provados factos que só se provariam com a apresentação de documentos e com prova pericial;

27) Relativamente aos quesitos 21° a 30° da Base Instrutória, o Tribunal a quo considerou como provados, este baseou-se, única e exclusivamente, nos depoimentos das testemunhas arrolados pelos Réus, considerando que, atenta sua especial qualidade, local onde nasceram e foram criados, conheciam o local, não entraram em contradições ou incongruências de maior;

28) Analisando o depoimento das referidas testemunhas, que confirmaram a existência do prédio pertencente aos autores e Réus, referiram que antes do prédio ser dos Réus era a quinta R..., que retiraram resina, mas em concreto, nada mais referiram, mas que em nosso entender, salvo melhor entendimento, não basta afirmar, é necessário o apuramento dos factos concretos; (…)

30) Os Recorrentes não entendem a decisão, nem ninguém entenderá;

31) E não entendem porque, se se analisar o depoimento parte do Réu F..., gravado na cassete n° 1, lado A de voltas 4468 a 4719 e cassete n° 1, lado B de voltas 0000 a 4608, deparamo-nos com o facto de o próprio Réu, o adquirente original do prédio, nem o mesmo sabe descrever o seu prédio, que diz ser sua propriedade desde que o adquiriu, conforme depoimento que acima se transcreveu, e aqui se requer a sua apreciação; (…)

33) Os documentos emitidos pelas entidades públicas fazem fé em juízo — artigo 363° e seguintes do CC;

34) O prédio dos Autores está registado na Conservatória do Registo predial há mais de 15 anos, tendo a escritura de compra mais de 20 anos;

35) Nunca os Réus impugnaram esses documentos, nem sequer com a contestação nesta acção;

36) Para todos os efeitos legais, e como nenhuma dúvida está criada sobre os documentos que titulam a propriedade e posse desta por parte dos Autores, estes documentos só por si, e apenas, demonstram a razão dos Autores;

37) Devendo assim, Revogar-se desde já a decisão recorria, com todas as consequências legais daí resultantes, o que desde já e aqui se requer; (…)

43) Também da prova constante dos autos, nomeadamente, as certidões juntas, deparamo-nos com graves contradições;

44) A planta de situação junta aos autos é completamente diferente da planta de situação que os Réus juntaram no1° Serviço de Finanças de Q..., quando requereram as alterações de área e confrontações desse prédio;

45) Também pela planta cedida pela Câmara Municipal de Q..., junta aos autos, onde se encontra definido correctamente as extremas do prédio pertencente aos Autores e o prédio pertencente aos Réus;

46) O documento da Direcção de Serviços de Verificação e Controlo da Zona Agrária de Q..., e junto aos autos, também, define correctamente o prédio pertencente aos Autores identificada coma letra "A" a vermelho e o dos Réus coma letra "B" a verde, verificando — se que o prédio pertencente ao 1a Réu era um prédio de cultura;

47) A fotográfica constante dos autos, tirada em 1982, pelo Instituto Geográfico Português, identifica de forma clara que, o prédio dos Autores é composto de pinhal, e o prédio pertencente aos Réus trata-se, exclusivamente, de uma terra de amanho; (…)

52) Só pela prova documental, o tribunal "a quo" teria de ter dado como provado os factos alegados pelos Autores e que constam dos artigos 1° a 200 da Base Instrutória;

53) Ao analisarmos o depoimento de Parte da Sra. G..., gravado na cassete n° 1, lado A de voltas 4609 a 4719 e cassete n° 2, lado A de voltas 0000 a 1730, verificamos, que efectivamente, que algo de estranho, alheio ao seu conhecimento se estava a passar; (…)

56) Já o depoimento de parte da Sra. E..., gravado na cassete n° 2, lado A, de voltas 1731 a 3154, traz à colação uma questão de importante relevância, conforme depoimento que acima se transcreveu e aqui se requer a sua apreciação; (…)

57) Ou seja, refere que tem uma relação com o Réu, há 11 anos, tendo conhecimento que o terreno onde construiu a casa era do seu sogro;

58) Sucede que, o seu sogro — F..., refere no seu depoimento de parte que, só quando o seu filho lhe falou em casar e que queria construir casa, é que foi falar com os proprietários da Quinta R..., para estes de cederem um pedaço de terreno;

59) Mesmo que a Quinta R... tivesse cedido tal terreno, a cedência era nula, pois não foi feita através de escritura pública, e parte dessa parcela já havia sido cedida mais de 20 anos antes pelo dono da Quinta R..., conforme se pode ver pela planta junta aos autos pelos Autores na p.i. e declaração de compra e venda também junta aos autos, emitida pelo dono da Quinta R... a favor do Autor marido e pai;

60) Os Recorrentes não entendem estas contradições; (…)

65) Também, pelo depoimento das testemunhas arroladas pelos Autores, deveria o Tribunal "a quo" ter dado como provados os factos constantes nos artigos 10 a 20° da Base Instrutória;

66) As testemunhas arroladas pelos Autores têm um conhecimento directo, isento e imparcial sobre os factos; (…)

97) Deverá este Venerando Tribunal reapreciar a matéria de facto, dando assim como provados os quesitos 10 a 20° da Base Instrutória;

98) Por esta razão, tem este Venerando Tribunal, revogar a Sentença recorrida, reapreciando a matéria de facto posta em causa; (…)

121)        Verifica-se assim, que na Sentença recorrida não se procedeu a uma correcta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como se efectuou uma incorrecta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto;

122)        Sofrendo a Sentença recorrida de nulidade por violação do disposto nas al. c) e d) do n.° 1 do artigo 668° do CPC, nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais;

123)        Julgamos, que depois da transcrição exposta em supra, que esse Venerando Tribunal, irá Revogar tal Sentença, alterando a matéria de facto dada como provada, atendendo ao disposto nos artigos 690°-A, e 712° do Código do Processo Civil, nos termos em que se deixaram requeridos;

124)        Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da não procedência da pretensão dos Alegantes;

125)        Neste caso em concreto, a Meritíssima Juíza não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;

126) A Meritíssima Juíza "a quo" na decisão sob recurso, viola o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 668° do Código do Processo Civil, uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula; (…)

136) Neste caso em concreto, a Meretíssima Juíza não fundamentou de facto e de direito a sua decisão.

137) Cometeu pois uma nulidade.

