Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
648/10.5TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: FALTA DE CONTESTAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: 19.º AL. C) DO DL Nº 446/85, DE 25.10
Sumário: I – Apesar de a acção não ter sido contestada, com base nas conclusões das alegações de recurso pode a Relação conhecer da nulidade de cláusula contratual geral que serviu à condenação da recorrente, uma vez que se trata de matéria de direito e a nulidade sempre ser de conhecimento oficioso;

II – É nula, por desproporcionada, a cláusula penal inserta nas condições gerais de contrato de adesão de aluguer de veículo automóvel sem condutor que fixa no mínimo de 50% do total do valor dos alugueres acordados a indemnização por desvalorização do veículo e pelo incumprimento do contrato;

III – A equidade impõe que, em vez de ser decretada, sem mais, a nulidade, seja reduzida a cláusula para o valor equivalente a 20% do valor dos alugueres vincendos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

            “A..., SA” intentou contra B... acção com forma de processo sumário, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 2.974,73 acrescida de juros de mora comerciais vencidos (€ 75,54) e vincendos desde 2.2.10 e na quantia mensal de € 540,86 desde 20.2.10 e respectivos juros correspondente ao dobro do valor dos alugueres até restituição do veículo automóvel objecto de um contrato de aluguer, bem como em indemnização por perdas e danos resultante da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados, a liquidar posteriormente, na restituição do veículo automóvel e no pagamento de sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por dia nos 1.ºs 30 dias após trânsito em julgado da sentença a proferir, de € 100,00 por dia nos 30 dias seguintes e € 150,00 nos posteriores, ou em montante judicialmente a fixar.

            Alegou, para tanto, que por contrato de 20.10.07 deu de aluguer à R. o veículo automóvel de matrícula ...BX para o efeito por si adquirido à “C... , SA”, no valor de € 22.490,00, pelo prazo de 120 meses, com a contrapartida do pagamento, até ao dia 20 de cada mês, da quantia de € 270,43 com IVA e respectivo prémio de seguro e € 218,85, sem IVA e no caso de falta de pagamento de qualquer dos alugueres resolver-se-ia o contrato então ficando a R. obrigada não só à restituição do veículo, fazendo a A. seus os alugueres pagos, como a R. devia pagar não só os alugueres em mora, o valor dos danos que o veículo apresentasse e uma indemnização para fazer face aos prejuízos decorrentes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados.

            Acontece que a R. passou a utilizar o veículo, mas a partir do 19.º aluguer, inclusive, vencido a 20.5.09, deixou de pagar os alugueres acordados, pelo que o contrato foi resolvido, o que a A. fez saber à R. mediante carta datada de 4.12.09.

            Após regular citação da R. na sua própria pessoa, para contestar, não o fez, tendo, contudo, restituído o veículo automóvel à A. em 28.9.10.

            Proferida sentença, veio a acção a ser julgada parcialmente procedente e a R. condenada a pagar ao A. a importância peticionada de € 2.974,73, acrescida da quantia de € 75,54 de juros vencidos, igualmente pedidos até 1.2.10 e nos vincendos, à taxa legal dos juros civis, bem como no valor dos danos que o veículo eventualmente apresentasse e a indemnização para fazer face ao prejuízo resultante da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não inferior a 50% do valor dos alugueres acordados, a liquidar posteriormente, do demais a absolvendo, mormente do pedido de condenação no pagamento em dobro dos alugueres mensais e da taxa legal dos juros comerciais.

            Inconformada, veio a R. constituir mandatário e recorrer da sentença, apresentando alegações que finalizou com as seguintes úteis conclusões:

            a) – A sentença é nula por, ao condenar a recorrente “a pagar ao A. o valor dos danos que o veículo eventualmente apresentasse e a indemnização para fazer face aos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados, a liquidar em execução de sentença”, condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido;

            b) – Não obstante a falta de contestação da R., o tribunal a quo deveria, ao abrigo do disposto nos art.ºs 12.º, 19.º, alín. c) e 24.º do DL n.º 446/85, de 25.10, atenta a sua manifesta desproporcionalidade face aos danos a ressarcir, ter declarado oficiosamente a nulidade da cláusula penal correspondente àquela indemnização;

            c) – No mínimo, considerando aqueles normativos e o disposto no art.º 812.º, n.º 1, do CC e atenta a sua manifesta excessividade e desproporcionalidade face aos danos a ressarcir, deveria a sentença ter procedido oficiosamente à redução da cláusula penal, reduzindo-a a valor não superior a 20% do valor total dos alugueres acordados com exclusão do IVA, desde logo liquidando o respectivo valor.

