Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3360/06.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVIA PIRES
Descritores: COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
COMODATO
ARRENDAMENTO URBANO
EFEITOS JURIDICOS DA COLIGAÇÃO
Data do Acordão: 09/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1129º A 1141ºDO C.CIV
Sumário: I – O comodato, como contrato típico e nominado que é, encontra a sua previsão e disciplina nos artºs 1129º a 1141º do C. Civ..

II – O artº 1129º do C. Civ. define o comodato como sendo um contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega a outra certa coisa móvel ou imóvel para que se sirva dela com a obrigação de a restituir.

III – De iure constituto a entrega da coisa integra o processo formativo do contrato de comodato, não sendo um acto de cumprimento do mesmo, como sucede nos contratos consensuais.

IV – Num caso de comodato de um espaço numa garagem fechada, o acto de transmissão material traduzir-se-á, numa situação de normalidade, na entrega duma chave da garagem ao comodatário, permitindo-lhe, assim, utilizar o referido espaço sempre que deseje.

V – A lei, pese embora a natureza temporária do contrato de comodato, não estabelece qualquer prazo de duração máxima para a sua existência, mas quando não tenha sido convencionado nem prazo nem uso determinado, cessa o comodato quando o comodante o exija.

VI – Em caso de o uso acordado para parte de uma garagem comodatada (utilização como armazém de um estabelecimento de bebidas explorado pelo comodatário noutra fracção sita por cima dessa garagem) não ter sido definido o tempo do mesmo, não há um fim à vista para o termo desse contrato, o qual pode perpetuar-se indefinidamente.

VII – Contudo, neste caso, o contrato de comodato de parte de uma garagem encontra-se coligado com um contrato de arrendamento relativo à fracção situada por cima dessa garagem, onde é explorado um estabelecimento de bebidas.

VIII – Perante tal realidade é forçoso concluir que os contratos de arrendamento da dita fracção onde se encontra instalado o estabelecimento de bebidas e o de comodato da dita parte de garagem se encontram coligados por um nexo funcional recíproco, o que, sem questionar a sua autonomia, necessariamente se reflecte na sua disciplina.

IX – Uma das manifestações da coligação recíproca de contratos na sua disciplina que mais frequentemente é apontada é a da aplicação do princípio expresso no brocardo simul stabunt, simul cedent, segundo o qual a extinção de um dos contratos coligados afectará o outro.

X – Outra das manifestações da relevância das coligações negociais é a de que ao invés da extinção dos efeitos contratuais de um contrato arrastar a extinção do contrato com ele coligado, a inclusão de diversos negócios na mesma operação complexiva impede que um dos contratos possa ser extinto, ainda que, isoladamente considerado, houvesse fundamento para isso, de modo a evitar-se a extinção injustificada do outro contrato.

Decisão Texto Integral: Autores:A...
               B...
 
Ré:C...

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra


Os Autores intentaram a presente acção declarativa com processo ordiná­rio contra C..., D..., E... e F..., pedindo:
a) a declaração da Autora como dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra C, correspondente à garagem com o nº 6, na cave do prédio urbano sito em Coimbra, na Rua D. Lucêncio, 19, no Bairro Residencial de Celas;
b) a condenação dos Réus  a reconhecerem esse direito de propriedade;
c) a condenação dos Réus a restituírem à Autora a garagem livre de pes­soas e bens;
d) a condenação dos Réus a pagarem-lhes uma indemnização no valor de € 16.200,00 relativo aos lucros cessantes que deixaram de receber pelo arrenda­mento da garagem, acrescendo uma indemnização no valor de € 150,00 por cada mês vincendo de ocupação da garagem, até à sua entrega, livre de pessoas e de bens.       
Para tanto alegam em síntese:
Ø      A Autora é proprietária daquela fracção, explorando a Ré o estabele­cimento Café Escondidinho a funcionar no rés-do-chão do mesmo nº 19 da Rua Bispo D. Lucêncio, que corresponde à fracção “G” do mesmo referenciado prédio (piso imediatamente superior à garagem supra referida);
Ø      Em Fevereiro de 1997, quando se iniciou a exploração do café, a pedido dos gerentes da 1ª Ré no sentido de lhes ser disponibilizado um “cantito” da dita garagem para arrumação temporária e provisória de alguma mercadoria do café, o Autor acedeu;
Ø      Desde Janeiro de 1998 que os Autores vêm insistindo com a gerên­cia da 1ª Ré pela devolução da garagem;
Ø      No mercado de arrendamento a mencionada garagem poderia propor­cionar-lhes uma renda mensal situada entre os € 150,00 e os € 250,00.