138) Por fim, nesta sentença recorria as normas legais que aí estão enumeras, forma erradamente interpretadas e aplicadas nesta sentença”; (sic)  

“139) Basta tão só lerem-se essas normas legais, e analisar-se o que tem sido decidido por esse Venerando Tribunal, em situações como aquela que se discute neste recurso;

140) O prédio dos Autores está devidamente registado na Conservatória do Registo predial de Q... há mais de vinte anos, nunca foi mudado nenhuma das suas confrontações, área e localização, fazendo fé em juízo o que consta dessa descrição; (…)”

Os réus apresentaram contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu como provada a seguinte factualidade, aditando esta Relação a respectiva proveniência, com referência à base instrutória:

A) Na 1ª conservatória do registo predial de Q... encontra-se descrito sob o nº 925/971017 o prédio rústico situado em ....., inscrito na matriz da freguesia de ..... sob o artigo 92º, constituído por terra de cultura, pinhal e mato, com a área total de 4060 m2, confrontando de norte com caminho e ...., de nascente com ...., do sul com herdeiros de .... e estrada e do poente com ...., prédio este em relação ao qual se encontra inscrita a aquisição a favor dos autores B..., casado com a autora C... na comunhão geral e A..., na proporção de metade para cada um.

B) No dia 6 de Maio de 1991, no Cartório Notarial da Batalha, foi celebrada uma escritura pública entre o autor B..., que outorgou na qualidade de procurador de M.... e N..., e a autora A..., tendo o primeiro outorgante dito que vendia à segunda outorgante, na qualidade de procurador de M... metade indivisa de uma terra de cultura e pinhal com mato, com a área de 4060 m2, sita no ..., a confrontar do norte com caminho e , de nascente com .... do sul com herdeiros de .... e estrada e do poente com ..., inscrito na matriz no artigo rústico 92 e que anteriormente se encontrava inscrito na matriz no artigo 298, tendo a segunda outorgante dito que aceitava a venda nos ternos exarados.

C) No dia 7 de Março de 1957, no Cartório Notarial da Batalha, foi celebrada uma escritura pública entre O...., .P...., S..., T..., U...., V.... e XX..., como primeiros outorgantes e o autor B... e M..., como segundos outorgantes, tendo os primeiros outorgantes dito que vendiam aos segundos outorgantes um prédio de baldio, sito no ..., a confrontar do norte com serventia de fazendas, de nascente com ..., do sul estrada camarária e do poente com ...., inscrito na matriz no artigo rústico 298, tendo os segundos outorgantes dito que aceitavam a venda nos termos exarados.

D) Na 1ª Conservatória do Registo Predial de Q... encontra-se descrito sob o número 850/970306 o prédio rústico, situado em ..., inscrito na matriz da freguesia de ..... sob o artigo 93º, constituído por terra de cultura, com a área total de 2806 m2, confrontando de norte com .... e outro, de nascente com B... e outros, do sul com..... e outro e do poente com Rua...., prédio este em relação ao qual se encontra inscrita a aquisição a favor do réu D..., por doação dos réus F... e G....

E) Parte do prédio inscrito na matriz sob o art 93º da freguesia de ....pertenceu em tempos à Quinta R..., hoje pertencente aos herdeiros de ......

F) O terreno constante da parcela com a área de 895 m2 que veda parte do acesso à estrada do lado sul está situada dentro de aglomerado urbano, servido de estrada, água, energia eléctrica e telefone (resposta ao quesito 16º).

G) Os segundo e terceiro autores têm 83 e 79 anos respectivamente, considerando a data da entrada da petição inicial em juízo (resposta ao quesito 18º)

H) A 1ª autora é professora (resposta ao quesito 20º).

I) O prédio descrito na alínea d) dos factos assentes confina do lado norte e em parte do lado nascente com prédio dos autores (resposta ao quesito 21º).

J) O terreno do prédio rústico referido na alínea d) dos factos assentes sempre se situou num plano inferior ao prédio dos autores num desnível de cerca de 1,5 metro, atento o lado nascente do prédio do réu D... (resposta ao quesito 23º).

L) Tal prédio foi em tempos, e quando pertencia a ...., terra de cultura e depois passou a ser pinhal e eucaliptal, sendo certo que foram feitos vários cortes ao longo dos anos sem que os autores tenham reclamado (resposta ao quesito 24º).

M) Sempre o réu D..., bem como os anteriores donos do prédio descrito na alínea d) dos factos assentes ocuparam a parcela de 895 m2 descrita em F), enquanto fazendo parte do prédio descrito na alínea D) dos Factos Assentes (resposta ao quesito 25º).

N) O réu D..., que iniciara os trabalhos de terraplanagem no local, após ter conhecimento da decisão proferida nos autos de Providência Cautelar nº 92/98 do 4º Juízo Cível, levantou a sua moradia que se encontra acabada, e nela vive com a ré E... (resposta ao quesito 26º).

O) Com relação ao prédio descrito na alínea D) dos factos assentes, integrando a parcela de 895 m2 descrita em F), há mais de 20, 30, 40 anos que o réu D... e os seus antepossuidores, com a convicção de exercerem um direito próprio de um proprietário, têm vindo a praticar os seguintes actos: resinando pinheiros, cortando lenha, cultivando e amanhando no tempo em que era terra de cultura, colhendo os seus frutos e produtos, cortando várias vezes árvores, nomeadamente pinheiros e eucaliptos, pagando as respectivas contribuições e impostos (resposta ao quesito 27º).

P) Os actos descritos em O) têm vindo a ser praticados à vista de todos, sem interrupção, ostensivamente e sem qualquer perturbação (resposta ao quesito 28º).

Q) A propositura desta acção tem causado aos réus ansiedade, angústias e incómodos, bem como despesas com deslocações e pagamento ao seu ilustre mandatário (resposta ao quesito 29º).

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C.– salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente:

- do erro no julgamento da matéria de facto; 

- das nulidades da sentença .

2. Está em causa apreciar a resposta do tribunal de 1ª instância aos quesitos 1º a 20º, 23º, 25º, 27º, 28º e 29º da base instrutória, salientando-se que os quesitos 1º a 20º consubstanciam factualidade invocada pelos autores/apelantes na petição inicial e os quesitos 23º e seguintes traduzem a versão dos réus/apelados.

Os autores pretendem, essencialmente, que se altere a resposta a estes quesitos, de forma a que se considerem provados os quesitos 1º a 20º – que mereceram resposta negativa – e não provados os demais quesitos indicados – que mereceram resposta positiva.

Discute-se, fundamentalmente, a quem pertence um terreno com a área de 895 m2 – nenhuma das partes discute que a área reivindicada é essa –, terreno este ocupado pelo réu D... e onde este construiu uma moradia, invocando os autores que esse terreno faz parte do seu prédio descrito na C.R.P. sob o nº 925/971017 e inscrito na matriz sob o artigo 92º (antes 298), com a área total de 4060 m2. Ao invés, o réu D... alega que esse terreno está inserido no seu prédio descrito na C.R.P. com o nº 850/970306 e inscrito na matriz sob o artigo 93º, com a área total de 2806 m2. Acrescente-se que os prédios em causa confinam um com o outro, sem prejuízo do desacordo das partes quanto ao local em que os mesmos confrontam, invocando os réus que o seu prédio confronta do lado Norte e Nascente, em parte, com o prédio dos autores, o que estes impugnam, alegando que as extremas dos dois prédios são contíguas e estão delimitadas em linha recta.

