Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1607/10.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ENTREGA JUDICIAL DE BENS
VEÍCULO
JUÍZO SOBRE A CAUSA PRINCIPAL
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 149/95 DE 24/6, DL Nº 30/2008 DE 21/2
Sumário: I. O fim visado pelo legislador, com a alteração introduzida no n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95 de 24/06, pelo DL 30/2008, de 25/02, encontra-se expressamente enunciado no preâmbulo deste último diploma, onde se refere que se permite ao juiz decidir a causa principal após o decretamento da providência “extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar”.

II. Tal desiderato legal, que determinou a formulação da norma – evitar uma acção declarativa apenas para prevenir a caducidade da providência – realiza-se com a antecipação do “juízo sobre a causa principal”, previsto no n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95, tendo como objecto, exclusivamente, a entrega definitiva do bem locado.

III. Com efeito, só o pedido de entrega definitiva do bem locado teria a virtualidade de evitar as caducidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 389.º do Código Civil, o que não acontece com o pedido de condenação no pagamento de rendas e de juros.

IV. A coincidência entre o objecto da providência e da acção principal hipotética encontra-se estabelecida no citado preâmbulo, de forma unívoca: “uma providência cautelar e uma acção principal — que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado.”

V. Destes elementos interpretativos se retira a conclusão de que a entrega do bem locado constitui objecto comum da providência e do juízo definitivo sobre a causa principal, com carácter provisório na primeira decisão, tornado definitivo na segunda.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
Banco (…), SA, intentou a presente providência cautelar de entrega judicial de veículo e cancelamento de registo contra os requeridos T (…) SA, e P (…) requerendo a entrega imediata de um veículo de marca Toyota, com a matrícula 68-FL-95, bem como a condenação dos requeridos no pagamento da quantia € 5.980,42, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, com fundamento no disposto no n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95, de 24 de Junho.
Como suporte da sua pretensão, alegou em síntese a requerente: adquiriu um veículo por indicação e proposta da requerida; em 10 de Abril de 2008 celebrou com a requerida um contrato de locação financeira, tendo por objecto o veículo em causa; nos termos do citado acordo efectuado com a requerida obrigou-se a ceder-lhe o gozo e fruição do veículo; por seu turno a requerida obrigou-se a pagar determinada renda mensal; o requerido interveio no contrato como fiador; a requerida deixou de proceder ao pagamento das rendas acordadas, tendo a requerente resolvido o contrato com esse fundamento; a requerida não procedeu à entrega do mencionado veículo; assim pretende que tal veículo lhe seja entregue; por outro lado, ao abrigo do disposto no art. 21º, 7 do DL149/95, pretende que seja proferida decisão que decida definitivamente a questão em causa nos autos, não só quanto à entrega do veículo, mas também relativamente aos montantes que em consequência de tal incumprimento a requerida e o requerido (fiador) devem ser condenados a pagar-lhe.
Citados os requeridos, veio a requerida deduzir oposição, alegando ter sido informada pela requerente de que perante um “eventual défice de tesouraria”, a requerente “não lançaria de imediato, mão da resolução do contrato”.
Posteriormente, através do requerimento de fls. 71, veio a requerida declarar desistir da oposição e confessar os factos articulados pela requerente.
Procedeu-se à audiência de julgamento, com inquirição da testemunha indicada pela requerente, consignando-se em acta (fls. 76), os factos considerados indiciariamente provados.
Foi proferida decisão (fls. 80), com o seguinte teor:

«Pelo exposto, julga-se o presente procedimento cautelar procedente e ao abrigo do disposto no art. 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, determina-se a entrega à requerente o veículo de marca Toyota, com a matrícula 68-FL-95.