Os Réus apresentaram contestação, excepcionando D..., E... e F... a sua ilegitimidade e alegando, em síntese:
Ø      Desde anteriores ocupações e explorações comerciais que a gara­gem está funcionalmente ligada ao rés-do-chão, num total de mais de 15 anos;
Ø      Foram os próprios Réus a concordar com esta utilização pela Ré sociedade;
Ø      O negócio de trespasse por via do qual a Ré se tornou detentora do estabelecimento foi feito de acordo com o Autor que inclusivamente emitiu uma Declaração em tal sentido;
Ø      O Autor acordou que se manteria a ligação funcional das duas frac­ções nos mesmos termos antecedentes, designadamente com a água e electricidade da garagem ligadas aos contadores do rés-do-chão, sendo a Ré a pagar os respecti­vos consumos e com a exaustão dos fumos do rés-do-chão a fazer-se pela garagem, sem embargo dele continuar a servir-se também da garagem para guardar um automóvel e outros objectos;
Ø      Sendo a utilização de parte da garagem indispensável ao funciona­mento do Café instalado no rés-do-chão, a Ré não teria aceitado tornar-se arrendatá­ria sem a possibilidade de utilizar a referida parte da garagem;
Ø      Os Autores não conseguiriam arrendar a garagem por mais de € 50,00 mensais;
Concluíram, no sentido da procedência das excepções deduzidas e da improcedência da acção.

Os Autores apresentaram réplica, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas pelos Réus e pela procedência da acção, formulando pedido de condenação dos Réus em multa por litigância de má fé.

No despacho saneador foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade passiva de D..., E... e F..., tendo estes sido absolvidos da instância.

Foi proferida sentença que termina com a seguinte decisão:
Face a tudo o exposto e nos termos das disposições legais indicadas, sem necessidade de maiores considerações, decide-se, a final, entendendo haver abuso do direito por parte dos AA. com a pretensão formulada nesta acção, julgar a mesma improcedente, porque não provada, absolvendo a Ré totalmente do pedido.

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Desta sentença recorreram os Autores, apresentando as seguintes conclu­sões:
[…]
Concluem pela procedência do recurso.

A Ré apresentou contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

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1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações dos recorrentes, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A sentença é nula porque conheceu de questões que não devia ter apreciado?
b) A sentença é nula porque não fundamenta a decisão?
c) A resposta dada ao quesito 25º da base instrutória deve ser alterada?
d) Os Autores tem direito a exigir da Ré a restituição da garagem cujo gozo parcial lhe permitiram a título precário ?
e) O não reconhecimento deste direito aos Autores viola o direito cons­titucional à propriedade privada, previsto no artigo 62º, da C.R.P.

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2. Das nulidades da sentença
2.1. Do excesso de pronúncia
[…]
2.2. Da falta de fundamentação
[…]
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3. Dos factos
[…]
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São os seguintes os factos provados:

I – A Autora A... é a proprietária da gara­gem nº 6, na cave, que é a fracção “C” do prédio da Rua Bispo D. Lucêncio, nº19, em Coimbra, com a inscrição matricial sob o art. 7032º de Sº. Antº. dos Olivais-Coimbra, com a descrição nº 0215 da C. R. Predial de Coimbra, que herdou por morte de seus pais, por escritura de partilhas de 1999.02.17. – Alínea A dos factos assentes.
II – Por escritura de 1992.09.30, o Autor, B..., que é casado em comunhão de adquiridos com a Autora, como procurador de G... e H..., arrendou a I..., casada com J..., a fracção “G” correspon­dente ao r/c direito frente do prédio referido na alínea anterior, por 6 meses renová­veis, para café e snack-bar. – Alínea B dos factos assentes.
III – Por escritura de 1997.03.17, I... e J... declararam trespassar à Ré C..., o estabelecimento de bebidas e restaurante, instalado na dita fracção “G”, abrangendo o trespasse a cedência de todos os bens que integravam o mesmo estabelecimento. - – Alínea C dos factos assentes.
IV – A Ré vem, desde o início da sua exploração do dito estabelecimento, a ocupar, com conhecimento e consentimento dos Autores, parte da garagem refe­rida em I, como armazém do estabelecimento referido em II e III, tendo uma chave dessa garagem. – Alínea D dos factos assentes.
V – A dita fracção “G” é agora propriedade inscrita na C. R. Predial de Coimbra do Autor, que a adquiriu por doação. - – Alínea E dos factos assentes.
VI – Com data de 1998.01.12, o Autor solicitou à Ré que lhe entregasse a parte da fracção “C” que ocupava. – Alínea F dos factos assentes.
VII – Por notificação judicial avulsa de 2004.01.21, os Autores pediram à Ré a entrega da parte da dita fracção “C” em 8 dias, livre e desocupada. – Alínea G dos factos assentes.
VIII – A água e electricidade da fracção “C” estão ligadas aos contadores da fracção “G”, sendo a Ré a pagar o seu custo. – Alínea H dos factos assentes.
IX – O tubo de exaustão dos fumos e vapores do estabelecimento da frac­ção “G” passam pela fracção “C”, saindo pela janela desta. – Alínea I dos factos assentes.
X – O Autor, emitiu em 1997.02.25, a declaração de fls. 65, em que informava não estar interessado em exercer o direito de preferência no trespasse do estabelecimento “Snack-Bar Cebolinha”, autorizando a Ré “C...” a utilizar esse estabelecimento, como sede. – Alínea J dos factos assentes.
XI – A Ré tem a matrícula, na C. R. Comercial de Coimbra nº 503940313, tendo a sua inscrição 1-Ap.01/19970311. – Alínea K dos factos assentes.
XII – Aquando das negociações que antecederam o trespasse aludido em III os gerentes da Ré obtiveram directamente do Autor autorização para a ocupação aludida em IV. – Resposta aos quesitos 1º a 4º.
XIII – Antes de 1992, os Autores exploravam na fracção “G” um mini­mercado. – Resposta ao quesito 5º.
XIV – Tendo fechado esse minimercado, foi cedida a exploração da frac­ção “G” ao Sr. K..., que aí instalou e explorou um Café. –Resposta ao quesito 6º.
XV – Continuando a fracção “C” funcionalmente ligada à fracção “G”, servindo de armazém do Café. – Resposta ao quesito 7º.
XVI – Tendo o próprio Autor mandado fazer um orifício na placa que separa a garagem do r/c, para colocar o tubo de exaustão aludido em IX, sendo que desde então e até ao presente a exaustão assim se tem processado. – Resposta ao quesito 8º.
XVII – Nesse tempo eram guardados pelos Autores, na garagem, alguns artigos do antigo minimercado e estacionado um carro velho. – Resposta ao quesito 9º.
XVIII – Ficando cada um deles com uma chave dessa garagem. – Resposta ao quesito 10º.
XIX – Fechou esse Café, cerca de 1992, entregando o Sr.K... ao Autor o r/c e a garagem, com as respectivas chaves. – Resposta ao quesito 11º.
XX – Tendo, após, sido outorgada a escritura aludida em II. – Resposta ao quesito 12º.
XXI – Em momento não concretamente apurado desse contrato o Autor acordou com essa arrendatária disponibilizar-lhe uma parte da garagem para arma­zém do estabelecimento de café e snack-bar, mantendo o Autor a guarda aí de um velho automóvel e alguns objectos. – Resposta aos quesitos 13º e 14º.
XXII – Sendo essa arrendatária revendedora de botijas de gás, que guar­dava na garagem. – Resposta ao quesito 15º.
 XXIII – Ao tempo do trespasse aludido em III, já então estava a água e electricidade da fracção “C” ligada aos contadores da fracção “G”. – Resposta ao quesito 17º.
XXIV – A trespassante aludida em III entregou à Ré trespassária, com o acordo do Autor a chave da garagem que possuía. – Resposta ao quesito 18º.
XXV – O estabelecimento da Ré carece em termos logísticos e operacio­nais do acesso e utilização de parte da fracção “C” para poder funcionar adequada­mente. – Resposta ao quesito 23º.
XXVI – Nunca teria a Ré Sociedade aceitado o trespasse do estabeleci­mento da fracção “G”, se não lhe tivesse sido concedida a possibilidade de utilização da referida parte da garagem. – Resposta ao quesito 25º, alterada por este acórdão.
XXVII – A preços de mercado, o arrendamento da fracção “C” não será inferior a € 80,00 mensais nem superior a € 150,00 mensais. – Resposta aos quesitos 26º e 27º.  