Para impugnarem a valoração feita pelo tribunal, os autores reportam-se, especificamente, aos seguintes elementos de prova: o depoimento de parte de dois réus, o depoimento das testemunhas – procedeu-se à gravação da prova produzida em audiência de julgamento – e documentos juntos ao processo.

                                             *

A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º do C.P.C., a saber:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Por outro lado, dispõe o art. 690º-A do mesmo diploma:

 “1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Vejamos, então, em que termos se deve processar a reapreciação da prova produzida.

Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção.

Desde logo, e fazendo apelo ao preâmbulo do Dec. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro, [ [ii] ] o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador.

Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova – arts. 396º do C.C. e 655º, nº1 – e o princípio da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”. [ [iii] ]

O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.

                                             *                    

Vejamos, então, a prova por confissão, tendo em conta os depoimentos dos réus F... e G..., a que os apelantes aludem.

Constata-se, desde logo, que não foi consignada em acta qualquer resposta dos depoentes integrando matéria confessória, como seria exigível se fosse esse o caso (art. 563º do C.P.C.), a que acresce o facto da acta respectiva não evidenciar qualquer reclamação feita pelos apelantes, a esse propósito – cfr. fls.366 e 367.         

Também não se encontra qualquer afirmação dos apelantes no sentido de que essa confissão teria ocorrido – com o consequente erro na apreciação da prova porque, efectivamente, no despacho de fundamentação da resposta aos quesitos não se encontra qualquer menção de que se valorou confissão prestada em audiência de julgamento – mas, tão só, uma manifestação de perplexidade pelo facto, dizem os recorrentes, dos depoentes evidenciarem desconhecimento quanto a algumas matérias. Ora, essa circunstância, ainda que assim fosse – e não é, como veremos –, seria inócua em termos de apreciação de prova.

Ouvidos esses depoimentos, o que se retira? [ [iv] ]

Quanto ao réu F... (pai do réu D...), não se vislumbra qualquer declaração confessória.

É certo que o réu nunca procedeu a quaisquer medições do terreno que comprou à .... e que pertencia à Quinta .... – “comprou a olho” e “só uma vez” ou “foi só uma compra e só um terreno”, referiu o depoente a instâncias do mandatário dos réus – mas do seu depoimento retira-se que o réu sabe e conhece perfeitamente o que comprou, descrevendo o terreno – “o terreno que eu comprei era comprido, tem cem metros de comprido e tem mais ou menos vinte metros de largo. Só que depois cá em baixo o meu terreno faz o género de uma bota, faz uma chave para o outro lado(…)”– referindo as respectivas confrontações – o terreno dos autores “pega comigo do lado sul e pega comigo uma parte do lado poente. E em baixo como o meu terreno faz o jeito daquela bota fica a pegar comigo do lado poente” – remetendo ainda para os marcos alegadamente aí existentes – à pergunta da Sra. Juiz  “Foi a olho, foi a olho? Comprou 1490 m2, comprou aquilo a olho?” o depoente respondeu que “havia lá os marcos, e nós guiámo-nos pelos marcos”.

Salienta-se que o documento junto pelos autores a fls.344 e 345 constitui certidão alusiva à escritura de compra e venda outorgada em 9 de Janeiro de 1981, pela qual ....vendeu ao depoente “pelo preço de quinhentos mil escudos, que dele já recebeu e ao qual dá quitação, uma terra de cultura sita no .... concelho de Q..., a confrontar do norte com B..., do nascente com ..., do sul com .... e do poente com A...., descrito na Conservatória do Registo Predial de Q..., fazendo parte do descrito sob o número vinte e oito mil setecentos e setenta e dois a folhas quarenta e seis do livro B – oitenta e sete, e inscrita na matriz predial rústica sob o artigo número noventa e três, com o valor matricial de mil quatrocentos e quarenta escudos”; Consta desse documento um averbamento à escritura com o seguinte teor: “Nos termos do art. 132 do Código do Notariado rectifica-se a escritura a fim de passar a constar que o prédio está omisso na Conservatória respectiva. Em 19 de Fevereiro de 1991”. Conclui-se, pois, que não consta dessa escritura indicação da área do prédio vendido ao réu F....

Ou seja, não é correcta a conclusão que os apelantes retiram, a saber, que nem mesmo o depoente “sabe descrever o seu prédio, que diz ser sua propriedade desde que o adquiriu”, sem prejuízo do depoimento em causa evidenciar contradições, o que aconteceu, por exemplo, quando o depoente foi confrontado com o pedido de rectificação que apresentou na Repartição de Finanças. Aliás, as discrepâncias alusivas, por exemplo, à área do prédio evidenciam-se no documento junto a fls. 336 a 340, do qual resulta que em 6 de Março de 1997 o réu F..., em requerimento que subscreveu, pediu aos serviços de Finanças rectificação da área do prédio correspondente ao art. 93 da matriz, para o valor de para 3620 m2 (e não 1490 m2) e, posteriormente, em 2 de Junho de 1997, requereu nova rectificação, desta vez para o valor de 2806 m2 (e não 3620 m2), sem que se alcance a razão desses pedidos, em tão curto período de tempo.

No entanto, as contradições ou eventuais discrepâncias não alteram o juízo valorativo feito anteriormente, isto é, desse depoimento não se retira qualquer declaração confessória – enquanto assunção de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária –, sendo que o depoimento de parte releva, enquanto elemento de prova, para esse preciso efeito. Em suma, não se vê que esse depoimento dê algum contributo para a resposta afirmativa aos quesitos dos autores.

O mesmo se diga relativamente às rés, G..., com 79 anos (casada com o réu F... desde à cerca de 50 anos) e E... (casada com o réu D...), não evidenciando os respectivos depoimentos qualquer confissão – nem, aliás, os apelantes a apontam. O facto da ré G..., repetir inúmeras vezes que nada sabia – “eu não sei nada”, chegando a dizer “juro que não sei nada” – e responder sistematicamente às perguntas dizendo não saber – pese embora as insistências da Srª juiz –, nada permite inferir. Igualmente não é significativo que a depoente E..., quando inquirida sobre se sabia de quem era o terreno onde foi construída a casa onde vive, tenha respondido que o terreno era do sogro porquanto será essa, porventura, a percepção da depoente, sendo de admitir que não estivesse inteirada dos negócios feitos pelo sogro e de quando este teria comprado ou não o terreno em causa – refira-se que o réu F... disse que foi ele quem falou com os proprietários da Quinta R... com vista à aquisição do terreno para a construção da casa do filho, que ia casar. Note-se que a última parte do depoimento da ré E... é absolutamente inaudível – cassete nº 2, lado A), sessão de 25 de Setembro de 1996 – sem que os apelantes tivessem assinalado essa parte do depoimento ou apresentado, em tempo oportuno, qualquer reclamação a esse propósito.

