Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2492/22.8T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: FUNDAÇÃO
ISENÇÃO DE CUSTAS
REQUISITOS
DECISÃO SURPRESA
IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO DISCIPLINAR
Data do Acordão: 06/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 4.º, N.º 1, ALÍNEA F), DO REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
Sumário: I – Se na contestação apresentada a Ré invocou a isenção de custas não se impunha ao juiz que a ouvisse, de novo, aquando da decisão a proferir sobre tal questão, na medida em que aquela já se havia pronunciado sobre a mesma. O despacho recorrido não constitui qualquer decisão surpresa posto que se trata de decisão proferida sobre questão invocada pela Ré e relativamente à qual a mesma já se tinha pronunciado.

II – A isenção subjetiva prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do R.C.P. está sujeita a outros requisitos além da inexistência de fins lucrativos, ou seja, as pessoas coletivas têm de atuar exclusivamente no âmbito das suas especiais competências ou na defesa direta dos interesses que lhe estão especialmente conferidos.

III – Esta isenção não abrange a ação emergente de contrato de trabalho interposta pela trabalhadora contra uma Fundação empregadora com vista à impugnação da decisão disciplinar que lhe foi aplicada e à condenação desta última no pagamento de uma indemnização por danos morais.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 2492/22.8T8CBR-A.C1

_________________________________

Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA, residente na ...,

intentou a presente ação de processo comum contra

A..., com sede em ..., ...

                                                             *

formulando o seguinte pedido:

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, devendo ser condenada a R. a arquivar o presente processo disciplinar, sem mais.

Sendo conhecida e julgada procedente, por provada e verificada, a exceção perentória de caducidade, segundo o disposto no n.º 1, do artigo 357º, do Código de Trabalho, pela qual a entidade patronal, aqui R., dispunha, que não respeitou e cumpriu, de 30 dias, para proferir a respetiva decisão disciplinar, que muito ultrapassou.

E, sendo igualmente a R. condenada a reconhecer a nulidade, com todos os efeitos legais, da sanção disciplinar aplicada à A., eliminando do currículo da A. a toda e qualquer menção à mesma sanção e, com a consequência, sendo igualmente condenada a R. a pagar integralmente à A. os direitos e salários integrais correspondentes ao período da suspensão.

E, sendo a R. condenada ao pagamento de uma indemnização, a título dos danos morais sofridos, no montante de 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros)

E sendo a R. condenada integralmente na custas.”

                                                             *

Após a realização da audiência prévia, foi proferido o seguinte despacho:

- Da invocada isenção do pagamento de custas:

A..., Ré na presente acção, invoca a isenção de custas prevista no art.º 4º, nº 1, al. f) do RCP, dado tratar-se de pessoa colectiva privada sem fins lucrativos, actuando exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos artigos 2.º e 3.º, alínea a) e c) do respectivo estatuto.

A Digna Magistrada do Ministério Público opôs-se ao reconhecimento da isenção por entender que o objecto da acção não se insere no âmbito das especiais atribuições desta pessoa colectiva, conforme resulta do teor da promoção que antecede.

*

Como regra geral e como resulta do preceituado no artigo 1º do Regulamento das Custas Processuais (também abreviadamente designado por RCP) todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados por esse Regulamento, que se aplica a todos os processos, quer eles corram nos tribunais judiciais, administrativos e fiscais ou no balcão das injunções (artº 2º RCP), abrangendo as custas a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artºs. 3º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais e 529º, nº 1, do Código de Processo Civil).

No entanto, a regra geral aludida sofre da excepção prevista no art.º 4.º do RCP, sob a epígrafe “isenções”, referindo no nº 1 uma série de entidades (isenções subjectivas), e no nº 2 uma série de processos (isenções objectivas) que se encontram, ab initio, isentas do pagamento de custas.

O art.º 4º, nº 1, al. f) do RCP isenta do pagamento de custas as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável.

Entre as pessoas colectivas de natureza jurídica privada incluem-se as pessoas colectivas de mera utilidade pública, as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas de utilidade

A referida isenção não absoluta, mas sim isenção limitada e condicionada, pois, conforme decorre da leitura de tal normativo, constituem pressupostos legais da aplicação da isenção de custas nele previstos:

a) Que estejamos na presença de uma pessoa colectiva privada, sem fins lucrativos.

b) Que essa pessoa colectiva privada actue no processo exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou;

c) Para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável.

A isenção em apreço é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar.

É, assim, uma isenção motivada pelo desiderato de tutela do interesse público.

Trata-se, porém, de uma isenção subjectiva de custas condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de actuarem no âmbito das suas específicas competências ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos.

Trata-se assim de uma isenção de custas restritiva, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela própria lei. Nesta perspectiva, pode parecer que esta isenção não abrange as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições. Contudo, se o objecto destas acções for instrumental em relação aos fins estatutários de tais entidades, propendemos a considerar serem abrangidas pela isenção de custas.

