Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
25/07.5IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE FRUSTRAÇÃO DE CRÉDITOS
ELEMENTOS TÍPICOS
Data do Acordão: 01/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 88º DO RGIT
Sumário: O crime de frustração de créditos é um crime doloso, porquanto se exige o conhecimento da existência de tributo já liquidado ou em processo de liquidação ou de dívida às instituições de segurança social, e a intenção de frustrar total ou parcialmente o crédito tributário (componente representativa de dolo específico).
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. Nos autos de processo comum singular n.º 25/07.5IDCBR do Tribunal Judicial da Lousã, foram submetidos a julgamento, em processo comum com intervenção de tribunal singular, os arguidos:

- V…, Lda., com o n.º de Pessoa Colectiva ……, com sede no Bairro ……., em Miranda do Corvo;

 - C..., casado, aposentado, nascido em Ansião, residente no Bairro …, Miranda do Corvo, e

 - F..., solteiro, empresário, residente no Bairro …., em Miranda do Corvo,

pronunciados nos seguintes termos:

Os dois primeiros arguidos, pela prática de:

- um crime de abuso de confiança fiscal p. p. pelo art. 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho;

- um crime de frustração de créditos p. p. pelo art. 88.º do RGIT;

- uma contra-ordenação fiscal, p. p. pelo art. 113.º, n.º 1 do RGIT;

- uma contra-ordenação fiscal, p. p. pelo art. 113.º do Código do IRC e 116.º do RGIT; e

- uma contra-ordenação fiscal p. p. pelos arts. 109.º e 112.º do Código do IRC e 116.º do RGIT,

respondendo a primeira arguida ao abrigo dos arts. 7.º, n.º 1, do RGIT e 11.º do Código Penal;

O terceiro arguido, pela prática, em co-autoria material, de um crime de frustração de créditos p. p. pelo art. 88.º do RGIT.


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2. Por sentença de 8 de Julho de 2009, o tribunal proferiu decisão do seguinte teor:

- Absolveu os arguidos V…, Lda. e C... da prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. p. pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, de que estavam pronunciados;

- Absolveu o arguido C... da prática da contra-ordenação p. p. pelos arts 113.º, n.º 1, do RGIT; da prática da contra-ordenação p. p. pelos arts. 113.º do CIRC e 116.º do RGIT; e da prática da contra-ordenação p. p. pelos arts. 109.º e 112.º do CIRC e 116.º do RGIT;

- Condenou o arguido C..., pela prática de um crime de frustração de créditos p. p. pelo art. 88.º, n.º 1, do RGIT, na pena de seis meses de prisão;

- Condenou o arguido F..., pela prática de um crime de frustração de créditos p. p. pelo art. 88.º, n.º 1, do RGIT, na pena de dois meses de prisão;

- Condenou a arguida V…., Lda., pela prática de um crime de frustração de créditos p. p. pelo art. 88.º, n.º 1, do RGIT, na pena de 120 (cento e vinte dias) de multa, à razão diária de € 15 (quinze euros);

- Condenou a arguida V…, Lda., pela prática de uma contra-ordenação p. p. pelos arts. 114.º, n.º 1, do RGIT, na forma continuada, na coima de € 8.000,00; pela prática de uma contra-ordenação p. p. pelo art. 113.º, n.º 1, do RGIT, na coima de € 300,00; pela prática da contra-ordenação p. p. pelos arts. 113.º do CIRC e 116.º do RGIT, na coima de € 500,00; e pela prática da contra-ordenação p. p. pelos arts 109.º e 112.º do CIRC e 116.º do RGIT, na coima de € 500,00;

- Em cúmulo Jurídico, condenou a sociedade arguida na coima única de € 8.325,00.

- Suspendeu, por um ano, as penas de prisão aplicadas aos arguidos C... e F..., subordinando-se tal suspensão à condição de os arguidos diligenciarem pelo cumprimento atempado de todas as obrigações fiscais da arguida V…,lda e da firma F... Unipessoal, bem como de qualquer outra de que venham a ser gerentes, de facto ou de direito, que se vencerem a partir do terceiro mês posterior ao trânsito em julgado da sentença, inclusive.

- Determinou a não transcrição da presente sentença nos Certificados a que aludem os arts 11.º e 12.º da Lei 57/98, de 18.08, no que toca ao arguido F....


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3. Por requerimento a fls. 629 (posteriormente rectificado, conforme fls. 665), o arguido F… interpôs recurso da sentença, concluindo a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – Nos presentes autos foi proferido acórdão condenatório contra o ora recorrente, sendo-lhe aplicada uma pena de dois meses de prisão, pela prática de um crime de frustração de créditos, p. p. pelo artigo 88.º, n.º 1, do RGIT. Contudo, não pode o arguido conformar-se com a sua aplicação.

2.ª – O Tribunal a quo deu como provado o alegado nos pontos 17, 18, 19, 21 e 31, sem que houvesse qualquer prova que o sustentasse.

3.ª – Com efeito, nos pontos 17, 19 e 21, o Tribunal a quo dá como provado que o ora arguido tinha conhecimento de toda a actividade comercial do seu pai, e que representou o alegado desiderato que o arguido C...pretendia alcançar com a criação da firma F… .

4.ª – Porém, no decorrer da audiência de discussão e julgamento, nenhuma prova foi feita que sustente tais afirmações, nenhum prova foi feita sobre o conhecimento dos factos pelo ora recorrente.

5.ª – Bem pelo contrário, houve prova produzida no sentido inverso, no sentido de fundamentar a falta de conhecimento por parte do recorrente de toda a situação financeira que rodeava as empresas do pai e a sua própria firma.

6.ª – A testemunha T..., que o Tribunal a quo classificou como credível, classificou a intervenção do ora recorrente na sua firma como um mero empregado; afirmou que todas as tentativas de falar com ele sobre a situação fiscal da sua firma deparavam com o desconhecimento da parte do recorrente que remetia para o pai.

7.ª – A mesma testemunha afirmou que o ora arguido não tinha conhecimento sequer das transmissões referidas no ponto 19 da matéria de facto dada como provada. Nem tão pouco se logrou provar tal facto por prova documental, visto que a assinatura que consta das facturas de compra dos referidos bens é claramente forjada, como resulta não só da mera observação dos documentos, mas também do testemunho prestado pelo recorrente.

8.ª – O Tribunal a quo admitiu como assentes factos que não resultam, de todo, da prova produzida, maxime, da prova que indica como relevante para a formação da sua convicção, revelando a assunção de um pré-juízo da culpabilidade do ora recorrente, em claro atropelo do mais basilar princípio do Direito Processual Penal Português – In Dubio Pro Reo.

9.ª – Não foi assim feita prova do conhecimento por parte do arguido dos factos dados como provados nos pontos 17, 19 e 21, limitando-se o Tribunal a quo a constatar o facto de o recorrente ser gerente de direito da sua unipessoal para daí presumir que tinha conhecimento de todos os factos.

10.ª – Na verdade, mesmo que se admita que o ora recorrente, enquanto gerente de direito da F..., teria o dever de se inteirar da vida económica da sua firma, a verdade é que tal imputação apenas poderia ser feita a título de negligência, e uma vez que o tipo de crime de abuso de confiança exige uma culpa dolosa, nunca o ora recorrente poderia ser condenado por esta via.