            Na resposta, a A., pugnou pela manutenção da sentença na parte recorrida, com fundamento em inexistência de nulidade, no facto de a questão da desproporcionalidade e excessividade da indemnização acordada se tratar de questão nova, antes não suscitada, de que a Relação não pode conhecer e transcreveu excertos de alguns acórdãos para demonstrar a falta de excessividade ou desproporcionalidade da cláusula 10.ª, n.º 4, da Condições Gerais do contrato em causa.

            Foram dispensados os vistos, havendo que apreciar as questões suscitadas pelas conclusões do recurso, que é o que define o seu objecto e que são:

a) – A nulidade de sentença;

b) – A nulidade, desproporcionalidade ou excessividade da cláusula 10.º, n.º 4, das Condições Gerais do contrato de “aluguer de veículo sem condutor” fundamento da causa de pedir.


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2. Fundamentação

2.1. De facto

Foram os seguintes os factos dados como provados pela sentença recorrida e cuja impugnação não vem suscitada:

a) – A R. pretendia adquirir o veículo automóvel de marca Opel, modelo Astra H Caravan Diesel, com a matrícula ...BX, tendo, para o efeito, contactado a firma “C..., SA”;

b) – Como a R. não se dispusesse ou não pudesse pagar de pronto o preço do dito veículo, solicitou à “C..., SA” que lhe possibilitasse o aluguer do mesmo pelo período de 120 meses, com a intervenção do ora A., para tal;

c) – Nessa sequência, o A. adquiriu o referido veículo, tendo em vista dá-lo de aluguer à R.

d) – Simultaneamente, por contrato particular datado de 20.10.2007, o A. deu de aluguer à R. o referido veículo, pelo prazo de 120 meses, sendo mensal a periodicidade dos alugueres no montante de € 270,43 cada, incluindo o IVA e respectivo prémio de seguro;

e) – Nos termos e condições gerais do referido contrato, nomeadamente da sua cláusula 10.º, a falta de pagamento de qualquer dos ditos alugueres implicava a possibilidade de resolução do contrato pelo ora A., resolução que se tornava efectiva após comunicação fundamentada em tal sentido feita pelo A. à dita R., ficando esta não só obrigada a restituir ao A. o dito veículo, fazendo o A. seus os alugueres então pagos, como tendo ainda a R. que pagar, na sede do A., não só os alugueres em mora, o valor dos danos que o veículo apresentasse e ainda uma indemnização para fazer face aos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados;

f) – A importância de cada um dos referidos alugueres deveria ser paga pela R., na sede do A., postecipadamente até ao dia 20 do mês a que respeitasse, por meio de transferência bancária;

g) – Após a celebração do contrato a R. recebeu o veículo referido, que passou a utilizar;

h) – A partir o 19.º aluguer, inclusive, que se venceu em 20.5.2009, a R. deixou de pagar os alugueres acordados;

i) – Nos termos e condições gerais do referido contrato tal pagamento implicou a resolução imediata e automática do aludido contrato, o que o A. fez saber à R. por carta datada de 4.12.2009;

j) – A R., em 28.9.10, fez a entrega ao A. do mencionado veículo automóvel;

l) – Está provado, ainda, que o valor da prestação mensal do aluguer, sem IVA, era de € 218,85.


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            2.2. De direito

            Como é sabido, são as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso, não podendo conhecer-se de questões nelas não versadas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC na versão, aplicável, da reforma de 2007).

            a) - Assim, a 1.ª questão suscitada é a da nulidade de sentença por, no entendimento da recorrente, haver condenado em quantia superior ao pedido no que respeita à condenação pelo valor dos danos eventualmente apresentados pelo veículo automóvel e à indemnização por desvalorização desse veículo e por incumprimento do próprio contrato, a liquidar em execução de sentença.

            Antecipando a conclusão, carece a recorrente de razão.

            De acordo com o disposto na alín. e) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

            Trata-se, ao fim e ao cabo, da violação do princípio do dispositivo, que assegura à parte a delimitação do thema decidendum, conforme disposto no n.º 1 do art.º 661.º do CPC.