Neste mesmo sentido, refere-se no acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Setembro de 2013, proferido no 558/11.9TNCBR-A.C1, que estamos, portanto, perante uma isenção de custas com características condicionais, desde logo, na medida em que somente funciona em relação a processos concernentes às suas especiais atribuições das entidades abrangidas pela isenção ou para defesa dos interesses conferidos pelo respectivo estatuto ou, ainda, pela própria lei. Nesta perspectiva, a examinada isenção não abrange, nomeadamente, as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que estas entidades celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições.

E ainda que tal isenção está condicionada à actuação no âmbito das especiais atribuições da pessoa colectiva em causa ou da defesa dos seus interesses estatutários, pelo que a isenção só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela lei (disponível em www dgsi.pt.).

Nesta perspectiva, pode parecer que esta isenção não abrange as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições.

Todavia, se o objecto de tais acções for instrumental em relação aos fins estatutários dessas entidades, alguns autores, como Salvador da Costa, propendem a considerar serem abrangidas pela isenção de custas em análise (neste sentido, Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, 2ª edição, 2009, pp. 149 a 153).

Ora, as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos não prosseguem sempre, indirecta e instrumentalmente, as atribuições e interesses que lhes cabem, sob pena de total esvaziamento da previsão legal e desvirtuamento dos objectivos prosseguidos com o estabelecimento das condicionantes mencionadas. Importa assim relevar as acções emergentes de relações jurídicas estabelecidas com vista à prossecução das atribuições especiais da pessoa colectiva em causa, por serem a sua «decorrência natural», quer por traduzirem a sua concretização, quer por serem necessárias à mesma (cfr., entre outros Acs. RG. de 30/04/2015, Proc. 204/14.9TTVRL, relatado por Antero Veiga; 30/06/2016, Proc. 846/14.2T8BCL.G1, relatado por Alda Martins; 14/06/2017, Proc. 2734/16.9T8BCL-A.G1, relatado por Vera Maria Sottomayor; 04/10/2017, Proc. 11/14.9TTVRL-A.G1, relatado por Eduardo Azevedo; RL. de 22/03/2017, Proc. 22455/16.1T8LSB.L1-4, relatado por Celina Nóbrega e Ac. da RC de 11/5/2020, Proc. 999/17.0T8CBR.C1, todos acessível in www.dgsi.pt.

É verdade que a Ré, como já referimos, é uma IPSS e prossegue, entre outras, as actividades de solidariedade social e educação.

Sucede que, no caso em apreço foi interposta contra a Ré a acção de processo comum, proposta por uma trabalhadora do grupo do jardim de infância, com vista a impugnar a sanção disciplinar que lhe foi aplicada.

A questão laboral não se reporta exclusiva e directa ou instrumentalmente às especiais atribuições da Ré ou dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, sendo semelhante a qualquer situação de outro trabalhador por conta de outrem que não uma instituição de solidariedade social.

Por outro lado, não foram alegados pela Ré factos susceptíveis de virem a ser provados dos quais decorresse de forma circunstanciada que a actividade por si desenvolvida no âmbito da qual a Autora desempenhou as suas funções era totalmente desprovida de intuito lucrativo, designadamente, porque tais serviços eram prestados de forma gratuita.

Os factos alegados apenas nos permitem concluir que o litigio existente entre Autora e Ré é comum a qualquer pessoa colectiva privada sem fins lucrativos da mesma natureza, ou mesmo de outra, não tendo conexão directa ou instrumental e muito menos exclusiva, com as especiais atribuições de tal instituição.

Não estamos perante qualquer actuação respeitante ao âmbito das suas especiais atribuições, nem para defesa dos interesses que especialmente lhe estão conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável contrato em apreço, razão pela qual se entende que independentemente de aquelas funções serem ou não levadas a cabo no âmbito dum contrato de trabalho, o que se discute nada tem a ver com o interesse público visado pela Ré, nem os créditos laborais reclamados constituem obrigações necessárias ou sequer instrumentais à prossecução dos seus fins, pelo que a Ré não está assim isenta de custas.

Assim delineado o objecto da acção, afigura-se que este não se insere no âmbito das especiais atribuições da ré, nem é instrumental aos seus fins estatutários.

Com efeito, conforme bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público, tendo em conta o objecto da presente acção e suas finalidades, Ré não se encontra a actuar exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhe seja aplicável.

Donde resulta que a Ré não beneficia da isenção do pagamento das custas prevista no art.º 4º, nº 1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais.

Assim sendo, com cópia do presente despacho e da promoção que antecede, notifique a Ré para, no prazo de 10 dias, efectuar o pagamento da taxa de justiça em dívida.”

