Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2461/05.2TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
MORA DO DEVEDOR
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 04/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: DL N.º 269/85, DE 01.09; N.º1 DO ART. 205 E N.º1 DO ART. 153º, DO CPC; N.ºS 1 E 2 DO ART. 804º, ALÍNEA A) DO N.º2 DO ART. 805º E N.º1 DO ART. 799º, TODOS DO CC
Sumário: 1. O prazo para arguir a nulidade processual da deficiente gravação da prova é o prazo para apresentação da alegação de recurso, salvo se a parte contrária demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo.
2. A mora do devedor pressupõe culpa, sendo de presumir a existência desta.
3. Cabe ao devedor alegar e provar que a mora provém de causa estranha que não lhe pode ser imputada (devido a facto fortuito ou a motivo de força maior, a acto do credor por falta da necessária colaboração ou mesmo a acto de terceiro).
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                      I)- RELATÓRIO

A...., instaurou, no Tribunal Judicial de Alcobaça, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B...., pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 7.850,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 1 de Janeiro de 2005, até efectivo e integral pagamento e ainda as despesas com o prévio arresto, no montante de € 283,50.

Para tanto alegou, em síntese, que no âmbito da sua actividade de montagens, aluguer e venda de andaimes e estruturas metálicas, em Julho de 2004, alugou, transportou, montou e desmontou bancadas metálicas no complexo desportivo de Caldas da Rainha, a solicitação do Réu, com a capacidade para, aproximadamente, 3000 pessoas, pelo preço de € 10.000,00, acrescido de IVA.

Mais alegou que o Réu nada reclamou da qualidade e quantidade dos serviços, apenas tendo liquidado a importância de € 4.250,00. Previamente à presente acção instaurou contra o ora Réu, um procedimento cautelar de arresto, tendo despendido a quantia de € 283,50.



Regularmente citado, contestou o Réu, concluindo pela improcedência da  acção e deduzindo  pedido reconvencional.

Por excepção, alegou, em síntese, o cumprimento defeituoso da prestação por parte da Autora, dado que não lhe forneceu o número de lugares contratados e que, ao contrário do convencionado, não forneceu bancadas novas ou, não sendo novas, cobertas com relva artificial, devendo ainda as bancadas metálicas ser montadas até 23.07.2004;

Mais alegou que o preço acordado foi € 7.500,00 e não € 10.000,00 e que o número de lugares sentados era de 3.500 e não 3.000, havendo que descontar os lugares em falta no montante de € 1.075,50.

Alega também que a Autora se atrasou na montagem das bancadas, pelo que o Réu teve de deslocar pessoas que havia contratado para realização de outras tarefas, para a montagem das bancadas, tendo despendido com a mão-de-obra € 1.120,00, bem assim teve o evento início mais tarde e houve pessoas que entraram sem pagar, e por esse facto  teve um prejuízo de € 2.000.

Refere ainda que as bancadas se apresentavam sujas com óleos e outros produtos e sem relva artificial, tendo o réu indemnizado três pessoas cuja roupa que se estragou, tendo gasto a quantia de € 275.

Afirmou ainda ter sido difamado publicamente pela Autora e pago a esta, em prestações, a quantia total de € 5.750,00.

Refere também ter reclamado do serviço prestado.

Em reconvenção, o Réu pediu que seja efectuada a compensação e a Autora condenada a pagar-lhe a quantia de € 4.196,50 acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

A Autora respondeu à contestação, reiterando o preço por si alegado em sede de petição inicial, mas admitindo ter já recebido do Réu a quantia de € 5.750,00 por conta do preço estipulado.

Recusa não ter procedido ao estrito cumprimento do convencionado e alega que a deslocação de pessoal do Réu apenas ocorreu porque este, à última da hora, quis dividir a bancada e apenas para transporte do material. Alegou ainda a prestação de outros serviços, sem exigência de preço adicional, não tendo o Réu efectuado qualquer reclamação até 19.08.2005.

Terminou pedindo a improcedência do pedido reconvencional.

