Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
163/19.1GCCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: Privando a Sr.ª Juíza de Direito, de “muito perto”, no exercício das suas funções, e por via delas, com a pessoa que, tendo no mesmo “tribunal”, a posição de Escrivã Auxiliar, todos os dias vive, em conjugalidade, com o ofendido em determinado processo distribuído à Sr.ª Magistrada Judicial, à luz da concepção objectiva de imparcialidade, deve ser deferido o pedido de escusa.
Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.  RELATÓRIO

1. S., Juíza de Direito titular no Juízo Local Criminal de Cantanhede (Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra), veio suscitar o incidente de escusa, relativamente ao Pº (…), nos termos dos artigos 43.º a 45.º do Código de Processo Penal.
Requereu nos seguintes moldes:

A ora requerente exerce funções no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra Juízo Local Criminal de Cantanhede, na qualidade de titular, exercendo também funções como Escrivã Auxiliar deste Juízo Local Criminal, M..

No presente processo é ofendido A..

Conforme resulta da declaração de impedimento com a Refª (…) M. é casada com o ofendido.

De acordo com o disposto no artº 46º do Cód. Processo Penal competiria à ora requerente presidir à audiência de julgamento nos presentes autos.

Sucede que a ora requerente trabalha directamente com a mulher do ofendido, sendo Escrivã Auxiliar do Juízo em que se encontra colocada, tendo um contacto diário com a mesma, no âmbito das funções que cada uma desempenha neste Juízo Local Criminal.

É de salientar que, do ponto de vista subjectivo, a ora requerente não tem, nem teve qualquer relacionamento pessoal ou outro com qualquer um dos intervenientes, nomeadamente o ofendido, pessoa que não conhece, nem tem qualquer interesse pessoal ou outro no desfecho da causa.

De acordo com o disposto no artº 43º, nº 1 do Cód. Processo Penal, pode o Juiz solicitar ao tribunal competente que o escuse de intervir quando a sua intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Considera a ora requerente que a situação ora descrita, de forma objectiva, quer perante o arguido T. e demais intervenientes, quer perante o cidadão comum, pode, fundadamente, incutir a suspeita de falta de parcialidade da ora requerente, dado que trabalha directamente com a mulher do ofendido, que poderá ainda vir a ser arrolada como testemunha, com quem tem um contacto frequente no âmbito do local de trabalho, relacionamento esse que persiste e persistirá após a realização da audiência de julgamento.

Pelo exposto, requer que, analisada a situação e caso seja esse o entendimento do Venerando Tribunal da Relação, seja concedida à ora requerente, escusa de intervenção no Processo Comum Singular nº (…)».

2. O pedido de escusa mostra-se suficientemente instruído, pelo que não se revela necessária a produção de outras provas.

3. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


*

II. DO MÉRITO DO INCIDENTE
1. Estatui o art. 43.º do CPP:
«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º.

3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

(…)».

Por sua vez, adianta o art. 45.º, n.º 1, al. a) do citado diploma que «o requerimento de escusa deve ser apresentado, juntamente com os elementos em que fundamenta, perante o tribunal imediatamente superior».

No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado (cfr. art. 32.º, n.º 9 da CRP), o do juiz natural, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz que o deva segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.

Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos-limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu munus.

Subjacente ao instituto da recusa e da escusa, encontra-se a premente necessidade de preservar até ao possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça, em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num estado de direito democrático como o nosso, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.

Como decorre do teor literal do supra citado art. 43.º, n.º 1 do CPP, o juiz pode ser recusado ou pedir escusa quando a sua intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se, complementarmente, duas dimensões distintas de a abordar e compreender:
- a subjectiva e
- a objectiva.

MOURAZ LOPES (A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no processo penal Português, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 71 e ss) sustenta que «a imparcialidade evita as distorções decorrentes do preconceito e da busca do interesse próprio; o conhecimento e a capacidade de identificação garantem que as aspirações dos outros serão rigorosamente apreciadas (…). A necessidade de um juiz imparcial surge assim como a essência de um processo que se legitima a si próprio, num processo autopoiético (…). É no total alheamento dos interesses das partes envolvidas no pleito judicial que reside o cerne do princípio da imparcialidade (…)».

A assumpção das dimensões objectiva e subjectiva da imparcialidade, decorrentes do caminho jurisprudencial trilhado pelo TEDH, permite substancializar a vertente subjectiva da imparcialidade no sentido de determinar o que pensa o juiz que intervém num tribunal, no seu foro interior nessa circunstância e se ele esconde qualquer razão para favorecer alguma das partes[1].
No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real e se internamente tem algum motivo para o favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro.
Nesta perspectiva, impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário.

Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, relativamente à imparcialidade garantida no art. 6.º, § 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima.

