Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2783/03.7TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
MEIOS DE PROVA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 364º, Nº 1, E 393º, Nº 1; 334.º DO CÓDIGO CIVIL. ARTIGO 17° DO DECRETO-LEI N°176/95 DE 26 DE JULHO; ARTIGOS 426º E § ÚNICO, E NºS 3, 4, 6 E 8, DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: 1. É desprovida de fundamento legal a pretensão de dar como assente a existência de um contrato de seguro de vida, com base em meios de prova não admitidos por lei, designadamente, através do recurso à prova testemunhal.
2. A minuta de seguro, preenchida e assinada pelo proponente, não dispensa, de todo, a aprovação ou aceitação da seguradora, sob pena de aquela proposta não equivaler à respectiva apólice, apenas se considerando celebrado o contrato de seguro quando, decorrido o prazo de quinze dias, após a recepção da minuta, a seguradora não proceda à notificação do proponente, comunicando-lhe a sua aceitação, recusa ou necessidade de recolher esclarecimentos essenciais à avaliação do risco.
3. Não tendo a seguradora criado no espírito do proponente a convicção da existência e validade do contrato de seguro de vida a que este era candidato, não tendo agido, ao invocar a inexistência do contrato, em oposição à confiança que aquele e seus familiares firmaram em expectativas alicerçadas nas vicissitudes por que passaram as suas negociações, prenunciadoras da neutralização do eventual direito dos autores, tal não consubstancia uma situação de abuso de direito.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A....e seus filhos, B....e C...., todos residentes na ….. Castelo Branco, propuseram a presente acção, com processo ordinário, contra “Banco…. SA”, com sede em Lisboa, “…… Companhia de Seguros Vida, SA – Grupo Banco …….”, com sede em Lisboa, e “D....”, com sede na Rua …. em Castelo Branco, pedindo que, na sua procedência, sejam condenados, o primeiro e o segundo réus, a reconhecer a efectivação do contrato de seguro de vida celebrado com a autora A.... e o seu falecido mando, e, em consequência, o segundo réu a liquidar o capital segurado, no valor de 86.541,43€, sendo que, deste montante, o segundo réu deve liquidar, perante a primeira autora, o capital em dívida relativo ao contrato de mútuo com hipoteca, à data do falecimento do marido desta, no montante de 75.071,79€, e o remanescente, no quantitativo de 11.469,64€, aos ora autores, acrescido de juros, desde 4 de Julho de 2002, à taxa legal, até integral e efectivo pagamento, condenando-se ainda o primeiro réu a restituir todos os montantes entregues pelos autores, a titulo de prestações e respectivos juros de mora, para pagamento dos empréstimos aludidos na acção, desde Agosto de 2003, acrescidos de juros, à taxa legal, até integral e efectivo pagamento, e, subsidiariamente, se assim se não entender, que o terceiro réu seja considerado único responsável pela não realização do contrato de seguro de vida em causa, e, por via de tal facto, condenado a pagar as quantias acima referidas, invocando, para o efeito, e, em síntese, a existência de um contrato de seguro de vida celebrado entre o falecido marido da autora, E…., e “….. Seguros de Vida, SA”, que, depois, veio dar origem à ré "….. Companhia de Seguros Vida, SA - …..", na sequência da fusão entre “….. Vida, SA” e “…..- Seguros de Vida, SA”.
Na contestação, o réu “D…..” invoca a ineptidão da petição inicial, impugnando a matéria de facto constitutiva da sua eventual responsabilidade na não celebração do contrato de seguro de vida em causa, refutando a factualidade que os autores lhe imputam.
