Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3278/19.2T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PARTILHA EM CONSEQUÊNCIA DE DIVÓRCIO
REGIME DA COMUNHÃO GERAL DE BENS
BENS COMUNS
INDEMNIZAÇÃO DE ÂMBITO LABORAL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1721.º, 1724.º, AL.ª A), 1734.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1721º e 1724º, a), por remissão do disposto no artigo 1734.º todos do Código Civil, fazem parte da comunhão, o produto do trabalho dos cônjuges.

II – O espírito do sistema da comunhão geral é o de que ingressam no património comum todos os ganhos “alcançados” pelos cônjuges, todos os bens que “advierem” aos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei.

III – Encontrando-se os cônjuges ainda casados, por ocasião em que a compensação pecuniária, de natureza global, referente a indemnização em substituição de créditos laborais, foi recebida por um deles, o mesmo bem, ao entrar na esfera patrimonial deste, assumiu, imediatamente, a qualidade de bem comum do casal, passando a estar sujeito, desde a propositura da acção, ao regime da partilha dos bens comuns, em consequência de divórcio.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 3278.19. 2T8VIS.C1

(Juízo Central Cível de Viseu - Juiz ...)

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Pelo Juízo Central Cível de Viseu - Juiz ... foi proferida a seguinte decisão final: (…)“Despacho Saneador Sentença

2.

Ao abrigo do disposto no artigo 595º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código do Processo Civil, passar-se-á ao conhecimento do mérito da causa, uma vez que os elementos e o estado dos autos assim o permitem.

“6. Decisão

- Face ao exposto, julgando procedente a ação parcialmente procedente, por provada:

a) Declara-se que o saldo bancário da conta número ...09 na Suíça no banco Banco 1..., em que o titular é o réu, AA, no valor de € 53.010,16 (cinquenta e três mil e dez euros e dezasseis cêntimos), é bem comum do dissolvido casal e por conseguinte, a referida quantia tem de ser relacionada e partilhada no âmbito do Inventário que corre termos para colocar termo à comunhão do Ex-casal composto pela Autora e Réu com o n.º 1...0/14.

b) No mais, absolver o Réu AA do pedido.

c) Custas da ação a cargo de Autora e Réu na proporção do respetivo decaimento, nos termos do artigo 527º, n.º s 1 e 2 do Código de Processo Civil.

7. Valor da ação: € 72.586,25 (setenta e dois mil, quinhentos e oitenta e seis euros e vinte e cinco cêntimos).

8. Registe e notifique.  

..., 21 de setembro de 2023 (feriado municipal; ac. serv.)”.

AA, Réu nos autos à margem referenciados, não se conformando com o despacho saneador sentença que pôs fim ao processo, vem do mesmo interpor recurso, assim concluindo:

1.O recorrente recorre do despacho que que o saldo bancário da conta número ...09 na Suíça no banco Banco 1..., em que o titular é o cabeça de casal, AA, no valor de € 53.101,16, é bem comum do dissolvido e por conseguinte, a referida quantia tem de ser relacionada e partilhada no âmbito do inventário que correu termos para colocar termo à comunhão do ex-casl composto pela Autora e Ré com o n.º 1...0/14.

2. Conforme resulta dos factos provados sob o n.º 3.7. do despacho recorrido, o valor de 53.010,16€ correspondia ao valor do extrato bancário, datado de 31.01.2014, do qual resultava que o R. possuía na conta bancária por si titulada, a referida quantia, que correspondia a parte da indemnização de 70000€ que A. sabia que aquele tinha recibo da sua entidade empregadora, na sequencia do acordo pela cessação do contrato de trabalho, doc. junto com a p.i.;

3. O despacho recorrido, não apreciou toda a prova documental constante dos autos, para a apreciar a natureza da indemnização recebida pelo ora recorrido por força da cessação do seu contrato de trabalho.