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4. O Direito aplicável

Os Autores pretendem obter a condenação da Ré a restituir-lhes a parte por esta ocupada da garagem que lhes pertence e a indemnizá-los dos prejuízos causados por essa ocupação.
A utilização daquele espaço pela Ré teve o seu início no momento em que esta tomou de trespasse um estabelecimento a funcionar numa fracção do mesmo prédio situada por cima da garagem, a qual pertence actualmente ao Autor.
Na verdade, provou-se o seguinte:
- Em 17-3-1997, a Ré adquiriu de trespasse um estabelecimento de café que funcionava na fracção situada por cima da garagem reivindicada, actualmente pertencente ao Autor, ocupando este a posição de senhorio no respectivo contrato de arrendamento do qual a Ré é a actual arrendatária,
- Aquando das negociações que antecederam o trespasse os gerentes da Ré obtiveram directamente do Autor autorização para ocupar parte da garagem, como armazém do estabelecimento de café.
- A Ré nunca teria aceite o trespasse do estabelecimento, se não tivesse a possibilidade de utilização da referida parte da garagem.
- Os trespassantes entregaram à Ré trespassária, com o acordo do Autor, a chave da garagem que possuía, por altura do trespasse.
- Aquela utilização da garagem já era efectuada anteriormente pelos tres­passantes do estabelecimento, com o acordo do Autor, tal como já tinha ocorrido com anteriores utilizadores da fracção situada por cima da garagem.
Os Autores questionam desde logo o enquadramento jurídico em que se poderá radicar a detenção que a Ré vem fazendo da parte da garagem reivindicada, discordando que se possa falar de um contrato de comodato, por falta de um acto de entrega. Na perspectiva dos Autores estar-se-ia perante um acto de mera tolerância do titular do direito de propriedade relativamente à ocupação da garagem pela Ré, por razões de cortesia, sem que se pretendesse atribuir qualquer direito de ocupação ao beneficiário.
Antes de nos debruçarmos sobre o mérito desta alegação convém referir que apesar da fracção correspondente à garagem reivindicada pertencer à Autora mulher e ter sido o Autor marido quem permitiu a sua utilização, quer pela Ré, quer pelos anteriores proprietários do estabelecimento trespassado a esta, da posição assumida por ambos os Autores na notificação judicial avulsa acima referida em VII e nesta acção, resulta, com clareza, que a referida actuação do Autor marido teve a concordância da Autora mulher, tendo aquele agido em sua representação, pelo que tais autorizações vincularam os dois cônjuges.
O comodato, como contrato típico e nominado que é, encontra a sua pre­visão e disciplina nos art.º 1129º a 1141º do C. Civil.
O art.º 1129º do C. Civil define o comodato como sendo um contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega a outra certa coisa móvel ou imóvel, para que se sirva dela com a obrigação de a restituir.
Lendo este preceito dificilmente se poderá negar que estamos perante um contrato de natureza real - quod constitutionem- , já que o mesmo só se considera constituído e perfeito com a entrega da coisa, não bastando para tal o simples acordo de vontades.
Esta construção do contrato de comodato remonta ao direito romano na evolução do direito clássico para o direito justinianeu [1], mantendo-se anacronica­mente na generalidade das legislações modernas [2], por força da tradição, apesar das críticas que lhe vem sendo dirigidas [3].
De iure constituto a entrega da coisa integra o processo formativo do contrato de comodato, não sendo um acto de cumprimento do mesmo, como sucede nos contratos consensuais.
O acto de transmissão material pode assumir as formas mais diversas, devendo corresponder à colocação pelo comodante da coisa comodatada na disponi­bilidade do comodatário. Desde que, com o consentimento do comodante, o como­datário obtenha a detenção da coisa, o negócio jurídico do comodato fica consu­mado [4].
Neste caso, em que se trata de um espaço numa garagem fechada, esse acto traduzir-se-á, numa situação de normalidade, na entrega duma chave da gara­gem ao comodatário, permitindo-lhe, assim, utilizar o referido espaço sempre que deseje.
Foi exactamente isso que sucedeu, uma vez que, sendo esse espaço já utilizado pelos proprietários de um estabelecimento, como armazém do mesmo, ao trespassarem esse estabelecimento à Ré, os Autores autorizaram que esta conti­nuasse a utilizar esse espaço para os mesmos fins, tendo, por isso, os trespassantes, com o acordo daquele, efectuado a entrega da chave da garagem à Ré, aquando do trespasse.
Os trespassantes ao entregarem a chave da garagem à Ré, com o acordo dos Autores, agiram em seu nome, pelo que deve considerar-se que se verificou uma entrega daquele espaço à Ré, a título gratuito, pelos Autores, através de represen­tante, nos termos do art.º 258º, do C. Civil.
A intervenção concordante dos Autores no acto que permitiu à Ré a utili­zação daquele espaço, o qual tem em vista uma afectação económica de vocação duradoura, não é de uma mera tolerância face a uma ocupação de facto do mesmo, correspondendo antes a uma declaração de vontade negocial vinculativa, através da qual os Autores cederam temporariamente à Ré o gozo daquele espaço sem qualquer contrapartida.
