Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
36/03.3GCTCS.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
NULIDADE
PRINCIPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL
CRIME DE DANO
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 120º, Nº2, AL. D); 311.º E 341.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; E 18.º, N.º 2 DA C.R.P..
Sumário: I. – Tendo sido recebida a acusação e declarada aberta audiência o tribunal não pode, sem produção de qualquer prova, ordenar o arquivamento dos autos, invocando como motivo para decisão a irrelevância da conduta do arguido à luz do princípio da última ratio ou da mínima intervenção do direito penal exigida pelo artigo 18.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa.
III. - O legislador português não instituiu qualquer limite, inferior ou superior, para a degradação de utilidade da coisa destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada, o que coloca problemas relativamente à definição do limiar mínimo de danosidade social ou, dizendo de outra forma, ao exercício de um juízo de (in)adequação social em relação à ofensa ao bem jurídico.
II. - A omissão ou ausência de prova, em audiência de julgamento, configura a nulidade insanável prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do C.P.P. – omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
Decisão Texto Integral: Relatório


Nos presentes autos com o NUIPC 36/08.3GCTCS do Tribunal Judicial de Trancoso, foi a … acusada pelo Ministério Público da prática de um crime de dano p. e p. pelo artº 212º, nº1, do Código Penal (CP).
… constituiu-se assistente e apresentou pedido de indemnização civil, pedindo a condenação da arguida a pagar-lhe €116,75 (cento e dezasseis euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros moratórios à taxa legal.
Por despacho de fls. 70, foi recebida a acusação «pelos factos e de acordo com as disposições incriminadoras constantes do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público» e designado dia para julgamento.
No dia designado e, de acordo com a acta de fls. 135, depois de aguardar que assistente e arguido chegassem a acordo, foi declarada aberta a audiência e, de imediato, lida decisão em que se julga extinto procedimento criminal.
Inconformados com essa decisão, o Ministério Público e a assistente interpuseram recurso.
Deixou o Ministério Público as seguintes conclusões:

Para decidir como se decidiu, deveria ter havido julgamento, visto que era obrigatório respeitar o despacho que recebeu a acusação, onde se encontrava fixado com trânsito em julgado o thema decidendum para julgamento — cfr art° 341° do CPP. Na verdade, tendo sido afastadas questões prévias, ficaria para julgamento a questão de fundo, incluindo a apreciação dos factos. Tendo-se conhecido definitivamente do mérito da causa, arquivando o processo, incorreu-se na nulidade prevista no art° 120.º n.º 2-d) do CPP, sendo, pois, esse despacho afectada de nulidade insanável;

A descrição típica do crime de dano — art° 212° do Código Penal — não desperta dúvidas quanto ao valor nem exclui a punibilidade por falta de tabelas com expressão numérica;

Não faz sentido, em sede interpretativa, remeter para a um ordenamento estrangeiro num caso concreto, quando é certo que também o nosso legislador possui normas de semelhante natureza. Não é raro a lei penal portuguesa tomar como critério para dimensionar a tutela, estabelecer limites através de grandezas com expressão numérica. É o caso dos crimes de expressão patrimonial, como o furto, o abuso de confiança, a burla. E outros limites até onde o facto constitui contra-ordenação e passa a crime, sem que nisso se veja preocupação 'regulamentadora' na norma, como é o caso dos crimes fiscais, em especial a fraude;

Se o legislador português não adoptou tal critério para o dano, é porque se quis confinar a um padrão em que a definição do direito no caso concreto passe pelas regras gerais da maior amplitude, como sucedeu, aliás, por exemplo com o crime de furto, em que inicialmente não se previam, no C P, escalões de expressão numérica.

No fundo, adoptar os critérios do país vizinho acaba por traduzir-se no recebimento injustificável no direito nacional de uma norma estranha, no lugar de aplicar as operações esperadas segundo as previsões do nosso próprio ordenamento, sem se dar azo a lacunas em tal domínio;

A decisão recorrida traduz-se, afinal, na omissão de aplicar uma dada norma. E não se trata decisivamente de um caso de interpretação em que o julgado tenha de criar a norma, substituindo-se ao legislador. Na verdade, a norma sobre danos como o dos autos, existe. E existem as normas que permitem aplicar a norma do dano de modo a atingir-se uma composição de interesses coroada por uma solução de direito e justiça, almejando-se reparação, equidade e sentido retributivo.