11.ª – Quanto aos factos dados como provados no ponto 31, mais uma vez, nenhuma prova é feita nesse sentido, fundamentando apenas o Tribunal a quo tais factos na circunstância de o ora recorrente viver com os pais e, por isso, ter obrigatoriamente conhecimento das dívidas, processos de execução fiscal, e do desiderato do pai ao solicitar-lhe que se colectasse.

12.ª – Não há mais uma vez qualquer fundamento para o alegado; com efeito, ainda que se admita que o recorrente pudesse ter conhecimento de que o seu pai tinha dívidas fiscais e, inclusivamente, processos crime pelas mesmas, daí a afirmar que ele tinha conhecimento do suposto plano traçado pelo seu pai, e que corroborou em prestar o seu auxílio, vai um grande salto de lógica, sem base em qualquer elemento probatório, que não é admitido em direito penal.

13.ª – Mesmo no tocante à própria existência de crime de frustração de créditos por parte de C... e V…Lda, também não foi, salvo melhor opinião, feita qualquer prova nesse sentido. Pelo que também por esta via, nunca poderia o ora recorrente ser condenado pela prática de um crime de frustração de créditos.

14.ª – No acórdão ora em crise, é descrito um cenário de infracção generalizada e um plano elaborado no sentido de lesar os interesses patrimoniais do Estado. Diz-se que os arguidos agiram em conluio, sendo que a F...foi criada, sem existências iniciais, vendendo apenas bens da V…lda, sem que possuísse sequer documento de compra para os mesmos. Criando assim uma empresa nova, com o único objectivo de esvaziar a V… de bens. V... que por sua vez já não fazia compras nem vendas, limitando-se a transferir as suas existências para a nova firma.

15.ª – Contudo, a esta versão, que resulta da motivação do douto acórdão, contrapõe-se aquela que resulta da prova produzida. Com efeito, a F...adquiriu mais de 200.00,00 € em material, entre Fevereiro a Setembro de 2004, conforme documentos juntos a fls. 86 e seguintes e fls. 270 a 283, pelo que é falso que esta não tivesse outro imobilizado que não aquele que pertencera à V.... Por outro lado, toda as aquisições feitas à V... se encontram devidamente documentadas pelas facturas juntas aos autos, fls. 137 a 185.

16.ª – Por outro lado, a V... tinha um objecto de negócio diferente, vendendo a grosso e não a retalho. Nesse sentido a sua venda à F...inseriu-se no seu objecto normal de negócio, tanto mais que a V... continuou a exercer plenamente a sua actividade, não só vendendo, mas também adquirindo material em quantidades significativas, como resulta do depoimento da testemunha António Duarte.

17.ª – Por fim, não se logra entender ainda como pôde ter sido dado como provada a existência de um crime de frustração de créditos, na medida em que já no ano de 2006 foi feita uma penhora de valor superior a 236.000,00 € à V.... Ora, se houvesse efectivamente, já em 2004, uma dissipação de bens, com o objectivo de frustrar a cobrança dos créditos pela A.T., dos anos seriam mais que suficientes para que a V... delapidasse todo o seu património se esses fossem verdadeiramente os seus intentos.

18.ª – Não se provou que o ora recorrente alguma vez tenha exercido a gerência de facto da firma F....

19.ª – Nenhum dos factos dados como provados supra enunciados, nem os motivos determinantes para a formação da convicção do Tribunal quanto à responsabilidade penal do recorrente, têm suporte na prova produzida em audiência de julgamento; o ora recorrente deveria ter sido absolvido da prática dos mesmos.

20.ª – Assim, o Tribunal a quo incorreu no vício consignado na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, decorrente da assunção de um juízo prejudicial ao recorrente em ostensiva violação do princípio in dubio pro reo.

Do direito:

21.ª – Incorreu o Tribunal a quo num erro de qualificação jurídica dos factos dados como provados, ao punir o ora recorrente com fundamento no disposto no n.º 1 do artigo 88.º do RGIT. Com efeito, esta norma destina-se ao comportamento daquele agente que para frustrar o pagamento das suas dívidas fiscais, aliena, esconde ou dissipa os seus bens. Nada disso foi sequer imputado ao ora arguido.

22.ª – Com efeito, a ser aplicada uma pena ao ora arguido só o poderia ser, recorrendo ao número 2 do mesmo artigo, com as necessárias consequências em termos de medida da pena, dado que a moldura penal abstractamente aplicada a este crime é sensivelmente inferior à do número 1.

23.ª – E por outro lado, teremos de concluir que as exigências para que o tipo deste crime se mostre preenchido serão necessariamente mais exigentes. Na verdade, se quem dissipa os seus bens para frustrar dívidas fiscais tem obviamente a consciência do que está a fazer, porque ele sabe os bens que tem e as dívidas que tem e só com base nestes pressupostos se pode assumir que agiu de forma a lograr a efectiva frustração de créditos.

24.ª – Já no que diz respeito ao número dois, quem simplesmente outorga em factos, ajudando o detentor dos bens e das dívidas a lograr o seu desiderato, não tem conhecimento da situação em que se encontra quem vende, não sabe se tem ou não bens para garantir a dívida, não sabe inclusivamente se tem dívida.

25.ª – Assim, necessariamente terá de se provar que quem outorgou nos actos referidos no número 2 do artigo 88.º do RGIT sabia da intenção do vendedor, aceitou participar no plano delineado, consciente e dolosamente, teve um verdadeiro animus delicti. Nada disto se mostrou provado nos presentes autos, pelo que deveria o ora recorrente ter sido absolvido.

26.ª – Por fim, sem prescindir do que acaba de se expor e por mero dever de patrocínio, entendemos que, a ser aplicada uma pena ao ora arguido, esta deverá ser de multa, e nunca de prisão. Isto porque o recorrente é primário e a ter agido, fê-lo sob clara influência de seu pai, pelo que a sua culpa nunca poderia ser qualificada de forma mais gravosa do que dolo eventual. Assim, tendo em conta a moldura penal deste crime, que admite pena de multa, e ainda o critério geral estabelecido no artigo 70.º do CP, entendemos que uma pena de multa se mostra adequada em termos de prevenção geral e especial.

27.ª – O Tribunal a quo demitiu-se de proceder a uma justa e correcta ponderação das circunstâncias que se contrapunham à severa penalização com prisão do arguido, desrespeitando, nos termos anteriormente alegados, a consignado no artigo 71.º do Código Penal.

28.ª – Por todo o alegado supra, imperativo resulta que o Tribunal ad quem afira da arbitrariedade da decisão proferida, claramente violadora dos critérios legais impostos ao julgador na valoração da prova.

29.ª – Porquanto, ao inexistir correspondência lógica entre os factos dados como provados e a prova produzida, o Tribunal a quo ultrapassa os limites impostos pela Lei Penal na valoração da prova, violando assim o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

30.ª – Sendo certo que, sempre que o julgador tenha dúvidas quanto à verificação ou não de determinado facto deverá decidir no sentido mais favorável ao arguido, homenageando o princípio in dubio pro reo. E do já alegado, no presente caso, a dúvida resulta.

31.ª – O desrespeito, pelo Tribunal, do princípio in dubio pro reo constitui uma frontal violação do artigo 32.º, n.º 2 da Lei Fundamental.

