Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/03.9IDAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CASO JULGADO
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
CRIME CONTINUADO

ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PENA SUSPENSA
PEDIDO CÍVEL;EXECUÇÃO FISCAL;LITISPENDÊNCIA
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CIRCULO JUDICIAL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 29.º, N.º 5 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; ARTIGOS 30.º E 50.º E 129.º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGOS 105.º E 107.º DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS; E ARTIGOS 71.º E 77.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I. – Contrariamente ao que sucedia no Código de Processo Penal de 1929, a lei adjectiva hoje vigente não regulamenta sistemática e especificamente o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicata, só existindo referência ao referido instituto nos artigos 84.º e 467.º, nos concretos domínios que as referidas normas especificam.
II. – Ainda assim o ordenamento jurídico-penal não prescinde do instituto que confere e assegura a defesa do arguido e a consagra, em termos sistema social e dos fins da justiça, a segurança e a certeza do Direito.
III. – Por isso é que o artigo no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, dando dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem, se consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime»;
IV. - A expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o n.º 5 do art. 29.º da C.R.P. proíbe, é no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal».
V. – A delimitação do conceito de “identidade do facto” ou seja a determinação do sentido e o alcance do objecto do processo penal, na lição de Frederico Isasca, «só pode ser (…) o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível, pelo que o “[…] o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados».
VI. - «O objecto relativamente ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras acusações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a julgamento».
VII. - Assim para aquilatação de ocorrência de caso julgado numa situação de continuação criminosa: «se algumas actividades fazem parte de uma continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz, (…), podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem».
VIII. - O crime de abuso de confiança fiscal, independentemente da precisa configuração do bem jurídico protegido, pretende proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
IX. - No crime de abuso de confiança em relação à segurança social o bem jurídico tutelado é o erário de que é titular a segurança social [formado a partir das receitas contributivas do sistema definidas segundo critérios materiais e afectas aos fins específicos de solidariedade], que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito.
X. – A lei anterior – artigo 50.º, n.º 4 do Código Penal – permitia, em conformidade com o n.º do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que o tribunal suspendesse a pena ao arguido com a condição de no prazo fixado na sentença pagar as quantias em que houvesse sido condenado;
XI. – A 15ª alteração do Código de Processo Penal operou uma modificação no regime da suspensão da pena passando a fazer equivaler o período da suspensão á pena de prisão aplicada, mas nunca inferior a um ano – n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal.
XII. – Na opção pelo regime mais favorável - artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal – dever-se-á optar pela solução de impor ao condenado o regime actual dado que quanto mais curto for o período de suspensão mais depressa o agente fica a coberto das consequências negativas que a revogação da suspensão envolve sendo ainda de ponderar que só o incumprimento culposo (grosseiro e repetido) da obrigação determina a revogação da suspensão da execução da pena (arts. 55.º e 56.º do CP).
XIII. - Enquanto no processo executivo o pedido emerge do não pagamento pontual de obrigações fiscais, o fundamento que suporta o pedido de indemnização formulado nos presentes autos é a prática de um crime de abuso de confiança fiscal pelo que não possa ocorrer litispendência entre o processo de execução fiscal e o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Círculo Judicial de Anadia, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, os arguidos:

- AS …, casado, metalúrgico, nascido no dia 10 de Junho de 1949, filho de AM e de ES, natural de Águeda, residente em Cabeça da Lama, Aguada de Cima, Águeda, e com o BI 11111111;

- OS …, casada, doméstica, nascida no dia 20 de Maio de 1953, filha de OR e de MS, natural de Águeda, residente em Cabeça da Lama, Aguada de Cima, Águeda, e com o BI 55555555; e

- E….Lda., com sede em Almas da Areosa, freguesia de Aguada de Cima, concelho de Águeda, e com o NIPC 000000000,

aos quais está imputada (pronúncia de fls. 340 do proc. apenso n.º 13656/02.0TDLSB e pronúncia de fls. 749), a prática, em co-autoria material e na forma continuada:

- de um crime de abuso de confiança fiscal, p e p. pelos artigos 6.º e 24.º, n.ºs 1, 2, 5.º e 6.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA - Decreto-Lei 20-A/90, de 14/06, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro) e 30/2 e 79.º, ambos do Código Penal, sendo a arguida E por força do artigo 7.º do RJIFNA;

- de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, sob a forma continuada, p. e p. de acordo com o preceituado nos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, ambos do Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT - Lei 15/2001, de 5/6), sendo a arguida E, Lda por força do artigo 7º, n.º 1, também do RGIT.

2.   O Ministério Público deduziu, em representação do Estado, pedido de indemnização cível contra todos os arguidos no montante de 234.280,99 €, correspondente aos valores do IVA deduzidos e não entregues ao Estado, acrescido de juros vincendos desde a notificação do pedido (8/3/2006).

3.   A Delegação de Aveiro do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, constituída assistente, deduziu pedido de indemnização cível contra os arguidos, no valor de 39.378,76 €, acrescido de juros de mora vencidos até Março de 2004, no montante de 16.362,58€, e dos vincendos até integral pagamento.

4. Por acórdão de 6 de Novembro de 2006, o tribunal colectivo decidiu nos seguintes termos:

a) Julgou a pronúncia improcedente quanto à arguida Orlanda de Almeida Sobral, a qual absolveu do crime que lhe estava imputado.

b) Julgou, no resto, as pronúncias procedentes, condenando:

 O arguido AS:

1. Pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal (artigo 105.º, n.º 1, do RGIT), sob a forma continuada (artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

2. Pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107.º do RGIT), sob a forma continuada (artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal), na pena de 7 meses de prisão.

3. Na pena única de 1 (um) ano de 10 (dez) meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, sob condição do pagamento das prestações tributárias em dívida;

A arguida “E, Lda.”:

1. Como responsável pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal (artigo 105.º, n.º 1 do RGIT), sob a forma continuada (artigos 30.º, n.º 2 e 79.º e 2.º, ambos do Código Penal), na pena de 340 dias de multa, à razão diária de 10 €;

2. Como responsável pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107.º, n.º 1, do RGIT), sob a forma continuada (artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal), na pena de 120 dias de multa à razão diária de 10 €;

3. Na pena única de 400 (quatrocentos) dias de multa, à razão diária de 10 € (dez euros).

c) Absolveu a demandada OS do pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado.

d) Julgou procedente, na restante parte, o pedido cível formulado pelo Ministério Público, em representação do Estado, e, em consequência, condenou solidariamente os arguidos AS e “E, , Lda.” a pagar ao Estado a quantia de 234.280,99 €, acrescida dos juros legais vencidos desde 08-03-2006 e vincendos até integral pagamento.

e) Julgou procedente o pedido cível deduzido pela Delegação de Aveiro do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e, consequentemente, condenou os demandados AS e “E, , Lda.” a pagar, solidariamente, ao demandante a quantia de € 39.387,76, acrescida de juros de mora vencidos até Março de 2004, no montante de 16.362,58 €, e dos juros vincendos até integral pagamento, à taxa mensal de 1%.

5. Inconformado, o arguido AS interpôs recurso do acórdão, formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

«1.ª - O Recorrente já fora condenado em 27/01/2003, com decisão transitada em julgado em 24/02/2003, no PCC 274/00.7TAAGD do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda, por um crime de abuso de confiança contra a segurança social, por factos praticados de Janeiro a Junho de 1996, Janeiro de 1997 a Setembro de 1997 e Dezembro de 1997 a Outubro de 1998.

2.ª - “Os actos ilícitos ainda não julgados que estejam numa relação de continuidade temporal com os outros actos já julgados ficarão abrangidos pelo caso julgado que a primeira decisão formou” (Ac. do STJ, 11/03/1993, proc. n.º 43307, e Ac. do STJ de 18/04/1996, CJSTJ96, Tomo II, pág. 170/172).

3.ª - “Se algumas das actividades que fazem parte de uma continuação criminosa já foram objecto de uma decisão, o direito de promover novo processo fica consumido relativamente às actividades que estão com aquelas numa relação de continuação, que pertençam a esse mesmo crime continuado e que não foram do conhecimento do juiz que decidiu a primeira causa”.