Prosseguindo os autos a sua normal tramitação, foi, por fim, proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo o Réu condenado a pagar à Autora a quantia de € 1.750,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 01.01.2005, até integral pagamento. Foi, ainda, julgada parcialmente procedente a reconvenção, sendo a Autora condenada a pagar ao Réu a quantia de € 3.040,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a prolação da sentença até integral pagamento. Operada a compensação, foi a Autora condenada a pagar ao Réu a quantia de € 1.111,64.

A Autora não se conformou com tal decisão, dela apelando, defendendo a anulação do julgamento ou, por reapreciação e alteração da decisão de facto, a procedência da acção e a improcedência da reconvenção.

Findou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª-Pretendendo fundamentar a impugnação da matéria de facto dada como provada quanto ao preço acordado entre a Autora e Réu pela obra a levar a efeito por aquela, mostra-se tal fundamentação impossível de fazer por referência ao depoimento gravado da única testemunha que fundamenta a decisão recorrida daquele facto, porquanto o mesmo depoimento é imperceptível nas respostas dadas a tal matéria e completamente inaudível em toda a parte final, concretamente na cassete n.º1, lados A e B;

2ª-Há contradição na fundamentação respeitante ao depoimento da testemunha T….. - cassete n.º1, lado A- que foi a única testemunha a afirmar que presenciou a negociação entre Autora e Ré, nas instalações daquela, onde assistiu ao encerramento da negociação pelo valor de € 10.000,00. Na fundamentação da matéria de facto não se dá qualquer credibilidade a esta testemunha mais se referindo que o Tribunal não teve em consideração o seu depoimento em relação a nenhuma matéria a que foi indicado. Porém, ainda que na fundamentação da matéria de facto, é dito, a propósito da matéria n.º6 da base instrutória, que a testemunha M…. e T…. depuseram de forma objectiva e isenta por forma a merecer a credibilidade do Tribunal;

3ª- A decisão recorrida ao condenar a Apelante no pagamento da quantia de € 3.040,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a sentença até integral pagamento, porque decidiu que a Apelante se constituiu em mora na montagem da bancada para que havia sido contratada pelo Apelado, olvidou por completo o disposto no n.º2 do art. 1216º do CC;

4ª-Tendo a Apelante sido contratada pelo Apelado para montar a bancada e já no decorrer dos trabalhos, foi solicitada por este para proceder à montagem não de uma mas de duas bancadas, foi alterado significativamente o acordado inicialmente entre ambos;

5ª-Porém, o Tribunal veio a responsabilizar a Autora, decidindo que a mora na finalização dos trabalhos lhe é imputável quando foi a alteração exigida pelo dono da obra que alterou, por completo, ao andamento dos trabalhos face à duplicação das bancadas sem que lhe fosse prolongado o prazo de execução da obra ou aumentado o preço;

6ª-Nos termos do n.º2 do art. 1216º do CC, o dono da obra pode exigir que sejam feitas alterações ao plano acordado mas o empreiteiro tem direito, nesse caso, não só a um aumento do preço acordado, mas também a um prolongamento do prazo de execução da obra;

7ª-Não tendo sido conferido prolongamento do prazo pela conclusão da obra ou aumentado o preço, não deve ser a Apelante condenada no pagamento aos trabalhadores contratados pelo Apelado para outros trabalhos e que foram deslocados para ajudarem na obra contratada com a Autora atenta a alteração inicialmente acordada entre a Autora e Réu;

8ª-De igual modo e pelos mesmos fundamentos, não deverá ser a Apelante condenada no pagamento ao Apelado no valor de 150 bilhetes correspondentes a outras tantas pessoas que entraram no recinto sem pagar o respectivo bilhete quando a Apelante não tinha qualquer responsabilidade pela vedação do recinto nem pela segurança com o público, nem para tal fora contratada;

9ª- A sentença recorrida violou o disposto no art. 522º-B e na alínea c) do art. 668º, ambos do CPC, e nº~2 do art. 1216º do CC.