Revela-se, pois, correcto o enquadramento jurídico efectuado pela sen­tença recorrida, segundo o qual a utilização pela Ré de um espaço na garagem da Autora, se encontrava titulada pela celebração de um contrato de comodato.
A lei, pese embora a natureza temporária do contrato de comodato, não estabelece qualquer prazo de duração máxima para a sua existência [5].
Contudo, o artigo 1137º, do C. Civil, estipula o seguinte nos seus dois pri­meiros números, a propósito do dever de restituição do mandatário consagrado na alínea h), do art.º 1135º:
1 -  Se os contraentes não convencionarem prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2 - Se não for convencionado prazo certo para a restituição nem deter­minado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.
Deste preceito decorre que o contrato de comodato cessa:
a) Quando finde o prazo certo convencionado para a restituição;
b) Não tendo sido convencionado prazo, quando finde o uso determinado para que foi concedido;
c) Ou, não tendo sido convencionado nem prazo nem uso determinado, quando o comodante o exija [6].
No caso em apreço, não se revelou que as partes tenham convencionado prazo certo para o uso da parte da garagem comodatada pela Ré.
Quanto ao seu uso, provou-se que os Autores autorizaram a Ré a utilizar uma parte da garagem como armazém do estabelecimento de bebidas e restaurante explorado por ela na fracção situada por cima da garagem, pelo que no contrato de comodato foi fixada a finalidade a que podia ser destinada a coisa comodatada.
Contudo, dada a natureza temporária deste contrato, tem vindo a ser entendido que o uso só é susceptível de estabelecer um termo para o contrato quando delimita temporalmente a necessidade que o comodato visa satisfazer [7]. O uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso (v.g. emprés­timo de um fato para usar numa cerimónia de casamento, de um quadro para uma exposição, de um automóvel para uma deslocação, de uma casa para o período de férias do comodatário…). Nesta última situação o termo do contrato não é fixado através da estipulação de um prazo, mas através da fixação do tipo de uso que pode ser dado à coisa comodatada. Se este uso é temporalmente determinado, o termo do contrato só ocorre quando o uso fixado cesse. Ao estipular-se a que uso a coisa comodatada se destina, sendo esse uso, pelas suas características, temporalmente determinado, tacitamente, estabelece-se um prazo de duração do contrato.
Ora, neste caso, o uso acordado para a parte da garagem comodatada - utilização como armazém do estabelecimento de bebidas e restaurante explorado pela comodatária na fracção situada por cima dessa garagem – não define o tempo de uso, uma vez que a exploração desse estabelecimento pela Ré pode perpetuar-se indefinidamente. Não há um fim à vista para o termo do contrato. Nem de forma expressa, nem tácita, se marca termo ao uso acordado, estando este na disponibili­dade do comodatário, pelo que não se pode dizer que estamos aqui perante a estipu­lação de “uso determinado” nos termos previstos no art.º 1137º, n.º 1, do C. Civil.
Não tendo sido fixado um prazo para a duração do comodato, nem resul­tando o mesmo do tipo de uso convencionado para a coisa comodatada, estamos perante aquilo que a doutrina vem qualificando de comodato precário, no qual a restituição daquela pode ser exigida pelo comodante, independentemente de qual­quer justificação, a todo o tempo.
O contrato de comodato precário não deixa de ser um acordo de vontades juridicamente relevante que vincula os seus outorgantes, diferenciando-se do con­trato de comodato a termo em virtude do comodante poder fazer cessar a relação contratual a qualquer momento, segundo a sua vontade [8].
Contudo, neste caso, o contrato de comodato de parte duma garagem encontra-se coligado com um contrato de arrendamento relativo à fracção situada por cima dessa garagem, onde a Ré explora um estabelecimento de bebidas e restau­rante.
Não só o contrato de comodato beneficiando a Ré foi outorgado aquando do ingresso desta, por trespasse do referido estabelecimento, na posição de locatária no referido contrato de arrendamento, como foi celebrado por causa deste contrato. Na verdade, além da existir uma dependência material entre as duas fracções - a água e electricidade da garagem estão ligadas aos contadores do estabelecimento, sendo a Ré a pagar o seu custo, e o tubo de exaustão dos fumos e vapores do esta­belecimento passam pela garagem, saindo pela janela desta -, também se verifica uma dependência funcional - o estabelecimento carece em termos logísticos e operacionais do acesso e utilização de parte da garagem para poder funcionar adequadamente.
Daí que a Ré Sociedade nunca teria aceitado o tres­passe do estabeleci­mento da fracção onde está instalado o seu estabelecimento de bebidas e restaurante, se não lhe tivesse sido concedida a possibilidade de utilização da referida parte da garagem.
