Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FERNANDO VENTURA | ||
Descritores: | CASO JULGADO FORMAL NULIDADE PRINCIPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL CRIME DE DANO | ||
Data do Acordão: | 03/11/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE TRANCOSO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 120º, Nº2, AL. D); 311.º E 341.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; E 18.º, N.º 2 DA C.R.P.. | ||
Sumário: | I. – Tendo sido recebida a acusação e declarada aberta audiência o tribunal não pode, sem produção de qualquer prova, ordenar o arquivamento dos autos, invocando como motivo para decisão a irrelevância da conduta do arguido à luz do princípio da última ratio ou da mínima intervenção do direito penal exigida pelo artigo 18.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa. III. - O legislador português não instituiu qualquer limite, inferior ou superior, para a degradação de utilidade da coisa destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada, o que coloca problemas relativamente à definição do limiar mínimo de danosidade social ou, dizendo de outra forma, ao exercício de um juízo de (in)adequação social em relação à ofensa ao bem jurídico. II. - A omissão ou ausência de prova, em audiência de julgamento, configura a nulidade insanável prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do C.P.P. – omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. | ||
Decisão Texto Integral: | Relatório
Para decidir como se decidiu, deveria ter havido julgamento, visto que era obrigatório respeitar o despacho que recebeu a acusação, onde se encontrava fixado com trânsito em julgado o thema decidendum para julgamento — cfr art° 341° do CPP. Na verdade, tendo sido afastadas questões prévias, ficaria para julgamento a questão de fundo, incluindo a apreciação dos factos. Tendo-se conhecido definitivamente do mérito da causa, arquivando o processo, incorreu-se na nulidade prevista no art° 120.º n.º 2-d) do CPP, sendo, pois, esse despacho afectada de nulidade insanável; A descrição típica do crime de dano — art° 212° do Código Penal — não desperta dúvidas quanto ao valor nem exclui a punibilidade por falta de tabelas com expressão numérica; Não faz sentido, em sede interpretativa, remeter para a um ordenamento estrangeiro num caso concreto, quando é certo que também o nosso legislador possui normas de semelhante natureza. Não é raro a lei penal portuguesa tomar como critério para dimensionar a tutela, estabelecer limites através de grandezas com expressão numérica. É o caso dos crimes de expressão patrimonial, como o furto, o abuso de confiança, a burla. E outros limites até onde o facto constitui contra-ordenação e passa a crime, sem que nisso se veja preocupação 'regulamentadora' na norma, como é o caso dos crimes fiscais, em especial a fraude; Se o legislador português não adoptou tal critério para o dano, é porque se quis confinar a um padrão em que a definição do direito no caso concreto passe pelas regras gerais da maior amplitude, como sucedeu, aliás, por exemplo com o crime de furto, em que inicialmente não se previam, no C P, escalões de expressão numérica. No fundo, adoptar os critérios do país vizinho acaba por traduzir-se no recebimento injustificável no direito nacional de uma norma estranha, no lugar de aplicar as operações esperadas segundo as previsões do nosso próprio ordenamento, sem se dar azo a lacunas em tal domínio; A decisão recorrida traduz-se, afinal, na omissão de aplicar uma dada norma. E não se trata decisivamente de um caso de interpretação em que o julgado tenha de criar a norma, substituindo-se ao legislador. Na verdade, a norma sobre danos como o dos autos, existe. E existem as normas que permitem aplicar a norma do dano de modo a atingir-se uma composição de interesses coroada por uma solução de direito e justiça, almejando-se reparação, equidade e sentido retributivo. Concedendo-se provimento ao recurso, deverá reconhecer-se a nulidade da decisão recorrida; e, em seguida, que se proceda ao julgamento e subsequente tramitação até final. Salvo o devido respeito, o Recorrente não pode concordar com a douto despacho recorrido, na medida em que, no dia 30 de Novembro, pelas 09.30 horas, data marcada para audiência de Julgamento, a Sra. Juíza, sem ouvir nenhum dos sujeitos processuais, nem testemunhas, limitou-se a ler um despacho que colocava termo ao procedimento criminal instaurado contra a arguida; 2- Argumentando que para que o facto atinja dignidade penal, nos termos do artigo 212.º, n.º 1 do C.P., é necessário que a coisa objecto da acção do agente tenha valor, considerando ajustado o valor exigido pelo legislador espanhol para a punibilidade do dano, exigindo que o prejuízo atinja um valor mínimo de € 400,00 (art. 263° Código Penal); 3- Ao contrário do que sustenta a Juíza a quo, o Recorrente entende que os factos descritos na queixa e na Douta acusação do M.P., integram os elementos objectivos do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212°, n.º 1 do C.P. Português. 4- O referido preceito legal tem como elementos integradores a destruição, total ou parcial, danificação, desfiguração ou inutilização de uma coisa alheia, portanto independentemente do valor da coisa alheia. 