O Autor contra-alegou, desde logo suscitando a intempestividade da arguição da nulidade baseada na deficiente gravação da prova, e sempre batendo-se pela acerto da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                II)- OS  FACTOS



Na sentença da 1ª instância foi dado por assente o seguinte quadro  factual:

            1. A Autora exerce a actividade de montagem, aluguer e venda de andaimes e estruturas metálicas.

            2. No âmbito da sua actividade, Autora e Réu acordaram que aquela cederia, entre, 22 e 25 de Julho de 2004, a este, mediante o pagamento de uma contrapartida em dinheiro, transportaria, montaria e desmontaria bancadas metálicas em Caldas da Rainha, para realização de um evento de F… denominado “…..” e que ocorreu no dia 25 de Julho de 2004.

            3. No âmbito do convénio referido em 2., Autora e Réu acordaram em aplicar bancadas metálicas com espaço suficiente para 3500 pessoas, a qual seria montada numa só lateral da via.

            4. Autora e Réu acordaram que a contrapartida monetária referida em 2, importaria em € 7.500,00 com IVA incluído.

            5. No âmbito do convénio referido em 2., Autora e Réu acordaram que aquela forneceria bancadas em estado de novo e que caso existisse alguma bancada que não fosse nova, a mesma seria coberta com relva artificial.

            6. E que a Autora montaria as bancadas até ao dia 23 de Julho de 2004, já que o Réu, no dia 24 de Julho de 2004, tinha de proceder à colocação de lonas publicitárias, protecção de pilotos e espectadores e vedação do recinto, o que era do conhecimento da Autora.

            7. O Réu obteve a autorização da Câmara Municipal de Caldas da Rainha para montagem das bancadas no dia 23 de Julho de 2004.

8. A Autora descarregou o material no local do evento a 21 e a 23 de Julho de 2004.

            9. Posteriormente ao convénio referido em 2., nomeadamente no decurso da montagem das bancadas e não obstante o mencionado em 1, o Réu solicitou à Autora que esta procedesse à montagem de duas bancadas separadas, uma no sentido Sul/Norte da via pública e outra no sentido Norte/Sul.

            10. A Autora apenas deslocou para o local bancadas cuja área tinha uma capacidade máxima de 3.000 lugares sentados, sendo que o valor unitário de cada lugar era de € 2,15.

            11. As bancadas fornecidas pela Autora apresentavam-se sujas com óleos e outros produtos e sem cobertura de relva artificial.

            12. A Autora foi auxiliada por pessoas fornecidas pelo Réu na montagem das bancadas.

            13. O Réu contratou as pessoas referidas em 12., para a colocação de lonas, protecções de pilotos e público, vedações e outros trabalhos de montagem do evento.

            14. O pessoal referido em 12., totalizava oito pessoas.

            15. E foram deslocadas para a montagem das bancadas no início da tarde de 24 de Julho de 2004, já que o pessoal da autora era insuficiente para montar as bancadas a tempo de tudo ficar pronto para o evento começar a horas.

            16. As pessoas referidas em 12. procederam à montagem das bancadas juntamente com os empregados da Autora entre as 14 horas do dia 24 de Julho de 2004 e as 4 horas de 25 de Julho de 2004.

            17. O Réu pagou às pessoas mencionadas em 12., a quantia de € 10,00/hora, no montante total de € 1.120,00.

            18. O evento referido em 2., deveria começar às 10 horas do dia 25 de Julho de 2004.

            19. Em consequência do atraso na montagem das bancadas, a colocação das lonas de publicidade, protecção do público e pilotos e das vedações a delimitar o espaço só ficaram concluídas às 12 horas do dia 25 de Julho de 2004.

            20. Em consequência do atraso referido em 19., cento e cinquenta pessoas entraram no recinto sem pagar bilhete.

            21. Cada bilhete tinha o custo unitário de € 10,00.

            22. O Réu pagou a três espectadores a quantia de € 275,00 em virtude de estes terem ficado com os casacos e vestidos sujos de óleo.

            23. Durante a montagem das bancadas, o Réu informou a Autora que os andaimes se encontravam sujos.

            24. O Réu entregou à Autora, por conta da contrapartida em dinheiro referida em 2., a quantia de € 5.750,00.

            25. A Autora emitiu uma factura no dia 25 de Julho de 2005, no montante de € 12.100,00 e enviou-a ao Réu por carta registada no mesmo dia.