Mais se determina a notificação das partes para o disposto no art.º 21, n.º 7 do DL 149/95 de 24/06, na redacção conferida pelo DL 30/2008 de 21/02, para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem relativamente à requerida antecipação da decisão final sobre a questão em análise. Proceda-se à efectivação da entrega do veículo em causa à requerente.»
Os requeridos não se pronunciaram, tendo sido proferida decisão (fls. 96), com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, ao abrigo do estatuído no art. 21º, 7 do DL 149/95 de 24/06 (na redacção do DL 30/2008 de 25/02) antecipando o juízo sobre a causa principal condena-se a requerida a restituir o bem locado ao requerente.»
Não se conformando, a requerente interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões:

(i) A interpretação da lei não deve cingir-se à respectiva letra, tendo que reconstituir o pensamento legislativo, tendo assim que ter em atenção e consideração a "ratio legis", impondo-se que seja interpretada e entendida de forma a corresponder à consecução do resultado que o legislador teve em mira, como ressalta do disposto no artigo 9° do Código Civil português.

(ii) A interpretação correcta da nova redacção atribuída ao n.º 7 do artigo 21° do Decreto-Lei 159/95, de 24 de Junho, pelo Decreto-Lei 30/2008, de 25 de Fevereiro, implica, impõe aliás, ao Tribunal que, ouvidas as partes, antecipe o Juízo sobre a causa principal, que se consubstancia não apenas e unicamente na entrega ou restituição do veiculo, mas sim também no pagamento do que devido for, quer atento a resolução do contrato de locação financeira que determina o pedir a restituição do bem, quer a não atempada restituição do bem findo que seja, pelo decurso do seu prazo normal, pelo não exercício do direito de compra, desse mesmo bem.

(iii) A sentença recorrida violou, pois, o disposto no artigo 9° do Código Civil e o disposto no n.º 7 do artigo 21.º do Decreto-Lei 159/95, com a redacção que lhe foi dada, pelo Decreto-Lei 30/2008, de 28 de Fevereiro, impondo-se a revogação da sentença recorrida e a condenação dos requeridos no pedido de que foram absolvidos.
Os requeridos não apresentaram contra-alegações.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o tribunal, na antecipação do juízo sobre a causa principal (art.º 21.º, n.º 7, do DL 159/95), deve considerar apenas a entrega do veículo, ou ter também em conta o pedido de condenação no pagamento do que é peticionado pela locadora.