Por sua vez, os réus "….Banco ….., SA", "Banco II….., SA" e "…. Companhia de Seguros Vida, SA - …..", na sua contestação, alegam, em síntese, que o contrato de seguro de vida invocado pelos autores não foi celebrado, dado que o mesmo não foi aceite pelo segundo réu, o qual notificou o falecido marido da autora de que carecia de realizar exames médicos complementares, para uma correcta avaliação do risco pela seguradora, sendo certo que os mesmos nunca lhe foram enviados, e, por isso, não foi aceite a proposta de seguro, relativamente ao marido da autora, mas, apenas, quanto a esta, devendo, por isso, improceder os pedidos formulados pelos autores contra estes réus.
Na réplica, os autores concluem como na petição inicial.
Conhecendo no saneador, o Tribunal «a quo» julgou a acção, parcialmente improcedente, absolvendo, em consequência, os réus "…. Banco ….., SA", "Banco II…, SA" e "…. Companhia de Seguros Vida, SA - …." do pedido contra eles formulado pelos autores A….., B....e C...., prosseguindo os autos, apenas, para apreciação do pedido subsidiário deduzido contra o réu "D....".
Desta decisão, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões:
1ª - Os autores, como fundamento do seu pedido, alegaram a existência de um seguro de vida celebrado entre o falecido marido da autora A.... e a co-ré …… Companhia de Seguros Vida, S.A.
2ª -      Em sede de saneador, entendendo que o contrato de seguro é um negócio jurídico rigorosamente formal, pelo que, não se tendo junto aos autos a respectiva apólice, o pedido baseado nesse contrato não podia proceder, absolvendo assim, de instância, os réus “….. - Banco  ..,  SA", "Banco  II, SA" e “…. Companhia de Seguros Vida, SA - ".
3ª - Todavia, o que se peticiona é, precisamente, a condenação da 1a e 2a ré a reconhecerem a existência de tal contrato de seguro, com efeito, se apenas a apólice, como parece resultar das palavras do Tribunal "a quo" consubstanciar a forma exigida pelo contrato de seguro, na sua grande maioria, ficariam os segurados desprovidos de provar a sua existência e validade.
4ª - Isto porque, desde logo, a apólice é emitida pela seguradora sem qualquer intervenção do segurado, sendo que no contrato de seguro, enquanto contrato de adesão, o segurado limita-se a assinar a proposta e daí em diante todo o desenrolar do processo fica nas mãos da seguradora não sendo, aliás, sequer entregue ao segurado, ficando, inclusive, na titularidade da seguradora.
 5ª - Aliás, in casu nos termos da cláusula quarta, Secção II, do documento complementar junto aos autos com a petição inicial (doc. 5), os mutuários (a autora A.... e o falecido marido) "obrigaram-se a contratar um seguro de vida cujas condições, constantes da respectiva  apólice, seriam as indicadas pelo Banco" sublinhamos, mais ainda, segundo o documento complementar (doc. n°5 junto com a petição inicial), "as apólices e as actas adicionais dos seguros deviam obrigatoriamente ficar em poder do Banco mutuante como interessado no mesmo, na qualidade de credor".
6ª - Isto é, a aceitar-se, sem mais, o afirmado pelo tribunal a quo, sem ser com a muito boa vontade dos réus, ficam os autores completamente impossibilitados de provar a existência do contrato de seguro em que alicerçam a sua acção.