            26. O Réu, no dia 18 de Setembro de 2005, devolveu a factura mencionada à Autora juntamente com o escrito constante de fls. 56 e 57, com o seguinte teor:

                        “2005-08-19

                        Exmos. Senhores

                        Acuso a recepção da v/carta datada de 25/07/2005 à qual passo a responder.

                        Em primeiro lugar o valor acordado não foi o que consta da v/carta.

                        Em segundo lugar, o valor acordado foi pago quase na totalidade conforme é do v/conhecimento, apenas tendo sido retido o valor de parte prejuízos causados.

                        Em terceiro lugar é integralmente falso que não tenham sido apresentadas reclamações ao v/serviço, como aliás sabem.

                        Conforme certamente se recordam as bancadas apresentavam-se sujas e tiveram as mesmas de ser montadas quase na totalidade por elementos da m/equipa.

                        Em consequência do supra referido tive de indemnizar várias pessoas que no final do evento apresentavam vestidos e demais roupa estragada devido à sujidade das bancadas, sendo que os elementos que montaram parte das bancadas foram por mim pagas.

                        Acresce ainda que o material chegou tarde e não fosse montagem por elementos da m/equipa, teria sido impossível a realização do evento, sendo que todos estes factores causariam elevados prejuízos.

                        Face ao exposto considero-me credor da v/empresa a que nada devo, pelo que se devolve a factura agora apresentada com a estranha data de 25/07/2005 (…)”.

            27. A Autora, através dos representantes legais, afirmou perante terceiros, verbalmente e por escrito, que o Réu não tinha carácter nem idoneidade.

            28. Tais afirmações denegriram a imagem do Réu que é uma pessoa séria, honesta e conhecida a nível nacional.

            29. Em consequência do referido em 27, o Réu sentiu-se nervoso e angustiado.

            30. A Autora instaurou contra o ora Réu um procedimento cautelar de arresto que correu termos sob o n.º 2456/05.0TBACB-A do 1.º Juízo deste tribunal e que se encontra apenso aos presentes autos, na qual pagou a importância de € 133,50 a título de taxa de justiça.

                          III)- MÉRITO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3, 3 660º, n.º2, todos do CPC), pela Autora/Apelante vem colocadas a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:

1ª–Nulidade decorrente da imperceptibilidade da gravação da prova e erro de julgamento sobre a matéria de facto;

2ª-Definir se a mora na realização da prestação a cargo da Autora é imputável a esta.

III-1)- Vejamos a 1ª questão.

Alega a Apelante que lhe está vedado impugnar a decisão de facto relativamente ao preço ajustado entre as partes, porque o depoimento da única testemunha em que foi baseada a convicção do Tribunal para responder a tal matéria mostra-se imperceptível e completamente inaudível em toda a parte final (cassete n.º1, lado A e B). Como flui do corpo da alegação de recurso. refere-se a Apelante à testemunha M…., arrolada pelo Réu.

Na contra-alegação, o Réu suscita a extemporaneidade de tal arguição, configurando nulidade processual, citando a jurisprudência sufragada no acórdão do STJ, de 21.11.2007, proferido no P. 07S1805.

No caso ajuizado, tal como decorre dos autos, a Apelante requereu cópia da gravação a fim de impugnar a decisão de facto, tendo a entrega ocorrida em 28.09.207 (cfr. fls. 238), e em 05.11.2007, ou seja, na alegação de recurso, suscita a deficiente gravação.