2. Fundamentos de facto
Está indiciariamente provada a seguinte factualidade relevante:
1) O veículo de matrícula 68-FL-95 encontra-se descrito na Conservatória de Registo Automóvel competente a favor do requerente, não se encontrando registados e em vigor quaisquer ónus e encargos.
2) Em 10/04/2008 requerente e requerida celebraram um acordo escrito mediante o qual a pedido da requerida o requerente – no exercício da sua actividade de locação financeira – adquiriu o veículo automóvel da marca TOYOTA, com a matrícula 68-FL-95, pelo preço de €29 800,00.
3) Mais acordaram requerente e requerida que esta última pagaria àquela o total de 48 rendas, de periodicidade mensal, com vencimento ao dia 10 de cada mês, sendo a primeira do montante de €. 5.960,00 e as demais rendas do montante de € 583,46 cada, incluindo o IVA à taxa em vigor, bem como o prémio de seguro de vida e as despesas de cobrança por transferência bancária.
4) A requerida declarou ainda que a pagaria o valor residual do equipamento locado no montante de € 597,50.
5) Mais acordaram que o dito acordo teria início no dia 10/04/2008 e fim no dia 10/04/2012.
6) Acordaram, ainda, requerente e requerida que “O presente contrato poderá ser resolvido por iniciativa do locador quando: a) a mora no pagamento de uma renda for superior a 60 dias; (…); d) o locatário incumpra qualquer uma das suas obrigações contratuais para além da acima indicada em a). / O incumprimento temporário, ou como tal reputado, quer de obrigações pecuniárias, quer de outras, tornar-se-á definitivo se, após o envio por carta registada com aviso de recepção para o domicílio do locatário, intimando-o ao cumprimento em prazo razoável que, desde já é fixado para todas as obrigações em dez dias úteis, o locatário não precludir o direito à resolução por parte do locador, procedendo ao pagamento do montante em dívida, acrescido de 50%. / O prazo de 10 dias úteis acima referido, é contado da data em que se mostre assinado o aviso de recepção, ou na hipótese de a carta vir devolvida, do terceiro dia útil posterior ao seu registo. / Em qualquer dos casos referidos nos números anteriores, o locatário fica obrigado a: a) restituir o equipamento, suportando os riscos e custos inerentes à sua restituição e os consequência da não utilização normal e prudente do equipamento; b) pagar as rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros moratórios à taxa acordada e demais encargos. / c) a pagar 20% do total das rendas vincendas, à data da resolução, acrescida do valor residual (cl. 11).
7) Acordaram, igualmente, que “Caso o locatário pretenda adquirir o equipamento deverá comunicar por escrito tal intenção ao locador até 60 dias antes do final do tempo previsto no contrato, sob pena de perder esse direito. / O locatário adquirirá o equipamento mediante o pagamento ao locador, no final do tempo previsto do contrato, do valor residual do mesmo, referido nas Condições Particulares e desde que não estejam por ele em dívida, naquela data, quaisquer quantias ao locador” (cl.19º).
8) Mais acordaram que “No caso de o locatário não exercer o seu direito de aquisição e de não devolver o equipamento no fim do prazo de locação, o locador terá o direito a receber do locatário, a título de cláusula penal pela mora na devolução, e por cada mês ou fracção do mês por que a mesma perdure, quantia igual à da última renda. O mesmo direito assistirá ao locador quando o equipamento deva ser devolvido antes do temo do prazo da locação, nomeadamente no caso de o contrato ter sido resolvido e haja mora nessa devolução, sendo este direito cumulável com os conferidos ao locador pelos artigos anteriores. Ao montante desta cláusula penal acrescerão juros à taxa moratória convencionada contados a partir da data do vencimento respectivo, considerando-se como tal o dia do vencimento da renda correspondente” (cl. 20º).
9) O requerido P (…) declarou, no acordo escrito referido em 2), constituir-se fiador e principal pagador da requerida, com referência a todas as obrigações por ela assumidas no dito contrato.
10) Aquando da celebração do dito acordo a requerida deu instruções para o pagamento das rendas e do prémio de seguro a ser feito por meio de transferência de conta bancária sua para conta bancária do ora requerente, nos termos da autorização permanente de débito em conta ao constante do próprio contrato.
11) A requerida recebeu o dito veículo de matrícula 68-FL-95.
12) No cumprimento do aludido contrato a requerida pagou ao requerente 16 rendas.
13) Por cartas registadas com AR remetidas no dia 07/12/2009 o requerente comunicou aos requeridos que se encontrava em dívida, em tal data, o montante total de €2 508,62 e que “O não pagamento da quantia referida leva-nos a considerar, no prazo de 10 dias a contar da data desta carta, o contrato em referência como rescindido nos termos das cláusulas 10ª e 11ª, o que implica a obrigação de proceder à entrega imediata do veículo objecto do contrato nas nossas instalações”.
14) A requerida não restituiu o veículo ao requerente.

3. Fundamentos de direito
Como se referiu na definição do objecto do recurso, o que está em causa no presente recurso é a definição do âmbito do “juízo sobre a causa principal”, previsto no n.º 7 do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 149/95 de 24 de Junho.
A providência requerida nestes autos vem prevista no citado artigo 21.º do Decreto-lei n.º 149/95 de 24 de Junho, com alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, nestes termos:

1 - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.

2 - Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre que as condições técnicas o permitam, por via electrónica.

3 - O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.

5 - A caução pode consistir em depósito bancário à ordem do tribunal ou em qualquer outro meio legalmente admissível.

6 - Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7.º

7 - Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.

8 - São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.