7ª - Como se disse no douto acórdão da RL de 22/01/1997 "o contrato de seguro ser um negócio bilateral sinalagmático e oneroso e, como tal, a sua perfeição dependa da sua aprovação ou aceitação por ambas as partes, todavia não se pode aceitar que tal aprovação ou aceitação do contrato, por banda da Seguradora, só possa ocorrer com a emissão da apólice respectiva, porquanto, conforme o Assento, de 22/01/1929, do STJ, desde que devidamente aprovada, expressa ou tacitamente pela Seguradora, a minuta do contrato de seguro equivale, para todos os efeitos, à apólice - o que pode ter lugar antes da emissão da apólice".
 8ª - Continuando esse douto aresto "por aprovação da aludida minuta de contrato de seguro tem-se o facto de aquela, para além da assinatura do segurado, se encontrar assinada ou rubricada por um técnico ou funcionário da Seguradora, ou de ter sido entregue aos balcões da sede, ou de qualquer sucursal, agência ou dependência da Seguradora, na data constante dessa minuta, encarada, assim, como data do inicio do contrato de seguro - e não, apenas, na data da emissão da respectiva apólice".
9ª - Jurisprudência essa que já vem do STJ, desde pelo menos 1929, e que tempera o exagerado formalismo defendido pelo Tribunal a quo.
10ª - Ora, no caso sub judice em Outubro de 2000, na sequência da fusão entre a …., S.A. e a …… Seguros de Vida, SA, por carta enviada pela ….. Seguros Vida, SA, datada de 12 de Outubro de 2000, foi comunicado, ao marido da autora A...., bem como a esta, a consequente fusão destas entidades.
11ª - Também, por carta dirigida, na mesma altura, apenas, ao marido da autora A...., pelo Instituto de Seguros de Portugal, foi-lhe comunicado essa mesma fusão, informando-o de que se poderia opor-se a tal transferência de carteira de seguros, "onde se inclui o contrato celebrado com V.Ex.a" afirmando, "por se tratar de uma transferência de carteira de seguros do Ramo Vida, o Instituto de Seguros de Portugal deve proceder à consulta aos segurados" (doc. n°12 junto com a petição inicial).
12ª - Ora, todos estes factos, conjugados com a assinatura da minuta do contrato de seguro por parte do segurado e sua posterior entrega nos balcões da seguradora, consubstancia, pelo menos, uma clara aprovação tácita do seguro.
13ª - Isto porque, nos termos do artigo 17° do Decreto-Lei n°176/95 de 26 de Julho, "no caso de seguros individuais em que o tomador seja uma pessoa física e sem prejuízo de poder ser convencionado outro prazo, considera-se que, decorridos 15 dias após a recepção da proposta de seguro sem que a seguradora tenha notificado o proponente da aceitação, da recusa ou da necessidade de recolher esclarecimentos essenciais à avaliação dos riscos, nomeadamente exame médico ou apreciação local do risco ou da coisa segura, o contrato se considera celebrado nos termos propostos".
14ª - E, se como salienta o Tribunal "a quo” é verdade que, como a autora reconhece, a seguradora solicitou ao marido da autora A.... a realização de um outro exame, também não o é menos, mas desta parte já não cuidou o Tribunal, que esse exame foi prontamente realizado pelo autor imediatamente após a solicitação do mesmo.
15ª - No caso sub judicacibus, a argumentação da seguradora que invoca a inexistência do contrato de seguro, em virtude da sua não aceitação, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, integrando mesmo um inaceitável "venire contra factum proprium".
16ª - Ora, crê-se inequívoca a interpretação das cartas - ao abrigo do 236° n°1 do Código Civil - enviadas pela ……. Seguros Vida, S.A. e pelo Instituto Português de Seguros ao falecido marido da autora mostrando a existência do contrato, dado o mútuo consenso das partes nesse sentido.