Concedendo-se provimento ao recurso, deverá reconhecer-se a nulidade da decisão recorrida; e, em seguida, que se proceda ao julgamento e subsequente tramitação até final.
Por seu turno, o assistente/demandante civil extraiu da motivação a seguinte síntese conclusiva:

Salvo o devido respeito, o Recorrente não pode concordar com a douto despacho recorrido, na medida em que, no dia 30 de Novembro, pelas 09.30 horas, data marcada para audiência de Julgamento, a Sra. Juíza, sem ouvir nenhum dos sujeitos processuais, nem testemunhas, limitou-se a ler um despacho que colocava termo ao procedimento criminal instaurado contra a arguida;

2- Argumentando que para que o facto atinja dignidade penal, nos termos do artigo 212.º, n.º 1 do C.P., é necessário que a coisa objecto da acção do agente tenha valor, considerando ajustado o valor exigido pelo legislador espanhol para a punibilidade do dano, exigindo que o prejuízo atinja um valor mínimo de € 400,00 (art. 263° Código Penal);

3- Ao contrário do que sustenta a Juíza a quo, o Recorrente entende que os factos descritos na queixa e na Douta acusação do M.P., integram os elementos objectivos do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212°, n.º 1 do C.P. Português.

4- O referido preceito legal tem como elementos integradores a destruição, total ou parcial, danificação, desfiguração ou inutilização de uma coisa alheia, portanto independentemente do valor da coisa alheia.

5- Assim, a factualidade descrita na acusação integra pois, nos termos da lei, e de acordo com a jurisprudência e a doutrina, um crime de dano, não existindo, em Portugal, um entendimento no sentido de estabelecer um mínimo quantitativo pecuniário, para considerar que uma determinada conduta que cause prejuízo e torne a coisa inutilizável, integre o crime de dano.

Além de que o tribunal na situação concreta devia ter aferido da veracidade ou não dos factos descritos na douta acusação, e ao não o fazer, em nosso entender houve um desrespeito das regras processuais penais.

Pelo exposto e pelo muito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente recurso ter provimento, e, em consequência, a decisão recorrida deverá ser revogada, ordenando-se a realização da audiência de julgamento para apuramento da verdade material, fazendo-se, assim, a acostumada Justiça.
Notificada, a arguida não apresentou resposta.
Neste Tribunal, o Srª. Procuradora-Geral Ajunta emitiu douto parecer, no mesmo sentido defendido pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando pela verificação da nulidade prevista no artº 120º, nº2, al. d) do CPP.
Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do CPP, não houve resposta.
Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[i] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso [[ii]]. A questão colocada nos dois recursos é fundamentalmente a mesma: verificação da nulidade prevista no artº 120º, nº2, al. d) do CPP, em virtude de não ter sido produzida e ponderada a prova arrolada e, em segunda linha, a correcção do entendimento constante da decisão recorrida quanto à inverificação do crime de dano, p. e p. pelo artº 212º do CP.
Da decisão recorrida

O Tribunal é competente.

A arguida … vem acusada da prática de um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212°, n°1 do Código Penal.

Na acusação menciona-se que a arguida partiu uma fechadura causando assim um prejuízo no montante de 40,00€.

Ora, o direito penal apenas intervém na regulação e resolução de litígios emergentes na comunidade como ultima ratio, ou seja, quando a lesão de bens jurídicos assume uma gravidade justificativa da intervenção do sistema jurídico e da justiça na limitação da liberdade individual.

Assim, o modelo de política criminal adoptado rege-se por diversos princípios basilares e orientadores, entre os quais o Princípio da referência constitucional, também chamado de princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem jurídica axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal e desta máxima decorre precisamente a exigência da necessidade e subsidiariedade da intervenção jurídico-penal.