4. Desde logo, não considerou o documento nº 9 junto com a p.i pela A, e o documento n.º 3 junto com o articulado da contestação e o documento junto pela A. em 11.01.2022, com a referência eletrónica 5074672;

5. Dos três citados documentos resulta que o R. ora recorrido, recebeu a titulo de indemnização, por perda de trabalho, em janeiro de 2014, o valor de 70000€ brutos;

6. Do documento 7 junto com a p.i., resulta apenas que à data de 31.01.2014, o R. tinha depositado numa conta da sua titularidade, parte da indemnização recebida no montante de 53.010,16€;

7. Não resultou provado da prova documental que o Réu à data da interposição da ação de divórcio já tinha recebido o referido valor;

8. Dos citados documentos, resulta que o Réu recebeu pela cessação do contrato de trabalho a indemnização e créditos salariais, nomeadamente subsidio de férias;

9. A quantia de 70000€ brutos não corresponde a créditos laborais, mas indemnização recebida pela perda do emprego.

10. O valor recebido pelo R. a título de indemnização e que integra a quantia depositada na conta bancária daquele a 31 .01.2014 corresponde aparte da indemnização recebida pela cessação do contrato de trabalho, tratando-se de um bem próprio é e como tal deve ser excluído da relação de bens;

11. A indemnização recebida em virtude de despedimento ou cessação do contrato de trabalho não entra no conceito de remuneração do trabalho previsto no artigo 249º do Código do Trabalho, porque não é nem regular nem periódica, pelo que não pode ser considerada um produto do trabalho;

12º Esta indemnização refere-se à perda do direito ao trabalho, direito este pessoal e intransmissível, previsto constitucionalmente como direito fundamental integrador dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

13º No nosso ordenamento jurídico e na nossa jurisprudência, encontramos inúmeros exemplos de que as indemnizações por cessação de contrato de trabalho, são um direito do próprio titular; não se trata de um direito do cônjuge por acréscimo;

14º O artigo 1733º nº 1 al.d) do C.C. refere que as indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges é excetuada da comunhão, o que sucede in casu;

15º A relação de trabalho existente entre o próprio e a entidade patronal apenas diz respeito às duas partes e não também à pessoa do cônjuge.

16. Conclui-se, assim, que a dito valor 53.010,16€ deve ser excluída da comunhão conjugal (do acervo patrimonial do dissolvido casal a partilhar), tendo em conta o exposto e o preceituado no art.º 1 733º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.

17. Requerendo-se, assim, a revogação da decisão preferida, decidindo- se que o referido saldo bancário é um bem próprio do recorrido, nos termos do 1733º nº 1 al.d) do C.C e em consequência, não deve ser relacionado e partilhado.

Termos em que, e nos mais e melhores de direito que V. Exªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso, e consequentemente revogar-se o douto despacho recorrido, substituindo-se por outro que decida em conformidade com o peticionado.

BB, Autora/recorrida no processo em epígrafe e aí devidamente identificada, apresenta as alegações de resposta, assim concluindo:

(…).

2. Do objecto do recurso

2.1 – Da impugnação da matéria de facto;

A 1.ª instância fixou, assim, a sua matéria de facto:

3. Com relevância para a decisão da causa, e por prova documental, resultam dados como assentes os seguintes factos:

3.1. A Autora e o Réu casaram no dia 19 de novembro de 1988 sob o regime de comunhão geral de bens, tendo o referido casamento sido dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, em 14 de janeiro de 2014, na Conservatória do Registo Civil ..., (Docs. nºs 1, 2 e 3 juntos com a PI).

3.2. A Autora instaurou processo de inventário destinado a colocar termo à comunhão conjugal do casal, no Cartório Notarial ..., em ..., ao qual foi atribuído o nº 1...0/14, (Doc. nº 4 junto com a PI).

3.3. Nesse processo de inventário o Réu, enquanto cabeça de casal, apresentou relação de bens (Doc. nº 5 junto com a PI).