4.ª - Assim sendo, o tribunal a quo deveria ter efectuado uma apreciação global dos factos constantes da anterior condenação do primeiro processo mencionado e os factos do presente, por isso abrangidos pelo caso julgado, o que determinaria a absolvição do Arguido.

5.ª - O Recorrente entende ainda que haverá também “repetição da causa” no que se refere ao pedido de indemnização civil deduzido pela Segurança Social e Estado para efeitos de pagamento de IVA.

6.ª - Acontece que em relação às contribuições e impostos devidos já existem sentenças condenatórias de processos de execução fiscal e já com trânsito em julgado, pelo que dá origem à repetição da causa.

7.ª - Verifica-se a identidade de sujeitos processuais, tanto da empresa como dos sócios gerentes em virtude da reversão fiscal.

8.ª - O C.P.C., no artigo 497.º, exige a verificação da identidade de “pedido” e “causa de pedir”. Qualificando no artigo 498.º o pedido como o efeito jurídico pretendido e a identidade de causa de pedir como “quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”.

9.ª - O Arguido foi condenado pelo crime de abuso de confiança fiscal (artigo 105/1 do RGIT) e de crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107/1 do RGIT), ambos os crimes sob a forma continuada, na pena única de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa por 5 anos, sob condição do pagamento das prestações tributárias em falta.

10.ª - O valor das prestações em falta ascende a 290.022,33, já acrescido de juros de mora vencidos até Março de 2004 e vincendos até integral pagamento, à taxa de 1%.

11.ª - O Recorrente não possui quaisquer rendimentos nem património, nem tem quaisquer bens susceptíveis que possam criar riqueza de forma a poder efectuar a liquidação do montante que consta da douta acusação.

12.ª - Logo, a condição imposta é excessiva, de cumprimento inviável e, portanto, violadora da lei, dado que o Recorrente não tem quaisquer rendimentos: não desenvolve uma actividade remunerada nem possui património.

13.ª - Para além do Recorrente não auferir sequer um salário, não é coadunável com o valor elevado da prestação mensal por conta da indemnização e viola o princípio da culpa, pois faz repercutir o peso e as consequências dessa condição sobre as pessoas (a esposa igualmente sem rendimentos e sem património) que em nada contribuíram para a prática do ilícito de que vem acusado.

14.ª - E ainda outros que focam especialmente a questão da razoabilidade da condição imposta, ou seja, a exigência decorrente da própria lei (n.º 2 do referido artigo 51.º) de o dever imposto não ultrapassar os limites traçados pelo quadro das possibilidades pessoais e patrimoniais do condenado, de modo a criar-se um equilíbrio que permita a “reintegração dos valores afectados com a recomposição da vida em liberdade e integração”, jurisprudência que encontra caução na doutrina, por exemplo a também referida na motivação de recurso, de Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, III, p. 208), a qual postula que não devem ser fixados deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento dos mesmos.

15.ª - Assim, na medida da pena aplicada deveria constar apenas que o Arguido seria condenado numa “pena única de 1 ano e dez meses de prisão, suspensa por 5 anos” e considerar-se não escrita a parte que determina a condição de pagamento das prestações tributárias em falta, que deverá ser pura e simplesmente revogada, subsistindo apenas a decisão na parte que suspende a execução da pena.

16.ª - Assim, tal como refere o Ac. da Rel. de Coimbra de 30-05-1996 (R. 345/96), Bol. do Min. da Just. 457, 453: “Constatada a situação de carência económica do arguida da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão e que não terá possibilidades de cumprir a condição, não é curial fazer depender a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi imposta do pagamento do valor do cheque e respectivos juros”.

17.ª - Na determinação da medida da pena deve a mesma enquadrar-se dentro dos limites definidos na lei, a culpa do agente, das exigências de prevenção e as condições pessoais do agente e a sua situação económica (artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, al. d) do Código Penal).

18.ª - O Arguido tem 63 anos de idade, é acompanhado de vários problemas de saúde, nomeadamente do foro oftalmológico, como bem consta dos autos, está socialmente inserido e tem condição económica muito precária.

19.ª - Pelo supra exposto, foi violado o artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 71.º, conjugado com o artigo 51.º, do Código Penal.

