Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | HELENA MELO | ||
| Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE RECUSA DE CONCESSÃO DEFINITIVA DA EXONERAÇÃO ÓNUS DA PROVA PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE | ||
| Data do Acordão: | 05/30/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 243.º, N.º 1, ALÍNEA A), E 239.º, N.º 4, ALÍNEAS A) E C), DO CIRE | ||
| Sumário: | I – Embora a recusa de concessão da exoneração represente uma revogação da situação anterior (do despacho liminar do incidente ou do que o decide no fim), não deve confundir-se a cessação antecipada prevista no artº 243º, com a recusa final prevista no artº 244º (cujos requisitos são os mesmos) nem com a revogação prevista no artº 246º.
II – Para a recusa da exoneração, a lei não exige um prejuízo relevante (artº 246º), bastando-se com um prejuízo (artº 243º, nº 1, alínea a)). III – Na revogação, porque já houve uma concessão, o que significa que não se detetaram infrações, as exigências são mais elevadas do que para a recusa de concessão da exoneração, pois trata-se de revogar um efeito anterior, extintivo dos créditos, e de os reconstituir e repor em vigor. IV – A violação reiterada, ao longo dos anos 2017 a 2019, da obrigação da entrega dos rendimentos sujeitos à cessão, não tendo a insolvente entregue a quantia de 2.330,50 nem nos meses em que a deveria ter entregue, nem posteriormente, a falta de entrega dos documentos relativos aos seus rendimentos após 2019 e a falta de prova da situação de impossibilidade em que se diz encontrar, nomeadamente de desemprego, não permite concluir que não há elementos para se considerar que a devedora agiu com dolo, na modalidade de dolo eventual, ou pelo menos com grave negligência. V – De harmonia com regras da experiência e critérios sociais, a devedora não podia ignorar a sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e de entregar a documentação relativa aos seus rendimentos e situação profissional, persistindo nesse comportamento e sem que tenha apresentado qualquer justificação devidamente comprovada para o não ter feito, ao longo dos anos, pelo que se conformou com o resultado. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Relatora: Helena Melo 1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves 2.º Adjunto: Arlindo Oliveira Processo 653/16.8T8ACB.C1
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório AA veio requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, tendo sido declarada insolvente, por sentença datada de 17 de Março de 2016. Por despacho de 29.06.2016 foi decidido admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, fixando-se como rendimento indisponível o valor correspondente a um vez e meia o salário mínimo mensalmente garantido que a cada momento vigorar, por se considerar suficiente para o sustento digno da insolvente e do seu agregado familiar, ficando a insolvente, durante o período de cessão, sujeita às obrigações e condições previstas no artigo 239.º, n.º 4, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas. Foi no mesmo despacho nomeado como fiduciário, o Sr. Administrador da Insolvência BB, consignando-se que o prazo de cinco anos durante o qual a insolvente terá de entregar o rendimento disponível, iniciar-se-á após o encerramento do processo nos termos do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Por despacho de 15.02.2023 foi decidido “revogar” a exoneração do passivo restante. A insolvente não se conformou e veio interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações do seguinte modo: 43.[1] O douto despacho recorrido violou os pressupostos de aplicação do artigo 246º nº 1 do C.I.R.E., extraindo conclusões forçadas do comportamento da insolvente, as quais não objetivou nem fundamentou devidamente. 44. O incumprimento tout court das obrigações de cessão do rendimento disponível e de informação, por si só, não legitima a conclusão forçada de que esse incumprimento foi doloso, ao ponto de justificar a revogação do benefício da exoneração do passivo restante. 45. Não constam do processo elementos suficientes que permitam concluir que ao incumprimento, por parte da Insolvente, deverão ser acrescentados os elementos cognitivo e volitivo caraterísticos do dolo. 46. O incumprimento das obrigações acima referidas poderá ser meramente negligente e, como tal, não é suficiente para o preenchimento dos requisitos previstos no artigo 246º nº 1 do C.I.R.E. 47. Por outro lado, o prejuízo causado aos credores terá que ser relevante e essa relevância deverá decorrer, quer do montante que não foi cedido aos credores, quer do montante dos créditos reclamados e ainda da qualidade dos credores. 