17ª - Mútuo consenso esse que resulta do facto de as propostas terem sido entregues nos balcões da seguradora e realizados todos os exames peticionados, bem como pela posterior comunicação efectuada pela seguradora ao marido da autora na qual lhe comunicava a existência do seguro de vida registado em seu nome.
18ª – A tudo isto acresce ainda o facto de terem sido debitados da conta do falecido E...., conta essa existente no Banco Português do Atlântico, dois seguros de vida e não apenas um.
19ª – Aliás a carta acima mencionada (doc. nº 6 junto com a petição inicial) refere expressamente que o falecido E.... de Oliveira Franco fazia parte dos segurados da seguradora …… Seguros Vida, SA, destinando-se a transmitir-lhe a fusão entre as duas seguradoras e esclarecendo que tal não implicaria qualquer alteração nas condições dos contratos em vigor.
20ª – Por outro lado em nenhuma passagem da carta se refere qualquer falta ou irregularidade no seu contrato de seguro, tudo antes levando a crer que a ré seguradora estava segura de tudo e pronta a honrar o seu compromisso.
21ª – A conduta tida pela ré seguradora foi, indubitavelmente, apta e adequada a fazer crer à autora A.... e ao seu falecido marido – aos quais foram enviadas as cartas juntas como doc. 6 e 12 – que o seguro existia e de que nada obstava à sua validade e força legal.
22ª – De resto no documento complementar anexo ao mútuo com hipoteca diz-se expressamente que os mutuários se obrigavam a celebrar um seguro de vida e que as apólices ficariam na posse do Banco.
23ª - Surge assim, mesmo a entender-se que o seguro em causa não foi formalmente celebrado (o que, salvo o devido respeito, se admite sem conceder), uma situação configurável como abuso de direito, nos termos do artigo 334 do Código Civil, sendo certo que, ao invés do decidido pelo Tribunal "a quo", devem os autos prosseguir termos para apreciação do pedido.
24ª - Ao assim não decidir o Tribunal a quo violou, ou/e interpretou erradamente os art°s 426° do Código Comercial, 236°, 238° e 334° do Código Civil e art° 17° do DL 176/95 de 26 de Julho.
Nas suas contra-alegações, os réus “…. – Banco ….., SA”, e “…..Companhia de Seguros Vida, SA – ….” sustentam que deve ser confirmada, integralmente, a decisão recorrida.
Na decisão apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
 A co-autora A.... é viúva, tendo contraído casamento, em 26 Setembro de 1996, com E....– A).
Dessa união vieram a nascer dois filhos, os dois outros co-autores – B).
Sendo os autores os únicos herdeiros de E….. – C).
Em 18 de Agosto de 1998, foi celebrado o contrato de mútuo com hipoteca, entre E…. e mulher, a primeira co-autora, e o “Banco II…., SA”, primeiro réu – D).
Tal contrato foi celebrado, para efeitos de beneficiação do imóvel, sito na …., Lote 12, na freguesia de …., concelho de …… – E).
Tal empréstimo foi, no valor de 10 milhões de escudos – F).
Simultaneamente, foram concedidos à co-autora A.... e ao seu marido dois empréstimos, um, no montante de 5.400 000$00, e o outro, no montante de 1.950 000$00, que se destinavam ao pagamento do crédito existente em outra instituição bancária – G).
 Em 1998, o marido da autora A.... foi submetido a um electrocardiograma com prova de esforço – H).
 Exame esse que foi feito, por um médico, nas instalações da “D....”, com sede na Rua J. A. Morão, nº 12-F, Castelo Branco – I).
Sendo esse exame facturado pelo …..- Seguros de Vida, SA – J).
Em 4 de Julho de 2002, faleceu o marido da autora A.... – L).
Uma vez feitos, tal exame, pelo marido da autora A...., a seguradora aceitou-o – M).
O exame em causa foi, devidamente, realizado – N).