Nestes termos e nos mais de direito (…) deverá ser concedido provimento parcial ao recurso, absolvendo-se o Recorrente».
5. Admitido o recurso e cumprido que foi o disposto no art. 411.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, a Magistrada do Ministério Público e o assistente-demandante Instituto da Segurança Social, I.P. concluíram as respostas que apresentaram da seguinte forma:
A) Ministério Público:
«1. Face à graduação da ilicitude, culpa e intensidade do dolo feita pelo Tribunal a quo, às circunstâncias que motivaram a prática do crime e atendendo às exigências concretas de prevenção geral e especial, em que é importante ponderar a frequência com que este tipo de infracções é praticado e a necessidade de afastar o perigo da sua imitação não só pelo arguido mas também por terceiros, entendemos ser adequada a pena cominada ao arguido;
2. Pelo exposto, consideramos que o Tribunal a quo fez uma correcta aplicação dos critérios enunciados no artigo 71.º do C. Penal.
Pelo que, negando provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmando a decisão recorrida, V. Ex.ªs farão justiça».
B) Assistente/demandante civil Instituto da Segurança Social, I.P.:
«1. Não assiste razão à pretensão do arguido recorrente ao caso julgado e à não possibilidade de ser julgado de novo (“…que já tinha sido julgado, logo não o podia ser de novo…”, como refere o recorrente) conforme dispõe o Ac. RG, processo n.º 1598/04-2, de 22/11/2004: “A resposta aos casos em que já ocorreu julgamento e condenação por factos tidos como crime continuado e em que se tem conhecimento de novos factos e se estes devem ou não ser julgados resulta dos seus próprios termos, ou seja, tratando-se de factos ainda não julgados, têm que o ser, respondendo o sistema às implicações consequentes, quer respeitando os factos já julgados, quer ajustando a decisão e a pena se as circunstâncias tanto o exigirem”.
2. “II – Com tal solução não está em causa – nem fica em causa – o efeito do caso julgado sobre os factos já conhecidos, pois sobre estes mantém-se inalterado o conteúdo da decisão e apenas se vêm a conhecer outros que não têm outra identidade com aqueles que não seja a do sujeito passivo, da natureza do crime e da sua localização num determinado âmbito temporal: aqueles factos têm que ser apreciados em julgamento, pois não fizeram parte do julgamento anterior e, assim sendo, também não foram ponderados para efeitos de autonomia ou de continuidade criminosa”.
3. “III – Tal julgamento pode trazer desvantagens para os arguidos, mas a verdade é que elas derivam da prática de factos criminalmente típicos ainda não censurados, sujeitos a todos os princípios do direito penal e processual penal e que, como tal, não podem ser pura e simplesmente desprezados”.
4. “IV – Por outro lado, pode também suceder que no novo julgamento venham a ser conhecidas circunstâncias, as mais diversas, note-se bem, que venham a favorecer os arguidos e que impliquem, até, uma redução da pena. Tudo depende do número e peso de tais circunstâncias e da respectiva ponderação”.
5. “V – E, se há factos que, por qualquer razão, ainda não foram apreciados e o sistema jurídico-penal tem para eles uma solução compatível com aqueles princípios, mormente com o princípio da legalidade, parece óbvio que não há qualquer razão para os esquecer. Por outro lado, repete-se, nunca foram tidos em conta; por outro, a simples conexão temporal não pode fazer com que se ficcione o seu conhecimento e o seu mero apagamento”.
6. “VI – O que, essencialmente, determina o tratamento do crime continuado como caso de unidade de infracção não é o lapso temporal, mas sim a existência de um conjunto de factos executados por forma essencialmente homogénea (o tempo será apenas um dos seus elementos) e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. E isto é assim, em especial para o caso de realizações plúrimas do mesmo tipo de crime, pois para os casos de violação de normas que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico já a sua validade é discutível, o que vem, até, dar razão à tese da legitimidade de novo julgamento (…)”.
7. (...) “VIII – O objecto da acusação é definido por um conjunto de factos, certos e determinados, que uma vez julgados não o podem ser novamente. Só que, por isso mesmo, quaisquer outros factos, também certos e determinados, ainda da mesma natureza e compreendidos no mesmo período temporal dos primeiros, têm que ser conhecidos e apuradas as suas repercussões na decisão anterior, com eventual aplicação de nova pena ou de cúmulo jurídico de penas”.
8. “IX – Aliás, cabe questionar-se o seguinte a quem defende a tese do caso julgado: caso julgado de quê? É que os novos factos ainda não foram julgados e, assim, não pode dizer-se que são abrangidos por caso julgado”.
9. “XI – Aliás, pense-se na situação em que os factos novos são manifesta e incomensuravelmente mais graves do que os já julgados. Quid juris? É óbvio que nesta situação se justifica o novo julgamento e, como se disse, o mesmo há-de valer para as demais e só o julgamento é que pode vir a caracterizar plenamente a nova situação. Antes disso, não se podem caracterizar factos ainda não conhecidos!”.
10. “XII – Só se saberá que uma certa conduta integra efectivamente uma continuação criminosa se a mesma passar pelo crivo de um julgamento, retirando-se após ele, todas as consequências emergentes de uma unidade criminosa, caso a mesma se verifique. Sem esse procedimento, sem a realização do julgamento, apenas se persegue um prejuízo, uma mera hipótese carecida de comprovação”.
11. “XIV – Com a solução aqui proposta, nunca há o risco de decisões diversas sobre os mesmos factos nem contradição ou reprodução de uma decisão anterior: há, isso sim, julgamento por factos diversos, os quais, se verificados certos requisitos, serão integrados na figura da continuação criminosa, com as devidas consequências”.
12. Assim sendo, bem andou o Meritíssimo Juiz a quo ao proceder ao julgamento dos factos descritos na acusação, decidindo a condenação.
13. Não se verificando qualquer violação do princípio ne bis in idem.
14. No mesmo sentido bem andou o Meritíssimo Juiz ao fazer proceder o pedido de indemnização.
15. E, aqui, também nenhuma razão assiste ao recorrente, pelo que não colhe a argumentação quanto à excepção de litispendência porquanto:
16. A litispendência é um conceito do processo civil, donde constitui uma excepção dilatória.
17. Consiste em se propor uma determinada acção, estando pendente acção idêntica e tem por fim, nos termos do n.º 2 do artigo 497.º do C. Civil, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de ter de se contradizer ou reproduzir uma decisão anterior – Ac. STJ de 12/11/81, processo 069430; Ac. STJ de 09/12/99, processo 96A868; Ac. TCAS de 22/02/2005, processo 00417/04, in www.dgsi.pt.
18. Assim, a referida expressão pressupõe a repetição de uma causa quando a anterior ainda está em curso.
19. A acção repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, na fronteira do artigo 498.º do C. Civil, isto é, quando verificada esta tripla identidade.
20. Pelo que, o critério orientador e primeiro para se aferir da existência da excepção de litispendência passa pelo desiderato expresso no n.º 2 do artigo 497.º aparecendo-nos a identidade de elementos elencados no artigo 498.º como uma concretização legal destinada a obter o desiderato acima enunciado, o que significa que, por conseguinte, a tripla identidade imposta naquela norma tem de ser conexionada com a regra basilar expressa no já citado n.º 2 do artigo 497.º.
21. Pretende-se, assim, evitar um duplo dispêndio (desnecessário) de tempo, de dinheiro e de esforços, tentando igualmente obviar ao risco de grave dano para o prestígio da justiça, derivado da eventual reprodução ou contradição de julgado.
22. Existe identidade de sujeitos quando são os mesmos do ponto de vista da sua qualidade jurídica.
23. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
24. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
25. Não olvidemos que, por força do princípio da adesão obrigatória da acção civil de indemnização à acção penal (nos termos do artigo 71.º do CPP “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo”), e do princípio da suficiência do processo penal (artigo 7.º do CPP), estamos aqui a tratar de uma questão de natureza civil.
26. Na verdade, o regime de adesão obrigatória da acção civil enxertada na acção penal não respeita a uma acção qualquer, antes justifica um pedido de indemnização civil para ressarcimento de danos causados por uma conduta considerada como crime.
27. Temos assim, no âmbito do regime de aplicação do artigo 129.º do CPP, que se remete a regulamentação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime para a lei civil, apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, mas com total exclusão da responsabilidade por facto ilícitos, no caso contemplados na lei.
28. Aqui, o fundamento é a prática de crime e a necessidade de reparar os efeitos danosos do delito e não o cumprimento das obrigações mesmo fiscais.
29. Pelo que, temos que concluir que o fundamento do pedido de indemnização civil em processo penal é diferente daquele que constitui a causa de pedir no processo executivo fiscal.
30. De referir ainda que, no pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos está apenas em causa a subdivisão da taxa contributiva respeitante à parcela das quotizações dos trabalhadores por conta de outrem e membros dos órgãos estatutários e não a taxa contributiva global dos referidos regimes que inclui quer a contribuição devida pela entidade patronal quer a quotização relativa aos trabalhadores – cfr. artigo 3.º do DL 199/99, de 8 de Junho, totalidade esta incluída em processo executivo fiscal.
31. Veja-se o disposto no Ac. RE, de 30/06/2004, in www.dgsi.pt, que diz o seguinte: “(…) por não haver identidade da causa de pedir, inexiste litispendência entre o processo de execução fiscal cujo fundamento consiste no não pagamento pontual das obrigações fiscais e o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime fiscal e deduzido no processo penal respectivo, ainda que haja identidade do pedido (…).
32. No mesmo sentido, veja-se o Ac. RE de 9/12/2003, in www.dgsi.pt.
33. Assim sendo, temos de concluir que, por não verificados os pressupostos legais da excepção da litispendência a mesma não se verifica, porquanto inexiste identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir.
34. Pelo que, também neste domínio, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo.
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6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Notificado, então, nos termos e para os efeitos consignados no art.º 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido respondeu nos termos que constam de fls. 964/965, renovando posição já antes sustentada na motivação do recurso.
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7. Foi cumprido o disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro. Não obstante, como se vê das informações que constam de fls. 967 e 973, não foram pagas aos serviços competentes da administração fiscal e da segurança social as prestações e respectivos adicionais referidos naquela norma.
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8. Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:

1. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. A E foi constituída em 1972 com o objecto de fabrico e comercialização de acessórios para bicicletas e veículos motorizados.

2. A E está enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade mensal pelo exercício da actividade de fabricação de carroçarias, reboques e semi-reboques, CAE-34200.
3. A gerência da E foi sempre exercida pelo sócio gerente arguido António desde a sua criação.

4. O arguido entregou nos Serviços de Administração do IVA até ao dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as operações, as declarações de IVA dos períodos a seguir mencionados, sem no entanto as fazer acompanhar do respectivo meio de pagamento relativo ao imposto exigível, conforme também se segue:

Janeiro de 199910.869,77€
Fevereiro de 199914.142,39€
Julho de 199910.821,51€
Agosto de 199911.248,53€
Setembro de 199911.566,06€
Fevereiro de 20007.836,72€
Março de 20005.651,20€
Abril de 20005.622,54€
Maio de 20008.339,20€
Junho de 20005.953,22€
Julho de 20003.701,69€
Agosto de 20006.839,39€
Setembro de 20006.896,79€
Outubro de 20007.326,26€
Novembro de 20007.479,56€
Dezembro de 20004.887,07€
Janeiro de 200110.869,96€
Fevereiro de 20018.472,46€
Março de 20017.790,32€
Abril de 20014.991,66€
Maio de 20015.280,01€
Junho de 20015.099,22€
Julho de 20013.629,14€
Agosto de 20015.738,40€
Setembro de 20019.523,42€
Outubro de 200110.556,94€
Novembro de 20015.073,02€
Dezembro de 20012.279,65€
Janeiro de 20021.556,25€
Fevereiro de 20027.665,00€
Abril de 20023.592,26€
Maio de 20021.810,04€
Junho de 20024.352,45€
Julho de 20024.177,40€
Agosto de 2002446,65€
Setembro de 2002454,67€
Outubro de 2002444,28€
Novembro de 2002413,50€
Dezembro de 2002882,39€
Total234.280,99€