48. Ora, sendo os credores reclamantes instituições financeiras, ou agindo como tal, o montante não cedido de apenas €2.330,50 e cifrando-se os créditos reclamados em €35.739,89, não será possível caraterizar o prejuízo como relevante para os fins do artigo 246º nº 1 do C.I.R.E. 49. Deste modo, inexistem nos autos elementos que permitam apontar para um incumprimento leviano, irresponsável e doloso por parte da Insolvente, com caraterísticas de prevaricação. 50. Nem tão pouco se poderá extrair a conclusão de que o impacte do incumprimento na satisfação dos créditos reclamados seja de tal modo grave que se possa caraterizar como relevante para os fins do artigo 246º nº 1 do C.I.R.E. 51. Deste modo, deverão ser consideradas como forçadas as conclusões do douto despacho recorrido e de modo nenhum legitimadoras, à luz dos parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, da revogação do benefício da exoneração do passivo restante. 52. Pelas razões acima expendidas, deverá ainda considerar-se como inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade, decorrentes dos artigos 2º e 18º nº 2 da C.R.P., a dimensão interpretativa do artigo 246º nº 1 do C.I.R.E., quando interpretado no sentido de que o incumprimento tout court das obrigações do período de cessão é necessariamente doloso e causador de prejuízo relevante para a satisfação dos credores. 53. Assim, por violação do artigo 246º nº 1 do C.I.R.E., deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que defira a exoneração do passivo restante. Com o que se fará Justiça!
Não foram apresentadas contra-alegações.
II – Objeto do recurso Considerando as conclusões da apelação, as quais delimitam o objeto da apelação, decidir se deve ser proferida decisão final de exoneração do passivo restante.
III – Fundamentação Resulta dos autos a seguinte factualidade: . Por despacho de 29.06.2016 foi decidido admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, fixando-se como rendimento indisponível o valor correspondente a um vez e meia o salário mínimo mensalmente garantido que a cada momento vigorar, ficando a insolvente, durante o período de cessão, sujeita às obrigações e condições previstas no artigo 239.º, n.º 4, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas. . Foi no mesmo despacho nomeado como fiduciário, o Sr. Administrador da Insolvência BB, consignando-se que o prazo de cinco anos durante o qual a insolvente teria de entregar o rendimento disponível, iniciar-se-ia após o encerramento do processo nos termos do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. .Em 22.06.2017 foi ordenado o arquivamento do processo por insuficiência da massa insolvente e consignou-se que se iniciava nessa data o período de cessão, tendo a devedora sido notificada do despacho. . Em 04.12.2019, o fiduciário veio informar que não tinha logrado obter até à data documentação relativa à situação económica/laboral da devedora, porquanto a mesma veio novamente devolvida com a indicação “não atendeu”, pelo que requereu que fosse ordenada a notificação da devedora para vir remeter a documentação pretendida, nomeadamente recibos de vencimento relativos a 2017 e 2018 ou inscrição no centro de emprego, se fosse o caso. . Em 12.06.2019, o fiduciário informou que não conseguia obter informação da insolvente para elaborar o relatório a que alude o artº 240º do CIRE. .Em 10.12.2019 foi proferido o seguinte despacho: “Face ao expresso no relatório que antecede, determino que a devedora insolvente AA seja pessoalmente notificada, para esclarecer porque não prestou informação completa sobre os seus rendimentos ao Sr. Fiduciário, nem realizou todas as cedências do rendimento disponível e, bem assim, juntar aos autos prova documental dos rendimentos que tem vindo a auferir, ou da sua inscrição no Centro de Emprego (artigo 243.º do Cire), .Em 14.02.2020 a insolvente foi notificada na sua própria pessoa, numa nova morada – Rua ...-1ºDrt., ... .... . Em 29.07.2020 o Fiduciário juntou o seguinte relatório: “Relatório Anual de 2017 a 2020 (art.º 240.