3.4. Notificada a Autora, requerente nesse processo de inventário, veio a mesma reclamar da referida relação de bens, deduzindo o competente incidente, peticionando, além do mais, que o cabeça de casal fosse notificado para incluir na relação de bens a quantia de 70.000 euros que o réu havia recebido da sua entidade patronal, a título de indemnização, na sequência de um acordo que o mesmo havia celebrado no ano de 2013, (Doc. nº 6 junto com a PI).

3.5. Ali requereu, a requerente, a notificação do Banco Banco 1..., com sede na Alemanha, a fim de indicar, nesses autos, os valores concretos que foram depositados na conta do cabeça de casal número ...09 por parte da entidade empregadora do mesmo no decorrer dos anos de 2013, 2014 e 2015 (Doc. nº6 junto com a PI).

3.6. Notificado o cabeça de casal da referida reclamação à relação de bens o mesmo não respondeu, não contraditou os factos alegados pela requerente nem sequer apresentou qualquer prova testemunhal ou documental.

3.7. Veio a Autora a localizar, na sua casa, um extrato bancário, datado de 31.01.2014, do qual resultava que o Réu mesmo, na conta bancária por si titulada, possuía, na referida data, a quantia de € 53.010,16, que correspondia a parte da indemnização de 70.000 euros que a Autora sabia que o mesmo recebera da sua entidade empregadora, na sequência do acordo pela cessação do contrato de trabalho (Doc. nº 7 juntos com a PI).

3.8. A Autora procedeu à junção do referido documento contendo extrato bancário ao processo de inventário.

3.9. Em 17 de maio de 2019, a senhora Notária do Cartório Notarial ..., veio a proferir decisão, no sentido de remeter as partes para os meios comuns, à luz do disposto nos artigos 16º nº 1 e 82º do RJPI e alínea d) do nº 1 do artigo 269º e artigo 275º do CPC, considerando que:

“1) A) Para que se apure quais a verbas que devem ser incluídas no ativo da relação de bens, importa provar a natureza de bem comum dos mesmos e o seu valor e tendo a requerente provado que – em 31/01/2014 existia um valor depositado na conta bancária na Suíça no banco Banco 1..., em que o titular é o cabeça de casal, no valor de 53.101,16€, através de um documento cuja autoria não foi impugnada, resulta ser saldo bancário à referida data, não resulta no entanto claro que existia à data do divórcio ou que seja este um bem comum do casal, pois persiste a dúvida da existência do saldo bancário e do seu valor à data do divórcio e qual a origem do mesmo, e se é ou não bem comum do dissolvido casal e por conseguinte ser relacionado e ser considerado na partilha”(Doc. nº 8 junto com a PI).

3.10. Decidiu: “Assim, nos termos do nº1 do art. 16º do RJPI e da alínea d) do nº1 do artigo 269º e artº 275º do Código de Processo Civil, Ex vi do art. 82º do RJPI, determino: a) A remessa das partes para os meios comuns até que ocorra a decisão definitiva da questão controvertida; b) Que a questão controvertida é: Se o saldo bancário da conta número ...09 na Suíça no banco Banco 1..., em que o titular é o cabeça de casal, AA, no valor de € 53.101,16, provado através de extrato de 30-01-14 existia à data do divórcio, se é ou não bem comum do dissolvido casal e por conseguinte ser relacionado e considerado na partilha. c) A suspensão da tramitação do presente processo até que seja definitivamente decidida a questão que atenta à sua complexidade, já justificada, não pode ser resolvida neste processo. ” (Doc. nº 8 junto com a PI).

3.11. O Réu não relacionou na relação de bens que juntou ao processo de inventário, a verba de € 70.000 (setenta mil euros) que recebeu da sua entidade empregadora, a sequência de acordo de revogação do contrato de trabalho, ocorrido em agosto de 2013.