Termos em que, e nos que V. Ex.as superiormente suprirão, deverá o presente recurso merecer integral provimento, determinando, em consequência:

a) A revogação da matéria de facto casuisticamente impugnada;

b) A absolvição do aqui recorrente da prática do crime de frustração de créditos pelo qual foi indevidamente condenado;

c) Caso assim se não entenda, deverá a pena em concreto ser reduzida, dada a errónea qualificação dos factos, e da menor moldura penal do tipo de crime que deveria ser mobilizado;

d) Sem prescindir, ser a pena de prisão aplicada substituída por pena de multa, atendendo ao diminuto grau de culpa do recorrente, o seu carácter primário, a que o tipo de crime o permite a ainda atendendo aos critérios gerais estabelecidos nos artigos 70.º e 71.º do CP.


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4. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância, na resposta que apresentou ao recurso, manifestou-se no sentido da sua improcedência.

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5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em parecer a fls. 675/677, tomou idêntica posição.

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6. Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente não exerceu o seu direito de resposta.

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11. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

No caso sub judice, o objecto do recurso está circunscrito às seguintes questões:
A) Alterabilidade da matéria de facto, nos pontos concretamente impugnados pelo recorrente;
B) Violação do princípio in dubio pro reo;
C) Violação do princípio ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal;
D) Qualificação jurídica dos factos provados;

E) Medida da pena.


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2. Factos provados:

1. A 1.ª arguida iniciou em 01.06.99 a actividade de “comércio por grosso de electrodomésticos, aparelhos de rádio, de televisão, CAE 46430, estando, desde essa data, enquadrada, para efeitos de IRC, no regime geral de apuramento da matéria tributável e, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.

2. O arguido C...é sócio-gerente da 1.ª arguida, sendo efectivamente o responsável pelo seu funcionamento desde sempre.

3. O arguido F..., filho do arguido C…, iniciou, em 12.02.04, a sua actividade de comércio a retalho de equipamento audiovisual, na área da comarca, em empresa unipessoal.

4. A 1.ª arguida não entregou as declarações de rendimentos modelo 22 atinentes ao exercício de 2005, nem até ao último dia útil do mês de Maio de 2006, nem posteriormente.

5. Não entregou igualmente a Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal relativa ao exercício de 2005, nem até ao final do mês de Junho de 2006, nem posteriormente.

6. No final do ano de 2006, a arguida não possuía contabilidade organizada, não tendo apresentado os elementos da contabilidade mesmo após ter sido notificada para tanto, nem no prazo constante da notificação nem posteriormente.

7. Durante os anos de 2004/2005, a 1.ª arguida emitiu diversas facturas referentes à venda de produtos, liquidando imposto à taxa em vigor.

8. Não obstante, não entregou aos Cofres do Estado o IVA liquidado durante os exercícios de 2004/2005, no montante global de € 37.010,11.

9. Para as facturas em causa, haviam sido emitidos os recibos respectivos com indicação dos meios de pagamento.

10. a) Em Maio de 2004, a arguida não entregou o montante de € 4.172,86, sendo a base tributável deste imposto € 21.962,37, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

b) Em Junho de 2004, a arguida não entregou o montante de € 6.430,85, sendo a base tributável deste imposto € 33.846,56, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

c) Em Julho de 2004, a arguida não entregou o montante de € 4.326,76, sendo a base tributável deste imposto € 22.772,37, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

d) Em Agosto de 2004, a arguida não entregou o montante de € 1.544,42, sendo a base tributável deste imposto € 8.128,52, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

e) Em Setembro de 2004, a arguida não entregou o montante de € 3.556,41, sendo a base tributável deste imposto € 18.717,94, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

f) Em Outubro de 2004, a arguida não entregou o montante de € 3.695,18, sendo a base tributável deste imposto € 19.448,31, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

g) Em Novembro de 2004, a arguida não entregou o montante de € 3.709,74, sendo a base tributável deste imposto € 19.524,97, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

h)Em Dezembro de 2004, a arguida não entregou o montante de €5.630,53, sendo a base tributável deste imposto €29.634,36, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

i) Em Janeiro de 2005, a arguida não entregou o montante de € 3.792,16, sendo a base tributável deste imposto € 19.958,70, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

j) Em Julho de 2005, a arguida não entregou o montante de € 25,20, sendo a base tributável deste imposto € 120,00, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

l)Em Agosto de 2005, a arguida não entregou o montante de €25,20, sendo a base tributável deste imposto €120,00, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

m) Em Setembro de 2005, a arguida não entregou o montante de € 25,20, sendo a base tributável deste imposto €120,00, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

n) Em Outubro de 2005, a arguida não entregou o montante de € 25,20, sendo a base tributável deste imposto € 120,00, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

o) Em Novembro de 2005, a arguida não entregou o montante de € 25,20, sendo a base tributável deste imposto € 120,00, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

p) Em Dezembro de 2005, a arguida não entregou o montante de € 25,20, sendo a base tributável deste imposto € 120,00, nem até ao dia 10 do segundo mês posterior àquele a que respeitaram as operações nem posteriormente.

11. Apesar de conhecerem as dívidas, designadamente, na fase executiva, o sócio-gerente da empresa, o arguido C…, não procedeu ao pagamento das mesmas.

12. A 1.ª arguida começou por exercer a sua actividade num estabelecimento comercial localizado em S. Martinho do Bispo, Coimbra, e, em menor escala, num estabelecimento em Miranda do Corvo.

13. Possuía algumas garagens em S. Martinho do Bispo e um armazém arrendado em Miranda do Corvo, que serviam de locais de armazenagem dos produtos que transaccionava.

14. Tais locais eram utilizados em conjunto com a firma M…Lda, que, pertencendo aos mesmos sócios, se dedicava ao mesmo ramo de negócios, embora no sector a retalho, sendo que, de tudo isto, também o arguido F...tinha conhecimento.

15. A M…Lda foi constituída em Dezembro de 1988 e tinha como sócios o arguido C...e sua mulher, tal como a 1.ª arguida.

16. Já anteriormente, o arguido C...vinha exercendo a mesma actividade, figurando, perante terceiros, o nome da sua irmã B....

17. O arguido F… que se colectou a pedido do seu co-arguido, desenvolve a mesma actividade que a 1.ª arguida e a M...Lda, utilizando as mesmas instalações e existências, do que está ciente.

18. A firma unipessoal do arguido F...iniciou a sua actividade sem existências iniciais, tendo alienado diversas mercadorias pertencentes, pelo menos, à 1.ª arguida, para as quais não possuía documento de compra.

19. Apesar de saber que estavam por pagar ao Estado impostos devidos pela arguida, desde 2001, bem como da existência de processos contra-ordenacionais e de execução fiscal por causa de tais dívidas, o arguido C...realizou diversas transferências de existências da 1.ª arguida para o 3.º arguido e para a sua nova entidade empresarial, o que era do conhecimento do arguido F....

20. O arguido C...agiu com o intuito de frustrar, pelo menos em parte, a cobrança dos créditos fiscais por parte do Estado, através, pelo menos, da alienação do património da 1.ª arguida.

21. O arguido F...representou que, ao colectar-se e adquirir imobilizado da arguida, cumpriria o desiderato do pai, consistente em impedir, pelo menos parcialmente, a cobrança de créditos fiscais por parte do Estado, e conformou-se com tal resultado, não o impedindo como podia e devia, na qualidade de responsável pela sua firma unipessoal.