º do CIRE) 1. À data de declaração de insolvência a insolvente exercia as funções inerentes à categoria profissional de “ajudante de lar e centro de dia I” por conta da Santa Casa da Misericórdia ..., auferindo a remuneração mensal de € 665,00. 2. Por douta decisão judicial foi concedido o benefício da exoneração do passivo restante à devedora, tendo sido fixado como rendimento indisponível o montante equivalente a um salário mínimo nacional e meio o que atualmente corresponde a €952,50. 3. A devedora até à data não cedeu qualquer montante para a massa, considerando-se por não estar em condições de o fazer. 4. O fiduciário notificou a devedora para vir juntar informação/documentação relativa à sua situação económica/laboral atual. 5. A devedora não veio prestar qualquer informação quanto aos rendimentos por si auferidos, a fim de aferir o cumprimento do doutamente fixado no despacho de exoneração de passivo. Face ao exposto, Requer a V. Ex.ª se digne ordenar a notificação à devedora para vir remeter a documentação pretendida, nomeadamente recibos de vencimento relativos a 2017, 2018, 2019 e 2020 ou comprovativos de inscrição no centro de emprego, se for o caso, a fim de poder verificar se houve alguma alteração à situação económica/laboral da mesma e poder complementar o presentar relatório.” .Em 20.10.2020 foi proferido despacho ordenando a notificação pessoal da devedora para prestar as informações solicitadas pelo fiduciário. .Em 20.01.2021 o fiduciário veio apresentar novo relatório, relativo aos anos de 2017 a 2019, após ter recebido documentos da insolvente, onde consta, designadamente: Relatório Anual de 2017 a 2019 (art.º 240.º do CIRE) “A devedora veio remeter a documentação relativa à sua situação económica/laboral desde Julho de 2017 a Dezembro de 2019 que tem em sua posse (doc. 1 a 27) Compulsada a referida documentação, apurou-se que a sua situação se mantém inalterada desde a data da declaração de insolvência, ou seja, a mesma continua empregada auferindo uma retribuição de cerca de €700,00. Mais se constatou que o rendimento líquido da devedora não ultrapassou o montante doutamente fixado, à exceção dos meses em que a mesma auferiu os subsídios de férias e de natal pelo que deveria ter entregue à massa o remanescente auferido conforme melhor se verifica infra:”, apresentando um mapa e concluindo que “a devedora tem assim em divida à massa a quantia de €2.330,50 pelo que se notifica a mesma para vir regularizar a sua situação com a massa”. .Em 26.05.2021 foi proferido despacho determinando a notificação pessoal da insolvente para esclarecer porque não cedeu a totalidade do rendimento disponível (€ 2.330,50). .A notificação foi recusada com a indicação de que a notificanda já não residia na morada (15.07.2021). .Em 23.12.2021 o fiduciário juntou novo relatório anual com o seguinte teor: “Relatório Anual de 2020 e 2021 (art.º 240.º do CIRE) “(…) 3. A devedora até à data não cedeu qualquer montante para a massa, considerando-se por não estar em condições de o fazer. 4. O fiduciário notificou a devedora para vir juntar informação/documentação relativa à sua situação económica/laboral atual. 5. A devedora não veio prestar qualquer informação quanto aos rendimentos por si auferidos, a fim de aferir o cumprimento do doutamente fixado no despacho de exoneração de passivo. Face ao exposto, Requer a V. Ex.ª se digne ordenar a notificação à devedora para vir remeter a documentação pretendida, nomeadamente recibos de vencimento relativos aos anos de 2020 e 2021 ou comprovativos de inscrição no centro de emprego, se for o caso, a fim de poder verificar se houve alguma alteração à situação económica/laboral da mesma e poder complementar o presentar relatório.” . Em 02.03.2022 foi proferido despacho, determinando, designadamente que : “sob pena de vir a ser decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante por não cumprimento das obrigações que lhe foram impostas de fornecer ao Sr. Fiduciário as informações sobre os seus rendimentos e património e de cessão do rendimento disponível, notifique a devedora para, no prazo de 10 dias, fornecer ao Sr. Fiduciário os seguintes elementos: - Recibos de vencimento de Julho de 2020 a Junho de 2021; - Declaração de IRS e nota de liquidação do ano de 2020; - Caso se encontre desempregada, declaração ou outro documento emitido pela Segurança Social na qual conste a situação de desemprego, data do