5. O arguido também não entregou o IVA em causa nos 90 dias posteriores a essas datas.

6.   A E é, para além disso, contribuinte da segurança social (com o número 116011119) como entidade patronal.
7. Na qualidade de sócio gerente da E, o arguido procedeu ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores e gerentes da empresa nos períodos e montantes a seguir discriminados:

Trabalhadores por

conta de outrem

Gerentes
Novembro de 1998805,20€56,56€
Dezembro de 19981.598,99€113,13€
Janeiro de 1999923,91€61,15€
Novembro de 1999988,83€61,15€
Dezembro de 19991.997,16€122,30€
Janeiro de 2000,1.025,14€63,65€
Fevereiro de 20001.037,54€63,65€
Março de 20001.017,92€63,65€
Abril de 20001.052,19€63,65€
Maio de 20001.111,08€149,64€
Junho de 20001.386,22€149,64€
Julho de 20001.705,56€224,46€
Agosto de 20001.565,36€224,46€
Setembro de 2000983,73€149,64€
Outubro de 2000984,64€149,64€
Novembro de 2000983,85€149,64€
Dezembro de 20002.089,16€304,27€
Janeiro de 20011.135,48€154,63€
Fevereiro de 20011.185,91€154,63€
Março de 20011.160,67€159,62€
Abril de 20011.008,12€159,62€
Maio de 2001910,02€159,62€
Junho de 2001891,96€159,62€
Julho de 20011.419,48€234,44€
Agosto de 20011.450,36€224,46€
Setembro de 2001921,31€149,64€
Outubro de 2001953,53€149,64€
Novembro de 2001902,78€149,64€
Dezembro de 20011.942,43€309,26€
Totais parciais35.138,63€4.335,10€
Total39.473,73€

8. Mas depois não procedeu à entrega dessas contribuições nos cofres da Segurança Social, nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias posteriores ao mesmo, apropriando-se, para a E, das mesmas.

9. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da E e na qualidade de seu representante legal, e com a intenção de fazer da E o IVA, que tinha sido efectivamente cobrado, e as Contribuições efectivamente retidas.

10. Agiu o arguido com a perfeita consciência da ilicitude das suas condutas.

11. O arguido foi condenado:

- em 17/03/1998 no PCC 1088 do tribunal de círculo de Anadia por um crime de falsificação de documento, praticado em 1991, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 2500$;

- e em 27/01/2003, com decisão transitada em julgado em 24/2/2003, no PCC 274/00.7TAAGD do 1.º juízo deste tribunal judicial de Águeda, por um crime de abuso de confiança contra a segurança social, dos arts. 27-B e 24/4 do RJIFNA, na pena de 590 dias de multa, a 9,98€ diários, com 393 dias de prisão subsidiária (factos de Jan96 a Junho de 1996, Jan97 a Set97 e de Dez97 a Out98).

12. Ao arguido, sócio gerente, no exercício das respectivas funções, competia-lhe decidir todos os actos de gestão e direcção da vida comercial da sociedade, decidindo da afectação dos respectivos recursos financeiros ao cumprimento das obrigações correntes, designadamente, ao pagamento dos salários aos trabalhadores e dos débitos aos fornecedores, bem como ao apuramento dos respectivos impostos.

13. O sector da actividade desenvolvida pela E tinha várias empresas sediadas na região de Águeda, da Bairrada e restante distrito de Aveiro.

14. Sobre este sector abateu-se uma crise, o que levou a maioria das empresas a optar pela mudança do ramo de actividade e outras a cessar actividade por incapacidade de soluções para combater a crise.

15. A E também foi afectada pela referida crise.
16. Nos períodos de Março a Junho de 1999, inclusive, o arguido entregou o IVA cobrado dos clientes. No período de Out99 foi apurado imposto a favor da E, tendo-se iniciado uma situação de reporte de créditos que só foram completamente compensados no período de Fev2000. Em Março de 2002, apurou-se imposto a favor da E.

17. As instalações da E foram objecto de venda judicial em execução fiscal pelo serviço de finanças de Águeda, no dia 19/02/2006.

18. A arguida OS é casada com o arguido António e sócia gerente, juntamente com o marido, da E.

19. O arguido, desde muito novo sofre de um problema ocular, conforme atestado médico junto, que o obriga a frequentes exames e consultas médicas.

2. Quanto aos factos não provados, ficou consignado no acórdão:
a) Os factos sob 4, 8, 9 e 10 também tenham sido praticados pela arguida OS.

b) A E não escapou à “derrocada” do grupo de empresas onde estava inserida.

c) A crise provocou atrasos no pagamento dos salários aos trabalhadores e respectivos subsídios de férias e de Natal, por períodos superiores a três meses.

d) Em virtude desta situação, a E teve necessidade de muitas vezes recorrer a terceiros para pagar salários.

e) O arguido teve de se socorrer da venda de bens pessoais para pagar salários.

f) A E viveu momentos de dificuldades económicas que não lhe permitiam cumprir as obrigações perante os credores privados e, por conseguinte, acumulou dívidas a fornecedores.

g) Como também se amontoavam dívidas dos seus clientes e/ou atraso significativo no pagamento das mercadorias que a empresa fornecia.

h) À data de entrega das declarações de IVA as contas dos clientes apresentavam saldo devedor.      

i) A grande maioria das facturas emitidas a clientes nos períodos referidos não se encontravam pagas.

j) As declarações entregues pelo arguido indicavam o valor apurado, não o efectivamente recebido pela E.

l) Os arguidos nunca tiveram o propósito de enriquecer a sociedade através da apropriação de impostos.

m) Os impostos apenas não foram regularizados na altura em que se venceram por absoluta carência de meios financeiros para o efeito.

n) A situação crítica da empresa na data, sem dinheiro, e com dívidas a fornecedores e aos trabalhadores, levou a que o arguido elaborasse um plano de pagamentos.

o) O arguido tem baixa escolaridade e de modesta condição social e económica.

p) Actualmente, o arguido não aufere qualquer rendimento, nem bens pessoais que dissipou para pagar dívidas a empréstimos particulares que fez em prol da sua honra pessoal e profissional, que tanto preza.

q) A sua saúde seja precária.

r) A arguida sempre foi doméstica, exercendo por isso a sua actividade na casa de morada de família, cuidando dos filhos enquanto disso foi necessário, e mais recentemente de uma neta; sempre tendo dedicado o seu dia-a-dia ao acompanhamento da vida familiar, designadamente à educação e crescimento daqueles.

s) A arguida tenha sido nomeada gerente sem qualquer razão.

t) A arguida não possuía nem possui quaisquer conhecimentos ou experiência de gestão e da actividade da E.

u) A arguida apenas nominalmente exercia a gerência.

v) Os filhos do casal sempre foram acompanhados de perto apenas pela arguida, uma vez que o marido tinha de dirigir toda a actividade da empresa.

x) A arguida limitava-se a assinar a documentação que o marido lhe levava a casa, face às graves limitações do foro oftalmológico de que este padece.

z) Jamais a arguida acompanhou ou teve conhecimento directo de quaisquer negócios realizados pela sociedade.

aa) Já há alguns anos o marido lhe vem transmitindo que a crise no sector se vem agravando, diminuindo substancialmente de ano para ano o número de encomendas, e que a situação financeira da empresa é grave.

bb) A arguida apenas tem conhecimento desses factos por lhe terem sido transmitidos pelo marido.

cc) Sempre o marido lhe confidenciou os problemas da empresa, as dificuldades com que ele se deparava para o pagamento dos salários, a absoluta necessidade de garantir o pagamento destes para a sobrevivência da empresa, os planos dele para a empresa e a firme convicção deste de que iria conseguir ultrapassar tais dificuldades.

*

3. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou expresso:

Fundamentação da convicção:

1, 2 e 6: São dados que constam dos vários documentos (entre elas as declarações de IVA e as folhas de remunerações) juntos aos autos e que os próprios arguidos afirmam nas suas contestações.