Na dimensão objectiva, em que são relevantes as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser, numa fenomenologia de valoração entre o “ser” e o “dever ser”[2], intervêm, por regra, considerações formais (orgânicas e funcionais), ligadas ao desempenho processual do juiz (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas do processo), e «todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si», devendo «ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz».[3]

O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.

«A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».[4]

Assim, para que a recusa seja concedida, o prisma a que se tem de atender, no caso específico da recusa, não é o particular ponto de vista do requerente (isto é, a desconfiança que ele possa ter do juiz que vai julgar a causa), mas a situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade.

Por conseguinte, não relevam as meras suspeitas individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da recusa e o juiz, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal.

A propósito da previsão do n.º 2 do artigo 43.º, consta da «exposição de motivos» da Lei que introduziu tal norma (n.º 59/98, de 25 de Agosto):

“A introdução do novo n.º 2, «visa solucionar as dúvidas que se têm suscitado a propósito da intervenção do juiz de instrução no inquérito, as quais têm sido objecto de análise à luz do artigo 40.º. Esclarece-se a questão no sentido, decorrente, aliás, do regime vigente, de que a prática de actos isolados, como por exemplo os referidos nos artigos 268.º e 269.º, não devem constituir causa automática de impedimento – seguindo-se, nesta opção, o sentido da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, uma vez que só a decisão de pronunciar ou não pronunciar o arguido contende directamente com o objecto do processo, fixando, no caso de pronúncia, os limites do poder de cognição do tribunal de julgamento. A prática de tais actos, como tem vindo a ser reafirmado pela Doutrina, poderá, eventualmente, constituir motivo de suspeição, havendo sempre que avaliar as circunstâncias concretas da intervenção do juiz de instrução, a sua natureza e extensão, em ordem a preservar-se a garantia de imparcialidade e objectividade da decisão final associadas às exigências da eficácia de um processo justo e equitativo».

Na perspectiva subjectiva, importa fazer apelo a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao “homem médio” (“a reasonable person” do Supremo Tribunal canadiano), desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto,

O que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique”, no sentenciar do Tribunal Constitucional.

Além disso, para a procedência da escusa, não servem quaisquer razões, mesmo que penosas para o Juiz.

Aquela há-de assentar em razões fortes, a abalar aquela credibilidade de um ponto de vista da comunidade, “motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes[5], nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Abril de 2000 (in C.J. – Supremo Tribunal de Justiça – II, 244), “só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

Daí que, também nas causas de escusa, se deve recorrer a uma exegese restritiva, como o fez o legislador na previsão de fundamentos para o impedimento. Naturalmente que não se deve atender ao convencimento do Juiz requerente quanto, no caso, à sua capacidade para “vir a ser imparcial”.    



2. Impõe-se, portanto, apurar se há algo nos factos alegados pela Meritíssima Juíza que impeça que o julgamento a realizar surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial ou, de outra forma, se há uma especial relação estabelecida com os intervenientes no processo “que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade”.

                No nosso caso, invoca-se uma relação profissional muito estreita entre a Juíza que iria julgar um processo criminal e a mulher do ofendido nesses autos.

                O marido da Senhora Escrivã-auxiliar do juízo da Mª Juíza requerente é o ofendido no Pº em causa, estando o arguido T. acusado pelo MP da prática de um crime de ameaça e de um crime de ofensa à integridade física simples, por factos ocorridos em 11.10.2019, na Tocha, sobre a pessoa do referido ofendido, A..

O motivo exposto é muito paralelo ao que consta do douto Acórdão desta Relação de 2/2/2011 (Processo nº 13/11.7YRCBR.C1), que deferiu a escusa:

«Deve, ao invés, fazer-se apelo aos factos e circunstâncias objectivas invocadas. E estas, fazendo apelo ao homem médio inserido na comunidade em que a Meritíssima Juiz exerce a sua função são suficientes para a procedência da escusa.

É evidente que a intervenção futura da Meritíssima Juiz está, processualmente, rodeada de cautelas, o exercício da sua função não assenta no arbítrio e é sindicável.

Todavia, o relacionamento invocado pela exponente com a Sra. (…), funcionária judicial com quem convive socialmente, para lá do mero relacionamento institucional e profissional, pode e deve ser inserido no conceito de situações rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que o julgador deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, à luz de uma análise objectiva por quem está de fora do processo, nomeadamente, tendo em consideração que a acção de desenrola num meio populacional de reduzidas dimensões.                

O homem médio, há que enfatizar, não veria com bons olhos uma tal situação de proximidade entre aquela que julga e aquela que é julgada. Tal é cristalino!...

 A Justiça é um dos pilares de um Estado de Direito.

A imparcialidade dos juízes não pode ser colocada em causa, sob pena de nada ter sentido.

                Não há necessidade, em pleno século XXI, de colocar a Meritíssima Juiz numa situação de desconforto perante terceiros.                                        

                Diga-se que, caso permanecesse nos autos, tudo faria para julgar com imparcialidade. Dúvidas não fiquem no ar quanto a tal assunto.