início, e valor que recebe de Subsídio de Desemprego ou de Rendimento Social de Inserção.” . Em 06.04.2022 o fiduciário informou que não tem elementos para elaborar o relatório. .Em 22.04.2022 o fiduciário elaborou novo relatório onde informou que as quantias que deveriam ter sido entregues permaneciam por pagar e, tendo a devedora sido notificada para prestar informações, não tinha até àquele momento juntado a necessária documentação, apesar de diversas insistências, pelo que entendia que a insolvente não estava a cumprir com as suas obrigações inerentes à exoneração do passivo restante. .Em 26.04.2022 a insolvente veio pugnar pela concessão definitiva do benefício alegando que os seus “rendimentos não atingiram o patamar do rendimento indisponível ou que não consegue mesmo auferir rendimentos pela situação de desemprego gerada pela idade já um pouco avançada. 10. A Devedora trabalhou em casas de repouso para idosos, mas a situação instável e precária dos empregos nunca lhe permitiu nem fazer qualquer cessão nem tão pouco assegurar dignamente o seu sustento. 11. Não se verificam, portanto, os pressupostos da revogação da exoneração do passivo restante já concedida.” .Em 11.05.2022 o fiduciário veio informar que notificou o Ilustre Mandatário da devedora para vir remeter documentação atualizada da mesma relativa aos anos de 2020 a Abril de 2022, pelo que aguardava a remessa da mesma. .Em 06.06.2022 foi junto pelo fiduciário o relatório relativo aos anos de 2021 e 2022, onde informou, nomeadamente, o seguinte: “2. Por douta decisão judicial foi concedido o benefício da exoneração do passivo restante à devedora, tendo sido fixado como rendimento indisponível o montante equivalente a um salário mínimo nacional e meio o que atualmente corresponde a €1.057,50. 3. À data de elaboração do relatório relativo aos anos de 2017 a 2019 pôde constatar-se que a devedora tinha montantes em divida à massa. 4. Nessa sequência foi aquela notificada para vir regularizar a sua situação com a massa sendo certo que até à presente data o ora signatário não logrou obter qualquer comprovativo de transferência. 5. A fim de prestar informações atualizadas nos autos, foi a insolvente notificada para vir remeter documentação relativa à sua situação económica/laboral. 6. Apesar das diversas insistências o certo é que a mesma não remeteu qualquer documentação nem prestou informações quanto ao pretendido. 7. A devedora está assim a incumprir com as obrigações a que está sujeita em sede de exoneração do passivo, nomeadamente a prestar informações que lhe são solicitadas bem como a entregar o remanescente auferido.” .Em 08.06.2022 o fiduciário veio juntar o parecer a que alude o artº 244º do CIRE, onde fez constar, designadamente, que: “IV – Mais se constatou que desde o início da cessão em Julho de 2017 até Dezembro de 2019 a devedora deveria ter cedido o montante de €2.230,50. V – A devedora foi notificada para regularizar a sua situação com a massa sendo certo que até à data não cedeu qualquer valor. VI – Foi ainda notificada para proceder à entrega de documentação relativa à sua situação económica/laboral atual sendo certo que apesar das diversas notificações aquela nunca remeter qualquer informação.” . E face ao que considerou constituir incumprimento dos seus deveres pela insolvente, emitiu parecer no sentido de não ser concedido a exoneração do passivo restante. .Em 30.06.2022 foi proferido despacho ordenando a notificação da devedora e dos credores da insolvência para se pronunciarem sobre a exoneração do passivo restante ou de requererem a prorrogação do período de cessão para efeitos de pagamento faseado das quantias em falta, nos termos do art. 242.º A do CIRE. .Em 01.07.2022 a apelante respondeu, referindo renovar o seu requerimento de 26.04.2022. .Em 2.12.2022 foi proferido o seguinte despacho: Notifique o Sr. Fiduciário para vir esclarecer se a devedora prestou as informações necessárias para que pudesse elaborar os relatórios anuais referentes aos 3.º, 4.º, e 5.