3: Foi assumido pelo arguido.

4 e 5: Resulta das folhas 24 a 37 e 638 a 658 do processo principal e das declarações do arguido e do depoimento do inspector FV.

7: O arguido na contestação diz que não chegou a descontar tais valores nos salários dos trabalhadores por não ter dinheiro para esse efeito. Ou seja, só teria dinheiro para pagar os salários líquidos dessas contribuições. Sem convencer, como é evidente: se se têm 2.500 contos para pagar salários, é evidente que eles tanto podem ser destinados a impostos como a salários ou ao pagamento de fornecedores. Ou seja, tanto se pode fazer a afirmação em causa como a contrária: a E só tinha dinheiro para pagar impostos, não para pagar salários nem mercadorias. A conclusão é que o dinheiro existia, só que o arguido o destinou a outros fins que não o pagamento de impostos.

Quanto ao mais (a remessa das folhas, o pagamento dos salários, não entrega das contribuições, etc) o arguido aceita-o.

O arguido também aceita o que consta de 8 (excepto quanto à apropriação – quanto a esta vale a fundamentação de 9 a 10, último parágrafo).

E tudo isto (7 e 8) resulta também dos documentos/folhas de remunerações e depoimentos do funcionário da Seg. Social e das regras da lógica referidas acima.

Quanto aos elementos subjectivos de 9 e quanto a 10, resultam provados por força das regras da experiência comum e da lógica das coisas, conjugadas com os restantes factos provados e com o facto de não ter ficado sequer indiciado que o arguido sofra de qualquer tipo de perturbação mental ou outra que o impedisse de avaliar correctamente a ilicitude da sua conduta ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

Quanto ao recebimento do IVA dos clientes pela E, tal resulta, quanto a 1999, 2000 e 2001, do depoimento prestado pelo Inspector FV, remetendo para o relatório de fls. 21 a 23 do processo principal e para os documentos por ele juntos: balancetes finais com valores acumulados de clientes, vendas e prestações de serviços (fls. 53 a 45 – esta incongruência de números deve-se a má paginação do processo no tribunal), extractos da conta 21 – clientes contas correntes (fls. 46 a 203), extractos das contas 111 – Caixa e 1299 – Depósitos com recibos (fls. 204 a 288) e amostra representativa de recibos emitidos a clientes (fls. 290 a 491).

Com efeito, destes elementos resulta o seguinte confronto:

199920002001
222.889,20€ - iva recebido235.047,41€ - iva recebido169.511,10€ - iva recebido
58.648,26€ - iva não entregue70.533,64 – iva não entregue79.304,20€ - iva não entregue

Que o recebeu em 2002 resulta do depoimento do mesmo inspector, enquanto remete para o relatório de fls. 495 a 498 e para os recibos e contas correntes juntos a fls. 499 a 622, 623 a 626, 627 a 630, 631 a 637 do processo principal.

Pelo que, como se diz nesses relatórios, fica assim demonstrado que a E recebeu efectivamente o imposto que havia liquidado e não o entregou ao Estado, não podendo a causa do incumprimento ser imputada à falta de pagamento por parte dos seus clientes.

Quanto ao aproveitamento a favor da E resulta das declarações do arguido – que não foi posto em causa por outros elementos de prova -, ao referir, aliás parcialmente em contradição com o antes declarado, que as quantias em causa foram empregadas no pagamento de trabalhadores e fornecedores, tendo em conta que não se demonstra, antes pelo contrário, que a E tenha o mínimo de condições para vir a entregar tais quantias nos cofres do Estado ou da Segurança Social, tanto mais que as instalações onde laborava já nem existem, ou tivesse a intenção de o fazer.

   11: Resulta do CRC do arguido e certidão a fls. 32 a 35 do processo apenso.

   12. Corresponde ao normal das coisas e ninguém pôs em causa.

   13 a 15: Resulta do depoimento dos industriais e empresários ouvidos a favor dos arguidos.

   16: Resulta dos relatórios de fls. 21 a 23 e 495 a 498 e foi explicado pelo inspector fiscal.

   17. Declarações do arguido e da sua última testemunha, não tendo sido postos em causa.

   18: Declarações dos arguidos e certidão da CRC.

   19: Atestado médico junto aos autos e declarações dos arguidos e das suas testemunhas de defesa.

   Ninguém disse o que consta em a) – embora tenha sido referida vária actividade da arguida OS, designadamente pelo inspector fiscal, que indiciará que não é tão clara como invocada a ausência de gerência de facto desta arguida – nem o que consta de n), o) e q).

   As testemunhas de defesa dos arguidos disseram o que consta de b) e g), e p), r) a cc) mas não o fizeram com fundamentação suficiente, concreta, que convencesse minimamente que tivessem razões para saber que tudo isto se verificou de facto ou que tivessem conhecimento de facto disso que diziam. Quanto à arguida OS, repita-se de novo que o inspector fiscal a viu e a contactou na E e tomou-a como gerente e esta, aliás, recebia um ordenado como gerente, como se vê das folhas de remunerações.

   Quanto a h) a j): as contas não podem ser analisadas individualmente. A análise válida, global, é a referida na fundamentação de 9. Em 1999, por exemplo, os arguidos tiveram em seu poder mais de 4 vezes de IVA do que aquele que tinham que entregar. Em 2000, mais de 3 vezes. Em 2001, mais de 2 vezes.