*

A Ré, notificada deste despacho, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

“1. A decisão de não reconhecimento de isenção de pagamento de custas é recorrível nos termos do artigo 79º-A, nº 2, alínea k) do Código do Processo de Trabalho, pois seria absolutamente inútil recorrer dela com a decisão final.

2. A Recorrente por entender que se encontra isenta do pagamento de custas no caso concreto, não liquidará a taxa de justiça, pelo que, no limite, a contestação acabará desentranhada (artigo 570º, nº 6 do Código do Processo Civil), operando a revelia e tendo-se por confessados os factos articulados pela Autora (nº 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil), sendo, por isso, de nenhum efeito o recurso dessa decisão final.

3. O Tribunal a quo indeferiu a isenção do pagamento de custas após pronuncia do Ministério Público, não permitindo à Recorrente que se pronunciasse sobre a matéria decidenda, o que constitui  uma decisão surpresa, que constitui uma nulidade processual grave, prevista no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1º, nº 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.

4. O artigo 4º, nº 1, alínea f) do Regulamento das Custas Processuais determina que a isenção de custas é reconhecida às pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos quando actuem, no processo, exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou quando actuem, no processo, para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.

5. A isenção não depende apenas da qualidade do sujeito, mas sim à natureza das questões, dos direitos ou da relação material que é objecto do processo para o qual se requeira a isenção.

6. O thema decidendum na presente acção prende-se com a impugnação da sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade de 8 dias aplicada pela Recorrente à Autora, que desempenhou no ano lectivo 2021/2022 as funções de ajudante de acção educativa, no grupo do jardim de infância da Casa da Criança ..., estabelecimento da Recorrente que presta serviços de creche e infantário, sito na ..., por considerar que a recusa da trabalhadora em realizar o teste de despistagem à COVID-19 constituiu uma violação, nomeadamente, do dever de vigilância e prevenção do perigo relativamente aos alunos da instituição, onde se inclui prevenir os riscos para a saúde das crianças, bem como do dever de cumprir as instruções emanadas pelas Autoridades de Saúde, mais exigentes para quem trabalhava directamente com crianças com idades não elegíveis paraavacinação, do que para a restante população. A trabalhadora discordou da sanção aplicada, pelo que a impugnou e a Recorrente, por sua vez, contestou a impugnação.

7. A Recorrente é uma pessoa coletiva privada sem fins lucrativos traduzindo-se numa instituição particular de solidariedade social e utilidade pública, conforme resulta da declaração emitida pela Segurança Social, que atesta que aquela se encontra registada a título definitivo na Direcção Geral da Segurança Social e do artigo 8.º do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro e sucessivamente alterado. A sua finalidade não lucrativa resulta, pois, da sua acção e da lei que lha reconhece.

8. De acordo com os seus Estatutos (disponíveis em https://publicacoes.mj.pt) a Apelante tem por objetivo contribuir para a promoção da população da região centro através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos (…), propondo-se (…) apoiar, promover e realiza actividades, nomeadamente, no âmbito da educação, o que faz através das Casas da Criança e Colégio ....

9. Portanto, para prosseguir os seus fins, a Recorrente dispõe de diversas respostas sociais e estabelecimentos, como a Casa da Criança ..., que para poder funcionar necessita da contratação de recursos humanos, sendo por isso necessário celebrar contratos de trabalho. Sem recurso à contratação adequada de pessoal não seria possível à Recorrente prosseguir os seus fins.

10. A Recorrente contratou a Autora para desempenhar as funções de ajudante de acção educativa, que consistem no essencial em participar nas actividades sócio-educativas; ajudar nas tarefas de alimentação, cuidados de higiene e conforto directamente relacionados com a criança; vigiar as crianças durante o repouso e na sala de aula; assistir as crianças nos transportes, nos recreios, nos passeios e visitas de estudo.

11. A contratação de ajudantes de acção directa resulta, ademais, de imposição directa do Instituto da Segurança Social para permitir a laboração do estabelecimento, nos termos do artigo 10.º da Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto para as valências de creche e a Portaria n.º 272-A/2017, de 13 de setembro para as valências de jardim de infância. Ora, se em especial esta categoria profissional é de contratação obrigatória para o funcionamento do estabelecimento mais uma razão para se considerar que a Recorrente se encontra a actuar no âmbito das suas atribuições.

12. Se a Recorrente não contratasse ajudantes de acção directa que acompanhassem e auxiliassem as crianças, as Casas da Criança não poderiam funcionar e, como tal, não poderia prosseguir o seu escopo.