3.12. A Autora apresentou no processo de inventário um extrato da conta do Réu, do qual resulta que, à data de 30.01.2014 o mesmo tinha na sua conta depositada a quantia de € 53.010,16 (cinquenta e três mil e dez euros e dezasseis cêntimos), que o Réu confirmou tratar-se de parte da indemnização que tinha recebido, na sequência do acordo de revogação do contrato de trabalho celebrado com a sua entidade empregadora, celebrado em agosto de 2013.

3.13. O réu recebeu da sua entidade empregadora a quantia de € 70.000 (setenta mil euros), pela cessação por acordo do contrato de trabalho (Doc. nº 9 junto com a PI).

3.14. O Réu deixou de prestar serviço efetivo para a sua entidade empregadora em 21.08.2013, data na qual acordou com a mesma o recebimento da correspondente indemnização global, devida pela cessação do contrato de trabalho iniciado e celebrado em 09.05.1995, pelo montante de € 70.000 (setenta mil euros).

3.15. A entidade empregadora do Réu atestou que, para além dos 70.000 euros, o Réu recebeu ainda € 2.586,25 (dois mil, quinhentos e oitenta e seis euros e vinte e cinco cêntimos) a título de subsídio de Natal.

3.16. Tais valores correspondem a créditos laborais e subsídio de Natal, acordados com a entidade empregadora em 21 de agosto de 2013.

3.17. No lapso de tempo entre a data celebração do aludido acordo e data em que o réu deixou de prestar serviços para a empresa, o R. manteve-se ao serviço e enquanto trabalhador da empresa F..., continuando a receber a retribuição devida, mantendo-se a sua relação laboral, com todas as obrigações e direitos daí advindos, continuando a ser realizados os seus descontos para o respetivo sistema de segurança social, embora tivesse sido isentado, de prestar trabalho efetivo desde a data de 29.05.2013 até 31.01.2014, por gozo de férias (Doc. n.º 3 junto com a contestação e doc. 9 junto com a PI).

Com relevância para a decisão da causa, não focaram factos por provar, sendo que o tribunal não se pronúncia quanto aos demais factos alegados nos articulados por os mesmos estrem repetidos, revestirem matéria de direito ou serem conclusivos.

(…).

2.2 – Do Direito

No âmbito dos presentes autos, em que é Réu AA, a Autora, BB, veio requerer, na procedência do pedido, que seja declarado e reconhecido que a quantia de € 72.586,25 é património comum do dissolvido casal.

Para tanto alegou que foi casada com o réu no regime de comunhão geral de bens, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio em 14 de janeiro de 2014, mais alegando que, à data de 30.01.2014 o réu tinha depositado na sua conta bancária a quantia de € 53.010,16 (cinquenta e três mil e dez euros e dezasseis cêntimos), proveniente de indemnização que tinha recebido na sequência de acordo de revogação de contrato de trabalho celebrado com a entidade empregadora em agosto de 2013 e que a aludida quantia peticionada foi recebida pelo réu a título de compensação pecuniária, de natureza global e subsídio de Natal na sequência de acordo de compensação que o réu fez com a entidade empregadora para fazer cessar o contrato de trabalho que havia celebrado em 09.05.1995.

Como escreve a 1.ª instância, “importa assim aferir se a quantia em causa foi recebida pelo Réu na pendência do casamento, sendo certo que a questão em causa se encontra balizada pelo despacho proferido pela Sra. Notária no âmbito do aludido processo de inventário, a saber “se o saldo bancário da conta número ...09 na Suíça no banco Banco 1..., em que o titular é o cabeça de casal, AA, no valor de € 53.101,16, provado através de extrato de 30-01-14 existia à data do divórcio, se é ou não bem comum do dissolvido casal e por conseguinte ser relacionado e considerado na partilha”.

Analisando.

As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio - arts. 1788 e 1795-A do Código Civil, que será o diploma a citar sem menção de origem -, produzindo-se, neste caso, os seus efeitos entre eles a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retroagindo-se à data da propositura da acção - arts.1688 e 1789 nº1.

Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal - art.1689 -, e sendo esta judicial, através do processo especial de inventário. Na partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a este património.

Na vigência da relação matrimonial os cônjuges tornam-se devedores entre si, através da transferência de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios. Nestes casos, surge o chamado “crédito de compensação” a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, mas cuja exigibilidade a lei difere para a partilha.

A razão de ser deste diferimento prende-se essencialmente com o propósito de se evitarem desentendimentos ou perturbações conjugais e a exigibilidade imediata implicaria atribuir ao cônjuge credor um meio fácil -  a ameaça de cobrança  -  de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor, como justificou Braga da Cruz no seu anteprojecto -  Capacidade Patrimonial dos Cônjuges, BMJ nº69, pág.413 e segs.  -, ou noutra perspectiva, a não exigibilidade imediata radica na própria natureza jurídica da comunhão -  Cristina Dias, “Das Compensações pelo pagamento das dívidas do casal”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol.1º, 2004, pág.323.

Incontrovertido nos autos que o casamento que foi celebrado entre autora e réu/apelante se deve considerar celebrado sob o regime da comunhão de geral - A Autora e o Réu casaram no dia 19 de novembro de 1988 sob o regime de comunhão geral de bens, tendo o referido casamento sido dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, em 14 de janeiro de 2014, na Conservatória do Registo Civil ..., (Docs. nºs 1, 2 e 3 juntos com a PI).

Entende a Autora que, a indemnização recebida, não pode deixar de considerar-se, como bem comum a relacionar, no valor correspondente às quantias recebidas, no montante global de €72.586,25, recebida pelo Réu a título de compensação pecuniária, de natureza global, alusiva a créditos laborais e subsídio de Natal, acordados com a entidade empregadora em agosto de 2013.

Assim, nos termos do artigo 1732.º do Código Civil:

“Se o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.

São exceptuados da comunhão – artigo 1733.º:

1. São exceptuados da comunhão:

a) Os bens doados ou deixados, ainda que por conta da legítima, com a cláusula de incomunicabilidade;

b) Os bens doados ou deixados com a cláusula de reversão ou fideicomissária, a não ser que a cláusula tenha caducado;

c) O usufruto, o uso ou habitação, e demais direitos estritamente pessoais;

d) As indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios;

e) Os seguros vencidos em favor da pessoa de cada um dos cônjuges ou para cobertura de riscos sofridos por bens próprios;

f) Os vestidos, roupas e outros objectos de uso pessoal e exclusivo de cada um dos cônjuges, bem como os seus diplomas e a sua correspondência;

g) As recordações de família de diminuto valor económico.

h) Os animais de companhia que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento.

2. A incomunicabilidade dos bens não abrange os respectivos frutos nem o valor das benfeitorias úteis

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1721º e 1724º, a), por remissão do disposto no artigo 1734.º todos do Código Civil, fazem parte da comunhão, o produto do trabalho dos cônjuges.

Como é sabido, o espírito do sistema da comunhão geral é o de que ingressam no património comum todos os ganhos “alcançados” pelos cônjuges, todos os bens que “advierem” aos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei – ver o art.º 1724º -, nomeadamente, as indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios.

Pires de Lima e Antunes Varela, nas suas notas - Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 442 -, afirmam ser “o carácter eminentemente pessoal das indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges quer se trate de ressarcir danos patrimoniais, quer não patrimoniais, bem como dos seguros vencidos em favor da pessoa de cada um deles, que justifica a natureza incomunicável do direito a essas prestações, prescritas nas alíneas d) e e)”.