   Quanto a l) e m): resulta o contrário dos factos já provados e fundamentação respectiva.
4. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Na realidade, os recursos são legalmente definidos como juízos de censura crítica - sobre concretos pontos de facto e matéria de direito de que conheceu ou deveria ter conhecido a decisão impugnada -, e não como «novos julgamentos».
Lendo a petição de recurso, vê-se que o recorrente questiona, embora de forma “tímida”e pouco rigorosa, mas ainda assim suficientemente explícita, o acervo factológico provado, na perspectiva de o tribunal a quo ter omitido determinados pontos de facto, correlacionados com a sua situação económica, que decorreram da prova global produzida em audiência.
Assim, o recurso, versando simultaneamente matéria de facto e direito, tem como questões solvendas as seguintes:
A) Se a matéria de facto deve ser modificada nos exactos termos sugeridos pelo recorrente;
B) Se houve violação do princípio ne bis in idem (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa) por o recorrente ter sido condenado, no âmbito dos presentes autos, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, ambos na forma continuada, quando havia já sido condenado, no processo comum colectivo n.º 274/00.7TAAGD do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda, por acórdão de 27/01/2003, transitado em julgado, pela autoria de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, em pena de multa;
B) Da medida da pena;
C) Da condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão imposta ao recorrente.
D) Se, relativamente ao pedido de indemnização civil, ocorre a excepção dilatória de litispendência.
4. Dos erros de julgamento em matéria de facto:
De forma implícita, o juízo de censura crítico do recorrente dirige-se aos pontos de facto não provados das alíneas o) e p), preconizando que a apreciação conjugada das suas próprias declarações e dos depoimentos das testemunhas RO, ML e AL, permite concluir no sentido da inexistência de rendimentos por si auferidos, nomeadamente fruto de qualquer actividade remunerada, e de todo e qualquer bem de natureza patrimonial.
Escalpelando as declarações das referidas testemunhas, nenhuma delas expressou conhecimento sobre a vida pessoal e/ou profissional do recorrente no presente momento (cfr. fls. 16 a 29 e 32 a 37, das transcrições), sendo sugestivas, neste aspecto, as declarações da testemunha RO: “Não tenho tido contactos com ele nos últimos tempos”, e ML: “Não sei, não sei o que é que ele fará, mas não vejo que ele ande por cá, não o vejo no mercado (…)”.
No mais, as ditas testemunhas se limitaram a invocar, no fim de contas, a não manifestação ou ostentação pelo recorrente de qualquer sinal exterior de riqueza.
Quanto ao arguido, as suas declarações foram no sentido de não desempenhar actividade remunerada e de não possuir rendimentos de outra espécie ou natureza (cfr. fls. 1 a 7 e 37/38 das transcrições).
Expressando a sua convicção sobre os depoimentos das supra identificadas testemunhas, com o privilégio que lhes é conferido pelos princípios da oralidade e da imediação, referiram os julgadores de 1.ª instância a falta de convencimento de que padeciam tais depoimentos.
No que concerne às declarações do arguido, o tribunal a quo, no uso dos mesmos princípios, teve-as como irrelevantes.
Neste contexto, não se justifica, à luz das regras da experiência comum, e relativamente aos pontos de facto concretamente especificados pelo recorrente, a formulação de juízo valorativo diverso do assumido pelo tribunal de 1.ª instância.
5. Da violação do princípio constitucional ne bis in idem:
De acordo com o acervo factológico provado (ponto de facto n.º 11.º, § 2.º), o recorrente foi condenado, em 27/01/2003, por decisão transitada em julgado em 24/02/2003, no processo comum colectivo n.º 274/00.7TAAGD do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda, por um crime de abuso de confiança em relação à segurança social dos artigos 27-B e 24/4 do RJIFNA, reportado a factos de Jan96 a Jun96, Jan97 a Set97 e de Dez97 a Out98, na pena de 590 dias de multa, à razão diária de 9,98 €.
Escalpelando a decisão em causa, com recurso à certidão de fls. 843 a 848, vê-se que o tribunal colectivo usou de pouco rigor na explanação dos factos que estiveram na génese da referida condenação anterior do recorrente.
Efectivamente, o recorrente foi condenado pela prática não de um só crime mas sim de 27 crimes de abuso de confiança em relação à segurança social, 24 dos quais p. e p. pelos artigos 27-B e 24, n.º 4, do RJIFNA, e os restantes p. e p. pelos artigos 27-B e 24.º, n.º 1, do mesmo diploma.
De todo o modo, os elementos fácticos que, neste contexto, a decisão recorrida evidencia mostram-se suficientes para a dilucidação da questio problemática suscitada no recurso e que se prende com o designado efeito consumptivo do caso julgado em processo penal.
Contrariamente ao que sucedia no Código de Processo Penal de 1929, a lei adjectiva hoje vigente não regulamenta sistemática e especificamente o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicata, só existindo referência ao referido instituto nos artigos 84.º e 467.º, nos concretos domínios que as referidas normas especificam.
Contudo, a inexistência de regulação expressa ou implícita do caso julgado no domínio do processo penal não significa obviamente que o legislador dele tenha querido prescindir, mais não seja por se tratar de um instituto fundamental ao direito de defesa do arguido e à realização e conservação da paz social.
Na verdade, o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto[1].
Ou, como assinala Eduardo Correia, «verdadeiramente, pois, o fundamento central do caso julgado radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões condenatórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto»[2].
Aliás, o n.º 5 do artigo 29.º da CRP, dando dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem, consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».
Seguindo a posição que é unânime na nossa doutrina, a expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o n.º 5 do art. 29.º da C.R.P. proíbe, é no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal»[3].
Assim definido o conceito de crime, há que partir para a análise dos limites objectivos do caso julgado (quanto aos limites subjectivos nenhum problema se coloca, porquanto, é de toda a evidência que em ambos os processos - o presente e o 274/00 - os arguidos, entre eles o recorrente, são os mesmos), sendo mister estabelecer a “identidade do facto” ou, dito de outra forma, concretizar o sentido e o alcance do objecto do processo penal.
Colhendo mais uma vez os valiosos contributos de Frederico Isasca, o objecto do processo penal «só pode ser (…) o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível.
«Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados»[4].
Sobre a temática em análise, acentua Cavaleiro de Ferreira, no domínio do Código de Processo Penal de 1929, nas partes que para o caso temos como relevantes:
«O conceito de identidade do facto não irá buscar-se … ao direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real.
(…).
Para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)»[5].
Em igual sentido, recorrendo, no entanto, a um critério não naturalístico mas sim essencialmente normativo, com máxima expressão no que concerne ao quadro dos poderes cognitivos do tribunal, se pronunciou Eduardo Correia do seguinte modo:
«O objecto relativamente ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras acusações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a julgamento».
Mais adiante, depois de discorrer sobre o conteúdo e âmbito do facto como pressuposto do caso julgado no crime continuado nos seguintes termos: «se algumas actividades fazem parte de uma continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz, (…), podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem», acrescenta, a propósito do crime único simples ou do concurso de crimes:
«O problema oferece já, entretanto, certas dificuldades quando uma sentença anterior condenou alguém como autor de um crime simples, ou como agente de um concurso de crimes, e é promovida nova acção penal com fundamento em factos que não foram objecto do conhecimento do primeiro juiz, mas que de harmonia com a convicção do segundo estão com os julgados numa relação de continuação.
Na verdade, semelhante ponto de vista do segundo tribunal parece clamar pela conclusão de que o direito de acusação contra estes novos factos se acha consumido; pois, na medida em que formam com o objecto do primeiro processo uma unidade, aí deveriam ter sido julgados.
Não contraditará, porém, esta decisão a anterior, e não será, portanto, impossível, justamente por força do caso julgado?
A jurisprudência alemã assim o julga. Temos, todavia, para nós, e connosco está quase unanimemente a doutrina, que isso não é exacto.
Na verdade, quando o juiz investiga e decide que certos factos estão em qualquer relação de unidade com outros apreciados numa sentença anterior, quando, pois, investiga sobre os limites de identidade do objecto processual não pratica absolutamente nada que contradiga aquela decisão. O que tão somente faz é integrar o conteúdo de tal sentença, é perguntar até que ponto se deveria ter alargado a cognição do tribunal no primeiro processo, com vista a determinar em que limites se devem entender as coisas como julgadas»[6].
Revertendo ao caso dos autos, há que ver então se existe identidade entre os factos que constituem o objecto do presente processo e aqueles outros pelos quais o recorrente e a arguida “E, Lda.” foram condenados no processo 274/00.7TAAGD, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda.
Como repetidamente se referiu, o objecto do processo é formado por todos os factos perpetrados pelo arguido até à decisão final que de forma directa se correlacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido. Os factos que não foram apreciados e que deviam tê-lo sido por fazerem parte integrante do mesmo “recorte de vida” não podem ser posteriormente apreciados, uma vez que essa apreciação constituiria flagrante violação do princípio ne bis in idem.
Os factos que, no âmbito do presente processo, se reportam às contribuições declaradas e não pagas à segurança social constituem, sem dúvida alguma, uma continuação da actividade pela qual o recorrente e a sociedade “E, Lda.” foram condenados no processo 274/00.7TAAGD.
O recorrente agiu, no domínio de um e de outro dos referidos processos, na qualidade de legal representante da “E, Lda.”, com o intuito de fazer desta sociedade as contribuições retidas e não entregues à segurança social.
Por outro lado, é patente a conexão temporal entre os actos apropriativos.
No processo 274/00.7TAAGD estão em causa os meses de Jan96 a Jun96, Jan97 a Set97 e Nov97 a Out98; os presentes autos respeitam a contribuições à segurança social dos meses de Nov. e Dez. de 98, Jan99, Nov99 a Dez2001.
Assim, no que concerne aos factos relativos à segurança social, existe identidade de “objecto do processo” entre os presentes autos e os do processo comum colectivo 274/00.7TAAGD. Ou seja, os factos deste processo, embora não considerados no acórdão condenatório do processo 274/00.7TAAGD, porque fazem parte do objecto do processo já julgado, estão subtraídos a nova decisão de condenação ou absolvição, sob pena de violação do princípio constitucional ne bis in idem.
Dizendo de outra forma (segundo uma perspectiva normativista), os factos julgados nestes autos perpetrados pelo arguido formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no processo 274/00.7TAAGD, com trânsito em julgado, e daí que não possa «deixar de se considerar consumido o respectivo direito de acusação, pois a todos aqueles factos se deve ter por “estendido” o valor daquela decisão»[7].
Pelo exposto, por que se verifica quanto aos factos relacionados com a segurança social uma situação de caso julgado, impõe-se a absolvição do recorrente e da sociedade “E, Lda.” relativamente ao respectivo crime de abuso de confiança.
A mesma conclusão não se pode extrair para os factos que autonomamente preenchem o crime de abuso de confiança fiscal, directamente relacionados com os valores de IVA indevidamente não entregues ao Estado.
Neste quadro, tudo aponta no sentido de que as situações nos dois processos não constituem uma só acção, um todo do ponto de vista jurídico-penal, nem pelo tempo, nem pelo espaço, nem pela expressão.
Senão vejamos.
Nos processos em causa, o arguido foi julgado por condutas relativas a obrigações contributivas de diversa natureza.
Por outro lado, não são coincidentes os períodos temporais das respectivas prestações em falta.
No processo 274/00.7TAAGD as contribuições devidas à segurança social não foram entregues nos meses de Jan96 a Jun96, Jan97 a Set97 e Nov97 a Out98. No presente processo, tanto quanto se vê dos factos provados, o recorrente só deixou de entregar as prestações de IVA a partir de Janeiro de 1999, comportamento que manteve nos meses de Fev99, Jul99 a Set99, Fev2000 a Fev2002 e Ab2002 a Dez2002.
Acresce ainda a falta de perfeita identidade quanto ao objecto do bem jurídico protegido pelos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança em relação à segurança social.
O crime de abuso de confiança fiscal, independentemente da precisa configuração do bem jurídico protegido, pretende proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
No crime de abuso de confiança em relação à segurança social o bem jurídico tutelado é o erário de que é titular a segurança social [formado a partir das receitas contributivas do sistema definidas segundo critérios materiais e afectas aos fins específicos de solidariedade], que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito[8].
Embora marcados por relevantes interesses sociais e comunitários e, por isso, dignos de tutela penal, são autónomos, individualizáveis, os interesses relativos ao sistema fiscal e ao sistema de segurança social e, assim, embora próximos, não se confundem os bens jurídicos protegidos por um e outro dos referidos tipos de crime de abuso de confiança[9].
Em suma, relativamente aos factos do IVA não ocorre a exceptio judicata e, consequentemente, a violação do princípio ne bis in idem.
6. Da medida da pena:
Se bem entendemos a posição vertida no acórdão recorrido, à situação do crime continuado de abuso de confiança fiscal que os autos evidenciam seriam aplicáveis as leis em vigor na data dos diversos actos praticados ou seja, o RJIJNA e o RGIT por referência às condutas que se inserem temporalmente no período de vigência de cada um desses diplomas, havendo que determinar, na fixação das consequências jurídicas do crime, o regime concretamente mais favorável, que o tribunal colectivo considerou a final ser o da Lei Nova (RGIT).
Não se nos afigura que assim seja.
Relativamente aos crimes continuados o iter criminis cessa no momento de comissão do último acto.
Se alguns dos actos sucessivos tiveram lugar na vigência da lei antiga, não obstante, aplica-se a lei nova se o último acto cessou no domínio desta[10].
Como refere Jeschech: «O delito continuado consuma-se com o primeiro acto parcial, mas unicamente termina quando se realizaram todos os actos parciais (....)»[11].
Pelo exposto, o crime (continuado) que os factos provados integram consumou-se na vigência da Nova Lei (RGIT), sem que exista, pois, sucessão de leis no tempo.
O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, nos termos do art. 79.º do Código Penal.
Tendo em conta os valores das prestações tributárias deduzidas e não entregues, verifica-se que a conduta ilícita mais grave - correspondente ao valor de € 14.142,39 € - se enquadra na previsão do n.º 1 do art. 105.º do RGIT, sendo o crime perpetrado pelo recorrente punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