13. A prossecução de atribuições e interesses públicos exige meios, cuja obtenção e manutenção é susceptível de gerar situações de conflito carecidas de tutela judicial. A sua resolução implica a vinda a tribunal. O que releva é se a relação/vínculo jurídico que está em litígio se destina ao desenvolvimento das atribuições fundamentais da pessoa colectiva. (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/03/2022, disponível em www.dgsi.pt, entre outros)

14. Se a pessoa colectiva privada sem fins lucrativos tiver de dirimir um litígio em que esteja em causa uma relação jurídica essencial à prossecução da sua actividade que beneficia a comunidade, justifica-se que fique isenta do pagamento de custas em tal pleito. (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/05/2022, processo 4943/21.0T8GMR-A.G1, disponível em www.dgsi.pt)

15. O vínculo laboral em causa é necessário ao prosseguimento da actividade da pessoa colectiva e, ainda que por uma via indirecta ou instrumental, o recurso à acção judicial para dirimir conflito dele emergente, relaciona-se com as atribuições ou defesa dos interesses das instituições. O objecto destas acções é instrumental em relação aos fins estatutários de tais entidades.

16. Salvador da Costa, revendo a sua posição inicial e aproximando-se da posição dominante na jurisprudência, vem dizer: (…) Se o objeto de tais ações for instrumental em relação aos fins estatutários dessas entidades, incluindo as relativas aos contratos de trabalho propendemos a considerar serem abrangidos pela isenção de custas em análise. (in “Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado”, 4ª edição, 2012) 17. A Recorrente encontra-se isenta de custas.

NESTES TERMOS: deve proceder o presente recurso e, em consequência, a decisão recorrida ser revogada, sem prescindir da invocada nulidade, nos termos do artigo 3º, nº 3doCódigodeProcesso Civil, aplicável ex viartigoartigo1º, nº 2,alínea a) do Código de Processo do Trabalho.

*

A Autora não apresentou resposta.

                                                             *

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que antecede no sentido de que a apelação deverá ser julgada procedente.

                                                             *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Questões a decidir:

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C. na redação da Lei n.º 41/2013 de 26/06), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Cumpre, então, apreciar as seguintes questões:

1ª – Nulidade por violação do princípio do contraditório.

2ª – Se a Ré beneficia da isenção de custas prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP.

                                                             *

                                                             *

III – Fundamentação
a) Factos provados

Os constantes do relatório supra e ainda:

1 – A Ré é uma Fundação de solidariedade social (artigo 1º dos Estatutos).

2 – A Ré tem por objetivo contribuir para a promoção da população da região centro, através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos, podendo, todavia, vir a estender-se a outras localidades do País, por deliberação do Conselho de Administração (artigo 2º dos Estatutos).

3 – Para atingir o seu objetivo a Fundação propõe-se apoiar, promover e realizar atividades nos seguintes âmbitos:

a) Solidariedade Social;

b) Educação;

c) Saúde;

d) Cultura;

e) Formação profissional;

f) Outras, que venham a tornar-se possíveis e necessárias, desde que respeitem a Obra e o Espírito do Professor ... (artigo 3º dos Estatutos).

4 – A Autora desempenha as funções de ajudante de ação educativa, que consistem no essencial em participar nas atividades sócio educativas; ajudar nas tarefas de alimentação, cuidados de higiene e conforto diretamente relacionados com a criança; vigiar as crianças durante o repouso e na sala de aula; assistir as crianças nos transportes, nos recreios, nos passeios e visitas de estudo.

5 – A Autora presta a sua atividade no grupo do jardim de infância da Casa da Criança ..., estabelecimento da Ré que presta serviços de creche e infantário, sito na ....

                                                             *

                                                             *

b) - Discussão

1ª questão

Nulidade por violação do princípio do contraditório

Alega a Ré recorrente que o Tribunal a quo indeferiu a isenção do pagamento de custas após pronúncia do Ministério Público, não permitindo à Recorrente que se pronunciasse sobre a matéria decidenda, oque constitui uma decisão surpresa, que constitui uma nulidade processual grave, prevista no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1º, nº 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.

Vejamos:

Conforme resulta do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, <<o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.>>

Este normativo consagra o princípio do contraditório proibindo, desde logo, a decisão surpresa.

Como refere Lebre de Feitas e Isabel Alexandre, <<este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.>>

Ora, compulsados os autos, constatamos que a Ré recorrente aquando da apresentação da sua contestação fez constar do mesmo articulado o seguinte:

CONSIGNA que a Ré sendo uma instituição particular de solidariedade social e utilidade pública que, de acordo com o artigo 2.º dos seus Estatutos, «tem por objetivo contribuir para a promoção da população da região centro através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos…» apoiando, promovendo e desenvolvendo, para o efeito e atendendo ao disposto no artigo 3.º, alíneas a) e c), atividades no âmbito da solidariedade social e da saúde na qual se insere a desenvolvida pelo Centro Geriátrico e, por isso, encontra-se isenta do pagamento de taxa de justiça nos termos do artigo 4.º, n.º 1 alínea f) do Regulamento das Custas Processuais. (Docs. nos 11 e 12 que se juntam e aqui se dão por reproduzidos)”.