Sobre a aplicação desta norma do Código Civil às indemnizações atribuídas no domínio das relações laborais, afirmam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira - Curso de Direito da Família (e-book), Vol. I - Introdução ao Direito Matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, págs. 631-632 - o seguinte:

“Não é pacífico que mereça este regime as indemnizações que pretendam reparar uma incapacidade de ganho ou se meçam por uma perda de salários. Será o caso das indemnizações recebidas por acidentes de trabalho, doenças profissionais, reforma antecipada, despedimento, etc. Nestes casos, as somas recebidas vêm substituir os salários “cessantes”, que teriam a qualidade de bens comuns; as indemnizações deviam entrar para o património comum”.

Também Maria João Vaz Tomé - Código Civil Anotado, Livro IV - Direito da Família, coordenadora: Clara Sottomayor, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 425-426), em anotação ao art.º 1724.º, entende que, “de acordo com a al. a), o “produto do trabalho dos cônjuges” faz parte da comunhão. Assim, todos os proventos – prestações patrimoniais, periódicas ou não, em dinheiro ou em espécie – recebidos por um dos cônjuges, por força de um contrato de trabalho, de prestação de serviço ou de qualquer outro contrato que enquadre a prestação efetuada ao cônjuge, são bens comuns do casal.

De acordo com a doutrina, todas as prestações patrimoniais que representem a contrapartida da realização de uma prestação por um dos cônjuges, em que este aplique as suas aptidões físicas ou intelectuais, assim como aquelas que sejam auferidas como indemnização pela redução da capacidade de aquisitiva (art. 1733º/1, d), integram o património comum do casal”.

No mesmo sentido, acompanhando a posição de Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, pronuncia-se Hélder Roque - Da partilha parcial em divórcio por mútuo consentimento convolado, da parcela respeitante à indemnização por cessação do contrato de trabalho de um dos ex-cônjuges vencida na constância do matrimónio», in Revista Julgar, n.º 40, 2020, pág. 45 -, concluindo que fazem parte da comunhão conjugal “as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho».

O STJ no seu acórdão de 02.11.2010 (proc. n.º 726/08.0TBESP-D.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, qualificou tal indemnização como bem comum, conforme resulta do ponto V do respectivo sumário:

“Encontrando-se os cônjuges ainda casados, por ocasião em que a compensação pecuniária, de natureza global, referente a indemnização em substituição de créditos laborais, foi recebida por um deles, o mesmo bem, ao entrar na esfera patrimonial deste, assumiu, imediatamente, a qualidade de bem comum do casal, passando a estar sujeito, desde a propositura da acção, ao regime da partilha dos bens comuns, em consequência de divórcio.

A este propósito tem sido entendido - Rabindranath Capelo de Sousa – Lições de Direito das Sucessões, II Vol., págs. 151/152 - que, ao convencionarem aquela compensação global em substituição de todos os créditos já vencidos à data da cessação do contrato de trabalho ou exigíveis em virtude dessa cessação, as partes mais não fazem do que extinguir todos estes créditos, por meio da criação de uma nova obrigação em lugar deles - art.º 857º. O fundamento imediato deste novo crédito deixa de ser o contrato de trabalho para passar a ser outro contrato, um contrato revogatório que põe justamente fim àquela relação. O crédito surge como consequência da revogação. O exequente, ao exigir o pagamento daquela concreta compensação, fundamenta-se então, não no contrato de trabalho, mas no acordo que o revogou.

Mas se de facto deve considerar-se que o fundamento imediato deste novo crédito não é o contrato de trabalho, o que se verifica, para todos os efeitos, através da novação objectiva, é a substituição da anterior obrigação decorrente do vínculo laboral, por uma nova obrigação. Essa nova obrigação tendo como fundamento imediato o acordo revogatório, não deixa de ter origem na anterior obrigação, decorrente da relação laboral, ou se quisermos, e do ponto de vista do credor, o crédito que daí resulta não deixa de ser um crédito que, desprendendo-se da relação laboral, está em substituição do crédito emergente da relação laboral que vigorou e se extinguiu ainda na vigência do casamento entre recorrente e recorrido.