5- Assim, a factualidade descrita na acusação integra pois, nos termos da lei, e de acordo com a jurisprudência e a doutrina, um crime de dano, não existindo, em Portugal, um entendimento no sentido de estabelecer um mínimo quantitativo pecuniário, para considerar que uma determinada conduta que cause prejuízo e torne a coisa inutilizável, integre o crime de dano. Além de que o tribunal na situação concreta devia ter aferido da veracidade ou não dos factos descritos na douta acusação, e ao não o fazer, em nosso entender houve um desrespeito das regras processuais penais. Pelo exposto e pelo muito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente recurso ter provimento, e, em consequência, a decisão recorrida deverá ser revogada, ordenando-se a realização da audiência de julgamento para apuramento da verdade material, fazendo-se, assim, a acostumada Justiça. O Tribunal é competente. A arguida … vem acusada da prática de um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212°, n°1 do Código Penal. Na acusação menciona-se que a arguida partiu uma fechadura causando assim um prejuízo no montante de 40,00€. Ora, o direito penal apenas intervém na regulação e resolução de litígios emergentes na comunidade como ultima ratio, ou seja, quando a lesão de bens jurídicos assume uma gravidade justificativa da intervenção do sistema jurídico e da justiça na limitação da liberdade individual. Assim, o modelo de política criminal adoptado rege-se por diversos princípios basilares e orientadores, entre os quais o Princípio da referência constitucional, também chamado de princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem jurídica axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal e desta máxima decorre precisamente a exigência da necessidade e subsidiariedade da intervenção jurídico-penal. Tal significa que o Estado se deverá reger pelo princípio da não intervenção ou da intervenção mínima, utilizando a lei penal e as reacções penais apenas quando tal se revele estritamente necessário e a utilização de outras medidas ou sistemas se revelem manifestamente insuficientes para a resolução dos litígios e para a prossecução das finalidades de política criminal de prevenção geral e especial. Deste modo, "O art. 18.°12 da CRP, por seu lado, deve porventura reputar-se o preceito político-criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional: vinculando a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervenção penal a um estrito princípio da necessidade, ele obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais." — (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, As consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 84) Nesta linha de raciocínio e no que concerne ao crime de dano, exige-se, para que o facto atinja o limiar da dignidade penal, que a coisa objecto da acção do agente tenha valor, tratando-se, nas palavras do Professor Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, pp.211: "(...)de um momento não escrito do tipo, que dá expressão aos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo os quais o direito penal apenas deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social" Cumpre pois, ter em mente o princípio clássico basilar: "minimis non curat praetor". Assim, a perspectiva adoptada pelo sistema penal português é uma perspectiva racional em que o direito penal é visto como tendo a função de tutela subsidiária dos bens jurídicos dotados de dignidade penal. Na verdade, para a criminalização ser legítima é necessário não só a existência de um bem jurídico dotado de dignidade penal como igualmente verificar-se uma efectiva necessidade ou carência de tutela penal, pelo que "a violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária." - (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal, Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime, Coimbra editora, 2004, pp. 121). A limitação de tal intervenção derivaria sempre, de resto, do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido amplo. Ainda nas palavras do citado Professor "Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica não penal, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição do excesso (...) Tal sucederá, p. ex. quando se determine a intervenção penal para protecção de bens jurídicos que podem ser suficientemente tutelados pela intervenção dos meios civis (...), pelas sanções do direito administrativo (...), Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para a prevenção de determinados ilícitos (...)" — (in id. lbid.). No nosso ordenamento jurídico o legislador não concretizou o valor a partir do qual o crime de dano ganha relevância penal, deixando tal juízo ao julgador, todavia, considera-se ajustado o valor exigido pelo legislador espanhol para a punibilidade do dano, exigindo que o prejuízo atinja um valor mínimo de 400,00€ (art. 263.° Código Penal). Deste modo e atendendo ao caso em apreço, a serem provados os factos constantes da acusação o valor do dano causado seria de 40,00€, o que se afigura manifestamente diminuto e destituído de dignidade penal, pelo que se entende não revestir o caso concreto uma danosidade social inequívoca e apenas sanável mediante a intervenção do sistema penal, ultima ratio no nosso sistema jurídico, pelo que para a resolução do caso em apreço é adequada a intervenção de outros tipo de sistema e de instrumento que não a lei penal, de acordo com os princípios supra mencionados. Por outro lado cumpre esclarecer que no pedido de indemnização cível o assistente vem alegar a existência de prejuízos no montante de 116, 75€, alegando que a arguida danificou igualmente a porta onde tal fechadura se encontrava colocada, além de ter tido a despesa com o aloquete de 16,76€ ora, mesmo que tal se viesse a provar e fosse legalmente possível, mesmo este valor, é, nos termos supra explanados, diminuto, não atingindo o já mencionado limiar da dignidade penal. Todavia, sempre resultaria uma impossibilidade legal no que concerne à prova dos danos na porta na medida em que tal extravasaria o objecto da acusação, sendo a sentença que desse tal facto como provado nula, nos termos do art. 379.°/1 b) do CPP. Assim atento todo o exposto, julgo extinto o presente procedimento criminal, instaurado contra a arguida e ordeno o oportuno arquivamento dos autos. Sem custas. Notifique. Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos a fls. 63 e seg.s, atento o supra exposto, julgo extinta a instância civil por impossibilidade superveniente da lide --- artigo 287°, al. e) do Código de Processo Civil, "ex vi" artigo 4° do Código de Processo Penal. ---. Sem custas. Notifique. Oportunamente, arquive.
|