O tribunal de 1ª instância, perante esta questão colocada pela Ré, mais concretamente, face ao não pagamento da respetiva taxa de justiça, ordenou que os autos fossem com vista ao Ministério Público e, de seguida, proferiu a decisão recorrida.

Assim sendo, é nosso entendimento que não foi proferida qualquer decisão surpresa com a consequente violação do princípio do contraditório.

Na verdade, como já referimos, a Ré invocou a isenção de custas nos termos suprarreferidos e, por isso, não se impunha ao juiz que a ouvisse, de novo, na medida em que a mesma já se havia pronunciado sobre a questão em causa.

A decisão recorrida não constitui qualquer decisão surpresa posto que se trata da decisão proferida sobre questão invocada pela Ré e sobre a qual a mesma já se tinha pronunciado.

Encontra-se assegurada a garantia da participação efetiva da Ré no desenvolvimento do litígio, em termos de, em plena igualdade, poder influenciar a questão em causa.

Assim sendo, ponderando tudo o que ficou dito, impõe-se concluir que não ocorreu a violação do princípio do contraditório e, consequentemente, improcede a nulidade processual (artigo 195.º, n.º 1, do CPC) invocada pela recorrente.

2ª questão

Se a Ré beneficia da isenção de custas prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP.

Alega a recorrente que:

- Para prosseguir os seus fins, a Recorrente dispõe de diversas respostas sociais e estabelecimentos, como a Casa da Criança ..., que para poder funcionar necessita da contratação de recursos humanos, sendo por isso necessário celebrar contratos de trabalho. Sem recurso à contratação adequada de pessoal não seria possível à Recorrente prosseguir os seus fins.

- A Recorrente contratou a Autora para desempenhar as funções de ajudante de ação educativa, que consistem no essencial em participar nas atividades sócio educativas; ajudar nas tarefas de alimentação, cuidados de higiene e conforto diretamente relacionados com a criança; vigiar as crianças durante o repouso e na sala de aula; assistir as crianças nos transportes, nos recreios, nos passeios e visitas de estudo.

- A contratação de ajudantes de ação direta resulta, ademais, de imposição direta do Instituto da Segurança Social para permitir a laboração do estabelecimento, nos termos do artigo 10.º da Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto para as valências de creche e a Portaria n.º 272-A/2017, de 13 de setembro para as valências de jardim de infância. Ora, se em especial esta categoria profissional é de contratação obrigatória para o funcionamento do estabelecimento mais uma razão para se considerar que a Recorrente se encontra a atuar no âmbito das suas atribuições.

- Se a Recorrente não contratasse ajudantes de ação direta que acompanhassem e auxiliassem as crianças, as Casas da Criança não poderiam funcionar e, como tal, não poderia prosseguir o seu escopo.

- A prossecução de atribuições e interesses públicos exige meios, cuja obtenção e manutenção é suscetível de gerar situações de conflito carecidas de tutela judicial. A sua resolução implica a vinda a tribunal. O que releva é se a relação/vínculo jurídico que está em litígio se destina ao desenvolvimento das atribuições fundamentais da pessoa coletiva.

- Se a pessoa coletiva privada sem fins lucrativos tiver de dirimir um litígio em que esteja em causa uma relação jurídica essencial à prossecução da sua atividade que beneficia a comunidade, justifica-se que fique isenta do pagamento de custas em tal pleito.

- O vínculo laboral em causa é necessário ao prosseguimento da atividade da pessoa coletiva e, ainda que por uma via indireta ou instrumental, o recurso à ação judicial para dirimir conflito dele emergente, relaciona-se com as atribuições ou defesa dos interesses das instituições. O objeto destas ações é instrumental em relação aos fins estatutários de tais entidades.

- A Recorrente encontra-se isenta de custas.

Vejamos, então, se assiste razão à recorrente:

Conforme resulta do disposto no artigo 4º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais:

<<1. Estão isentos de custas:

 (…)

f) As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável; (…)>>.

Estamos, assim, perante uma isenção subjetiva de custas, ou seja, estão isentas de custas as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos.

Como refere Salvador da Costa[2], <<esta isenção é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar, pelo que lhe subjaz o desiderato de tutela do interesse público.

É subjetiva, condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de aquelas entidades atuarem nos processos judiciais, do lado ativo ou do lado passivo, no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses comunitários que lhe estão especialmente conferidos.

Dada a sua estrutura e fins, essas associações e fundações beneficiam da isenção de custas a que se reporta este normativo nas ações relativas à defesa e promoção dos seus interesses específicos, naturalmente sob a envolvência do interesse público.

É uma isenção de custas restrita, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respetivo estatuto, ou pela própria lei, que coincidam com o bem comum.

Considerando a história deste preceito, reportado às instituições particulares de solidariedade social e às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, reponderando, propendemos em considerar que esta isenção não abrange as ações que não tenham por fim direto a defesa dos interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos.>>

Pois bem, dúvidas não existem de que a Ré é uma pessoa coletiva privada sem fins lucrativos.