º anos do período de cessão, ou seja, se forneceu os seguintes elementos: - Recibos de vencimento de Janeiro de 2020 a Março de 2022; - Declarações de IRS e notas de liquidação dos anos de 2019, 2020, e 2021; - Declaração ou outro documento emitido pela Segurança Social na qual conste a situação de desemprego, data do início, e valor que recebe de Subsídio de Desemprego ou de Rendimento Social de Inserção. Notifique. .Em 16.12.2022 o sr. AE informou que a devedora não tinha dado quaisquer informações. .Em 15.02.2023 foi proferido o despacho recorrido. Apreciando: Na decisão recorrida refere-se que se revoga a concessão da exoneração do passivo restante. A revogação da exoneração só se verifica depois desta já ter sido concedida nos termos do artº 244º do CIRE (diploma a que se referem todos os preceitos legais que forem citados sem indicação da fonte), sendo que apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito (artº 246º, nº 2). A exoneração será revogada, provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência. A revogação exige o prejuízo relevante, o que não se verifica na recusa da exoneração, exigindo a lei, apenas, que prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência (artº 243º, nº 1, alínea a). A decisão recorrida menciona que se revoga a exoneração, mas não se expressou corretamente. O que se verificou foi a recusa da concessão definitiva da exoneração. A exoneração tem vários momentos – a admissão liminar (artº 239º), o período de cessão e decorrido este a decisão sobre a concessão (ou não) – artº 244º. Não tendo sido até ao despacho recorrido, concedida a exoneração, a mesma não poderia ser revogada, pois a revogação tem como pressuposto a prévia prolação de uma decisão final de concessão, que não existe, existindo apenas a admissão liminar do pedido de exoneração. Embora a recusa de concessão da exoneração represente uma revogação da situação anterior (do despacho liminar do incidente ou do que o decide no fim) não deve, confundir-se a cessação antecipada prevista no artº 243º, com a recusa final prevista no artº 244º (cujos requisitos são os mesmos) nem com a revogação prevista no artº 246º (que impõe que a violação das obrigações do devedor durante a cessão seja dolosa e que o prejuízo seja relevante). Decorrido o período de cessão, o juiz apenas pode recusar a exoneração do passivo restante nas três situações previstas no n.º 1 do art. 243º,isto é, quando se prove que: a) o devedor dolosamente ou com grave negligência violou alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do art. 238º, se apenas tiver sido conhecida pelo tribunal após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; ou c) a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência. No caso está em causa a violação dos deveres a que a devedora estava adstrita, de informar o fiduciário dos seus rendimentos e da sua situação profissional e de entregar ao fiduciário as quantias que excederam a quantia subtraída à cessão – artº 243º, nº 1, alínea a) e 239, nº 4, alíneas a) e c). O ónus da prova dos factos integrativos dos fundamentos de recusa da exoneração, não recai sobre o devedor, ou seja, não é o devedor/insolvente que tem de provar factos dos quais decorra não se encontrarem preenchidos os fundamentos de recusa da exoneração, mas antes são o fiduciário e/ou os credores que, uma vez ouvidos no termo do período de cessão, sobre a concessão ou não da exoneração ao devedor (n.º 1 do art. 244º do CIRE), terão de alegar e provar factos demonstrativos do preenchimentos dos requisitos constitutivos dos fundamentos de recusa da exoneração ou, no silêncio destes, é o tribunal que terá de coligir elementos de prova que lhe permitam concluir pela prova do preenchimento desses requisitos constitutivos dos fundamentos de recusa da exoneração do passivo restante (cfr. se defende no Ac. do TRG de 11.05.2010. proc. 1565/14.5TTBGMR.G1, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte). Neste sentido se tem pronunciado a generalidade da jurisprudência[2]. E, quer em sede de cessação antecipada do procedimento de exoneração, quer em sede de decisão final da exoneração, não faria sentido sustentar posição divergente, colocando a cargo dos devedores o ónus da prova. Como se afigura entendimento maioritário, para que seja recusada a exoneração do passivo restante, com base na violação da condição prevista no artº 239º, nº 4, al. c), a não entrega ao fiduciário dos rendimentos objeto de cessão, só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do nº 1, a), do art.º 243º do mesmo Código, sendo exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência (cfr. se defende no Ac. do TRE de 26.01.2017, proc . 978/12.1TBSTR.E1 e no Ac. do STJ de 9.04.2019, proc. 279/13.8TBPCV.S2).