22. Pelo menos desde os anos 90 que o arguido C...vem incumprindo as suas obrigações fiscais em nome e no interesse de diversos obrigados tributários, criando a seguinte situação: quando uma empresa começa a ter problemas de vulto, inicia outra, nas mesmas existências, de modo a furtar-se ao pagamento de dívidas.

23. O arguido C...e a arguida V... fizeram seus os montantes liquidados e deduzidos aos clientes a título de IVA, apesar de saber que as mesmas pertenciam ao Estado Português.

24. Os arguidos agiram sempre em nome, representação e no interesse da arguida V..., de forma livre voluntária e consciente, com o propósito de a subtrair ao pagamento dos impostos devidos, apesar de saber que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

25. Em data posterior a 2006, foram penhorados à arguida bens móveis avaliados globalmente em € 99.105,00.

26. O arguido F...possui recursos sócio-culturais acima da média nesta Comunidade, sendo, no entanto, que não se ocupa da gestão da sua empresa unipessoal, que delega no seu pai, dedicando-se a entregas de equipamentos.

27. Vive e sempre viveu com os pais e conta com rendimento mensal não inferior a € 500,00.

28. Os arguidos não censuraram as respectivas condutas.

29. O arguido F...não tem antecedentes criminais.

30. O arguido C...tem antecedentes criminais pela prática, em 13.11.90, de um crime de desobediência; em 08.92, de um crime de descaminho de objecto apreendido; em 28.05.96, de um crime de resistência e coacção; em 16.06.92, de um crime de descaminho de objecto apreendido; em 13.03.98, de um crime de desobediência; e em 1999, de um crime de abuso de confiança fiscal, pelo qual foi condenado em 14.10.04.

31. Em 2004, o arguido F...sabia que as firmas do pai, designadamente, a arguida, tinham dívidas para com o Fisco, que estavam em curso processos de execução Fiscal contra aquela, que contra o pai corria processo-crime por abuso de confiança fiscal e que o mesmo lhe pedira que se colectasse para tentar subtrair-se a si e à arguida ao pagamento de tais dívidas fiscais.


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3. Factos não provados:

Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa, sendo que a restante matéria constante das aludidas peças processuais encerra alegações de direito ou consiste na formulação de conclusões.


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4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

A convicção do tribunal resultou sobretudo da prova documental junta aos autos. A saber:

- auto de notícia de fls. 1 a 5, datado de 04.11.06, confirmado e explicado em audiência pela funcionária autuante;

- Certificação de dívidas fiscais por banda da primeira arguida, emitida pelo Serviço de Finanças de Miranda do Corvo, constante de fls. 41 a 49, relativa a importâncias que deveriam ter sido entregues em 2004, 2005 e 2006, a título de IRS, IRC, IMI, e coimas, reportando-se alguns dos impostos a 2001 e 2002, e anos seguintes, datada de 30.11.06;

- notificação e termo de ocorrência de fls. 39 e 40; de 15 e 27.09.06;

- certificação de dívidas fiscais da firma M...Lda, emitida em Novembro de 2006 pelo Serviço de Finanças de Miranda do Corvo, de fls. 50 a 65;

- cópias autenticadas de notificações e citações efectuadas à primeira arguida à data de 04.11.06, e respectivos avisos de recepção, atinentes às dívidas daquela à data de 04.11.06, algumas dando conta de não terem sido encontrados bens pertencentes à V..., por dívida de IVA, encontrando-se em curso execução fiscal, em 28 de Outubro de 2004;

- autos de penhora de fls. 86 e seguintes, datados de 25.01.06, de quatro garagens da primeira arguida, globalmente avaliadas em perto de € 29.000,00.

- comprovativo de início de actividade das firmas V... e M...Lda – respectivamente 1999 e 1998.

- documento elaborado pelo Serviço de Finanças atinente a vendas a dinheiro e IVA liquidado da primeira arguida durante o período de 1 de Maio de 2004 a 1 Dezembro de 2005, constante de fls. 134 a 136;

- venda a dinheiro emitida pela primeira arguida à firma unipessoal do terceiro arguido, datada de 01.05.04, constante de fls. 137 a 141, e de 01.06.04, de fls. 142 a 146; e de 01.07.04, de fls. 147 a 151 e de 01.08.04, de fls. 152 a e de 01.09.04, a fls. 153 a 156, e de 01.10.04, de fls. 157 a 159, e de 01.11.04, de fls. 160 a 166; e de 01.12.04, de fls. 168 a 169; e de 01.01.05 a fls. 170 a 174; e de 01.02.05 a fls. 175; e de 01.03.05, a fls. 176, e de 01.04.05, a fls. 177; e de 01.05.05, a fls. 178; 01.06.05, a fls. 179; 01.07.05, a fls. 180; 01.08.05 a fls. 181; 01.09.05 a fls. 182; 01.10.05 a fls. 183; 01.11.05 a fls. 184, e 01.12.05, a fls. 185.

- auto de penhora de fls. 270 a 283, datado de Maio de 2006, no valor global de € 99.105,00 para pagamento da quantia de 137.361,89;

- lista de processos de execução fiscal, de fls. 284 a 289;

- CRC de fls. 377;

- CRC de fls. 381 a 387;

- Facturas atinentes à aquisição, pela firma unipessoal do terceiro arguido, de diverso equipamento a …, ….,e outros, no valor global de € 207,613,35, datadas de Fevereiro a Setembro de 2004, constantes de fls. 462 a 506;

- Certidão de pendência de processos de execução fiscal pendentes contra a segunda arguida reportadas às datas de 31.05.04 e de 31.12.05, constantes de fls. 536 a 541, mencionando pagamentos por conta de quantias reduzidas, face aos montantes da dívida e resultantes de aplicação do produto de penhora de conta bancária, no valor de € 297,52,00.


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Os Inspectores de Finanças ouvidos explicaram que as vendas a dinheiro supra descritas não foram exibidas aquando da notificação para o efeito no âmbito da inspecção levada a cabo. Tais vendas a dinheiro e respectivos meios de pagamento eventuais não se encontravam escriturados na contabilidade do terceiro arguido.

Perguntado ao arguido C...o que fazia então ao produto obtido com as vendas, o mesmo não respondeu inteligivelmente, repetindo que se não vendesse àquela firma, venderia a outra. Aliás, o arguido C...procurou sempre respostas ambíguas e repetidas, tornando difícil o diálogo.

Por seu turno, o arguido F...limitou-se a dizer que se colectou porque o pai pediu, que o fez sem nada questionar e que não tinha qualquer intervenção na vida das empresas. Apenas procedia a entregas no âmbito da actividade da firma unipessoal.


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É verdade que em 2006 vieram a ser penhorados à arguida pela Administração Fiscal diversas garagens, avaliadas globalmente em cerca de € 29.000,00, e bens móveis, no valor global de € 99.105,00. Todavia, de acordo com o documento referido em primeiro lugar, a dívida fiscal global atingia cerca de € 150.000,00. A quantia exequenda no âmbito dos autos em que foram penhorados em 2006 os indicados bens ultrapassava € 137.000,00.

Em primeiro lugar, dúvidas não sobram de que os arguidos agiram sempre em nome e no que julgaram ser o interesse da arguida V..., qual seja, subtrair a mesma ao pagamento das obrigações e dívidas fiscais. O arguido C...agiu, pois, sempre em nome e representação da mesma, na qualidade de único sócio-gerente.