                                             *

Em sede de prova testemunhal, os apelantes insurgem-se contra o facto da Sra. juiz não ter dado crédito às testemunhas arroladas pelos autores – formando a sua convicção com base no depoimento das testemunhas dos réus –, tendo o tribunal a quo explicitado essa valoração nos seguintes termos:

“Quanto às testemunhas dos AA BB... e CC..., na altura empregado daquele, referiram apenas terem resinado pinheiros no local a pedido do autor, o que não implica que a parcela de terreno em questão fosse propriedade daquele (e circunstância que não foi comprovada no local pela existência de bicas); e DD... que referiu que o autor lhe havia dado mato no local onde agora está a vivenda, referiu que “só cá está há 15 anos” o que desvaloriza o seu depoimento; EE... por sua vez, prestou um depoimento confuso e contraditório, denotando não estar em condições de depor com serenidade e objectividade, não tendo o Tribunal tomado em consideração o seu depoimento; FF...referiu algumas vezes no seu depoimento a expressão “segundo as instruções” fazendo o Tribunal duvidar da sua imparcialidade e se o seu depoimento foi ou não induzido por outrem, foi confusa e contraditória, para além do mais; GG...suscitou também a dúvida sobre se o seu “conhecimento dos factos” teria resultado da exibição perante si do documento de fls. 48 da Providência Cautelar, que lhe foi mostrado por F... e do que este lhe referiu na altura, pelo que o seu depoimento também não foi valorado”.

E acrescentou-se:

“Quanto aos factos não provados, e assim, o Tribunal fundou a sua convicção na inexistência de prova quanto aos mesmos ou na dúvida/incerteza gerada que foi valorada contra a parte que tinha o ónus da prova.

Quanto às áreas dos prédios, não existindo prova pericial quanto à sua medição o tribunal entendeu dar essa matéria como não provada”.           

Vejamos, então, se esta análise enferma de erro ou se, de alguma forma, se justifica valoração completamente diferente da exposta.

Procedeu-se à audição dos depoimentos das testemunhas, constantes do registo magnético, pela ordem pela qual foram inquiridas e a primeira constatação a fazer é que, efectivamente, os depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores e pelos réus não são compatíveis, divergindo em matérias essenciais e não se encontrando denominadores comuns.

Feita esta ponderação, não temos dúvidas em concordar com a opção feita pela Sra. juiz, que, no conjunto dos depoimentos considerou, pelos conhecimentos evidenciados pelas testemunhas, a razão de ciência de cada uma e pela imparcialidade que denotaram, mais credíveis as testemunhas arroladas pelos réus, motivando nestas – entre outros elementos de prova –, a resposta aos quesitos.

Com referência às testemunhas dos autores, cumpre reafirmar o que a Sra. Juiz já havia dito, acrescentando-se apenas um ou outro pormenor, que ressalta dos depoimentos. Assim:

BB...: é empresário do ramo dos plásticos, com 47 anos, conhece os autores B... e A..., não conhecendo os réus. A testemunha, efectivamente, confirmou que resinou pinhal num terreno do autor, entre 91 a 93, pagando ao “Sr. B...” e que actualmente, nesse local, foi construída uma vivenda, mas o certo é que a própria testemunha também reconheceu, a instâncias do mandatário dos réus, que mesmo decorridos estes anos esse facto ainda hoje deixaria vestígios no local.

Atente-se no diálogo:

Adv: Se tivesse sido resinado estariam lá…

Test.: Está marcado.

Adv.: Está marcado?

Test.: Está sim senhor, tem de estar marcado.

Adv.: Tem de estar marcado. Não tem dúvidas nenhumas?

Test.: Absolutamente nenhumas. Tem de estar mesmo.

Adv.: É que eu tenho a informação de que aquele pinhal nunca foi resinado.

Test.: Não, desculpe.

Adv. Pronto, eu não quero discutir isso. Eu só pergunto, se a gente chegarmos lá hoje o senhor diz que entre 91 e 93 o senhor andou lá a resinar e se resinou a gente vai ver os postes.

Test.: Está marcado.  

Adv.: Pronto, estamos elucidados sobre isso, o tribunal vai lá (…).”

Ora, aquando da inspecção ao local consignou-se apenas que “não foram encontrados vestígios de actualmente os pinheiros serem resinados” – acta de fls. 405 do processo – e não se vê que o mandatário respectivo tenha requerido que se consignasse em acta qualquer outro elemento pertinente nessa sede – saliente-se, por exemplo, que a testemunha FF..., a instâncias do mandatário dos autores, afirmou que o terreno em causa “ainda tem alguns pinheiros”.

Por outro lado, esse facto, por si só, desacompanhado de qualquer outro elemento, nunca permitiria resposta positiva aos quesitos dos autores.

EE...: Tem 53 anos, é operário fabril, conhece os autores “há muitos anos” e conhece igualmente o réu F.... Trata-se de depoimento que não pode ser relevado, concordando-se inteiramente com a análise feita pela Sra. juiz. Aliás, a testemunha demonstrou nem sequer perceber parte das perguntas que lhe eram feitas, sendo que a transcrição feita pelos apelantes corresponde apenas a uma pequena parte do depoimento da testemunha, não tendo os apelantes procedido à transcrição desse depoimento exactamente quando o mesmo mais evidenciou contradições, incongruências e falta de conhecimento – não pode deixar de salientar-se que quer a Sra. juiz quer os Srs. mandatários judiciais, repetiram inúmeras vezes as mesmas perguntas à testemunha, tentando que esta percebesse as mesmas, o que nem sempre acontecia.

  FF... Neto: tem 52 anos, trabalha num restaurante e conhece os autores, de quem é amiga há vários anos (“entre 25 e 30 anos”). Não conhece os réus. Nas matérias que relevam para os autos a testemunha ora se limitou a prestar um depoimento de ouvir dizer – referindo a testemunha, nomeadamente, o que lhe dizia o autor B..., sendo que admitiu também, a instâncias do mandatário da ré, que o autor a levou ao terreno por altura da inquirição na providência cautelar, não referindo, no entanto, o que lhe foi dito porquanto afirmou não se lembrar –, ora prestou um depoimento perfeitamente conclusivo. Atente-se no seguinte diálogo:

Adv : Sabe se a senhora A... e o senhor Andrade permitiram que lá se construísse aquela casa, lá naquele local?