Tal significa que o Estado se deverá reger pelo princípio da não intervenção ou da intervenção mínima, utilizando a lei penal e as reacções penais apenas quando tal se revele estritamente necessário e a utilização de outras medidas ou sistemas se revelem manifestamente insuficientes para a resolução dos litígios e para a prossecução das finalidades de política criminal de prevenção geral e especial.

Deste modo, "O art. 18.°12 da CRP, por seu lado, deve porventura reputar-se o preceito político-criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional: vinculando a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervenção penal a um estrito princípio da necessidade, ele obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais." — (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, As consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 84)

Nesta linha de raciocínio e no que concerne ao crime de dano, exige-se, para que o facto atinja o limiar da dignidade penal, que a coisa objecto da acção do agente tenha valor, tratando-se, nas palavras do Professor Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, pp.211: "(...)de um momento não escrito do tipo, que dá expressão aos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo os quais o direito penal apenas deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social"

Cumpre pois, ter em mente o princípio clássico basilar: "minimis non curat praetor".

Assim, a perspectiva adoptada pelo sistema penal português é uma perspectiva racional em que o direito penal é visto como tendo a função de tutela subsidiária dos bens jurídicos dotados de dignidade penal.

Na verdade, para a criminalização ser legítima é necessário não só a existência de um bem jurídico dotado de dignidade penal como igualmente verificar-se uma efectiva necessidade ou carência de tutela penal, pelo que "a violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária." - (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal, Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime, Coimbra editora, 2004, pp. 121).

A limitação de tal intervenção derivaria sempre, de resto, do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido amplo.

Ainda nas palavras do citado Professor "Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica não penal, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição do excesso (...) Tal sucederá, p. ex. quando se determine a intervenção penal para protecção de bens jurídicos que podem ser suficientemente tutelados pela intervenção dos meios civis (...), pelas sanções do direito administrativo (...), Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para a prevenção de determinados ilícitos (...)" — (in id. lbid.).

No nosso ordenamento jurídico o legislador não concretizou o valor a partir do qual o crime de dano ganha relevância penal, deixando tal juízo ao julgador, todavia, considera-se ajustado o valor exigido pelo legislador espanhol para a punibilidade do dano, exigindo que o prejuízo atinja um valor mínimo de 400,00€ (art. 263.° Código Penal).

Deste modo e atendendo ao caso em apreço, a serem provados os factos constantes da acusação o valor do dano causado seria de 40,00€, o que se afigura manifestamente diminuto e destituído de dignidade penal, pelo que se entende não revestir o caso concreto uma danosidade social inequívoca e apenas sanável mediante a intervenção do sistema penal, ultima ratio no nosso sistema jurídico, pelo que para a resolução do caso em apreço é adequada a intervenção de outros tipo de sistema e de instrumento que não a lei penal, de acordo com os princípios supra mencionados.

Por outro lado cumpre esclarecer que no pedido de indemnização cível o assistente vem alegar a existência de prejuízos no montante de 116, 75€, alegando que a arguida danificou igualmente a porta onde tal fechadura se encontrava colocada, além de ter tido a despesa com o aloquete de 16,76€ ora, mesmo que tal se viesse a provar e fosse legalmente possível, mesmo este valor, é, nos termos supra explanados, diminuto, não atingindo o já mencionado limiar da dignidade penal. Todavia, sempre resultaria uma impossibilidade legal no que concerne à prova dos danos na porta na medida em que tal extravasaria o objecto da acusação, sendo a sentença que desse tal facto como provado nula, nos termos do art. 379.°/1 b) do CPP.

Assim atento todo o exposto, julgo extinto o presente procedimento criminal, instaurado contra a arguida e ordeno o oportuno arquivamento dos autos.

Sem custas.

Notifique.

Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos a fls. 63 e seg.s, atento o supra exposto, julgo extinta a instância civil por impossibilidade superveniente da lide --- artigo 287°, al. e) do Código de Processo Civil, "ex vi" artigo 4° do Código de Processo Penal. ---.

Sem custas.