O contrato de comodato só foi celebrado para assegurar o gozo da fracção predial arrendada para os fins a que a coisa se destina nos termos do contrato de arrendamento, pelo que existe uma dependência funcional recíproca vital entre os dois contratos. O contrato de arrendamento não consegue subsistir sem o contrato de comodato e este deixa de ter sentido se o contrato de arrendamento cessar.
Perante esta realidade é forçoso concluir que os contratos de arrenda­mento da fracção onde se encontra instalado o estabelecimento comercial da Ré e de comodato de parte da garagem situada por baixo daquela encontram-se coligados por um nexo funcional recíproco, o que, sem questionar a sua autonomia, necessa­riamente se reflecte na sua disciplina [9].
Uma das manifestações da coligação recíproca de contratos na sua disci­plina que mais frequentemente é apontada é a da aplicação do princípio expresso no brocardo simul stabunt, simul cedent, segundo o qual, a extinção de um dos contra­tos coligados afectará o outro [10].
Isto significaria, no nosso caso, que a admitir-se a possibilidade dos comodantes porem termo ao contrato de comodato em qualquer altura, isso iria determinar a extinção do contrato de arrendamento, uma vez que o objecto deste, sem a possibili­dade de utilização de parte da garagem, deixava de ser capaz de assegurar o funcio­namento adequado do estabelecimento comercial da Ré, não permitindo o gozo do arrendado para os fins a que foi destinado, segundo o contrato de arrendamento. Este desfecho frustraria a directriz jurídico-económica orientadora da disciplina dos contratos de arrendamento de imóveis para fins comerciais de garantir alguma estabilidade ao arrendatário comercial no gozo do local onde ele exerce o seu comércio.
Daí que deva aqui aplicar-se outra das manifestações da relevância das coligações negociais segundo a qual, ao invés da extinção dos efeitos contratuais de um contrato arrastar a extinção do contrato com ele coligado, a inclusão de diversos negócios na mesma operação complexiva impede que um dos contratos possa ser extinto, ainda que, isoladamente considerado, houvesse fundamento para isso, de modo a evitar-se a extinção injustificada do outro contrato [11].
Tendo a celebração do contrato de comodato visado assegurar a vigência do contrato de arrendamento, pois só com a existência daquele, o objecto deste era capaz de assegurar a obtenção do seu fim, tal missão impede que o mesmo possa estar sujeito à precariedade consagrada no art.º 1327º, n.º 2, do C. Civil, não podendo o seu termo estar na livre disponibilidade do comodante. A vontade deste não é suficiente para extinguir a relação de comodato, coligada com a relação de arrenda­mento, nos termos descritos.
A coligação contratual é suficiente para determinar uma alteração da dis­ciplina do contrato de comodato aí inserido, não sendo necessário recorrer à figura do abuso de direito para evitar o funcionamento do disposto no art.º 1327º, n.º 2, do C. Civil.
Não podendo os Autores pôr termo livremente ao contrato de comodato e mantendo-se vigente o contrato de arrendamento da fracção onde a Ré explora um estabelecimento comercial, pelos fundamentos acima explicados não pode proceder o pedido de restituição da parte da garagem comodatada, nem o pedido de indemni­zação pela ocupação que a Ré vem efectuando dessa parte.
Apesar da Autora ser proprietária da garagem, a decisão de neste caso não lhe reconhecer o direito à restituição da mesma, não resulta em qualquer restri­ção ilegítima do direito constitucional à propriedade privada reconhecido no art.º 62º, da C. R. P..
Se o direito constitucional à propriedade privada abrange a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário [12], há que ter presente que este direito não é garantido em termos absolutos, tendo as restrições e limites previstos e defini­dos noutros lugares da Constituição [13], nomeadamente o princípio constitucional da autonomia privada que na área dos direitos dos contratos assume a facul­dade jurí­dica primária da liberdade contratual, o qual resulta da leitura conjugada de alguns dos seus preceitos (v. g. artigos 26.º, n.º 1, na parte em que confere o direito ao desenvol­vimento da personalidade individual, e 61.º, quando reconhece a liberdade de inicia­tiva económica). Da soma integrada destes parâmetros resulta a garantia constitucional dos particulares pode­rem auto-governar-se, organizando a sua vida, por sua iniciativa e vontade, e con­formando, segundo as suas opções, as suas rela­ções jurídicas com os outros [14].
Não constituindo a celebração de um contrato um fim em si mesmo, visando antes a produção de determinados efeitos jurídicos, aquela tutela constitu­cional abrange a produção e o reco­nhecimento pelo ordenamento jurídico desses efeitos, pelo que deve ser reconhecida a possibilidade do proprietário, por contrato, dispor da sua liberdade de usar e fruir dos bens de que é proprietário, a favor de outrem, ficando vinculado a respeitar essa disposição contratual, efectuada de livre vontade, nos termos em que a fez, sem que daí resulte qualquer violação da Consti­tuição.
Pelos fundamentos acima explicados o recurso deve ser julgado improce­dente, confirmando-se a decisão recorrida, embora com fundamentação diversa.