Test.: Eu aí, portanto, não sei bem, mas acho que eles não iam permitir.

Adv.: Não iriam ou não permitiram?

Test.: Não permitiriam.

Adv.: Mas foi lá construída.

Test.: Foi, foi que está lá.

Adv.: Esta lá. Ah! E portanto você lembra-se, não foi o Sr. Andrade que lá a construiu, pois não ?

Tês.: Não, não. Aí sei eu bem que não.

Adv.: Também não sabe bem quem é o dono dela, pois não?

Test. Não sei não.

Adv.: Também não sabe quem é que lá vive, pois não?

Test.: Não, não.

Adv.: Olhe, mas a senhora sabe que aquele prédio já era há muitos anos do senhor Andrade Gomes e da senhora A..., não sabe?

Test.: Sim, sei.

 Acresce que, como também referiu a Sra. juiz, a testemunha evidenciou algumas imprecisões e contradições no seu depoimento, que são patentes na transcrição feita pelos apelantes. [ [v] ] Refira-se, a título exemplificativo, que a testemunha referiu que a casa foi construída há cerca de 10, 11 anos, “mais ou menos” – ao que o próprio mandatário dos autores contrapõe que “aqui no processo diz que foi só em 98, ainda só foi há oito anos” – e, depois, refere, afinal, que “apanhou mato e lenha” não “no local onde estava a casa nova” mas “mais na outra parte, mais para o lado do terreno do Sr. B.... Lá para baixo eu nunca mexia.”

GG......: tem 72 anos, é reformado mas exerce uma actividade comercial e referiu conhecer os autores “muito bem”, bem como o local, desde pequeno.

Depois da testemunha referir que conhecia os réus, atente-se no seguinte diálogo:

Juiz: E conhece-os porquê também?

Test.: Como?

Juiz: Conhece-os porquê?

Test.: Conheço-os porquê?

Juiz: Porque é que os conhece! É amigo, familiar?

Test.: Não sou inimigo, embora desde que começámos com esta coisa, não há dúvida nenhuma que ele não olha assim muito bem para mim; mas eu não tenho nada a ver, eh pá, a gente tem de dizer aquilo que é e mais nada, não é.

Por outro lado, é significativo que a testemunha tenha sido confrontada com documentos juntos pelos autores – o documento de fls. 23, que consubstancia uma planta junta com a petição inicial e que representa a versão dos autores, estando aí perfeitamente delimitados os terrenos e parcelas, nos moldes como os apelantes entendem, e ainda o documento de fls. 63, que consubstancia um escrito particular, pelo qual HH... declara que cedeu ao autor B... um terreno de pinhal de cerca de 400 metros quadrados, intitulado “declaração” –, e tenha referido que já conhecia esses documentos porque lhe foram mostrados pelo autor B..., sendo perceptível que o foi já num contexto de litígio entre as partes. À pergunta do mandatário dos autores, sobre há quanto tempo foi construída a casa, a testemunha respondeu “a casa foi construída depois do processo cautelar”.

Como é significativo o facto da testemunha, à pergunta do mandatário dos autores sobre se o autor B... “na altura”, não foi falar com o réu F... “nem tentou resolver as coisas a bem para não construírem lá, para ver se resolviam as coisas a bem”, ter respondido da seguinte forma: “Não sei se ele foi ter com ele, se não. Eu é que um dia fui ter com o Senhor F...” e disse-lhe “Oh Sr. F... isto aqui não está bem, estava o desaterro todo feito (…)”, o que traduz envolvimento pessoal da testemunha.      

Tudo isso, aliado à notória intimidade da testemunha com o autor e a família – a testemunha referiu, por exemplo, relativamente à autora A..., que “enquanto ela foi pequena, nós praticamente éramos os pais dela” –, suscita sérias reservas quanto à imparcialidade da testemunha. Confirma-se, pois, a valoração feita pela 1ª instância 

DD...: tem 37 anos, é vendedor, conhece os autores e os réus, trabalhando para a testemunha GG.... A testemunha não manifestou conhecimentos relevantes, considerando que admitiu que só foi ao local “três vezes ou quatro”, “ao longo de 92 para cá” – a acção foi instaurada em 1999 – tendo aí estada a apanhar caruma e cortar mato.

CC... : tem 59 anos, reformado, conhece os autores e não conhece os réus. A testemunha prestou um depoimento que não convenceu minimamente, começando por referir ao mandatário dos autores que foi ao local com a testemunha BB...umas três ou quatro vezes, resinar alguns pinheiros, e não sabendo, depois, precisar quando é que afinal lá foi, quando inquirido pelo mandatário dos réus. Aliás, os apelantes nem sequer aludem ao depoimento desta testemunha.

Quanto aos depoimentos das testemunhas dos réus/recorridos, não só contrariam inúmeras afirmações feitas pelas testemunhas dos autores, como o fazem evidenciando concreto conhecimento sobre dos terrenos e pessoas a eles ligadas. Assim:

II ..., com 62 anos, empregado fabril, conhece os autores e réus, conhece o local desde que nasceu e mora a 200 metros do local. Refere que havia uma “courelazinha que era da mãe da JJ...” e “que era amanhada”. Quando confrontada com o documento de fls. 23 a testemunha analisou o documento e não aderiu ao mesmo, referindo, para além do mais, que “este terreno aqui está mal, isto não havia de ser assim” – “Se tiver um papelinho eu faço o desenho à minha maneira”, referiu a testemunha.

Não podemos deixar de sublinhar a calma evidenciada pela testemunha, que aludiu às várias parcelas, indicando os “proprietários” dos terrenos pelo nome e descrevendo o local. A testemunha confirmou que “o pinhal dos autores não vinha até à estrada” e aludiu por exemplo à parcela ora em causa nos seguintes termos:

“Adv. dos réus: Nessa parcela onde o D...construiu, alguma vez viu o B..., cavar, cortar mato, lenha, resinar, viu alguma vez  

Test.: Nada, absolutamente nada.

Adv.: Não, aí nunca teve…

Test.: Nada. O pinhal mais miúdo nunca criou mato”  confirmando, depois, que a parcela onde o réu D...construiu, uma parte pertencia à JJ... e a outra estava inserida na Quinta R....

Refira-se que a testemunha foi confrontada pelo mandatário dos autores com todas as fotografias juntas.