                Porém, esse esforço, em caso de eventual absolvição da arguida, seria inglório, pois sempre poderia ser alvo de suspeições graves, face à ligação acima referida. À mulher de César…

                Ocorre, pois, no caso concreto, legítimo fundamento para a escusa requerida nos termos do artigo 43.º, do CPP».

Sabemos que o STJ tem sido muito restritivo na análise das causas que podem dar origem a escusas e recusas.

É verdade que não ignoramos que tem sido entendido que a existência de relações pessoais do juiz com os sujeitos processuais não constitui necessariamente motivo de suspeição.

                Já foi por esse Alto Tribunal decidido que «a relação de amizade entre o juiz titular do processo e o ofendido, também ele juiz, resultante de terem trabalhado juntos no mesmo tribunal, não é motivo para a escusa» (Ac. do STJ de 5/4/2000, in CJ-STJ, VIII, 1, 244).

Contudo, entendemos que as situações devem ser analisadas caso a caso, podendo uma certa invocada ligação profissional muito estreita ser mais do que suficiente para poder lançar na opinião pública a injusta suspeição sobre a figura da requerente como Juíza de Direito.

Acreditamos que seria capaz de ser imparcial.

Mas aqui devemos agir com a máxima das cautelas.

Trata-se de uma funcionária judicial que todos os dias abre conclusões à requerente, que com ela priva todos os dias no tribunal, discutindo procedimentos judiciários, cruzando-se ambas na sala de audiências, no gabinete da requerente, na casa de banho ou nas escadas do foro de Cantanhede, podendo até vir a ser arrolada como testemunha no dito julgamento.

Do lado da Julgadora, não estamos a falar de uma pessoa qualquer.

Aos olhos do arguido T., a juíza que a vai julgar faz parte da família do tribunal onde também trabalha a mulher do homem que o acusa da prática de crimes.

A animosidade entre o A. e o T. já vem de trás, segundo se percebe pela leitura da certidão que está a instruir este pedido.

A requerente priva de muito perto com a pessoa que todos os dias vive, em conjugalidade, com o ofendido dos autos.

Seria desconfortável para a requerente viver com a eterna suspeição de que qualquer decisão sua nesse processo teria sido condicionada pela relação profissional que vive com a dita M., sua funcionária.

Para os olhos do arguido T., poderia tudo resumir-se a um «conluio conspirativo» entre uma família chamada «Tribunal» (onde juíza e funcionária seriam sempre encaradas com um todo) e a sua pessoa.

E isso pode não cair bem ao «povo», em nome de quem a Mª Colega S. administra a justiça, o que seria fatalmente prejudicial para a sua imagem de futura julgadora, noutra causa qualquer, e, convenhamos, injusto e imerecido (acreditando nós, sublinhamo-lo outra vez, no seu potencial esforço de imparcialidade).

Por isso, e porque acreditamos no bom senso da requerente, na verdade das suas palavras e dos seus sentimentos, iremos deferir a escusa, esperando, assim, contribuir para menos um possível «incidente» num julgamento criminal que deve ter um desenrolar pacífico e escorreito, numa altura em que ventos de incompreensão e intolerância sopram sobre o Universo da Justiça, principalmente, a Criminal, e estando como estamos em tribunal «de província» onde tudo parece ampliado e o relativo parece absoluto.

III. Dispositivo

Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações, decidem os juízes da 5ª Secção – Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

Deferir o pedido de escusa requerido pela Exmª Senhora Drª S. no Processo Comum Singular com o nº (…), a correr termos no Juízo Local Criminal de Cantanhede (Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra), cujo julgamento deverá ser realizado pelo Mm.º juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-la [artigo 46.º do CPP]

Sem custas.

   Comunique de imediato, e via fax, ao respectivo processo, a fim de se poderem processar as substituições legais.

Comunique ao Exmº Juiz Presidente da Comarca de Coimbra.

Coimbra, 10 de Novembro de 2021

Paulo Guerra (relator)

Alexandra Guiné (adjunta)

Ana Carolina Cardoso (ajunta)


[1] Na feliz síntese de Henriques Gaspar (Ac. do STJ de 3/5/2006, proc. nº 05P3894, consultado no referido site do ITIJ), «na aproximação objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (…), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro íntimo do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz. (…) Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não tombar na “tirania das aparências” (…), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação – a garantia externa de uma boa justiça que seja mas também pareça ser».
[2] Cfr. Ac. do STJ de 13-04-2005, http://www.dgsi.pt/, proc. 05P1138.
[3] Idem, pág. 4.
[4] Ibidem, pág. 6.
[5] Prof. G. Marques da Silva, in Processo Penal, vol. I, p. 203, citando Costa Pimenta.