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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida, com fundamentação diversa.

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Custas do recurso pelos recorrentes.

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                                                           Coimbra, 30 de Setembro de 2008.


[1] Vide sobre a inclusão do contrato de comodato nos contratos com natureza real nas Instituições justinianeias, Vera-Cruz Pinto, em O direito das obrigações em Roma, vol. I, pág. 270-273, da ed. de 1997, da A.A.F.D.L., e Max Kaser, em Direito privado romano, pág. 226, da ed. de 1999, da Fundação Calouste Gulbenkian.

[2] É assim, no direito português (art.º 1129º, do C.C.), francês (art.º 1875, do Code Civil), italiano (art.º 1803, do Codice Civile), espanhol (art.º 1740, do Codigo Civil), brasileiro (art.º 579º, do Código Civil). No direito alemão, porém, o contrato de comodato é um contrato consensual (§ 598, do BGB).

[3] Almeida Costa, em Direito das obrigações, pág. 285, da 11ª ed., da Almedina.

[4] Henrique Mesquita, em anotação ao acórdão do S.T.J., de 5 de Março de 1996, na R.L.J., Ano 130, n.º 3875-3876, pág. 42.
[5] Debate-se, contudo, na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de se fixar num contrato de comodato um prazo excessivamente longo, atenta a sua natureza temporária. Vide, Michele Fragali, em Commentario del Codice Civile, Libro Quarto, Delle Obbligazioni, Art. 1754-1812, a cura di António Scialoja e Giuseppe Branca, pág. 316-318, da 2ª ed., da Nicola Zanichelli Editore, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil anotado, vol. II, pág. 756, da 4ª ed., da Coimbra Editora, Rodrigues Bastos, em Notas ao Código Civil, vol. IV, pág. 250, da ed. de 1995, do Rei dos Livros, e Baptista Machado, em Contrato de locação de estabelecimento comercial, na C.J., Ano XIV, tomo 2, pág. 22.

[6] Estas regras reproduzem as que já vigoravam com o Código de Seabra (art.º 1510º-1512º), e as constantes do C.C. Francês (art.º 1888-1889), C.C. Italiano (art.º 1809-1810), C.C. Espanhol (art.º 1749-1750), BGB (§ 604) e C.C. Brasileiro (art.º 581). O nosso C.C. de 1966 não contemplou expressamente a possibilidade do comodante exigir a restituição da coisa antes de terminar o prazo convencionado, sobrevindo-lhe necessidade urgente, ao contrário do que constava, quer do Código de Seabra (art.º 1513), quer dos referidos Códigos estrangeiros. Perante a falta de previsão específica desta regra excepcional, os seus efeitos apenas poderão ser obtidos, no nosso direito positivo, através do recurso à figura da resolução do contrato de comodato por justa  causa, prevista no artigo 1140º, do C.C..
[7] Vide, neste sentido, Michele Fragali, na ob. cit., pág. 317-318, Fracesco Galgano, em Diritto civile e commerciale, vol. 2º, tomo 2º, pág. 153-154, da 4ª ed. da Cedam,  Fernando Marques de Matos, em Contrato de comodato, pág. 50 e seg., da ed. de 2006, da Almedina, e os seguintes acórdãos:
da Relação do Porto, de 26-1-1984, relatado por Resende Pego, na C.J., Ano IX, tomo 1, pág. 231.
da Relação do Porto, de 11-1-1994, relatado por Araújo de Barros, na C.J., Ano XIX, tomo 2, pág. 173.
da relação de Évora, de 16-1-1997, relatado por Mário Pereira, na C.J., Ano XXII, tomo 1, pág. 287.
da Relação do Porto, de 14-4-1997, relatado por Reis Figueira, na C.J., Ano XXII, tomo 2, pág. 219.
do S.T.J., de 13-5-2003, relatado por Silva Salazar, acessível em www.dgsi.pt.
da Relação de Coimbra, de 27-6-2006, relatado por Isaías Pádua, acessível em www.dgsi.pt.
da Relação do Porto, de 15-1-2007, relatado por Cura Mariano, acessível em www.dgsi.pt.
O BGB, dos Códigos referidos na nota anterior, é aquele que adopta uma redacção que melhor traduz esta ideia: Se a duração do comodato não é estabelecida, e não pode deduzir-se do fim do comodato, o comodante pode exigir a restituição da coisa em qualquer momento (§ 604, p. 3).