Julgamos, porém, que tempestivamente a Apelante invoca a irregularidade processual da deficiência na gravação da prova, não estando, pois, sujeita a arguir a nulidade no prazo geral de 10 dias após a entrega dos registos magnéticos. Com efeito, tal como é assinalado no acórdão do STJ, proferido em 22. 03.2007[1], debruçando-se sobre a problemática da deficiente gravação da prova, “entende-se que o prazo para arguir a nulidade terá de ser o que está a decorrer para a prática do acto de que a regularidade do acto omitido é condição necessária, e cuja regularidade igualmente pressupõe, isto é, o prazo para apresentação das alegações, sem ou com multa, salvo se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo esse prazo”. Não é exigível à parte que, logo após a entrega dos registos magnéticos e no prazo de 10 dias, verifique a qualidade da gravação, legitimamente confiando na audibilidade dos depoimentos. Incumbe sim ao tribunal entregar à parte uma gravação em boas condições técnicas ou que seja perceptível, uma vez requerida a cópia ao abrigo do art. 7º do DL n.º 39/95, de 15.02[2]. E se o tribunal verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou esta se mostrar imperceptível, deve proceder à sua repetição sempre que for essencial à descoberta da verdade (art. 9º do citado diploma).

Impugna a Apelante a resposta ao ponto de facto n.º 3 da base instrutória, onde se indaga do preço negociado entre as partes, tendo alegado na petição inicial que esse preço era de € 10.000,00, acrescido de IVA. Ponto de facto que obteve a resposta correspondente ao n.º4 da factualidade supra, ou seja, provou-se que o preço foi € 7.500,00, com IVA incluído, como alegara o Réu na contestação.

Enunciado o concreto ponto de facto que a Apelante reputa incorrectamente julgado, e invocando como concreto meio probatório a impor, na sua óptica decisão diversa, ou seja, o depoimento da testemunha M…, será que a gravação desse depoimento é, na verdade, imperceptível, como alega?

Verifica-se, efectivamente, que é deficiente a gravação desse depoimento, como também a gravação dos depoimentos de outras testemunhas. Não obstante, embora com um esforço redobrado e com o máximo de volume no aparelho de leitura, é perceptível ter a testemunha M…., irmã do Réu, referido o preço de € 7.500,00, embora não tendo estado presente no momento da celebração do contrato, mas tendo seguido muito de perto a organização do evento de Freestyle, como consta da fundamentação das respostas à base instrutória. É certo que a testemunha T….. asseverou que o preço estipulado foi de € 10.000,00, estando presente no escritório da Apelante, sua entidade patronal, quando as partes celebraram o contrato, estando a Apelante representada pelo Sr. Germano.

 Inexistindo qualquer outro depoimento testemunhal sobre esse específico ponto da matéria de facto, a Sr.ª Juiz firmou a sua convicção no depoimento da testemunha M….., desvalorizando o depoimento da testemunha T…...

Como é sabido, e ressalta do preâmbulo do DL n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a aprova produzida em audiência – visando apenas detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”. Como sublinha o STJ, em acórdão de 20.09.2005[3], “o controlo da decisão sobre a matéria de facto por banda do Tribunal da Relação, tendo por base a gravação dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar sem mais a livre a apreciação da prova do julgador construída dialecticamente com base na imediação e oralidade”. Com efeito, escapa ao tribunal de recurso, através da simples audição dos registos magnéticos, toda uma multiplicidade de factores importantes na formação da convicção e que decorrem daqueles princípios da oralidade e imediação. De modo que a faculdade de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, prevista no n.º1 do art. 712º do CPC,  deverá ser usada com prudência, justificando-se em erro evidente no julgamento.  Face ao quadro probatório que se apresenta na hipótese sub judice, impõe-se, a nosso ver, respeitar a convicção da 1ª instância apoiada em depoimento testemunhal que lhe mereceu credibilidade, em detrimento de um outro depoimento que desvalorizou e abonatório do preço alegado pela Autora.

Por conseguinte, sendo perceptível o depoimento da testemunha M…. no que toca à matéria do quesito n.º 3, e não se justificando a anulação do julgamento, mantém-se inalterada a resposta sobre o preço ajustado entre as partes na celebração do contrato.

Improcede, pois, a 1ª conclusão.

Na 2ª conclusão aponta a Recorrente contradição na fundamentação das respostas à base instrutória, alegando ter ficado consignado na motivação que a testemunha T…. a única a afirmar que presenciou a negociação entre as partes, não mereceu credibilidade quanto a certos factos, (quesitos n.ºs 1ª a 5º e 8º), mas no que respeita ao quesito n.º 6 (correspondente à primeira parte do n.º 6 da factualidade assente) o seu depoimento já mereceu credibilidade.