Com efeito, já em data anterior ao início de 2004 o arguido C...sabia que a V... vinha incumprindo com as suas obrigações fiscais. E sabia-o porque era o único sócio-gerente da mesma. Note-se que em Outubro de 2004, o arguido C...fora condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal. Por outro lado, tinha conhecimento de que deduzia (cobrava) o IVA aos clientes.

Sabia também aquele arguido, pelo menos desde inícios de 2004, que, por causa dessas dívidas, haviam sido instaurados procedimentos contra-ordenacionais contra a arguida e, após, processos de execução fiscal para cobrança das coimas ali aplicadas.

Sabia ainda que haviam sido instaurados processos de execução fiscal para cobrança dos valores de imposto não entregue ao Estado. Raciocínio que se faz circunstanciando no tempo o conhecimento de facto do arguido por referência às datas limite de pagamento dos montantes em falta. De acordo, designadamente, com a certidão junta a fls. 41 a 49. Daí resulta, como já se mencionou, a existência de dívida global superior a € 150.000,00.

Pelo menos no último trimestre de 2004, o arguido C...sabia até que a administração fiscal não conseguira encontrar bens à arguida e, não obstante, continuou a alienar o património da mesma, conforme facturas constantes dos autos, não canalizando o produto das vendas para o pagamento das obrigações fiscais vencidas e que se iam vencendo.

As garagens foram penhoradas em 2006. Não foi junta aos autos – nem tal se mostra necessário nos termos do art. 340.º do C.P.P., atenta a demais prova produzida -, a certidão de registo predial ou matricial atinente às mesmas. Desconhece-se, uma vez que eram também utilizadas por outras firmas, se eram objecto de direito de propriedade pertencente à V.... Provou-se que a arguida as possuía, mas nada resultou no tocante à titularidade do direito real de propriedade.

A verdade, é que, só mais de dois anos depois das aludidas notificações, é que tais imóveis foram penhorados.

O mesmo sucedeu com o imobilizado avaliado em cerca de € 99.000,00.

Em suma, desconhece-se se, à data, tais bens imóveis e móveis integravam já, ou não, o património da arguida. Olvida-se quase totalmente a situação fiscal da M...Lda, pelo que não cumpre apreciar da conveniência que se terá evidenciado em transmitir algum património para a aqui arguida nessa altura (no entanto, como se verá a seguir em sede própria, o tipo da frustração de créditos não exige que a impossibilidade de cobrança seja uma realidade. A este nível, basta-se com o processo de intenções).

De todo o modo, é falaciosa a asserção de que o arguido sabia que tinha património para garantir a cobrança das suas dívidas fiscais. Se assim fosse, teria aplicado os montantes recebidos com a alienação de património no pagamento, ao menos parcial, das dívidas, designadamente, fiscais. Pois conclusão contrária implica admitir, em última análise, que o arguido tinha dívidas para com o Fisco e incorria repetidamente na prática de crimes fiscais … porque sim, porque queria, podendo evitá-lo com relativa facilidade, ao menos em parte.

Aliás, mal se percebe que, tendo a firma unipessoal sido constituída em 2004, necessitasse de adquirir tanto material à arguida V..., logo nesse ano, no valor de cerca de € 200.000,00, caso, como sustentou, tivesse partido com imobilizado próprio de valor superior a € 207.000,00.

O raciocínio do arguido, no tocante à apreciação da possibilidade de cobrança das dívidas por banda da Administração Fiscal, não se poderia cingir aos € 37.000,00 em apreço nos autos nem apenas aos montantes de imposto. O arguido sabia que tinha mais dívidas, que estavam a ser cobradas primeiro dívidas por falta de pagamento de coimas e que, a seguir, esgotado o pouco imobilizado conhecido (num primeiro momento, nada era conhecido, tendo disso sido dado conta ao arguido pela Fazenda), a administração iria tentar cobrar dívidas de imposto.

Note-se que o arguido também não canalizou o dinheiro para conta bancária da arguida. Montantes que seriam penhoráveis.

Ainda que confiasse em que as garagens poderiam vir a ser penhoradas, a verdade é que o valor das mesmas era inferior ao das dívidas, que não parava de fazer, sem justificação ou fim à vista, decidindo ir alienando o que seria mais fácil de conhecer e, por conseguinte, de penhorar. Deste modo, sabia que pelo menos em parte, com a referida alienação, impedia a cobrança (ao menos parcial, repise-se, pela administração fiscal). Apesar de saber que a administração não encontrava bens penhoráveis, porque tal lhe foi comunicado em 2004. Todo este conhecimento tinha, pois, o arguido, conforme ressalta das certidões de notificação e das facturas juntas aos autos e supra mencionadas.

Não colhe o argumento de que as venda feitas ao terceiro arguido se inscrevem na actividade da empresa, já que o produto das operações continuava a não reverter para solver as dívidas ao fisco, sendo que C...persistia na actividade criminosa.


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O arguido F...viveu sempre com os pais. Sabia que o arguido C...já tivera várias empresas do mesmo ramo, nas mesmas instalações. Atenta a sua idade e grau de discernimento que revelou, afigura-se evidente que bem compreendeu que o pai lhe pedia para constituir uma empresa em seu nome, pelo menos a quarta da família, com o intuito de uma lavagem de imagem mais eficaz do que as anteriores. Pois, se muita fosse a sua vontade em ter uma empresa, mal se compreenderia que tão arredado da mesma estivesse, conforme efectivamente resultou provado. Aliás, os arguidos sustentaram que foi o arguido pai que pediu ao arguido filho que se colectasse. Não se vislumbra outra razão para tanto, se tão novo era F..., a empresa era do mesmo ramo, e, afinal, a unipessoal não seria para o jovem arguido gerir por si. É evidente que o arguido F...não é ingénuo, conhecia as sucessivas e reiteradas dívidas fiscais e sabia da alienação do imobilizado. Sabia ainda que contra o pai corria processo crime por abuso de confiança fiscal.

O arguido F...sabia que o pai lhe pedira que se colectasse para conseguir limpar a imagem da arguida e furtar-se ao cumprimento de obrigações fiscais. Coisa diferente é a de saber que, com a alienação de património daquela à unipessoal, impedia, ao menos parcialmente, a cobrança fiscal. A este nível, e atento o quadro supra exposto, forçoso é concluir que, pelo menos, o arguido mais novo representou tal situação, conformando-se com ela, nada fazendo para impedi-la.

As testemunhas indicadas pelos arguidos apenas deram conta de que efectivamente eram fornecedores, agora da unipessoal, que tudo tratavam apenas com o arguido C… .


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Todas as testemunhas prestaram declarações de modo fluente, coerente e natural, pelo que mereceram credibilidade.

Menos coerente e, por isso, menos verosímil foi o depoimento dos arguidos, atentas as razões supra escalpelizadas. Na medida em que foi patente a tentativa, por parte dos arguidos, de ocultar boa parte dos factos, à excepção da factualidade atinente à falta de entrega de declarações e elementos de contabilidade, apenas se ateve ao segmento dos seus depoimentos que foi comum à demais prova produzida.

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5. Do mérito do recurso:
5.1. Da alterabilidade da matéria de facto:

Preliminarmente, importa precisar que o recurso, visando matéria de facto e direito, respeita tão só ao arguido/recorrente C.... Na realidade, embora o requerimento de interposição do recurso indique também como recorrente o arguido C..., veio o ilustre Advogado dos arguidos rectificar, posteriormente, a existência de lapso (cfr. fls. 665 dos autos), referindo expressamente que o recurso se circunscreve ao arguido F.... 