Notifique.

Oportunamente, arquive.
Apreciação
A primeira vertente de discordância afirmada nos recursos prende-se com a oportunidade da prolação de despacho que conhece do mérito da causa sem que fosse recolhida a prova arrolada e ouvidos os sujeitos processuais. Para ambos os recorrentes, apenas depois de realizada audiência poderia a Srª Juiz apreciar o mérito da causa. Com inteira razão.
O processo penal em vigor estrutura-se em diversas fases processuais. No que tange àquela que aqui interessa – a fase de julgamento – a mesma inicia-se com a prática de um conjunto de actos preliminares, a ter lugar logo após a recepção dos autos em tribunal. Então, e como obriga o disposto no artº 311º do CPP, se não tiver havido instrução, deve o julgador apreciar os termos da acusação e, apenas quando a reputar de manifestamente infundada, de acordo com os apertados limites do nº3 do preceito, pode/deve decidir pela sua rejeição. Caso contrário, impõe-se a marcação de dia para a audiência de julgamento. Foi o que aconteceu nos presentes autos com a prolação do despacho de fls. 70.
Atingida a data designada, constata-se que a Srª Juiz limitou-se a declarar aberta a audiência e, sem ouvir qualquer prova, decidiu pela extinção do procedimento criminal. Vistos os seus fundamentos, verifica-se que as razões avançadas radicam, todas, na ausência de tipicidade da conduta, em torno do entendimento de que não foi ultrapassado o mínimo de dignidade social para a punição de condutas inscritas na previsão do artº 212º do CP. Como apontam em uníssono os recorrentes, não se considerou verificada qualquer questão prévia ou incidental que obstasse ao conhecimento do mérito da acusação, e muito menos se encontra declaração da ausência de qualquer condição de procedibilidade ou ocorrência de facto extintivo do processo. Ao invés, com a expressão «a serem provados os factos da acusação o valor do dano causado seria de 40,00€», a decisão recorrido ficciona a prova de todos os factos da acusação e considera que, ainda assim, não havia sido praticada conduta merecedora de censura penal pelo que o processo nunca poderia culminar com a condenação da arguida. Assim sendo, o que verdadeiramente se encontra na decisão recorrida é uma rejeição da acusação por manifesta improcedência, ignorando a extinção de poder jurisdicional e a formação de caso julgado no processo com a não rejeição decidida a fls. 70.
Mas, mesmo que tal ofensa de caso julgado não existisse, sempre seria de censurar a decisão recorrida, por indevida interpretação do tipo penal do artº 212º do CP.
Comete o crime de dano quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia. O bem jurídico protegido por esse tipo penal é a propriedade, tutelando-se a existência ou a integridade do estado da coisa, independentemente da degradação do seu valor. Por isso, como salienta a doutrina, designadamente a mesma doutrina e obra citadas na decisão recorrida, deve entender-se que a incriminação não protege directa e tipicamente o património. Escreve Costa Andrade: «... o Dano não configura um crime contra o património. Embora o prejuízo patrimonial configure uma consequência ou efeito normal do Dano, tal não é inevitável nem necessário. Pode consumar-se o crime de Dano sem que tenha como reflexo um prejuízo patrimonial. Nem está excluída a possibilidade de o crime resultar em ganho ou vantagem patrimonial para o proprietário ofendido» [[iii]].
Dito isto, concorda-se com o entendimento da Srª Juiz a quo na afirmação de que nem todos os ataques à propriedade merecem censura penal. Vale aqui, como noutros domínios, ter em atenção se a concreta tutela obedece a um mínimo de importância comunitária, justificativa da pesada intervenção das instituições formais de controlo, neste caso de controlo penal, ponderação essa transversal a todo o ordenamento penal, em obediência ao princípio da subsidiariedade consagrado no artº 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa [[iv]]. Como indica Figueiredo Dias, «a realidade do crime [...] não resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende também da construção social daquela realidade; ele é em parte produto da sua definição social, operada em último termo pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo informais (família, escolas, igrejas, clubes, vizinho) de controlo social. Numa palavra: a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reacção social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes» [[v]].