                                                    *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são a seguintes:

I – A questão da prova do contrato de seguro de vida.

II – A questão do abuso de direito.

                   I. DA PROVA DO CONTRATO DE SEGURO

Entendem os autores que existe, pelo menos, um contrato de seguro de vida de aprovação tácita, de que é expoente a respectiva minuta do contrato, assinada pelo segurado e, posteriormente, entregue nos balcões da seguradora, contrariamente ao sustentado pela sentença recorrida e pelos réus "…. - Banco …… SA", "Banco II….., SA" e "…. Companhia de Seguros Vida, SA - ….", que defendem que o contrato de seguro invocado por aqueles não foi celebrado, dado que o mesmo não foi aceite pelo segundo réu, o qual notificou o falecido marido da autora de que carecia de realizar exames médicos complementares, para correcta avaliação do risco pela seguradora, sendo certo que o dito exame nunca lhe foi enviado, e, por isso, não foi aceite a proposta de seguro apresentada.

É neste enquadramento que os autores pretendem ver alterada a decisão recorrida, no sentido proposto, com vista a dar-se como celebrado o controvertido contrato de seguro de vida, cujos documentos preparatórios e a respectiva minuta, por si, alegadamente subscritos e entregues ao réu “…. Companhia de Seguros Vida, SA - …..”, se encontrariam em poder deste, à data do óbito do marido e pai dos autores, sem que a estes últimos tenha sido dada cópia.

O contrato de seguro define-se como aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, a, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites, convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios, na hipótese de prestação a realizar, em data determinada[1].

O contrato de seguro rege-se pelas estipulações da apólice, não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, subsidiariamente, pelas disposições do Código Comercial, atento o preceituado pelo artigo 427º, deste diploma legal.

Com efeito, o contrato de seguro é um contrato, essencialmente formal, constituindo a sua redução a escrito, através de um instrumento denominado apólice, que é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, que contém a roupagem do respectivo contrato, nela se devendo enunciar os elementos e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes, em conformidade com o disposto pelos artigos 426º e § único, e nºs 3, 4, 6 e 8, do Código Comercial, e 1º, f), do DL nº 176/95, de 26 de Julho, isto é, um pressuposto da sua validade ou existência legal.

A forma do contrato de seguro é considerada, unanimemente, uma formalidade “ad substantiam” e não uma formalidade “ad probationem”, cuja falta possa ser suprida por confissão expressa, judicial ou extrajudicial.

Com efeito, em matéria de meios de prova, vigora o princípio da sua livre admissibilidade, nos termos do o qual o Juiz deverá atender, para a generalidade dos factos, a qualquer um dos meios de prova previstos por lei, graduando-os, livremente, de acordo com a sua prudente convicção, nos termos do estipulado pelo artigo 655º, nº 1, do CPC.

Porém, este princípio geral conhece importantes excepções, porquanto, para determinadas espécies de factos, a lei só admite certos meios de prova.

Assim, quando a lei exige, como forma de declaração negocial, a redução a escrito, através de documento autêntico, autenticado ou particular, como condição da sua validade – formalidade “ad substantiam” -[2], o mesmo não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior, nos termos do preceituado pelas disposições combinadas dos artigos 364º, nº 1, e 393º, nº 1, ambos do Código Civil (CC).

Ora, enquanto as formalidades “ad probationem”, também designadas probatórias, são impostas apenas para a prova do negócio, podendo a sua falta ser suprida, por outros meios de prova, embora mais difíceis de obter, atento o estipulado pelo artigo 364º, nº 2, do CC, as formalidades “ad substantiam”, também chamadas substanciais, são exigidas, sob pena de nulidade do negócio, sendo irremediável a sua falta, ou seja, são, absolutamente insubstituíveis, por qualquer outro género de prova[3].

Como assim, é inadmissível fazer a prova do contrato de seguro, através do recurso a prova testemunhal, com base nas disposições conjugadas dos artigos 364º, nº 1, 392º, 393º, nº 1, do CC, e 426º e § único, do Código Comercial.

Na falta de demonstração da apólice, sendo certo que o contrato deve ser reduzido a escrito, através deste instrumento, embora a simples minuta do contrato de seguro equivalha à apólice, se esta não existir[4], desde que da mesma conste a assinatura do segurador, demonstrativa da aceitação da proposta do interessado, o contrato é, formalmente, nulo[5].

Por isso, é desprovida de fundamento legal a pretensão, mesmo em sede teórica, de ver decidida a questão de fundo suscitada nas alegações de recurso, no sentido de dar como assente a existência de um contrato de seguro de vida, com base em meios de prova não admitidos por lei, ou seja, designadamente, na prova testemunhal.