Trata-se ao fim e ao resto de acautelar, em situações em que a lei prevê a coexistência de um património comum ao lado de patrimónios próprios dos cônjuges, a consistência de cada um deles, face às possíveis vicissitudes de que possam ser objecto os bens e direitos que as integram. Para tanto é necessário que sempre que se verifique a substituição de um bem por outro, ou, como no caso em análise, a substituição de um crédito por outro, o bem adquirido, ou o crédito resultante da novação, mantenha o carácter que tinha antes da substituição, ou pelo menos que aquele crédito seja substituído na massa patrimonial que dele ficou privada por virtude da novação, por um direito de compensação sobre a massa ou património na qual ingressou - RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, " Limites à Aut. Privada na Disc. Das Rel. .... Entre os Cônjuges", págs. 389/390.

Que essa é a intenção do legislador resulta desde logo do mecanismo de funcionamento da sub-rogação real, prevista no art.º 1723º, alínea b), do Cód. Civil, enquanto afloramento de um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro, princípio que pode, aliás, ser deduzido também do disposto no artigo 1689° do CC.

Neste contexto, e sob pena de se dar cobertura a manobras ou actuações que se traduziriam no enriquecimento do património próprio de um dos ex-cônjuges à custa do empobrecimento do património comum, não pode deixar de concluir-se que, tendo o novo crédito origem em crédito nascido na constância do casamento, deve o valor correspondente integrar os bens comuns a partilhar.

Basta pensar na facilidade com que poderia protelar-se a exigência de créditos salariais para momento posterior ao divórcio, e só então os exigir, no contexto da negociação de uma compensação pecuniária global, subtraindo assim do património comum rendimentos que foram realizados na constância do casamento – Acórdão da Relação do Porto de 22.4.2010, pesquisável em www.dgsi.pt.

Por isso, como escreve a 1.ª instância:

“O Réu recebeu a quantia € 72.586,25 a título de compensação pecuniária de natureza global, mas não se provou que detivesse ainda essa quantia à data do decretamento do divórcio.

Apenas resultou provado que o réu tinha depositado numa conta da sua titularidade a quantia de € 53.010,16, titulado na conta aberta em seu nome, no Banco Banco 1....

Não se provou que essa quantia, e de acordo com o disposto no artigo 1733º do Código Civil esteja excetuada da comunhão (bens incomunicáveis/bens próprios), pois que, analisada a prova documental, resulta que a quantia de do depósito de € 53.010,16, estava depositada numa conta titulada pelo réu, pelo que tal valor é bem comum do casal, não tendo resultado o concreto destino dado à indemnização e subsídio recebido pelo réu por força do seu contrato de trabalho, pese embora as partes assumam e tudo indicie que aquela quantia depositada seja produto dessa indemnização.

“A este propósito tem sido entendido que, ao convencionarem aquela compensação global em substituição de todos os créditos já vencidos à data da cessação do contrato de trabalho ou exigíveis em virtude dessa cessação, as partes mais não fazem do que extinguir todos estes créditos, por meio da criação de uma nova obrigação em lugar deles (artº 857º do CC). O fundamento (imediato) deste novo crédito deixa de ser o contrato de trabalho para passar a ser outro contrato, um contrato (revogatório) que põe justamente fim àquela relação. O crédito surge como consequência da revogação. O exequente, ao exigir o pagamento daquela concreta compensação, fundamenta-se então, não no contrato de trabalho, mas no acordo que o revogou. Mas se de facto deve considerar-se que o fundamento imediato deste novo crédito não é o contrato de trabalho, o que se verifica, para todos os efeitos, através da novação objectiva, é a substituição da anterior obrigação decorrente do vínculo laboral, por uma nova obrigação.