 Como encontrar esse limiar, essa linha divisória abaixa da qual a censura penal perde sentido? O legislador português não instituiu qualquer limite, inferior ou superior, para a degradação de utilidade da coisa destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada, o que coloca problemas relativamente à definição do limiar mínimo de danosidade social ou, dizendo de outra forma, ao exercício de um juízo de (in)adequação social em relação à ofensa ao bem jurídico. Essa definição foi deixada à jurisprudência.
Outro poderia ser o programa político-criminal neste domínio, mormente aquele vigente no país vizinho. O Código Penal espanhol de 1995 estabelece no seu artº 263º que o dano só atinge a categoria de delito quando a coisa sofra uma degradação de valor mensurável e superior a €400,00. Trata-se de um limiar comum a vários tipos penais inscritos no mesmo capítulo, mormente o robo y hurto de uso de vehículos (artº 244º), o hurto (artº 234º), a estafa (artsº 248º e 249º) e a apropriación indevida (artº 252º), o que completa panorama bem distinto daquele vigente entre nós. Mas, contrariamente ao referido na decisão recorrida, isso não significa que o dano de valor inferior não seja punido pelo ordenamento penal espanhol. Mantém-se punido, mas de acordo com outra categoria penal – a falta (artº 625º do Código Penal espanhol) [[vi]].
Aqui chegados, pensamos que a «fronteiras de bagatelas», na expressão de Costa Andrade [[vii]], deve ser reservada para as situações em que seja manifesto que a censura penal repugna à comunidade. Ora, vivemos num país em que o salário mínimo era à data dos factos de €426,00 [[viii]]. E, para que o retrato fique completo, não podemos olvidar que, de acordo com os últimos dados do INE, 18% dos cidadãos portugueses viveram em 2006 abaixo do limiar de pobreza, ou seja, com menos de €378,67 [[ix]]. Nessa medida, o entendimento defendido na decisão recorrida de inadequação social da punição de qualquer dano não superior a €400,00, mostra-se completamente afastado do sentir social que deve estar presente na tarefa de aplicação do Direito pelos Tribunais. O mesmo acontece, embora naturalmente em grau inferior, com o valor inscrito na acusação – €40,00. Não se trata, seguramente, de valor sem significado, sendo também relevante a utilidade de coisa, destinada a garantir a segurança e privacidade de um espaço - fechadura da porta de entrada – pelo que a sua destruição projecta desvalor que não se contem no simples valor intrínseco da coisa.
Estamos, pois, em condições de concluir. Ao decidir pela «extinção do procedimento criminal» por razões de mérito logo depois de aberta a audiência, a decisão recorrido viola caso julgado formado no processo e, ainda, omite por inteiro a produção da prova arrolada na acusação e no pedido de indemnização civil. Omite, como sustenta o Ministério Público, diligências essenciais para a descoberta da verdade, incorrendo no vício previsto no artº 120º, nº2, al. d) do CPP.
Procedem, pelo exposto, os recursos, devendo proceder-se a audiência de julgamento.
Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Conceder provimento aos recursos;
Revogar a decisão recorrida e ordenar a sua substituição por outra que designe dia para audiência de julgamento, com produção da prova arrolada e outra que se entenda necessária;



[i] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[ii] Cfr., entre outros, os artºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[iii] Comentário Conimbricense, 1999, tomo II, pág. 207.
[iv] Cfr., relativamente a outro tipo penal, o Ac. de 21/01/2009, Pº 525/06.4GCLRA.C1, acessível em www.dgsi.pt, proferido pelos mesmos subscritores desta decisão.
[v] Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Ed, 2ª edição, 2007, pág. 132.
[vi] Serán castigados con la pena de localización permanente de dos a 12 días o multa de 10 a 20 días los que intencionalmente causaran daños cuyo importe no exceda de 400 euros.
[vii] Ob. cit, 220.
[viii] D.L. 397/2007, de 31/12.
[ix] Condições de Vida e Rendimento em Portugal (EU-SILC), acessível em www.ine.pt.