Tal consta, na verdade, da fundamentação, como se vê de fls. 198 e 199, tal não obstando que o depoimento de uma testemunha apenas seja credível sobre certos factos, depondo sobre eles de forma objectiva e isenta, e sobre outra factualidade se revele frágil ou pouco ou nada convincente. Aliás, não estando devidamente fundamentada a decisão sobre facto essencial para o julgamento da causa, e se tal vício ocorrer, resta à parte requerer a baixa do processo à 1ª instância, ao abrigo do n.º 5 do art. 712º do CPC, e tal não foi sequer requerido. Essa é a única reacção legalmente possível contra deficiente fundamentação.

III-2)- Atentemos, agora, na 2ª questão.

Entende a Apelante que não incorreu em mora na prestação a que se obrigou contratualmente, e, por isso, não deve indemnizar o Apelado/Réu pelos prejuízos que para este resultaram como consequência do atraso na montagem das bancadas. 

A este respeito, está provado que a Autora se obrigou a montar as bancadas até ao dia 23 de Julho de 2004, já que o Réu, no dia 24 de Julho de 2004, tinha de proceder à colocação de lonas publicitárias, protecção de pilotos e espectadores e vedação do recinto, o que era do conhecimento da Autora (cfr. n.º 6 supra). A Autora descarregou o material no local do evento a 21 e a 23 de Julho de 2004 (cfr. n.º 8). Também provado que o Réu obteve autorização da Câmara Municipal de Caldas da Rainha para montagem das bancadas no dia 23 de Julho de 2004 (cfr. n.º7). Posteriormente à celebração do contrato, nomeadamente no decurso da montagem das bancadas, o Réu solicitou à Autora que esta procedesse à montagem de duas bancadas separadas, uma no sentido Sul/Norte da via pública e outra no sentido Norte/Sul (cfr. n.º 9). A montagem das bancadas terminou pelas 4 horas do dia 25 de Julho de 2004 (cfr. n.º 16).

Face a tal quadro factual, ponderou a 1ª instância que a Autora/Apelante se constituiu em mora, tendo obrigação de reparar os danos causados ao Réu/Reconvinte decorrentes desse atraso na prestação.

Como prescreve o n.º2 do art. 804º do CC, “o devedor considera-se em mora quando, por causa que lhe é imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido”. E de acordo com o n.º1 do mesmo artigo, “a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor”.  E tendo a obrigação prazo certo, o devedor fica constituído em mora, decorrido que seja esse prazo (alínea a) do n.º2 do art. 805º do CC).

Devendo as bancadas ser montadas pela Autora até ao dia 23 de Julho de 2004 é evidente que ocorreu atraso na prestação por banda da Autora, porque a montagem das bancadas terminou pelas 4 horas do dia 25 de Julho de 2004. O Réu logrou provar, como lhe competia, o retardamento em si ou os pressupostos objectivos da mora, bem como a existência de danos como resultado (nexo de causalidade) da não realização pontual da prestação, tal como se vê dos n.ºs 15, 16, 17, 19, 20 e 21 da factualidade provada.

Mas o retardamento ou a mora da prestação é imputável à Autora?

É de presumir a culpa do devedor no atraso da prestação, uma vez que a mora corresponde a um incumprimento temporário, a uma violação do dever de prestar pontualmente (n.º1 do art. 406º e n.º1 do art. 799º, ambos do CC). Qualquer retardamento na efectivação da prestação é, por presunção, atribuído a ilícito praticado pelo devedor, a culpa ou a conduta valorada negativamente. Cabe, pois, ao devedor provar a ocorrência de qualquer outro tipo de retardamento (devido a facto fortuito ou a motivo de força maior, a acto do credor por falta da necessária colaboração ou mesmo a acto de terceiro) se não se verificar a mora solvendi.

E tal presunção foi ilidida ou a Autora afastou a presunção de culpa?