Cotejando as conclusões da motivação do recurso, estão expressamente impugnados os pontos n.ºs 17, 18, 19, 21 e 31 do acervo factológico dado como provado pelo tribunal da 1.ª instância, por referência aos meios de prova concretamente indicados, sendo que, quanto à prova oralmente produzida em audiência de discussão e julgamento, estão concretamente referenciadas as passagens consubstanciadoras da impugnação. 

Na exegese do recorrente, a decisão em matéria de facto, nos aludidos pontos, carece de sustentabilidade, tendo o tribunal de 1.ª instância violado as regras de valoração e apreciação da prova, plasmando na sentença uma convicção sobre os factos imputados aos arguidos que em nada corresponde à prova produzida em audiência.

Segundo enuncia, quanto aos pontos 17, 18, 19 e 21, não há qualquer prova concreta de que o ora recorrente tivesse conhecimento do desiderato do pai, o arguido C…, ou seja, da alienação de electrodomésticos pela “V..., Lda.” à firma unipessoal do arguido F.... Logo de início, acrescenta o recorrente, não é minimamente aceitável a convicção do julgador de 1.ª instância, ao dar como provado que a unipessoal F...iniciou a sua actividade sem existências, uma vez que constam dos autos documentos, a fls. 462 a 506, comprovativos de compras realizadas entre Fevereiro e Setembro de 2004, no valor de € 207.613,35.

Aduz ainda o recorrente, quanto aos factos dados como provados no ponto 31, que  o Tribunal a quo, na fundamentação, se limitou a constatar que o recorrente é filho do co-arguido C...e vivia com os seus pais, para de imediato, a partir daí, tirar a precipitada e insustentável conclusão do conhecimento pelo primeiro da situação fiscal do segundo e que aquele aceitou colectar-se, criando a firma unipessoal F..., apenas com o objectivo, concertado entre ambos os arguidos, de a arguida sociedade se subtrair ao pagamento das dívidas fiscais até então existentes.

A demonstração dos invocados erros de julgamento alicerça-se, à luz da posição do recorrente, nas declarações do arguido F...e nos depoimentos das testemunhas T… e D….


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O juízo de convicção firmado pelo tribunal a quo, relevante para dar como provados os factos objecto de impugnação, assentou, genericamente, na diversa documentação referenciada na motivação da decisão de facto (auto de notícia de fls. 1 a 5; certificação de dívidas fiscais por banda da arguida sociedade e de pendência de processos de execução fiscal relativas a essas dívidas; notificação e termos de ocorrência de fls. 39 e 40; cópias autenticadas de notificações e citações efectuadas à “V..., Lda.”; autos de penhora de fls. 86 e ss.; facturas correspondentes a vendas a dinheiro efectuadas por esta arguida à firma unipessoal do recorrente), e, em particular, a partir desses meios de prova documental, conjugados com o depoimento das diversas testemunhas, em presunções naturais, retiradas das regras de experiência comum de vida.
Assim, extraiu-se a ilação «de que os arguidos agiram sempre em nome e no que julgaram ser o interesse da arguida V..., qual seja, subtrair a mesma ao pagamento das obrigações e dívidas fiscais»; e ainda, em suma, que o arguido F...- tendo vivido sempre com os seus pais e estando ao corrente das empresas geridas pelo arguido C...-, sabia das sucessivas e reiteradas dívidas fiscais da V... e do objectivo visado com a alienação para a recém constituída firma Unipessoal F...do imobilizado referido nos autos, qual seja, obstar, por essa via, à cobrança das dívidas fiscais da V... perante a administração fiscal.
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Importa, então, avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção do tribunal a quo, havendo que apreciar a natureza/conteúdo das provas produzidas e os referidos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção das anotadas conclusões.
Para melhor apreensão da base discursiva do recorrente, relembra-se, antes de mais, o núcleo fundamental da factualidade posta em causa no recurso.
O arguido F..., que se colectou a pedido do co-arguido, desenvolve a mesma actividade que a arguida “V..., Lda.” e a M...Lda, utilizando as mesmas instalações e existências, do que está ciente (ponto 17).
A firma unipessoal do arguido F...iniciou a sua actividade sem existências iniciais, tendo alienado diversas mercadorias pertencentes, pelo menos, à arguida “V..., Lda.”, para as quais não possuía documento de compra (ponto 18).
Apesar de saber que estavam por pagar ao Estado impostos devidos pela arguida, desde 2001, bem como da existência de processos contra-ordenacionais e de execução fiscal por causa de tais dívidas, o arguido C...realizou diversas transferências da arguida “V..., Lda.” para o arguido F...e para a sua nova entidade empresarial, o que era do conhecimento do arguido F...(ponto 19).
O arguido F...representou que, ao colectar-se e adquirir imobilizado da arguida, cumpriria o desiderato do seu pai, consistente em impedir, pelo menos parcialmente, a cobrança de créditos fiscais por parte do Estado, e conformou-se com tal resultado, não o impedindo como podia e devia, na qualidade de responsável pela sua firma unipessoal (ponto 21).
Em 2004, o arguido F...sabia que as firmas do pai, designadamente a arguida “V..., Lda.”, tinham dívidas para com o Fisco, que estavam em curso processos de execução fiscal contra a sociedade arguida e que o mesmo lhe pedira que se colectasse para tentar subtrair-se a si e à arguida ao pagamento de tais dívidas fiscais (ponto 31).
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Posto isto, vejamos o que a prova oralmente prestada nas duas sessões de julgamento nos revela.
Das declarações do arguido C…[1] extraem-se, em suma, no contexto que importa ter em conta, as seguintes passagens mais marcantes:
- A “V...” começou a sentir dificuldades no final de 2003; como o seu filho (o arguido F...) estava desocupado – saíra, aos 18 anos, da escola –, convenceu-o a colectar-se, o que sucedeu em Fevereiro de 2004, para desta forma poderem ter acesso a financiamentos bancários - que não conseguiam obter através da “V...” – e à aquisição de mercadorias (electrodomésticos).
Contudo, de facto, foi o declarante que constitui a “F...”, uma vez que seu filho apenas se limitou à aposição do seu nome, na documentação necessária para o efeito.
No âmbito da actividade da firma “F...”, o ora recorrente só fazia entrega de material. Era o declarante que fazia compras e vendas e que, no fundo, decidia do “destino” do negócio.
O F...não teve conhecimento das “transferências” de bens referidas no ponto 19. da matéria de facto provada, como não conhecia que as lojas da “V...” tinham sido objecto de penhora e bem assim a existência de dívidas fiscais da sociedade arguida à administração fiscal.