Por outro lado, inexiste a invocada figura da aprovação tácita do contrato de seguro, por parte do réu “….. – Banco …., SA”, sustentada pelos autores, com fundamento na comunicação ao marido da autora A...., bem como a esta, da fusão ocorrida entre a “….. Vida, SA” e o “… Seguros de Vida, SA”, e bem assim como na carta dirigida, na mesma altura, apenas, ao marido da autora A...., pelo Instituto de Seguros de Portugal, informando-o, a propósito da aludida fusão, de que se poderia opor à transferência da carteira de seguros, onde se incluía o contrato celebrado, para além da assinatura da minuta do contrato de seguro, por parte do marido da autora, e da sua posterior entrega aos balcões da seguradora.

Sendo certo que a minuta do contrato de seguro equivale, para todos os efeitos, à apólice[6], mesmo admitindo-se, em sede de raciocínio académico, e tal não foi alegado pelos autores, na petição inicial ou na réplica, e, portanto, não consta dos factos incluídos na base instrutória elaborada, que existiu uma minuta de seguro, preenchida e assinada pelo marido e pai dos autores, tal não dispensava, de todo, a aprovação ou aceitação da seguradora, sob pena de aquela proposta não equivaler à respectiva apólice[7].

Efectivamente, o contrato de seguro é um negócio jurídico bilateral, cuja perfeição ou conclusão resulta do consenso ou acordo de declarações de vontade convergentes das partes outorgantes, em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo, em conformidade com o disposto pelo artigo 232º, do CC, que tem origem numa proposta, consistente no preenchimento de uma minuta, pelo pretendente a segurado, a qual, no contrato entre ausentes, como aconteceria, na hipótese «sub judice», seria enviada à seguradora, para aceitação.

Porém, a seguradora é livre de aceitar ou recusar a proposta, bem podendo suceder que a aceite com modificações, situação esta que implica a sua rejeição, aplicando-se, então, a disciplina consagrada pelo artigo 233º, do CC[8].

Na verdade, os autores apenas juntaram aos autos o certificado individual de seguro relativo à autora A.... e não o documento homólogo respeitante a seu marido e pai, sendo certo, outrossim, que o seguro de vida para crédito à habitação proposto por ambos, apenas, foi aceite, expressamente, em relação ao segundo titular, ou seja, aquela autora, consoante resulta do teor dos documentos de folhas 33 e 115 a 120, inclusive.

Preceitua, a este propósito, o artigo 17º, do DL nº 176/95, de 26 de Julho, que “no caso de seguros individuais em que o tomador seja uma pessoa física e sem prejuízo de poder ser convencionado outro prazo, considera-se que, decorridos 15 dias após a recepção da proposta de seguro sem que a seguradora tenha notificado o proponente da aceitação, da recusa ou da necessidade de recolher esclarecimentos essenciais à avaliação do risco, nomeadamente exame médico ou apreciação local do risco ou da coisa segura, o contrato considera-se celebrado nos termos propostos”.

De facto, a mera subscrição da proposta e a sua subsequente entrega à seguradora não outorga, desde logo, plena validade e eficácia ao contrato a que a mesma se reporta, considerando-se o mesmo celebrado, tão-só, quando, decorrido o prazo de quinze dias após a recepção da minuta, a seguradora não proceda à notificação do proponente, comunicando-lhe a sua aceitação ou recusa[9].

Ora, na hipótese em apreço, os autores, na petição inicial, alegam que, após a subscrição do contrato de seguro de vida pela autora A.... e seu marido, foi-lhes solicitado, para efeitos da sua aceitação, pelo “BPA – Seguros de Vida, SA”, a realização de vários exames médicos e, na sequência destes, a efectivação de um outro, ou seja, de um electrocardiograma com prova de esforço, mas, tão-só, ao marido da autora, com fundamento no conhecimento, por ambas as partes, de que a mãe deste sofria do coração.

Nestes termos, não é sustentável poder afirmar-se que se deve considerar celebrado o contrato de seguro de vida, com base numa conjectural aceitação tácita da minuta apresentada pelo marido e pai dos autores.