A questão que se coloca é a de saber se nos presentes autos a Ré atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou em defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respetivos estatutos ou pela lei.

Esta questão tem sido alvo de decisões divergentes.

Assim, num sentido mais restritivo, decidiu-se:

- No acórdão da Relação de Lisboa, de 22 de março de 2017, disponível em www.dgsi.pt, que «actua fora das condições referidas na al. f) do n.º 1 do artigo 4º do RCP, a Ré, Instituição Particular de Solidariedade Social, no âmbito de uma acção em que é demandada para pagar diferenças salariais e uma indemnização por danos morais em virtude de contrato de trabalho alegadamente existente entre a Autora e a Ré.>>

- No acórdão da Relação de Coimbra de 13-12-2011, disponível em www.dgsi.pt, que:

<<I – A isenção mencionada no artº 4º/1 – f) do RCJ (Regulamento das Custas Judiciais) não abrange as acções interpostas contra instituições particulares de solidariedade social em que estas defendam interesses conexos com relação laboral estabelecida com uma trabalhadora.

II – Não cabem na previsão normativa em causa as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas entidades celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições.>>

- No acórdão da Relação do Porto, de 21/01/2013, disponível em www.dgsi.pt, que:

<<1 – As IPSS são pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos.

No entanto, a isenção subjetiva prevista na alínea f), do n.º 1, do artigo 4.º do R.C.P., está sujeita a outros requisitos além da inexistência de fins lucrativos, ou seja, aquelas IPSS têm de atuar exclusivamente no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos.

2 – Esta isenção não abrange as ações declarativas emergentes de contrato de trabalho interpostas contra IPSS com vista ao reconhecimento de créditos decorrentes da relação laboral que existiu entre as mesmas e uma trabalhadora.>>

- No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/06/2017, disponível em www.dgsi.pt, que:

<<I - Estabelece a al. f), do n.º 1 do artigo 4º do RCP que as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos estão isentas de custas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.

II - Esta isenção não abrange, a acção declarativa emergentes de contrato de trabalho interpostas contra a Ré Santa Casa da Misericórdia do Fão, em que se discute o reconhecimento de diferenças salariais resultantes do contrato de trabalho que vigorou entre Autora e Ré.>>

- No acórdão da Relação de Guimarães, de 04/10/2017, disponível em www.dgsi.pt, que:

<<Os factos alegados apenas nos permitem concluir que o litigio existente entre autora e ré é comum a qualquer pessoa colectiva privada sem fins lucrativos da mesma natureza, ou mesmo de outra, não tendo conexão directa ou instrumental e muito menos exclusiva, com as especiais atribuições de tal instituição.

Não estamos perante qualquer atuação respeitante ao âmbito das suas especiais atribuições, nem para defesa dos interesses que especialmente lhe estão conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável contrato em apreço, razão pela qual se entende que independentemente de aquelas funções serem ou não levadas a cabo no âmbito dum contrato de trabalho, o que se discute nada tem a ver com o interesse público visado pela Ré, nem os créditos laborais reclamados constituem obrigações necessárias ou sequer instrumentais à prossecução dos seus fins, pelo que a Ré não está assim isenta de custas>>.

- No acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08/08/2018, processo n.º 0394/18, que: <<Na verdade, e não obstante alguns sectores da doutrina, e jurisprudência, virem entendendo que a «isenção de custas» da citada alínea f) também se aplica às atuações das entidades em causa que sejam instrumentais das suas atribuições, cremos que esta extensão não se compagina com a exigência limitativa imposta pelo legislador. De facto, ao limitar a isenção de custas à atuação desenvolvida exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições o legislador arreda, a nosso ver, essa hipótese>>.

E num sentido mais alargado indicamos, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 04/12/2019, disponível em www.dgsi.pt; da Relação do Porto de 14/01/2014, disponível em www.dgsi.pt; da Relação de Guimarães de 03/12/2010, de 17/03/2022 e de 19/05/2022, todos disponíveis em www.dgsi.pt e da Relação de Coimbra de 11/05/2020, de 21/01/2020 e de 28/01/2020, todos disponíveis em www.dgsi.pt, tendo-se decidido no acórdão da Relação de Lisboa que:  

<<I- A al. f) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP obriga a uma interpretação compreensiva e abrangente das realidades que lhe podem estar subjacentes e que, em grande medida, passam por uma apreciação casuística dos litígios trazidos a tribunal ou, pelo menos, do tipo ou espécie de ações, que pela sua relação instrumental com as referidas especiais atribuições e interesses prosseguidas pelas pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, segundo os seus estatutos e o regime legal aplicável, poderão, em regra, beneficiar, à partida dessa isenção de custas, tudo sem prejuízo do disposto nos números 5 e 6 do mesmo artigo 4.º do RCP.