Por seu turno, as declarações do arguido F...[2] assumem os seguintes contornos:
Tinha deixado de estudar. No início de 2004, seu pai, o arguido C…, convenceu-o a colectar-se em nome individual, tendo nascido, em Fevereiro desse ano, a firma “F...” unipessoal[3].
Porém, seu pai tratou de tudo. O declarante limitou-se a assinar.
É o arguido C...quem, de facto, desenvolve a actividade da empresa “F...”. O declarante nunca foi consultado sobre as compras, vendas ou encargos decorrentes da actividade da empresa. Esta actividade é desempenhada invariavelmente por seu pai, o qual, para o efeito, contacta os fornecedores, as repartições de finanças e, a título contabilístico, o TOC.
A sua função se limitou, entre 2004 a 2006, à entrega de electrodomésticos e assinatura de documentação (p. ex. cheques para pagamentos de material).
Não teve conhecimento das transferências das existências referenciadas no ponto 19. do acervo factológico dado como provado. Não são do seu punho as assinaturas apostas nas facturas de fls. 139/185. Até 2006 (data da fiscalização efectuada pelos serviços de finanças), não estava a par da situação financeira das sociedades “V..., Lda.” e “M...Lda”; nem sequer sabia da existência de dívidas fiscais por parte destas sociedades, aspectos que nunca lhe foram referidos[4].
No âmbito da “sua empresa” comprou mercadorias a diversos fornecedores.
Por sua vez, o depoimento da testemunha T… - Inspectora dos Serviços da Inspecção Tributária que, em 2006, fiscalizou a empresa “F...” -, põe em evidência as compras de electrodomésticos pela empresa “F...” à “V..., Lda.”[5], compras que não estavam registadas na contabilidade da primeira. Mais esclareceu que, em face do circunstancialismo envolvente da inspecção, se lhe afigurou que era o arguido C...quem efectivamente geria a “F...[6].

Por fim, auscultados os depoimentos das testemunhas D… e H…, ambos comerciantes de electrodomésticos, deles decorre que, no âmbito das relações comerciais mantidas entre aqueles com a “V..., Lda.” e a “F...”, interveio somente o arguido C…, nunca o arguido F...[7].
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Procedendo à análise dos documentos constantes do processo e que ora importa ter em conta, os de fls. 41/49 certificam as dívidas fiscais da sociedade “V..., Lda.”; os de fls. 137/185 (facturas), consubstanciam vendas a dinheiro de diversos electrodomésticos por parte da V... a F..., no período compreendido entre 01-05-2004 e 01-01-2005, no valor global de € 229567,81; enquanto os que constituem fls. 462/506 traduzem diversas aquisições de mercadorias, entre Fevereiro e Setembro de 2004, da firma unipessoal “F...às sociedades “ …..
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 Relevantes, no domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
O artigo 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).
No plano de análise em que nos movemos, importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquiri um facto desconhecido.
«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)»[8].
As presunções simples ou naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções[9].
As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004[10], «na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
(…)
A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penam em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões».
Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem á prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.
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Escalpelando o percurso lógico e intelectual seguido na motivação da decisão de facto expressa na decisão recorrida, o tribunal a quo, a partir da objectividade revelada pelos documentos que enuncia, essencialmente pelos que acima estão concretizados, em conjugação com as declarações das testemunhas – mas sem, contudo, estabelecer criticamente a relevância probatória dos depoimentos – extraiu conclusão – em face dos factos conhecidos (vivência do arguido com os pais; conhecimento de que seu pai, o arguido C…, já tivera várias empresas do mesmo ramo, nas mesmas instalações; idade do recorrente e grau de discernimento evidenciado) – no sentido daquele haver compreendido a finalidade da constituição da empresa unipessoal F..., qual seja, lograr a “lavagem de imagem” da V…, Lda.”, sabendo também que, através da transferência de património para a “F...”, a administração fiscal ficava impossibilitada de obter a cobrança das dívidas da primeira, situação que o recorrente representou, conformando-se com a actividade assim desenvolvida.
Assim, no vertente caso, segundo o julgador de 1.ª instância, os factos conhecidos (os pressupostos e a base da presunção) são a constituição da unipessoal “F...” e o conhecimento pelo recorrente das várias empresas (“V…, Lda.” e “M...Lda”) - as quais de dedicavam ao mesmo ramo de negócio, nas mesmas instalações -, das dívidas fiscais da “V...” e da já referida transferência de bens.

Em face da prova produzida em julgamento, supra descrita, é inquestionável a constituição da empresa “F...”, em Fevereiro de 2004, e a “transferência” do imobilizado descrito nas facturas de fls. 137/185.
Todavia, os factos base da presunção considerados pelo tribunal a quo não os revemos na prova produzida nas duas sessões de julgamento. Segundo a posição unânime dos arguidos, as formalidades relativas à criação da nova empresa pertenceram ao arguido C...; o arguido F..., tendo acedido ao pedido de seu pai, apenas apôs o seu nome na documentação necessária.
Racionalmente, esta versão não pode deixar de ser tida como hipótese possível, se consideramos aqueloutros factos que nos permitem saber que o arguido F..., jovem imaturo, cessara a actividade escolar, com vinte anos de idade, poucos meses antes da constituição da empresa em causa.
Carece também de absoluta demonstração que o arguido F...estivesse ao corrente: das dívidas assumidas pela “V…, Lda.” perante a administração fiscal; dos processos de execução fiscal em curso contra a sociedade arguida; do processo-crime por abuso de confiança fiscal que correu termos contra o pai, e soubesse também que lhe fora pedido que, através da constituição da nova empresa e transferência dos bens descriminados nas facturas de fls. 137/185, obstasse à cobrança das dívidas fiscais da “V..., Lda.”. 
No mais, os elementos de prova oportunamente referenciados (declarações dos arguidos e depoimentos das testemunhas T…, G… e H…) suscitam também sérias reservas sobre a gestão efectiva da unipessoal “F...”. Existe consenso alargado de que era exercida pelo co-arguido C…; o recorrente não tinha qualquer papel minimamente relevante na “vida e destino” da empresa, cabendo-lhe apenas uma posição subalterna, correspondente, de facto, à função de mero empregado.

Posto o que fica dito, no circunstancialismo que ficou descrito, os únicos factos verdadeiramente conhecidos – constituição da firma unipessoal e a transferência do imobilizado constante das facturas de fls. 137/185  - não permitem a ilação, com toda a probabilidade próxima da certeza, de que:
- O arguido F...estava a utilizar “as mesmas existências”, do que estava ciente (cfr. ponto de facto n.º 17.);
- As transferências referidas no ponto 19. da matéria de facto provada eram do conhecimento do arguido F...;
- O arguido F...representou que, ao colectar-se e adquirir imobilizado da arguida, cumpriria o desiderato do pai, consistente em impedir, pelo menos parcialmente, a cobrança de créditos fiscais por parte do Estado, e conformou-se com tal resultado, não o impedindo, como podia e devia, na qualidade de responsável pela sua firma unipessoal (cfr. ponto de facto n.º 21.);
Simultaneamente, ainda por força do princípio in dubio pro reo, há também que dar como não provada a matéria fáctica descrita no ponto 31.
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  Em conformidade com todo o exposto, procedendo à modificação da matéria de facto [cfr. art. 431.º, al. b) do Código de Processo Penal], nos pontos em destaque, os factos provados e não provados são os seguintes:
Factos provados:
- Mantêm-se inalterados desde os pontos 1 a 16, inclusive, 18, 20, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29 e 30.
«17. O arguido F..., que se colectou a pedido do seu co-arguido, desenvolve a mesma actividade que a 1.ª arguida e a M...Lda, utilizando as mesmas instalações.
19. Apesar de saber que estavam por pagar ao Estado impostos devidos pela arguida, desde 2001, bem como da existência de processos contra-ordenacionais e de execução fiscal por causa de tais dívidas, o arguido C...realizou diversas transferências de existência da 1.ª arguida para a nova firma unipessoal “F...”.
24. O arguido C...agiu sempre em nome, representação e no interesse da arguida V..., de forma livre voluntária e consciente, com o propósito de a subtrair ao pagamento dos impostos devidos, apesar de saber que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