E, não havendo aceitação da proposta, por parte da seguradora, inexiste contrato de seguro válido, que sempre depende da emissão da apólice ou da existência de uma minuta assinada e aceite[10].

                               II. DO ABUSO DE DIREITO


Defendem ainda os autores que a invocação pelas rés da inexistência do contrato de seguro, as faz incorrer na figura do abuso de direito, traduzindo a situação de um inaceitável "venire contra factum proprium".
Nos termos do preceituado pelo artigo 334º, do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, mas com aplicação subsidiária, desde que não haja solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar[11].

Porém, aos tribunais requer-se o maior critério e precisão na aplicação da boa fé e, designadamente, quando tal suceda contra o «ius strictum», porquanto este deve ser aplicado, em primeira linha, só funcionando o abuso de direito, a título subsidiário[12].

O abuso de direito desdobra-se numa série de casos-tipo de aplicação do princípio da boa fé, ou seja, a denominada «exceptio doli», a proibição de «venire contra factum proprium», a proibição de consubstanciar, dolosamente, posições processuais, as inalegabilidades formais, a «suppressio» ou neutralização, a «surrectio» ou surgimento, o «tu quoque» e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Por seu turno, o «venire contra factum propprium» pode concretizar-se, nomeadamente, quando uma situação de aparência jurídica é criada, em termos tais que suscita a confiança das pessoas de que a posição jurídica contrária não será actuada, por imposição da boa fé, implicando a demonstração, ainda que mínima, que da inactividade do lesado resultou uma expectativa fundada de que o direito não seria exercido[13].
Está em causa o exercício do poder formal da parte negar o reconhecimento do contrato de seguro de vida celebrado com o falecido marido e pai dos autores, em eventual contradição com o seu comportamento anterior, e com os limites normativos do fim específico visado pelo direito subjectivo[14].

Efectivamente, na base do abuso de direito está o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas já não de uma cláusu­la contratual, a que a parte, livre e voluntariamente, se vinculou, não podendo esta figura ju­rídica sustentar o incumprimento de obrigações assumidas ou a sua transformação em estipula­ções de conteúdo que lhe seja favorável[15].

Revertendo ao caso em análise, importa reter, neste particular, alegadamente, ao envio de cartas, pelo “…. - Seguros Vida, SA” e pelo Instituto Português de Seguros, ao falecido marido da autora, destinando-se a transmitir-lhe a fusão entre as duas seguradoras, mostrando que este fazia parte dos segurados da “…. Seguros Vida, SA”, e esclarecendo que tal não implicaria qualquer alteração das condições dos contratos em vigor, às propostas entregues aos balcões da seguradora, à realização de todos os exames peticionados, e ao débito, na conta do falecido E...., existente no “Banco …..”, de dois seguros de vida e não apenas de um.

Quanto ao teor das referidas cartas, de natureza rotineira e impessoal, pese embora o nome que consta do respectivo cabeçalho, sendo certo que o Instituto Português de Seguros não é parte na acção, mas antes uma entidade reguladora do sector segurador, mais não traduzem do que a comunicação sobre a decisão de fusão entre a “…. Vida, SA”, e o “…. Seguros de Vida, SA”.

Em relação às propostas entregues aos balcões da seguradora e à realização de todos os exames peticionados, importa não esquecer, consoante decorre do teor dos documentos de folhas 33 e 115 a 120, que o único certificado individual de seguro emitido era o relativo à autora A...., porquanto, apenas, tinha sido aceite, expressamente, em relação aquela o seguro de vida para crédito à habitação proposto por ambos.

Por fim, o invocado débito, na conta do falecido E...., existente no “Banco ….”, de dois seguros de vida e não, apenas, de um, traduz-se num facto novo que os autores não alegaram, como podiam e deviam, no articulado da réplica, onde, igualmente, não deduziram a excepção do abuso de direito, embora esta seja de conhecimento oficioso, razão pela qual, não obstante, foi objecto de apreciação, por esta Relação.