II- Existirão muitas pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos que, pela sua dimensão e natureza da sua atividade, se sustentarão fundamentalmente na carolice e trabalho voluntário dos seus sócios e demais colaboradores, mas certamente outras, como a Ré, terão absoluta necessidade de celebrar contratos onerosos de trabalho e de prestação de serviços com terceiros, por só assim lhes ser possível prosseguir as suas particulares atribuições e específicos interesses (que, como sabemos e resulta dos próprios Estatutos da instituição aqui demandada são múltiplos, variados e ambiciosos em termos sociais).

III - Revelando-se essas relações de trabalho subordinado como absolutamente necessárias ao funcionamento da Ré e à realização dos seus fins e decorrendo de tais vínculos e do risco da autoridade e da atividade profissional a eles inerente a ocorrência de acidentes de trabalho, não se poderá negar, em regra, tal isenção de custas à Ré, ainda que condicionada ao desfecho final da ação laboral, nos termos dos números 5 e 6 do artigo 4.º do RCP.>>

Ora, tendo em conta, desde logo, a redação do normativo em causa, perfilhamos o entendimento de que as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos apenas estão isentas de custas nos processos respeitantes às suas especiais atribuições e nas ações que tenham por fim direto (e não apenas instrumental) a defesa dos interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos, pois só assim se compreende a previsão de tais requisitos.

Na verdade, como se refere no Acórdão desta Relação, de 10/12/2019, disponível em www.dgsi.pt, a propósito da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP:

<<As isenções subjetivas aí previstas têm, assim, na sua base de atribuição a qualidade das partes, enquanto que as isenções objetivas têm a sua base da atribuição o tipo de processo, ou seja, são concedidas em função do tipo de espécie processual.

No que concerne às primeiras, diga-se que, ao contrário do sucedia o anterior Código das Custas Judiciais, onde se previam isenções subjetivas puras, isentando determinadas entidades do pagamento de custas, independentemente da natureza dos processos em que fossem parte e sem quaisquer outras condicionantes a não ser a qualidade da parte, as isenções subjetivas que se encontram agora enunciadas no artº. 4º, nº 1, do atual RCP, não são puramente subjetivas, pois que não são estabelecidas exclusivamente em função das entidades que se encontram elencadas nessa previsão legal e que sejam partes no processo, uma vez que aí se condiciona essa isenção, que estabelece a favor daquelas, ainda à natureza das questões, dos direitos e dos interesses ou da relação material que é objeto do processo.

Como bem se salienta no Ac. do TRG de 28/06/2018 (proc. nº. 988/17.82T8FAF.G, disponível em www.dgsi.pt), esta opção legislativa em deixar de se prever no atual RCP isenções subjetivas puras, conforme se lê no Preâmbulo do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26/02, que aprovou o RCP, corresponde ao objetivo prosseguido pelo legislador de proceder “a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenção”. (sublinhado nosso)”.>>

Regressando ao caso dos autos, a Ré recorrente tem por objetivo contribuir para a promoção da população da região centro, através do propósito de dar expressão organizada ao dever de solidariedade e de justiça social entre os indivíduos podendo, todavia, vir a estender-se a outras localidades do País, por deliberação do Conselho de Administração (artigo 2º dos Estatutos). Para atingir o seu objetivo a Fundação propõe-se apoiar, promover e realizar atividades, nomeadamente, no âmbito da solidariedade social, educação e saúde.

Por outro lado, a Autora presta a sua atividade no grupo do jardim de infância da Casa da Criança ..., estabelecimento da Ré que presta serviços de creche e infantário, sito na ... e interpôs a presente ação pedindo o arquivamento do processo disciplinar que lhe foi instaurado pela Ré e a condenação desta a reconhecer a nulidade da sanção disciplinar que lhe aplicou e no pagamento do salário respetivo e de uma indemnização por danos morais.

Assim sendo, pese embora a Autora exerça a sua atividade no jardim de infância da Ré, no presente processo a recorrente não atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições (“fins ou finalidades para a realização das quais foi formada”[3]) nem aquele tem por fim direto a defesa dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respetivos estatutos ou pela lei.

Como se decidiu no acórdão desta Relação supracitado, de 13/12/2011:

<<(…), tal isenção está condicionada à actuação no âmbito das especiais atribuições da pessoa colectiva em causa ou da defesa dos seus interesses estatutários, pelo que a isenção “só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela lei” (ídem). Não cabem, assim, na previsão normativa “as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições” (ídem, 153) como é o caso.