Factos não provados:
- O arguido F..., no âmbito da sua empresa unipessoal, sabia que estava a utilizar as existências da arguida V... e M...Lda;
- Era do conhecimento do arguido F...que: estavam por pagar ao Estado impostos devidos pela sociedade arguida, desde 2001; a existência de processos contra-ordenacionais e de execução fiscal originadas por essas dívidas; o arguido C...realizou diversas transferências de existências da 1.ª arguida para a nova entidade empresarial “F...”;
- O arguido F...representou que, ao colectar-se e adquirir imobilizado da arguida, cumpriria o desiderato do pai, consistente em impedir, pelo menos parcialmente, a cobrança de créditos fiscais por parte do Estado, e conformando-se com tal resultado, não o impedindo como podia e devia, na qualidade de responsável pela sua firma unipessoal;
- O arguido F...agiu sempre em nome, representação e no interesse da arguida V..., de forma livre voluntária e consciente, com o propósito de a subtrair ao pagamento dos impostos devidos, apesar de saber que tais condutas eram proibidas e punidas por lei;
- Em 2004, o arguido F...sabia que as firmas do pai, designadamente a arguida, tinham dívidas para com o Fisco, que estavam em curso processos de execução Fiscal contra aquela, que contra o pai corria processo-crime por abuso de confiança fiscal e que o mesmo lhe pedira que se colectasse para tentar subtrair-se a si e à arguida ao pagamento de tais dívidas fiscais.
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 À alteração da matéria de facto, nos pontos assinalados, foram determinantes os fundamentos que, casuisticamente, em sede própria, ficaram expostos.

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5. Enquadramento jurídico-penal dos factos provados:
Dispõe o artigo 88.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho:
«1. Quem, sabendo que tem de entregar tributo já liquidado ou em processo de liquidação ou dívida às instituições de segurança social, alienar, danificar ou ocultar, fizer desaparecer ou onerar o seu património com intenção de, por essa forma, frustrar total ou parcialmente o crédito tributário é punido com prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
2. Quem outorgar em actos ou contratos que importem a transferência ou oneração de património com a intenção e os efeitos referidos no número anterior, sabendo que o tributo já está liquidado ou em processo de liquidação ou que tem dívida às instituições de segurança social, é punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias».
Ocupa-se o citado artigo da frustração de créditos, crime que surge normativamente configurado em duas modalidades típicas diversas.
Efectivamente, as condutas previstas no n.º 1 do artigo citado – “alienar”, “danificar”, “ocultar”, “fizer desaparecer”, “onerar o seu património” – constituem actos do próprio obrigado tributário, ou seja, daquele sobre quem recai o dever de realização da prestação tributária; por seu turno, o n.º 2 prevê as condutas de terceiro interveniente que outorga em negócio jurídico (acto ou contrato) que tenha por efeito a transferência ou oneração de património que possa responder pelas dívidas tributárias[11].
«Embora se protejam, com ambas as incriminações o mesmo bem jurídico, os comportamentos previstos no n.º 2 constituem uma “guarda avançada” da respectiva defesa, em que o perigo de lesão está mais distante, pelo que se justifica uma punição menor»[12].
A verificação dos elementos objectivos do crime em causa depende, nos casos do n.º 1, do seguinte condicionalismo:
- Haver conhecimento por parte do obrigado do tributo – ou dívida ás instituições de segurança social – a pagar, já liquidado ou em processo de liquidação;
- Verificar-se a prática, por parte daquele sobre quem recai o dever de realização da prestação tributária, de actos de alienação, danificação, ocultação, desaparecimento voluntário ou oneração do património, com vista a causar a frustração, total ou parcial, do crédito de tributo ou de dívida às instituições de segurança social.
E nas situações do n.º 2:
- Outorga, por terceiro interveniente, de actos ou contratos que importem a transferência ou oneração de património que possa responder pelas dívidas tributárias ou à segurança social, com a intenção prevista no n.º 1;
- Conhecimento de que o tributo respectivo já está liquidado ou em processo de liquidação ou da existência de dívida às instituições de segurança social.
Nas duas modalidades consideradas, o crime de frustração de créditos é um crime doloso, porquanto se exige o conhecimento da existência de tributo já liquidado ou em processo de liquidação ou de dívida às instituições de segurança social, e a intenção de frustrar total ou parcialmente o crédito tributário (componente representativa de dolo específico).
Vista a estrutura típica do crime em análise, manifestamente os factos provados a ele não se subsumem, porquanto, como é óbvio, não estão sequer preenchidos os elementos objectivos exigidos pelo texto-norma.
Daí que, sem maiores considerações, tal a evidência da solução jurídico-penal, se imponha decisão de absolvição do arguido F....
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se, na parte respectiva, a decisão recorrida e, em consequência, decide-se absolver o arguido F... da prática do crime de frustração de créditos que lhe está imputado e pelo qual foi condenado em 1.ª instância.
Sem tributação.
 
(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 6 de Janeiro de 2010

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)


[1] Produzidas na sessão de julgamento do dia 08-06-2009, conforme registo magnético Habilus Media Studio.
[2] Sessão de julgamento do dia 30-06-2009.
[3] À pergunta que lhe foi posta «Quando foi criada esta empresa, o Sr. não questionou?», respondeu nestes termos: «Não (…), eu tinha deixado de estudar há pouco tempo e passados alguns meses meu pai abordou-me com essa situação (…), o facto de se colectar com o meu nome, para o comércio de electrodomésticos (…); meu pai pediu-me, eu confio».
[4] «Só tomei conhecimento da situação destas empresas mais concretamente em 2006, se não estou em erro, quando (…) os inspectores fiscais se dirigiram às instalações».
[5] «Quando iniciamos a visita pedimos os documentos da “F.... Porquê? Porque quando foi feito o controle das mercadorias, nós constatamos que havia muita coisa que tinha sido vendida e que não havia documento de compra, porque o F..., M...Lda e V... (…) exerciam a actividade no mesmo local. E na altura, quando fizemos o controlo das existências, verificamos que muitas mercadorias tinham sido vendidas ao F..., sem a existência dos documentos de compra. (…) Mais tarde vieram a apresentar os documentos».
[6] «A percepção que eu tive é de que o Sr. F...era, no fundo, um empregado, ou seja, andava às ordens do pai. No decurso da fiscalização nunca falou de nenhuma questão técnica relativa ao exercício da gerência da “F...”. A essas questões ele não conseguia responder, sempre remeteu para o pai. Quem estava efectivamente a exercer era o pai. Eu penso que ele não tinha conhecimento das transmissões a que se referem as facturas porque, no fundo, ele apenas geria “de nome”. Também penso que ele não tinha conhecimento das dívidas da V...».
[7] «A minha relação comercial foi sempre com o Sr. C…; com o F...nunca tive nenhum contacto», referiu a testemunha D…; «a actividade sempre foi exercida pelo Sr. C…», disse, em determinado momento, a testemunha H…s».
[8] Cfr., v. g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ n.º 112, pág. 190.
[9] Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 333 e ss.
[10] In www.dgsi.pt (proc. n.º 03P3213).
[11] Neste sentido, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º 5 – 2.ª edição, págs. 129/131, e Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2008, págs. 636/639.
[12] Cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, idem, pág. 638.