LL....: tem 52 anos, é empresário da construção civil, conhece os autores e o réu D...(o réu D...é irmão da esposa da testemunha),  foi “nascido e criado junto ao .....” e foi a pessoa que construiu a casa do réu D...no terreno em causa – a instâncias do mandatário dos autores a testemunha esclareceu que tudo o que está implantado foi a testemunha que construiu mas não fez a terraplanagem. A testemunha foi inequívoca em afirmar a existência de “uma barreira” a dividir o prédio do B... e do réu D..., que a Quinta R... é que tinha pinheiros, que foram resinados – aludiu especificamente à testemunha anterior, referindo que “o II... então ainda conhece melhor, que resinou aquilo tudo” –, confirmou que os pinheiros do autores nunca foram resinados, acrescentando “e está lá à vista, para quem quiser ver”.

A instâncias do mandatário dos autores, a testemunha foi confrontada com inúmeros documentos, divergindo, por exemplo, relativamente às fotografias aéreas, da leitura que o mandatário dos autores pretendia retirar dos mesmos. A título exemplificativo, a fotografia alusiva a 1958 – a testemunha referiu “eu fui claro nisso”, lembrando-se de que não tinha pinhal, tinha “serradela”, acrescentando que só depois, não sabe se semeado ou não, é que começou a nascer – e a fotografia de 1992, indicando a testemunha que “já tem tudo pinhal”, à excepção do prédio do sogro que já tem a casa (do sogro), embora ainda se note “umas nódoas de pinhal” – “oh senhor, estão aqui manchas de pinhal”, diz a testemunha ao mandatário dos autores, concluindo que “a fotografia aérea não marca tudo”.

Por último refira-se que a testemunha se recusou a responder a perguntas sobre medições de terrenos, explicando que só mede as obras que faz e acrescentando quem procede a medições de terrenos é o topógrafo, que faz levantamentos topográficos.

OO...: tem 50 anos, é motorista de pesados. Conhece os autores  e os réus de vista, à excepção do réu F..., a quem comprou madeira, há cerca de 10 anos, tendo a testemunha ido ao local cortá-la, local que reconheceu, referindo que no mesmo, hoje, está lá uma habitação, que “penso que é do filho do Sr. F... ”. A testemunha referiu que cortou pinheiros resinados e alguns eucaliptos, só “no sítio da casa”, aludindo ao “arrife”, ao “desnível” e que o terreno confinava com a estrada –“eu comprei até à estrada” e “eu cortei até à borda da estrada”. A testemunha esclareceu que o terreno era desnivelado, tinha “fraco acesso” porque era desnivelado e que “o carro não subia e eu não tinha necessidade de ir dentro do terreno”, não sabendo no entanto precisar o desnível em relação à estrada.

Por último, temos a inquirição, realizada no local, de duas testemunhas, irmãos, MM... e NN.... , o primeiro com 67/68 anos, reformado, técnico agrário, o segundo com 65 anos, engenheiro civil. As testemunhas não conhecem os autores e conhecem os réus porque o Réu F... foi o caseiro da Quinta R... – aliás as testemunha só aludem especificamente a este réu, não denotando qualquer ligação aos demais.

Abstemo-nos de fazer alusões específicas aos depoimentos destas duas testemunhas, desde logo porque estão integralmente transcritos – e com fidedignidade – a fls. 418 a 482 dos autos. São depoimentos fundamentais para a formação da convicção do julgador, atenta a especial ligação das testemunhas aos terrenos – o pai das testemunhas adquiriu em hasta pública a Quinta R..., ao HH......, na altura com dívidas, as testemunhas sempre conheceram o terreno, particularmente o NN... que era a pessoa que acompanhava o pai e que com este começou a conhecer as características das (várias) propriedades pertencentes ao pai, culminando com a partilha feita entre os vários irmãos, nomeadamente da Quinta R..., a propósito do que a testemunha NN... elaborou o documento junto em audiência a fls.382, que as testemunhas explicitaram – e não admira que a Sra. juiz tenha atendido aos mesmos, pese embora as vicissitudes ocorridas.

Efectivamente, as testemunhas responderam de forma objectiva ao que conheciam – indicando, com igual naturalidade, que nada sabiam quanto a determinadas matérias – e evidenciaram distanciamento relativamente às partes, não denotando qualquer animosidade relativamente aos autores nem uma especial aproximação aos réus.

O comportamento das testemunhas, que motivou a prolação do despacho de fls. 388, conexiona-se com o ilustre mandatário dos autores – não interagindo com a parte que este representa judicialmente –, surgindo no contexto do interrogatório feito pelo mandatário dos autores e contém-se nos precisos termos desse interrogatório, o que aliás é referido no próprio despacho. Não pode o tribunal sancionar esse comportamento no âmbito do processo civil, a nível de apreciação da prova, pura e simplesmente não valorando os depoimentos, como pretendem os apelantes.

A percepção que se tem – na medida, limitada, tem de reconhecer-se, do que é possível inferir da gravação – é que as afirmações das testemunhas [ [vi] ] não têm, na sua génese, qualquer relação com o litígio ou, sequer, com as partes no processo, surgindo apenas como uma reacção pessoal (e no momento) das testemunhas a algumas perguntas do mandatário dos apelantes, parecendo-nos evidente que esse facto não influenciou minimamente a seriedade com que as testemunhas prestaram o seu depoimento, nem o rigor (intelectual) com que o fizeram. Razão pela qual se entende que o comportamento aludido –  sancionado no despacho com a aplicação de uma multa de 5 UC a cada testemunha, tendo-se ainda ordenado que os autos fossem ao M.P., com a transcrição dos depoimentos – não é susceptível de afectar a credibilidade das testemunhas, nem que seja legítimo concluir, como os apelantes referem nas alegações de recurso, que “o crime compensa – perturba-se a audiência de julgamento de modo a que não possa continuar para apreciação das questões importantes e depois decide-se em como os depoimentos das testemunhas foram credíveis”. Aliás, nada impedia que, em tribunal e na sala de audiências, o mandatário continuasse a inquirição no estrito condicionalismo que resulta da lei processual. É que – e esta regra vale, como é evidente, não só para a testemunha aludida mas para todas as outras arroladas pelos réus e inquiridas anteriormente –, não se pode olvidar o que dispõe o art. 638º, nº2, do C.P.C., a saber, “o interrogatório é feito pelo advogado da parte que a ofereceu, podendo o advogado da outra parte fazer-lhe, quanto aos factos sobre que tiver deposto, as instâncias indispensáveis para se completar ou esclarecer o depoimento”.

                                             *

Sustentam ainda os apelantes que “só pela prova documental, o tribunal a quo teria de ter dado como provado os factos alegados pelos Autores e que constam dos artigos 1º a 20º da Base Instrutória”, aludindo, depois, a um conjunto de documentos juntos aos processos.