Na verdade, o que está aqui em causa é a defesa de interesses derivados da relação laboral estabelecida com uma sua trabalhadora e não interesses estatuários ou, sequer, algo relacionado com as suas especiais atribuições.>>

E como se refere no acórdão da RG, de 04/10/2017:

<<(…), falar-se simplesmente de uma “instrumentalidade”, como bastante, implicará colocar na norma aquilo que o legislador não pretendeu aí colocar. Tratando-se de pessoa coletiva que não distribui lucros, facilmente se encaixaria todo o tipo de ações nos pressupostos necessários à isenção, inutilizando o carácter limitado prescrito na norma. Se o legislador assim o tivesse pretendido, bastaria conceder a isenção subjetiva tout court.

Importará caso a caso verificar se o assunto sub judice é “decorrência natural” do atuar da pessoa na prossecução daquelas atribuições e/ou interesses, quer porque, a jusante, decorrentes dessa prossecução; quer porque, a montante, necessário à mesma.
(…).

Não se encaixarão aquelas que não decorrem da prossecução daquelas atribuições, nem são necessárias à mesma.” Ora, também partilhamos este entendimento, tendo contudo presente que não procede o argumento de que as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos prosseguem sempre, indirecta e instrumentalmente, as atribuições e interesses que lhes cabem, sob pena de total esvaziamento da previsão legal e desvirtuamento dos objectivos prosseguidos com o estabelecimento das condicionantes mencionadas.

Importa assim relevar as acções emergentes de relações jurídicas estabelecidas com vista à prossecução das atribuições especiais da pessoa colectiva em causa, por serem a sua «decorrência natural», quer por traduzirem a sua concretização, quer por serem necessárias à mesma.

A Ré como já referimos é uma IPSS e prossegue entre outras, as actividades Creche, Pré-escolar, Estrutura Residencial para Pessoas idosas, Centro de Dia e de Serviço de Apoio Domiciliário. Sucede que no caso em apreço foi interposta contra a Ré a acção emergente de contrato de trabalho com vista ao reconhecimento de créditos decorrentes da relação laboral existente entre as partes – diferenças salariais resultantes do reconhecimento de categoria profissional.

As funções que estão em causa alegadamente exercidas pela autora, quer de auxiliar ou de animadora sócio-cultural, não se reportam exclusiva e directa ou instrumentalmente às especiais atribuições da Ré ou dos interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto.

(…)

Os factos alegados apenas nos permitem concluir que o litigio existente entre autora e ré é comum a qualquer pessoa colectiva privada sem fins lucrativos da mesma natureza, ou mesmo de outra, não tendo conexão directa ou instrumental e muito menos exclusiva, com as especiais atribuições de tal instituição.

Não estamos perante qualquer atuação respeitante ao âmbito das suas especiais atribuições, nem para defesa dos interesses que especialmente lhe estão conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável contrato em apreço, razão pela qual se entende que independentemente de aquelas funções serem ou não levadas a cabo no âmbito dum contrato de trabalho, o que se discute nada tem a ver com o interesse público visado pela Ré, nem os créditos laborais reclamados constituem obrigações necessárias ou sequer instrumentais à prossecução dos seus fins, pelo que a Ré não está assim isenta de custas.>>

Por fim, ao contrário do alegado pela recorrente, o facto de a mesma ter de contratar ajudantes de ação direta para as valências de jardim de infância não permite concluir, sem mais, que a Ré se encontra a atuar no âmbito exclusivo das suas especiais atribuições.

E também não acompanhamos a recorrente quando alega que “ainda que por uma via indireta ou instrumental, o recurso à ação judicial para dirimir conflito emergente do vínculo laboral, relaciona-se com as atribuições ou defesa dos interesses das instituições. O objeto destas ações é instrumental em relação aos fins estatutários de tais entidades”.

Em suma, a isenção subjetiva prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do R.C.P., está sujeita a outros requisitos além da inexistência de fins lucrativos, ou seja, aquelas pessoas coletivas têm de atuar exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou na defesa direta dos interesses que lhe estão especialmente conferidos, sendo que, tal isenção não abrange a ação interposta por uma trabalhadora contra a Fundação empregadora com vista à impugnação da sanção disciplinar que lhe foi aplicada e à condenação daquela numa indemnização por danos morais.

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente.

                                                             *

Na improcedência das conclusões do recurso, impõe-se a manutenção do despacho recorrido.

                                                             *

                                                             *                                                        

IV – Sumário[4]

(…).

                                                               *

                                                             *

V - DECISÃO.

Nestes termos, na improcedência do recurso, acorda-se em manter o despacho recorrido.

                                                             *

                                                             *

Custas a cargo da recorrente.

                                                             *

                                                             *

Coimbra, 2023/06/30

(Paula Maria Roberto)   

(Mário Rodrigues da Silva)

(Felizardo Paiva)

                                                                                                                                              




[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Mário Rodrigues da Silva
                      Felizardo Paiva

[2]  RCP Anotado, 2013 - 5ª Edição, pág. 159
[3] Acórdão da RC, de 10/09/2013, disponível em www.dgsi.pt.
[4] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.