Assim sendo, os réus não criaram no espírito dos autores, nomeadamente, da autora A.... e de seu falecido marido, a convicção da existência e validade do contrato de seguro de vida a este último respeitante, não tendo agido, ao invocarem a respectiva inexistência, em oposição à confiança que os autores firmaram em expectativas alicerçadas nas vicissitudes por que passaram as suas negociações, prenunciadoras da neutralização do eventual direito dos autores, e, como tal, não consubstanciando uma situação de abuso de direito.

Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações dos autores.

                                                    *

CONCLUSÕES:

I – É desprovida de fundamento legal a pretensão de dar como assente a existência de um contrato de seguro de vida, com base em meios de prova não admitidos por lei, designadamente, através do recurso à prova testemunhal.

II - A minuta de seguro, preenchida e assinada pelo proponente, não dispensa, de todo, a aprovação ou aceitação da seguradora, sob pena de aquela proposta não equivaler à respectiva apólice, apenas se considerando celebrado o contrato de seguro quando, decorrido o prazo de quinze dias, após a recepção da minuta, a seguradora não proceda à notificação do proponente, comunicando-lhe a sua aceitação, recusa ou necessidade de recolher esclarecimentos essenciais à avaliação do risco.

III – Não tendo a seguradora criado no espírito do proponente a convicção da existência e validade do contrato de seguro de vida a que este era candidato, não tendo agido, ao invocar a inexistência do contrato, em oposição à confiança que aquele e seus familiares firmaram em expectativas alicerçadas nas vicissitudes por que passaram as suas negociações, prenunciadoras da neutralização do eventual direito dos autores, tal não consubstancia uma situação de abuso de direito.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta decisão recorrida.

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Custas, a cargo dos autores-apelantes.


[1] Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 23 e 24.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 322 e 323; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 145.
[3] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 145; Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado”, 37 a 41; Pinheiro Torres, Ensaio sobre o Contrato de Seguro, 46; Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial, II, 136; STJ, de 7-10-93, CJ (STJ), I, T3, 54; STJ, de 16-12-80, BMJ, nº 302, 273.
[4] Assento do STJ de 22-1-1929, DG, II série, de 5-2-29; Col. Of., Ano 28º, 23; RLJ, Ano 61, 349; Revista dos Tribunais, Ano 47, 147.
[5] RP, de 11-6-70, BMJ, nº 199, 272.
[6] Assento do STJ de 22-1-1929, DG, II série, de 5-2-29.
[7] Assento do STJ de 22-1-1929, DG, II série, de 5-2-29; Marcelo Caetano, O Direito, Ano 64, 34 e ss.; Pinheiro Torres, Ensaio sobre o Contrato de Seguro, 34 e ss. e 52 e ss.; RLJ, Ano 61, 349; STJ, de 4-10-95, BMJ nº 450º, 515.
[8] Vaz Serra, RLJ, 106º, 220; STA, de 18-6-1974, Acórdãos Doutrinais, nº 158, 248.
[9] RP, de 16-1-2003, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/
[10] RC, de 12-7-94, BMJ nº 439, 659.
[11] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T1, 2ª edição, 2000, 241 e 248.
[12] RC, de 2-11-99, CJ, Ano XXIV, T4, 51.
[13] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, T1, 2000, 250 a 252; Da Boa Fé no Direito Civil, 377, 378, 797; Vaz Serra, Abuso de Direito, em Matéria de Responsabilidade Civil, BMJ nº 85, 330 e 331; STJ, de 3-5-90, BMJ nº 397, 454.
[14] Antunes Varela, RLJ, Ano 114º, 75, Baptista Machado, Resolução do Contrato de Arrendamento Comercial, CJ, Ano IX, T2, 17.
[15] Cunha de Sá, Abuso do Direito, 249, 250 e 278.