[8] Apesar de parecer claro que o comodato precário, também apelidado somente de precário, é uma modalidade do contrato de comodato, isso não tem impedido a confusão desta figura com a detenção por acto de tolerância.
  Vide sobre a figura do comodato precário Michele Fragali, na ob. cit. , pág. 320-327, Francesco Galgano, na ob. cit., pág. 154, Rodrigues Bastos, na ob. cit., pág. 251, e Fernando Marques dos Santos, na ob. cit., pág. 48-50.
[9] Sobre o tema da coligação negocial, na doutrina portuguesa, vide Vaz Serra, em União de contratos. Contratos mistos, no B.M.J. n.º 91, pág. 11 e seg., Rui de Alarcão, em Sobre a transferência da posição do arrendatário no caso de trespasse, no B.F.D.U.C., vol. XLVII, pág. 48, nota 57, Inocêncio Galvão Teles, em Manual dos contratos em geral, pág. 475-478, da ed. de 2002, da Coimbra Editora, Antunes Varela, em Das obrigações em geral, vol. I, pág. 288-292, da 9ª ed., da Almedina, Menezes Leitão, em Direito das obrigações, vol. I, pág. 188-189, da ed. de 2000, da Almedina, Almeida e Costa, na ob. cit., pág. 377-379, da 11ª ed., da Almedina, Rui Pinto Duarte, em Tipicidade e atipicidade dos contratos, pág. 50-55, da ed. de 2000, da Almedina, Pedro Pais de Vasconcelos, em Contratos atípicos, pág. 215-222, da ed. de 1995, da Almedina, Gravato Morais, em União de contratos de crédito e de venda para o consumo, pág. 387-395, da ed. de 2004, da Almedina, e Francisco Brito Pereira Coelho, em Coligação Negocial e operações negociais complexas, no B.F.D.U.C., volume comemorativo (2003), pág. 233 e seg..
  
[10] Vide a enunciação deste princípio por Francisco Brito Pereira Coelho, na ob. cit., pág. 242, e por Pedro Romano Martinez, em Da cessação do contrato, pág. 244, da ed. de 2005, da Almedina.
[11] Vide, neste sentido, Francisco Brito Pereira Coelho, na ob. cit., pág. 263.
[12] Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, pág. 802, da 4ª ed., da Coimbra Editora.

[13] Gomes Canotilho e Vital Moreira, na ob. cit., pág. 801, e Jorge Miranda, em Constituição Portuguesa anotada, vol. I, pág. 628, da ed. de 2005, da Coimbra Editora.

[14] Vide, sobre esta possibilidade, ANA PRATA, em A tutela constitucional da autonomia privada, pág. 75 e segs., da ed. de 1982, da Almedina, PAULO MOTA PINTO, em O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em “Portugal-Brasil ano 2000, Studia Iuridica”, pág. 210 e segs., SOUSA RIBEIRO, em Constitucionalização do direito civil, em Direito dos contratos – estudos, pág. 32, da ed. de 2007, da Coimbra Editora , e MARIA LUÍSA FEITOSA, em Paradigmas inconclusos: os contratos entre a autonomia privada a regulação estatal e a globalização dos mercados, pág. 315 e segs., e o Acórdão n.º 311/08 do Tribunal Constitucional, em www.tribunalconstitucional.pt.