Referem, especificamente, que o seu prédio está registado na C.R.P. há mais de 15 anos, tendo a escritura de compra mais de 20 anos e que nunca os réus impugnaram esses documentos, o que é verdade na estrita medida que os réus nunca questionaram a genuinidade quer da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial e aludida na alínea A) dos factos assentes, quer dos documentos que consubstanciam escrituras públicas de compra e venda, referidas nas alíneas B) e C) dos factos provados.

A argumentação exposta pelos apelantes não pode proceder.

Nos termos do art. 371.º, n.º 1, do Cód. Civil – diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – os documentos autênticos, como é a escritura de compra e venda, só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo – ou seja, os elementos alusivos à parte em que, no documento, se menciona, por exemplo, que o notário o leu, explicou e entregou cópias –, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora – ou seja, a parte correspondente às declarações emitidas perante o notário.

No entanto, o documento autêntico não faz prova plena quanto à veracidade das declarações emitidas pelos outorgantes, podendo provar-se, por qualquer meio, que essas declarações não são verdadeiras – aliás, sem necessidade de arguir a falsidade do documento autêntico, uma vez que não é isso que está em causa –, sem prejuízo de algumas limitações estabelecidas na lei – cfr. o art. 394º.

Ou seja, no caso em apreço e no que se refere às escrituras, não está coberta pela força probatória plena as referências que delas constam e alusivas, à “compra” e à “venda” do prédio aí identificado, com as características aí enunciadas.

Nem tem qualquer sentido que os réus, que não tiveram intervenção nessas escrituras (terceiros), ficassem inibidos de provarem factualidade diversa.

Aliás, não pode deixar de salientar-se que, relativamente à escritura outorgada em 6 de Maio de 1991 os outorgantes declararam vender “metade indivisa “ de um prédio “com a área de quatro mil e sessenta metros quadrados” e, quanto à escritura de 7 de Março de 1957 os outorgantes declaram vender “um baldio sito no sítio do .....”, sem indicação, nessa escritura, da área desse baldio.

Assim, por um lado, nada obstava a que se atendesse à prova testemunhal produzida, como aconteceu e, por outro, tendo sido impugnada a factualidade invocada na petição inicial e a que os documentos aludidos se reportam nada, tais documentos, por si só, desacompanhados de outros elementos, não são suficientes para fundamentar resposta positiva aos quesitos aludidos.

Ainda quanto ao facto de estar inscrita no registo predial a aquisição de um prédio a favor dos autores, parece-nos que a questão é de direito e não de facto, devendo ser analisada em sede própria.

Os apelantes referem, depois, um conjunto de documentos, a saber, planta cedida pela Câmara Municial de ...., documento da Direcção de Serviços de Verificação e Controlo da Zona Agrária de Q..., fotografias aéreas e plantas aéreas do Instituto Geográfico Português, Instituto Geográfico Aéreo e Instituto Geográfico do Exército.

Tratam-se de documentos que não fazem prova plena quanto aos factos em causa nos autos e que por si só são insuficientes para concluir nos termos pretendidos pelos autores. Aliás, algumas testemunhas foram directamente confrontadas com esses documentos, fazendo dos mesmos uma leitura e interpretação diferente da pretendida pelos apelantes.

Em conclusão, com os elementos existentes nos autos, não é possível responder aos quesitos nos moldes pretendidos pelos recorrentes e em ordem a considerar provada a sua versão dos factos, nada havendo que apontar à ponderação feita na 1ª instância, relativamente aos termos em que apreciou os vários elementos probatórios.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

3. Os autores sustentam que a sentença da 1ª instância incorre em nulidade, por falta de fundamentação (art. 668º, nº1, al) b) do C.P.C.), por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 668º, nº1, al) c) do mesmo código) e, por último, por omissão de pronúncia (art. 668º, nº1, al) d) do C.P.C. Vejamos.

Os autores consideram que a Sra. juiz “não fundamentou de facto e de direito a sua decisão”.

O juiz deve “indicar os factos que considera provados e interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes” – art. 659º, nº2 do C.P.C. –, bem como, no que concerne à fixação da factualidade assente, “analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador” – art. 653º, nº2 e 659, nº3 do mesmo diploma.

Está em causa, fundamentalmente, salvaguardar o dever de fundamentar as decisões, não bastando a simples adesão aos fundamentos alegados pelas partes – art. 158º do C.P.C–, em consonância com o que dispõe o art. 205.º, n.º 1, da CRP e em ordem a que a decisão seja perceptível aos interessados  a quem a mesma é dirigida e aos cidadãos em geral, permitindo também, de forma mais eficiente, o controlo da sua legalidade.

No entanto, como é pacificamente entendido, apenas a falta absoluta de fundamentação integra o referido vício, e não já a fundamentação deficiente, medíocre ou não convincente.

No caso em apreço, é absolutamente evidente que não ocorre o vício aludido. O tribunal de 1ª instância fundamentou de forma suficiente a resposta aos quesitos, aludindo ao depoimento de determinadas testemunhas e conjugando não só esses depoimentos entre si como com outros elementos de prova, por exemplo a resultante de inspecção judicial realizada, em suma, explicitando o seu percurso valorativo.

Eventual discordância com o julgamento da matéria de facto feito pela Sra. juiz não permite que se considere ter ocorrido uma omissão de fundamentação, como parecem entender os autores, sendo que o tribunal de 1ª instância justificou a formação da sua convicção, de sorte que a decisão proferida não surge como arbitrária, discricionária ou descontextualizada, em face da prova produzida.

Quanto aos fundamentos de facto e de direito enunciados na sentença, é líquido que não ocorre qualquer falta de fundamentação, sendo certo que os autores recorrentes nem sequer concretizam o invocado vício.

O  mesmo se diga relativamente aos demais vícios que imputam à decisão.

Os autores intentaram acção de reivindicação de uma parcela de terreno, invocando forma de aquisição originária (usucapião) e que os réus ocupam ilicitamente esse terreno. Os réus contestaram e reconviram, pretendendo que, a favor do réu D..., se reconheça a aquisição dessa parcela, também por usucapião.

Na acção de reivindicação – acção de condenação, nos termos do art. 4º, nº2, al) b –, a pretensão real é a da entrega da coisa e, se bem que a actividade jurisdicional também se possa dirigir à apreciação da existência do direito, essa apreciação é, essencialmente, pressuposto do conhecimento da pretensão material formulada e que se prende com aquela entrega (art. 1311º, nº1 do C.Civil). [[vii]]

 “Como já deixámos antever, reúnem-se nas acções de condenação dois juízos: um de apreciação – implícito – e outro de condenação – explícito. O tribunal não pode condenar o eventual infractor sem que antes se certifique da existência e violação do direito do demandante. Simplesmente as duas operações – apreciação e condenação – não gozam de independência”. [[viii]]

Ou seja, “a vertente condenatória parece prevalecer sobre a declaratória”. [[ix]]

No caso, depois de enunciar a factualidade assente o tribunal a quo faz uma correcta caracterização da acção e, subsumindo os factos ao direito, concluiu, acertadamente, que o réu D... logrou provar a aquisição, por usucapião, de um prédio onde se insere a aludida parcela de terreno com a área de 875 m2, área que os autores reivindicavam para si.