O art. 71.º do mesmo diploma, estipula, por outro lado, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2, do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

O recorrente, de forma livre e consciente, não entregou nos cofres da Fazenda Nacional um valor total de € 234.280,99 €, expressivo de elevada lesão dos interesses financeiros do Estado, ou seja de elevado grau de ilicitude, fruto do incumprimento acumulado ao longo dos anos de 1999 a 2002.

O dolo, directo, revela-se na sua modalidade mais intensa.

Atenuam a responsabilidade do recorrente, os motivos determinantes da sua conduta que os factos permitem antever, quais sejam a tentativa de manutenção da actividade empresarial da arguida “E, Lda.”, num ciclo de crise generalizada que se instalou no ramo a que a referida sociedade se dedicava, e as suas condições pessoais (plenamente integrado no campo social e familiar).

Na consideração global dos factores supra enunciados, temos como proporcional, justa e adequada a pena de 1 ano e 6 meses fixada pelo tribunal a quo.

7. Da condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão:

Objecta o recorrente que, não possuindo quaisquer rendimentos nem património, nem possuindo meios susceptíveis de criar riqueza de forma a poder pagar as prestações tributárias em dívida, a condição imposta é excessiva, de cumprimento inviável, e violadora do princípio da culpa, fazendo repercutir o peso e as consequências dessa condição sobre outras pessoas (a esposa, igualmente sem rendimentos e sem património).

Como assim, impetra a revogação do acórdão em termos de a pena de prisão imposta ficar estritamente suspensa na sua execução, ou seja extirpada da condição a que o tribunal a quo a sujeitou.

Contudo, a pretensão do recorrente é contra legem e, por isso, não pode merecer acolhimento.

Na realidade, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1 do RGIT «A suspensão da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, do pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».

Ora, o tribunal a quo, ao condicionar a suspensão da pena de prisão que impôs ao arguido ao pagamento das prestações tributárias em dívida mais não fez do que aplicar estritamente a lei, rectius a norma que se vem de citar, não fazendo assim sentido a discussão sobre a invocada inexistência de meios económicos para o cumprimento da aludida condição de suspensão.

A exigência legal de pagamento, independentemente da condição económica do devedor tributário, nada tem de desproporcionada ou atentatória do princípio da culpa, alcançando plena justificação pela necessidade da eficácia do sistema penal tributário face ao interesse preponderantemente público a acautelar.

Como vem referindo o Tribunal Constitucional[12], a propósito da não colisão do artigo 14.º, n.º 1 do RGIT com os princípios da culpa, adequação e proporcionalidade e, assim, da conformação de tal norma com a CRP, é irrelevante o juízo que se faça sobre a (in)capacidade do condenado para satisfazer a condição de suspensão, não só porque a lei tem esse elemento como irrelevante, como nada indica que, no prazo fixado, o mesmo não venha a adquirir bens suficientes para o referido fim, sendo ainda certo que só o incumprimento culposo da condição determina a revogação da pena de substituição.

8. A absolvição do arguido do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, por força da ocorrência do caso julgado, não extingue obviamente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social -, tendo em conta a disposição normativa do artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que se verificam todos os pressupostos cumulativos do dever de indemnizar previstos no artigo 483.º do Código Civil: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. 

Assim, há que manter a condenação do recorrente no referido pedido salvo se ocorrer a excepção dilatória de litispendência que no recurso vem invocada e que de seguida será objecto de conhecimento. 

9. Da litispendência:

À imagem do que sucede com o caso julgado, a lei adjectiva penal não contém a mínima referência à figura da litispendência, em contrário do que acontecia no Código de Processo Penal de 1929, onde o referido instituto jurídico tinha regulamentação expressa nos artigos 138.º, 141.º, 146.º e 147.º.

Tendo em conta o disposto pelo artigo 4.º do CPP, para colmatar a lacuna que actualmente se verifica há que recorrer às normas do Código de Processo Civil que contemplam o conceito e os requisitos da litispendência, as previstas nos artigos 498.º e 499.º.

Como resulta expressamente destas normas, a excepção de litispendência visa «evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior», repetindo-se a [mesma] causa «quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos ao pedido e à causa de pedir», sendo que existe identidade de sujeitos «quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica», «identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico», e «identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico».

No caso dos autos, o Instituto da Segurança Social deduziu pedido de indemnização civil, nos termos que constam de fls. 237/245 do processo apenso, solicitando a condenação do recorrente e dos demais demandados na quantia global de 39.378,76 €, correspondente às quotizações descontadas e não entregues à segurança social, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.

A matéria de facto provada (ponto n.º 17) alude à existência de processo de execução fiscal, no âmbito do qual as instalações da arguida-demandada “E, Lda.” foram objecto de venda.