Como se refere no Acórdão do TRC, de 03-06-2014, 747/11.6TBTNV-J.C1, “…na ausência de qualquer distinguo, é relevante qualquer modalidade de dolo. O dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo. O insolvente atua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente atua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta. Além disso, o insolvente só atua dolosamente quando se decida pela atuação contrária ao direito. Se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo direto; se essa violação não é diretamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é diretamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.”.
E a propósito da mera culpa ou negligência, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 09-06-2010, proc. 579/09.1YFLSB: “I - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objetivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente). II - A negligência também pode assumir diferentes graus, em função da ilicitude e da culpa: será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente teria observado; será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria também incorrido. III - Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. IV - A “negligência grosseira” deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstrato de conduta.”
Considerou-se também no Acórdão do TRG, de 11-10-2018, proc. 3695/12.9TBGMR.G1 que: “a negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo. São estes comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade de se libertar de alguma das suas dívidas, e assim, conseguir a reabilitação económica.”.
O fiduciário, ao longo dos anos, foi pedindo à devedora que lhe entregasse a informação necessária para elaborar o relatório e só obteve informação, relativa aos anos de 2017 a 2019, e ainda assim, tardiamente, pelo que só no relatório anual de 2021 fez menção às importâncias que deveriam ter sido entregues entre 2017 e 2019 e não o foram e já não conseguiu obter quaisquer elementos relativos aos anos subsequente a 2019. O Tribunal chegou até a advertir a apelante que a falta de cumprimento dos deveres, poderia inclusive conduzir à cessação antecipada da revogação – despacho de 02.03.2022 e ainda assim, a apelante não juntou os documentos solicitados. Ora, a apelante não podia desconhecer que não estava a entregar os rendimentos sujeitos à cessão e que estava a incumprir os seus deveres. Se a apelante teve despesas que surgiram posteriormente, para o pagamento das quais necessitou do montante que deveria ceder, poderia ter requerido o aumento do montante subtraído à cessão, nos termos do artº 239º, nº 3º, iii) o qual seria certamente concedido, se comprovasse o aumento das despesas. Note-se que em 26.04.2022, depois de ter sido notificada de que a exoneração poderia cessar antecipadamente, a apelante vem invocar a sua impossibilidade para cumprir, designadamente por estar desempregada, mas sem juntar qualquer prova. A violação reiterada, ao longo dos anos 2017 a 2019, da obrigação da entrega dos rendimentos sujeitos à cessão, não tendo entregue a quantia de 2.330,50 nem nos meses em que a deveria ter entregue, nem posteriormente, a falta de entrega dos documentos relativos aos seus rendimentos após 2019 e a falta de prova da situação de impossibilidade em que se diz encontrar, nomeadamente de desemprego, não permite concluir que não há elementos para se considerar que a devedora agiu com dolo, na modalidade de dolo eventual, ou pelo menos com grave negligência. De harmonia com regras da experiência e critérios sociais, a devedora não podia ignorar a sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e de entregar a documentação relativa aos seus rendimentos e situação profissional, persistindo nesse comportamento e sem que tenham apresentado qualquer justificação devidamente comprovada para o não ter feito, ao longo dos anos, pelo que se conformou com o resultado. A concessão da exoneração do passivo restante é uma medida excecional, permitindo aos devedores recomeçar uma vida nova, livres do passivo que sobre si pesava, mas apenas desde que satisfeitos os condicionalismos legais. Não se desconhece que o montante subtraído à cessão não é elevado e que a devedora teria de fazer sacrifícios, ao longo do período de cessão, para cumprir a obrigação de entrega do montante