9 - O disposto nos números anteriores é aplicável a todos os contratos de locação financeira, qualquer que seja o seu objecto.
Trata-se de um procedimento cautelar[1] com natureza especial, a que se aplica apenas subsidiariamente o regime previsto no CPC, decorrendo, desde logo, do n.º 1 do normativo transcrito, a conclusão de que a lei não exige, para o decretamento desta providência, o requisito periculum in mora - fundado receio de perda das garantias patrimoniais do crédito ou perigo iminente de insatisfação do direito do requerente[2], bastando para que o tribunal decrete a providência, a verificação dos dois requisitos enunciados no n.º 1: i) cessação do contrato sem exercício do direito de compra; ii) e não restituição do bem.
A especificidade deste procedimento afirma-se, sobretudo, no n.º 7 da norma que se transcreveu, onde a lei manda que, decretada a providência cautelar, o tribunal ouça as partes e antecipe “o juízo sobre a causa principal”, só podendo deixar de o fazer quando não tenham sido trazidos ao procedimento os elementos necessários à “resolução definitiva do caso”.
Cumpre averiguar o âmbito do juízo definitivo sobre a causa principal, que pode ser antecipado no procedimento cautelar.
3.1. O contributo interpretativo do preâmbulo do DL n.º 30/2008, de 25/02  
Diz-se no preâmbulo do já referido Decreto-Lei n.º 30/2008 de 25 de Fevereiro (que conferiu ao n.º 7 do art.º 21.º do DL 149/95 de 24/6, a sua actual redacção):
«[…] permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, alterado pelos Decreto-Leis n.ºs 265/97, de 2 de Outubro, e 285/2001, de 3 de Novembro. Evita-se assim a existência de duas acções judiciais — uma providência cautelar e uma acção principal — que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado.»
No intróito que se transcreveu, o legislador define de forma unívoca a entrega do bem locado como objecto comum da providência e da acção principal.
No acórdão do Tribunal Constitucional, de 4.02.2010[3], em que se apreciava a constitucionalidade orgânica e material do n.º 7 do artigo 21.º do n.º 149/95 de 24 de Junho, face à redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 20 de Fevereiro, atribui-se particular relevo ao preâmbulo parcialmente transcrito, como revelador da mens legislatoris e, nessa medida, como elemento interpretativo essencial da norma:

«[…] O procedimento cautelar “convola-se”, assim, ope legis, em processo adequado para conhecer de modo definitivo do direito do locador de ver restituídos os bens.

O processo passa a prosseguir a funcionalidade própria de uma acção de condenação do locatário dos bens a ver reconhecido o direito do locador de restituição definitiva dos bens locados.

De acordo com a mens legislatoris expressa no exórdio do diploma que consagrou esta medida processual (Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro), “Evita-se assim a existência de duas acções judiciais – uma providência cautelar e um acção principal – que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado”.