Na resposta à contestação/reconvenção, a Autora alegou ter a Réu pedido à Autora que procedesse à montagem de duas bancadas separadas, - em vez de uma única bancada para a assistência, totalmente corrida, como estava previsto inicialmente, - sendo uma delas no sentido Norte/Norte da via pública e a outra no sentido Norte/Sul da mesma via pública. E tal alteração na montagem, para além do acréscimo de custo, implicou acréscimo do tempo previsto para a execução da obra. Mais alegou que, apesar de ter descarregado o material no local do evento, a 21 de Julho e a 23 de Julho do ano de 2004, o Réu só arranjou autorização para a montagem das bancadas no dia 23 de Julho de 2004.

Face à matéria de facto assente sob os n.ºs 7, 8 e 9, salta à evidência que a Autora ficou impedida de executar pontualmente a prestação até ao dia 23 de Julho de 2004, porque só nesse dia o Réu obteve a autorização camarária para a montagem das bancadas, tendo ainda solicitado à Autora, no decurso da montagem das bancadas, obra não prevista (duas bancadas separadas uma da outra, implantadas de ambos os lados da via pública) a implicar acréscimo de tempo na execução. A Autora descarregou o material no local do evento desportivo a 21 e a 23 de Julho de 2004, portanto a tempo e horas. E, como bem alega a Recorrente, citando o n.º2 do art. 1216º do CC, o empreiteiro tem direito ao prolongamento do prazo para a execução da obra, havendo alterações pelo dono da obra ao plano convencionado. Conclui-se, assim, e contrariamente à tese perfilhada na sentença sob exame, que a Autora não se constituiu em mora, porque não teve culpa no incumprimento temporário da prestação, sendo a demora na montagem das bancadas apenas devida a facto do Réu, não se exigindo sequer culpa do credor como requisito da mora credendi. Consequentemente, não é a Autora/Reconvinda obrigada a reparar os danos causados ao Réu pela mora, ou seja, a quantia de € 1.040,00 correspondente aos gastos havidos com os oito trabalhadores contratados pelo Réu e ainda a quantia de € 1.500 relativa aos prejuízos advenientes da entrada de 150 pessoas no recinto desportivo sem pagar bilhete.

Atento o preço convencionado, ou seja, € 7.500, IVA incluído, tendo o Réu já pago a quantia de € 5.750,00, tem a Autora direito a receber a quantia de € 1.928,36, já incluídos os juros moratórios civis, desde 01.01.2005, como consta da sentença recorrida.

Por seu turno, a Autora terá de pagar ao Réu a quantia de € 500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais causados ao Réu, condenação que não mereceu impugnação, tendo em conta os factos provados sob os n.ºs 27, 28 e 29. A reconvenção apenas procede nessa parte, soçobrando quanto ao mais peticionado.

Tendo o Réu/Reconvinte requerido a compensação, a tal não obstando o diferente montante das dívidas (art. 847º do CC), apenas é devedor da quantia de € 1.428,36 (= € 1.928,36 - € 500,00), a que acrescem os juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis, desde a data da sentença recorrida até efectivo pagamento. 

Em suma, tal como defende a Apelante nas conclusões 3ª a 8ª, a  mora não lhe é imputável, e, por isso, não é obrigada a reparar os danos causados ao Réu directamente derivados do atraso na montagem das bancadas.

                                       III)- DECISÃO

Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em:

1-Conceder parcial provimento ao recurso.

2-Revogar em parte a sentença impugnada e condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de € 1.428,36, acrescida de juros moratórios nos termos sobreditos.

3-As custas, em ambas as instâncias, serão suportadas pela Autora e Réu na proporção do respectivo decaimento.


[1] Disponível em www.dgsi.pt,  Proc. n.º 06ª4449, relatado pelo Conselheiro Alves Velho. No mesmo sentido o acórdão do STJ, de 29.05.2007, proferido no Proc. 07A191, também disponível em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. acórdão do STJ, de 07.02.2008, proferido no Proc. 07ª4011, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Disponível em www.dgsi.pt, proferido no Proc. n.º 05A2007