que excedesse o rendimento indisponível. Mas essa é a contrapartida para, sempre com a salvaguarda do seu sustento com dignidade, no final do período de exoneração, poder iniciar um novo capítulo de vida liberta de dívidas (com exceção das que não são abrangidas pela exoneração, mencionadas no artº 245º, nº 2 do CIRE). E como se referiu já para a não concessão da exoneração, a lei não exige um prejuízo relevante (artº 246º), bastando-se com um prejuízo (artº 243º, nº 1, alínea a)). Compreende-se que, para a revogação, tendo já havido uma concessão por, até esta ser proferida, não se terem detetado infrações, as exigências sejam mais elevadas: trata-se, afinal, de revogar um efeito anterior, extintivo dos créditos, e de os reconstituir e repor em vigor, contrariando, embora com acolhimento legal, uma decisão transitada. Com a sua conduta a apelante incumpriu o disposto na alínea c) do nº 4 do artº 239º e igualmente incumpriu o disposto na alínea a), ao não remeter documentos relativos aos seus rendimentos, após 2019 e, caso esteja desempregada como alega, mas não provou, então deveria ter demonstrado as diligências que realizou para tentar obter novo emprego, como exige a alínea d) do mesmo nº 4. A não entrega de qualquer quantia prejudica os credores que nada receberão, havendo nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo. A não entrega da documentação necessária para aferir os rendimentos auferidos e se é devido qualquer montante, frusta o próprio propósito da cessão. A apelante vem alegar que deverá ainda considerar-se como inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade, decorrentes dos artigos 2º e 18º nº 2 da C.R.P., a dimensão interpretativa do artigo 246º nº 1, quando interpretado no sentido de que o incumprimento tout court das obrigações do período de cessão é necessariamente doloso e causador de prejuízo relevante para a satisfação dos credores. O princípio proporcionalidade é um dos parâmetros de constitucionalidade mais frequentemente mobilizados como fundamento de um juízo de desconformidade com a Constituição, apelando-se com frequência ao princípio da proporcionalidade como fundamento de juízos de inconstitucionalidade, quer combinado com outros princípios fundamentais do Estado de direito – como o princípio da igualdade ou o princípio da proteção da confiança – quer associado à avaliação de uma medida afetadora de direitos fundamentais[3]. “A proporcionalidade (entendida em sentido amplo) é, pois, considerada como princípio geral de limitação da atividade do poder público – quer no que respeita à concretização de princípios jurídicos (como a subsidiariedade), quer quanto a medidas restritivas de direitos fundamentais – assumindo uma relevância crescente no plano da jurisprudência constitucional comparada, incluindo na jurisprudência dos tribunais supranacionais, como o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) ou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)”[4]. Tendo se concluído pela existência de, no mínimo, dolo eventual ou negligência grosseira no incumprimento dos deveres a que a apelante estava adstrita, incumprimento que, aliás, não nega, não se vislumbra qualquer violação dos princípios constitucionais invocados. A decisão recorrida é, pois, de manter.
Sumário: (…).
IV – Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª secção em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, recusando a concessão final da exoneração do passivo restante à insolvente. Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie. Not. Coimbra, 30 de maio de 2023 [1] As conclusões da apelante iniciam-se no ponto 43, constituindo os pontos antecedentes o corpo alegatório do seu recurso. [2] Entre outros, Acs. do STJ. de 09/04/2019, Proc. 279/13.8TBPCV.C1.S2; do TRG. de 30/01/2020, Proc. 644/13.TBVVD.G2; de 14/06/2018, Proc. 4706/15.1T8V.G1 e do TRP. de 14/07/2020, Proc. 6127/10.3TBVFR.P1. [3] Cfr. Mariana Canotilho “O princípio constitucional da proporcionalidade e o seu lugar na metódica constitucional – breves apontamentos a propósito da metáfora da balança” p.12, in “O princípio da proporcionalidade” - xiii encontro de professores de direito público, acessível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/95784/3/Principio_Proporcionalidade_ebook.pdf. [4] Extrato retirado do texto citado, pág. 12. |