Ainda que a escassez de elementos não nos permita tecer considerações sobre a identidade de sujeitos e de pedido em ambos os processos, ainda assim temos como certo a inexistência de identidade de causa de pedir.

Enquanto no processo executivo em referência o pedido emerge do não pagamento pontual de obrigações fiscais, o fundamento que suporta o pedido de indemnização formulado nos presentes autos é a prática de um crime de abuso de confiança fiscal.

Daí que se não possa ocorrer litispendência entre o processo de execução fiscal e o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal[13].

10. O tribunal colectivo suspendeu a execução da pena (única) de 1 ano e 10 meses de prisão imposta ao recorrente, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, e de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p. pelas disposições, conjugadas, dos artigos 107.º e 105.º, n.º 1, do mesmo diploma, pelo prazo de 5 anos, condicionada ao pagamento, no referido prazo, das prestações devidas ao Estado e à Segurança Social.

Perante a ocorrência da excepção do caso julgado quanto ao crime de abuso de confiança em relação à segurança social, nos termos supra referidos, permanece o crime de abuso de confiança fiscal e as respectivas penas - principal, de 1 ano e 6 meses, e de substituição, supra referida, sob condição de pagamento por parte do recorrente das quotizações em dívida ao Instituto da Segurança Social.

Dispõe o artigo 14.º do RGIT:

«1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

a) Exigir garantias de cumprimento;

b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;

c) Revogar a suspensão da pena de prisão».

À semelhança do que já sucedia no âmbito do RJIFNA, a suspensão da execução da pena é admissível nos termos do Código Penal [cfr. artigo 3.º, al. a) do RGIT], com a particularidade constante do n.º 1 da citada norma, ou seja subordinada à condição de pagamento, até ao limite de cinco anos, da prestação tributária.

Na data da prática dos factos, impunha o n.º 4 do artigo 50.º do CP a fixação do período de suspensão entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.

Hodiernamente, com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, «o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão» (art. 50.º, n.º 5).

O limite máximo que o n.º 1 do art. 14.º do RGIT consagra para o cumprimento da condição a impor (até ao limite de cinco anos) está em plena harmonia com a estrutura normativa conferida ao instituto da suspensão, pois que esta, tanto na lei antiga como na lei nova, não pode ser fixada em prazo superior ao de 5 anos (no âmbito da lei nova, esta conclusão decorre do teor, conjugado, dos n.ºs 1 e 5 do artigo 50.º).

Embora a lei não o refira expressamente, esteve no espírito do legislador a ideia de modelar o prazo de cumprimento da obrigação por referência ao prazo da suspensão, não permitindo, em nenhum caso, a superação pelo primeiro do limite do segundo.

De outro modo, tanto no quadro específico dos crimes fiscais como no domínio dos crimes em geral, a pena de subsitituição ficaria vazia de sentido, ineficaz na sua finalidade de protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, pela simples e notória razão de esta pena se poder eventualmente extinguir antes de cumprida a condição a que ficara subordinada.

No confronto da lei antiga com a lei nova, para que, à luz do artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, seja aplicado ao recorrente o regime concretamente mais favorável, só duas vias vemos como possíveis: fazer corresponder o período de suspensão à duração da pena (1 ano e 6 meses), ficando reduzido a este prazo a condição de pagamento das prestações tributárias; ou, em alternativa, manter o período de suspensão fixado (5 anos), dispondo o recorrente de igual prazo para o cumprimento da condição legalmente imposta.

Convenhamos que não se apresenta fácil a opção por qualquer uma das hipóteses supra indicadas, problema que, diga-se em abono da verdade, se deve à desarmonia legislativa das normas hoje vigentes no quadro dos crimes fiscais, relativamente à suspensão da execução da pena.

Afigura-se-nos, todavia, que a maior amplitude do prazo de suspensão sujeita o arguido a um maior risco de revogação da medida e com ela ao cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.

A par da infracção grosseira ou reiterada dos deveres impostos como condição da suspensão, também o cometimento de crime pelo qual o arguido venha a ser condenado pode constituir fundamento para a revogação da suspensão (art. 56.º do CP).

Assim, quanto mais curto for o período de suspensão mais depressa o agente fica a coberto das consequências negativas que a revogação da suspensão envolve.

Há que ter em conta, por outro lado, que só o incumprimento culposo (grosseiro e repetido) da obrigação determina a revogação da suspensão da execução da pena (arts. 55.º e 56.º do CP). Ainda que o art. 14.º, n.º 2 do RGIT não faça referência à necessidade de culpa do condenado, deve entender-se que a aplicação subsidiária do Código Penal, prevista no artigo 3.º, al. a) daquele diploma, bem como a circunstância de só o incumprimento culposo conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do arguido, implicam a conclusão de que a referida norma, quando refere a falta de pagamento das quantias como potenciadora da revogação da suspensão, tem em vista a falta de pagamento culposo.

E por outro que, de acordo com o caso concreto, pode o tribunal, perante o incumprimento culposo, em vez de determinar a revogação da suspensão, “exigir garantias de cumprimento” ou “prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 14.º do RGIT).

Em face do exposto, temos como concretamente mais favorável ao arguido, relativamente à pena de substituição em causa, o regime da nova lei que, por isso, será o aplicável.

Consequentemente, a pena de prisão imposta ao recorrente será declarada suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, sendo que a condição fixada (pagamento das prestações tributárias) terá que ser satisfeita nesse mesmo período de tempo.
10. Em face da improcedência (parcial) do recurso, cumpre condenar o arguido em custas, nos termos do disposto nos arts. 513.º e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com o disposto nos arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b), estes do Código das Custas Judiciais.
III - Decisão:
Posto o que precede, acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra em:
a) Na procedência parcial do recurso, e por verificação da excepção do caso julgado, revogar a decisão recorrida no tocante ao crime de abuso de confiança em relação à segurança social, de que se absolve o arguido AS e, consequentemente, a arguida “E-, Lda.”;
b) Quanto ao crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, do artigo 105.º, n.º 1 do Código Penal, manter o decidido relativamente à pena principal (prisão, de 1 ano e 6 meses) imposta ao arguido AS, e à pena de multa (340 dias, à razão diária de € 10) fixada à arguida “E, Lda.”;
c) Suspender a execução da pena de prisão fixada ao arguido AM pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, sob condição de pagamento, no referido prazo, das prestações tributárias devidas, relativas a IVA, no valor global de € 234.280,99, e acréscimos legais;
d) Manter no mais, quanto aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo Ministério Público, em representação do Estado, e pelo Instituto da Segurança Social a decisão do tribunal de 1.ª instância.


[1] Cfr., Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226.
[2] In Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, 1983, pág. 304.
[3] Frederico Isasca, idem, pág. 221, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira.
[4] Ibidem, págs. 242 e 229.
[5] In Curso de Processo Penal, III, págs. 53 e 54.
[6] Idem, págs. 304, 350/352.
[7] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15-03-2006, publicado em http://www.dgsi, que de perto vimos seguindo.
[8] Cfr. Carlos Rodrigues de Almeida, Os crimes contra a segurança social previstos no Regime Jurídico da Infracções fiscais não aduaneiras, separata da RMP n.º 72, 1997, pp. 95 e 96.
[9] Cfr. Ac. da Relação de Évora de 12-06-2007, in http://www.dgsi,
[10] Neste sentido, v. g., Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 31-05-2006, in http://www.dgsi, e da Relação de Coimbra de 14 de Março de 2001, CJ, Tomo II, pág. 45.
[11] Tratado de Derecho Penal, Parte General (1993), pág. 655. No mesmo sentido, v. g., Reinhart Maurach, Zarl Heniz Gössel e Heinz Zipt, Derecho Penal, Parte Geral, 2, pág. 547.
[12] V.g., Acórdãos n.º 256/2003, de 21-05-2003; 29/2007, de 17-01-2007, e 61/2007, de 20-03-2007, todos publicados no DR, 2.ª série, de 02-06-2003, 26-02-2007 e 20-03-2007, respectivamente.
[13] V.g., Acórdãos da Relação do Porto de 12-03-2003 e da Relação de Évora de 11-02-2005, ambos publicados em http://www.dgsi.