Parece-nos, pois, que não há qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, como inexiste qualquer omissão de pronúncia por parte do tribunal – segundo a máxima de que se conhecem de questões e não de razões ou argumentos –, sendo a questão de mera discordância dos apelantes quanto ao julgamento de facto feito pela 1ª instância, e tudo se reconduzindo a esse desacordo.

Quanto a essa matéria, no entanto e como vimos, não têm razão.

Conclui-se que a sentença não enferma das nulidades invocadas.

5. Mantendo-se a resposta aos quesitos e, portanto, inalterada a factualidade apurada na sequência da audiência de julgamento, mais não resta senão confirmar a decisão recorrida, para a qual se remete (art. 713º, nº5 do C.P.C.), acrescentando-se apenas pormenor alusivo às considerações feitas pelos apelantes relativamente ao registo predial.

Os autores beneficiam da presunção de que são proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 925/971017, atenta a factualidade assente (alíneas A) e o disposto no art. 7º do Cód. do Registo Predial.

No entanto, e como vem sendo entendido quase com uniformidade, cremos, pela jurisprudência, essa presunção não abrange os factores descritivos do prédio (as áreas, limites ou confrontações), cujo ónus de alegação e prova impende sobre o proprietário que pretende exercer o direito à demarcação.

Como se referiu no As. STJ de 14-10-2003, “o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, estando sujeitos a registo "os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade (...)" - art. 2.º-1-a). O registo apresenta-se, assim, com natureza e função essencialmente declarativa, que não constitutiva, donde que o conteúdo da preceituado no art. 7.º se esgote na dupla presunção já acima enunciada (o direito registado existe e pertence ao titular inscrito, nos termos definidos pelo registo).

Com efeito, como decorre dos preceitos citados, do contido nos arts. 76.º e 91.º-1 e, em geral, dos princípios que enformam o nosso sistema de registo, sendo a finalidade essencial deste a publicitação da «situação jurídica dos prédios» definida pela verificação de certos "factos jurídicos» referidos no art. 2.º, tem de entender-se a presunção em causa como delimitada pelos contornos descritos, ou seja, deixando de fora, por razões decorrentes do próprio sistema de identificação predial acolhido pela lei, a possibilidade, certamente desejável, de "abranger a totalidade dos elementos de identificação dos prédios, que continuam sujeitos a uma eventual rectificação ou actualização (…).

Ora, se o registo não pode, nem se destina a garantir os elementos de identificação dos prédios, bem se compreende que tais elementos não possam aceitar-se como factos presumidos.

Daí que se venha reafirmando a posição de que o "registo predial respeita aos factos jurídicos causais dos direitos reais, e não à materialidade dos prédios sobre que incidem os direitos, aos respectivos elementos descritivos", para concluir que não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais (com finalidade essencialmente fiscal), numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis, tanto mais que a mesma é susceptível assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controle do conservador apesar da sua intervenção, mesmo oficiosa”. [ [x] ]

Salienta-se, ainda, que também as inscrições matriciais não são garantia suficiente das áreas e delimitações inscritas (para efeitos fiscais), desde logo porque resultam de declarações feitas pelos próprios interessados.

Ponderando a factualidade assente e o disposto nos arts. 1251º, 1259º a 1252º, 1263º, alínea a) 1287º, 1296º, 1316º e 1317º, conclui-se, como na decisão recorrida, que o réu D... é proprietário da parcela de terreno reivindicada pelos autores, terreno integrado no prédio que adquiriu por usucapião.

                                                  *

Conclusões:

I. O recurso sobre a matéria de facto fixada pela 1ª instância destina-se a obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador; Está em causa, portanto, aferir da existência de erros notórios na apreciação da prova.

II. Atenta a natureza e função do registo – essencialmente declarativa e não constitutiva – a presunção do art.º 7 do Cód. do Registo Predial não abrange os elementos descritivos alusivos ao prédio (área e confrontações).

                                            *

Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos apelantes.

Notifique.


[i] Que, por falta de concisão, não se reproduzem na íntegra.

[ii] Refere-se no preâmbulo: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

[iii] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, acessível in www.dgsi.pt, podendo ler-se, neste:«De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)».

[iv] Os apelantes não transcrevem integralmente o depoimento prestado pelo réu F..., omitindo, por exemplo, toda a inquirição feita pelo mandatário dos réus e respectivas respostas do depoente, mas essa falta não é relevante, desde logo porque a parte em que se omite a transcrição contém algumas repetições do que já havia sido dito.  
[v] Regista-se que os apelantes não transcreveram o depoimento da testemunha prestado ao mandatário dos réus.
[vi] No decurso da instância feita pelo mandatário dos autores/apelantes a testemunha MM...disse ao ilustre advogado “o doutor é que é um aldrabão, desculpe lá, não era isso que eu queria dizer”, tendo a inquirição continuado e a testemunha NN... que prestou, a seguir, o seu depoimento, disse “se o senhor me provoca garanto-lhe uma coisa, eu levo-lhe nas trombas”, momento em que a Sra. juiz determinou o terminus da gravação e o regresso ao tribunal.
 

[vii] Sobre os conceitos de “pretensão material” e “pretensão processual” v.d. Miguel Teixeira de Sousa, in Sobre a Teoria do Processo Declarativo, Coimbra Editora, 1980, pág.147-156.
 

[viii] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1981, vol. I, pág.102. Vd ainda Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, Almedina, 1985, pág.205. 

[ix] Oliveira Ascensão in A Acção de Reivindicação, estudo publicado na ROA, 57º, Abril de 1977, p.519 

[x] Proferido no processo 03A2776 (Relator: Cons. Alves Velho), acessível in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, cfr. os Acs STJ de 13/05/2008, proferido no processo nº 08A868 (Relator: Cons. Mário Cruz), 15/05/2008, proferido no processo nº 08B856 (Relator: Cons. Pereira da Silva), 12/01/2006, proferido no processo nº 05B4095 (Relator: Cons. Duarte Soares), de 08/01/1991, proferido no processo nº 079397 (Relator: Cons. Miguel Montenegro), acessíveis no memso loc. e Ac. desta Relação de 9 de Março de 1999, C.J., Ano XXIV, 1999, T. II, p. 17.