Essa nova obrigação tendo como fundamento imediato o acordo revogatório, não deixa de ter origem na anterior obrigação, decorrente da relação laboral, ou se quisermos, e do ponto de vista do credor, o crédito que daí resulta não deixa de ser um crédito que, desprendendo-se da relação laboral, está em substituição do crédito emergente da relação laboral que vigorou e se extinguiu ainda na vigência do casamento entre recorrente e recorrido.” (idem)

Em virtude de tal entendimento, que perfilhamos, e reportando para a situação dos autos, não pode deixar de se considerar como bem comum a relacionar para efeitos de partilha dos bens comuns do casal o valor correspondente à quantia (efetivamente) recebida pelo réu a título de compensação pecuniária de natureza global por créditos laborais, na parte que em estes respeitem a rendimentos de trabalho e que estivesse ainda na titularidade do réu à data do decretamento do divórcio (no caso concreto).

Devem considerar-se parte integrante do património comum os bens adquiridos em substituição de salários, como as pensões de reforma, os complementos de reforma resultantes de aforros de salários, por exemplo através de planos-poupança reforma, e as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho - Guilherme de Oliveira e Pereira Coelho, in Curso de Direito da Família, Volume I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 589.

Tal significa, como já referido em momento anterior, que integrarão o património comum do casal não só os salários auferidos, ou cujo direito foi adquirido na pendência do casamento, mas também quaisquer compensações eventualmente auferidas na vigência ou por cessação do contrato de trabalho, vigência e cessação essa que se verificaram na pendência do casamento, o qual foi decretado em 14.01.2014 e o réu deixado de trabalhar para a sua entidade patronal no dia 31.01.2014, tendo acordado em momento anterior o recebimentodas quantias devidas pela cessação do contrato de trabalho.

É verdade que o requerido celebrou, em 29.05.2013 um acordo de resolução do seu contrato de trabalho com a sua entidade patronal alemã e que o contrato vigorou até 31.01.2014, mas entre tal período já havia um termo para o contrato e uma indemnização fixada, tendo resultado provado que a quantia € 53.010,16, estava depositada numa conta aberta em nome do réu no Banco Banco 1..., sendo que, na falta de outra prova (designadamente pagamentos parciais ao réu do salário devido nos meses de maio de 2013 a janeiro de 2014), e tendo em conta a prova documental junta aos autos, não se pode deixar de concluir que o valor depositado em nome do Réu no Banco Banco 1... no montante de € 53.010,16 (cinquenta e três mil e dez euros e dezasseis cêntimos) é bem comum do dissolvido casal e, por conseguinte, impõe-se que o mesmo seja relacionado no processo de inventário n.º 1...0/14 com vista à sua partilha por divórcio”.

Improcede, pois, o recurso.


3.Decisão
Assim, na improcedência do recurso, mantemos o decidido pelo Juízo Central Cível de Viseu - Juiz ....  

As custas ficam a cargo do apelante.

Coimbra, 6 de Fevereiro de 2024

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Catarina Gonçalves - 1.ª adjunta)

(Maria João Areias - 2.ª adjunta)

Apelação nº 3278/19.2T8VIS.C1

Voto de vencido:

Em meu entender, o direito à indemnização – ainda que previamente tenha havido acordo quanto ao respetivo montante – só nasce e se constituiu na data acordada para a cessação do contrato de trabalho e com a sua efetiva cessação, a 31 de janeiro de 2014, sendo esta a data relevante quer para a base de cálculo do respetivo montante (nomeadamente, para a contagem da antiguidade do trabalhador), quer para a impugnação do despedimento.

Por outro lado, tratando-se de uma situação de perda de emprego por despedimento coletivo, tal indemnização destina-se a compensar o réu pela perda do trabalho, compensando-o das perdas salariais, perdas que só ocorrem a partir da data da cessação de tal contrato, num momento em que já se encontram divorciados – até 31 de janeiro de 2014, foi-lhe sendo pago o respetivo salário.

Concluindo, consideraria que tal montante indemnizatório não se integrou na comunhão, pelo que revogaria a decisão recorrida, julgando a ação totalmente improcedente e absolvendo o réu do pedido.

                                                                     

                                                                                    Maria João Areias