Conquanto, expressamente, apenas se acentue, como razão determinante da opção legislativa, o tipo de tutela intencionado pela acção (a entrega do bem locado), é, todavia, a especial natureza das situações que estão em causa e a específica forma como se constituem e se extinguem as correspondentes relações jurídicas que justificam a funcionalidade ambivalente deste instrumento processual. […]»
Numa primeira aproximação interpretativa, norteada pela procura no preâmbulo, do “pensamento legislativo” a que se refere o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, encontramos como “objecto comum” da providência e da acção principal, a entrega do locado, o que permite concluir que o conceito de resolução definitiva do caso, referido no n.º 7 do artigo 21.º, se restringe à decisão de entrega do bem.
Com efeito, a definição do desígnio legislativo, nos termos referidos (‘Evita-se assim a existência de duas acções judiciais — uma providência cautelar e uma acção principal — que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado.’), parece visar a dispensa da acção definitiva apenas no que se reporta ao âmbito de convergência dos dois procedimentos – a entrega do bem.
Como se refere no acórdão desta Relação, de 30.06.2009[4], quanto à questão da entrega, o procedimento cautelar passou a constituir um procedimento abreviado ou simplificado de condenação definitiva.
No entanto, tal “condenação definitiva” confina-se à entrega do bem locado que, nos termos do citado preâmbulo, constitui o objecto comum da providência e da acção definitiva dispensada.
3.2. O argumento interpretativo resultante do confronto dos n.º 1 e 7 do artigo 21.º
Chegamos à mesma conclusão, numa segunda aproximação interpretativa, confrontando o n.º 1 com o n.º 7 do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 149/95 de 24 de Junho.
De acordo com o n.º 1 do citado normativo, para que o tribunal decrete a providência, o requerente, nada mais tem que alegar do que a cessação do contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem exercício do direito de compra, e a não restituição do bem.
Ora, sendo os elementos necessários à resolução definitiva do caso, prevista no n.º 7, os enunciados no n.º 1, do artigo 21.º, em coerência lógica teremos que concluir que a antecipação do juízo sobre a causa principal se deverá considerar como abrangendo apenas a entrega, a título definitivo, do bem locado[5].
Do confronto do n.º 1 com o n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95 de 24/6, se retira assim a conclusão de que se verifica, necessariamente, a identidade objectiva entre a providência e a causa principal hipotética.
É este o entendimento que transparece no acórdão citado do Tribunal Constitucional[6], onde se afirma que o legislador entendeu «ser de aproveitar o processo existente para conhecer da causa principal, na medida em que os elementos de facto nele conhecidos e as provas nele produzidas por ocasião da apreciação do pedido de tutela cautelar sejam potencialmente os mesmos a relevar para a prolação da decisão definitiva».
Em síntese: i) o requerente, como elementos constitutivos do seu direito, deve alegar a cessação do contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem exercício do direito de compra, bem como a omissão de entrega do bem, decorrendo como consequência lógica da prova indiciária dos pressupostos enunciados, o deferimento da providência de entrega do bem locado (é esse o exclusivo âmbito da providência); ii) na alegação e prova dos mesmos factos se baseia a antecipação do juízo sobre a causa principal, que, em consequência, apenas poderá ter como objecto a entrega (agora com carácter definitivo) do bem locado.
3.3. O argumento interpretativo teleológico
De acordo com o artigo 9.º do Código Civil, a “letra da lei” constitui ponto de partida e limite de toda a interpretação, mas a interpretação completa da norma carece de um trabalho de interligação e valoração, que apesar de condicionado pelo elemento literal, o transcende, aí intervindo uma metodologia, em que a lei manda considerar critérios de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica (art. 9/1 CC).
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma - ratio legis, no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que teve em vista e que pretende realizar[7]
O objectivo visado pela norma em apreço - elemento teleológico da interpretação – era o de obviar à propositura da acção declarativa, como forma de impedir a caducidade da providência de restituição do bem locado, prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 389.º do CPC (ex vi n.º 8 do artigo 21.º do DL 149/95 de 24/6).
É o que o legislador expressamente consignou no já citado preâmbulo do Decreto-Lei n.º 30/2008 de 25 de Fevereiro:
«[…] permite-se ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira […]»
Como se refere no acórdão desta Relação, anteriormente citado[8], o objecto da providência prevista no art.º 21 do DL 149/95 nada tem que ver com os créditos referentes a rendas em atraso ou juros «[…] pois o seu objecto restringe-se – como se viu - à mera recuperação do bem locado. A acção destinada à declaração e consequente condenação do locatário no pagamento dos aludidos créditos é independente do decretamento da providência. Esta, uma vez deferida, nunca caducaria pelo facto de a acção contra o locatário, visando o cumprimento dessas obrigações, não vir a dar entrada o prazo da alínea a) do nº 1 do art.º 389 do CPC, porquanto – simplesmente – nunca se encontrou na dependência de tal acção.»
O que o legislador visou, com esta “convolação” do procedimento cautelar em “juízo antecipado sobre a causa principal”, tendo em vista o objectivo de economia processual enunciado no preâmbulo do DL n.º 30/2008 de 25/2, foi o de converter em definitiva, uma decisão cautelar, provisória por natureza, de forma a evitar a interposição de uma nova acção com o mesmo objecto – pedido de condenação definitiva de entrega do bem locado – com o mero fim de confirmar a decisão cautelar e de impedir a sua caducidade[9].
Decorre do exposto, que o juízo definitivo sobre a causa principal se deverá restringir à questão da entrega do bem locado, porque, visando o legislador, exclusivamente, evitar “uma acção declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar”, como se refere no trecho do preâmbulo transcrito, tal acção teria como objecto apenas a entrega definitiva, porque só com esse objecto seria susceptível de alcançar o desiderato enunciado pelo legislador.
3.4. O caso em apreço
Regressando à apreciação da questão concreta que constitui o objecto do presente recurso, elege-se como particularmente relevante a tramitação processual que se sintetiza:
1) O requerente invoca a existência do contrato, o incumprimento por parte da sociedade requerida, a garantia prestada pelo requerido, as rendas em atraso e os juros devidos, concluindo com o pedido de “entrega judicial à requerente do equipamento identificado na artigo 1.º desta petição”, e na condenação solidária dos requeridos no pagamento das rendas e juros.
2) Procedeu-se à audiência de julgamento, com inquirição da testemunha indicada pela requerente, consignando-se em acta (fls. 76), os factos considerados indiciariamente provados.
3) Foi proferida decisão (fls. 80), com o seguinte teor:

«Pelo exposto, julga-se o presente procedimento cautelar procedente e ao abrigo do disposto no art. 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, determina-se a entrega à requerente o veículo de marca Toyota, com a matrícula 68-FL-95.

Mais se determina a notificação das partes para o disposto no art.º 21, n.º 7 do DL 149/95 de 24/06, na redacção conferida pelo DL 30/2008 de 21/02, para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem relativamente à requerida antecipação da decisão final sobre a questão em análise. Proceda-se à efectivação da entrega do veículo em causa à requerente.»
4) Os requeridos não se pronunciaram, tendo sido proferida decisão (fls. 96), com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, ao abrigo do estatuído no art. 21º, 7 do DL 149/95 de 24/06 (na redacção do DL 30/2008 de 25/02) antecipando o juízo sobre a causa principal condena-se a requerida a restituir o bem locado ao requerente.»
Nas conclusões de recurso, insurge-se o requerente contra a segunda decisão, afirmando que a antecipação do juízo sobre a causa principal “se consubstancia não apenas e unicamente na entrega ou restituição do veiculo, mas sim também no pagamento do que devido for”.
Concluímos nos pontos anteriores, que não lhe assiste razão, e que o juízo definitivo sobre a causa principal se deverá restringir à questão da entrega do bem locado, o que se traduz na coincidência entre o objecto da providência e o objecto do juízo antecipado da acção definitiva - entrega do bem locado, com carácter provisório na primeira decisão, tornado definitivo na segunda.
No mesmo sentido vai o Acórdão desta Relação, de 30.06.2009, já citado[10], onde se decidiu: «[…] a acção que o legislador de 2008 procurou eliminar foi apenas aquela que visa o reconhecimento do direito do locador à entrega do bem locado (com a correspondente condenação do locatário), seja quando esse direito se funda em resolução já comunicada, ou no mero decurso do prazo do contrato (sem que, entretanto, o locatário tenha exercido a opção de compra). Não foi, pois, seguramente, outra qualquer acção, nomeadamente a relativa à condenação do locatário na satisfação das quantias devidas por força do contrato, ou do seu eventual incumprimento.»
Também no mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 18.06.2009, proferido no Processo nº: 6446/2008[11], que confirmou a decisão de primeira instância com o seguinte dispositivo: «[..] mostra-se totalmente desprovida de fundamento legal qualquer outra pronúncia judicial que não se restrinja à referida entrega, tendo em conta, nomeadamente, a finalidade do procedimento cautelar e, bem assim, o direito cuja tutela se visou obter com a instauração do mesmo.»
Ainda no mesmo sentido vai o acórdão da Relação de Lisboa, de 28.09.2010[12], onde se conclui: «A possibilidade de, decretada a providência cautelar, ser antecipado o juízo sobre a causa principal respeita apenas àquilo que na providência se apreciou e julgou provisoriamente, ou seja, a imediata entrega do bem ao requerente, não podendo o tribunal emitir decisão sobre a indemnização pretendida.»
Em sentido divergente, veja-se o acórdão desta Relação, de 10.05.2011[13], onde se considerou não ser exigida “a identidade do objecto do procedimento e da causa principal”[14].
Com os fundamentos que se expuseram, sufragamos a tese jurisprudencial maioritária, considerando, em consequência, que a M.ª Juíza fez uma interpretação correcta do n.º 1 com o n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95 de 24/6, não merecendo qualquer censura a decisão recorrida.
Decorre do exposto a improcedência do recurso.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo Apelante.
                                                         *
O presente acórdão compõe-se de quinze folhas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
                                                          *
Coimbra, 6 de Setembro de 2011

Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Abrantes Geraldes, Temas da reforma de Processo Civil, III Volume, Almedina, página 41 e 42, estabelece a fronteira entre os conceitos de “providência” – traduzindo a pretensão de direito material (medida concretamente requerida ou deferida), e “procedimento” – traduzindo a vertente adjectiva ou procedimental, através da qual se realiza o direito cautelar.
[2] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos desta Relação, ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt: acórdão n.º 269/08.2TBSAT-A.C1, de 7.09.2010, e acórdão n.º 2275/10.8TBVIS.C1, de 10.05.2011. No mesmo sentido, veja-se Rui Pinto, in A questão de Mérito na Tutela Cautelar …, Coimbra Editora, 2009, págs. 134 a 142 e 593 a 595: “[…] o requerente est[á] dispensado da dupla tarefa de alegação e prova do periculum, ao abrigo […] do art. 21 do Dec. Lei 149/95, de 24/06. […]”. 
[3] Acórdão n.º 62/2010, proferido no Processo n.º 642/09, acessível em http://ww.dgsi.pt
[4] Proferido no Processo n.º 51/09.0TBALB-A.C1, acessível em http://www.dgsi.pt

[5] É a conclusão que resulta do facto de o legislador não exigir ao requerente da providência a alegação e prova sumária de outros factos para além da cessação do contrato e da não entrega do bem, tais como valores em dívida, juros, etc. Como se refere no acórdão do TC, citado (Acórdão n.º 62/2010, Proc. n.º 642/09), ‘A solução legislativa assenta na ideia de que a resolução definitiva da questão atinente à acção principal não demanda, por regra, a necessidade de outros elementos que não sejam os já ponderados para a prolação da decisão cautelar, apenas se impondo conceder às partes a possibilidade de proceder ao seu controlo, mediante a sua audição, momento este não concedível antes do decretamento da providência cautelar para não afectar a plenitude e efectividade da tutela cautelar do direito do locador’.

[6] Notas 4 e 5.
[7] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1987, pág. 182
[8] Proferido no Processo n.º 51/09.0TBALB-A.C1, acessível em http://www.dgsi.pt
[9] Na versão de Rui Pinto, in A Questão de Mérito na Tutela Cautelar (…), Coimbra Editora, 2009, págs. 700 e 701, quando a decisão proferida na acção definitiva confirma a decisão provisória (cautelar), os “efeitos da tutela cautelar (…) são ratificados ex post pela retroactividade” dessa decisão. O mesmo entendimento parece transparecer do acórdão do STJ, de 02/12/1993, proferido no Poc. 084480 (acessível em http://www.dgsi.pt, constando do seu sumário que a “medida provisória que se pretende deverá, pela procedência eventual da acção, consolidar-se definitivamente por efeito da decisão visada a definir na acção principal”.
[10] Proferido no Processo n.º 51/09.0TBALB-A.C1, acessível em http://www.dgsi.pt
[11] PDF elaborado pela Datajuris
[12] Proferido no Processo n.º 10096/09.4TBCSC-A.L1-7, acessível em http://www.dgsi.pt
[13] Proferido no Processo n.º 2275/10.8TBVIS.C1, acessível em http://www.dgsi.pt.
Também em sentido divergente vai o acórdão da Relação do Porto, de 3.11.2010, proferido no Processo 619/09.4TBMTS, cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 110, que não encontrámos publicado.
[14] No recurso em apreço apenas se apreciava a questão do indeferimento liminar da antecipação do juízo sobre a causa principal, tendo-se determinado a continuidade do procedimento, com a audição das partes sobre a causa principal, não estando directamente em questão o conteúdo do juízo antecipado.