            Ora, revisitando a petição inicial, o A., ao formular o pedido, pediu a condenação da R. além do mais, no pagamento da indemnização por perdas e danos, a liquidar em execução de sentença.

            Tal indemnização não é mais que aquela que no art.º 7.º da mesma peça processual melhor descriminou, ou seja e além do mais, a de a R. pagar o valor dos danos do veículo e a indemnização pela sua desvalorização e pelo próprio incumprimento do contrato em medida não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados.

            A indemnização em que a R. foi condenada estava, pois, contida no pedido.

            Consequentemente, há que indeferir a nulidade arguida.


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            b) – Antes de passarmos à apreciação da nulidade da cláusula 10.º, n.º 4, das Condições Gerais do denominado “Contrato de Locação Operacional – Aluguer de Veículo n.º 845251” e sua eventual redução, importa atentar em duas questões prévias:

            - A 1.ª é de que, por falta de impugnação recursiva, da R. ou do A., transitou em julgado a parte da condenação líquida da Ré, ou seja a condenação no pagamento da quantias de € 2.974,73 acrescida da importância de € 75,54 de juros vencidos até 1.2.10 e nos vincendos, desde então, à taxa legal dos juros civis.

            A 2.ª, tem a ver com a resposta da A. às alegações de recurso, no sentido do não conhecimento deste quanto à desproporcionalidade/excessividade da cláusula sobre a indemnização fixada, na medida em que a R. não contestou a acção, pelo que se trata de questão nova não suscitada perante o tribunal a quo, de onde, esta Relação, estar impossibilitada de a apreciar e conhecer.

            Não é assim, salvo o devido respeito.

            Tratando-se de matéria de direito, sobre a qual a Relação não está limitada pelas alegações das partes nem pela decisão do tribunal recorrido (art.ºs 660.º, n.º 2, 664.º e 713.º n.º 2, do CPC), nada obsta a que se conheça da nulidade da cláusula e respectiva redução.

            Aliás, porque de nulidade se trata, o seu conhecimento oficioso é salvaguardado pelo art.º 286.º do CC.[1]

            Improcede, assim, tal questão prévia.


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            c) - Voltando à cláusula 10.ª impugnada, dispõe no seu n.º 4 que a indemnização pela resolução do contrato com base em incumprimento do locatário abrange os prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não sendo nunca inferior a 50% do total dos alugueres referidos nas condições particulares.

            Concretizando, tendo em vista que da factualidade provada e das condições particulares do contrato resulta que o número de alugueres contratados era de 120, com o valor mensal, cada, de € 270,43, com IVA, significa que tal indemnização não poderia ser inferior a € 16.225,80.

            Embora não procedesse à liquidação, foi nesse valor que acriticamente a sentença condenou.

            Não pode, contudo, manter-se o decidido.

            A questão suscitada não é nova e sobre ela há muito o STJ definiu entendimento jurisprudencial uniforme, ou pelo menos largamente dominante, no sentido de que em situações como a presente (ou de outras similares de locação financeira ou de venda a prestações com reserva de propriedade) se a cláusula penal fixa em abstracto indemnização que vai até 20% das rendas vincendas ela é válida porque não é desproporcionada, mas se ultrapassa essa quota (50%, 75%...) é nula, por violação da alín. c) do art.º 19.º do DL n.º 446/85, de 25.10.[2]

            Tal jurisprudência tem entendido também que, em vez de pura e simplesmente se declarar inválida a cláusula, pode a mesma ser reduzida a essa percentagem com base na equidade e à luz do disposto no n.º 1 do art.º 812.º do CC.[3]

            Ora, à luz desse entendimento jurisprudencial em que enfileiramos, a sentença recorrida, ao condenar em indemnização não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados é desde logo arbitrária por fixar limite mínimo e deixar na disponibilidade do locador a determinação do limite máximo e é desproporcionada aos danos a ressarcir (art.º 19.º, alín. c) do cit. DL n.º 446/85) porque considera o valor total dos alugueres acordados e não apenas os não pagos após a mora e porque ultrapassa a percentagem “razoável” de 20% do valor das prestações vincendas, a esse valor devendo a cláusula ser reduzida (art.º 812.º, n.º 1, do CC).

            Assim, concretizando, à semelhança do critério seguido no douto acórdão do STJ de 9.7.98[4], à A. é devida a importância de € 2.974,73 e juros vencidos no valor de € 75,54 até 1.2.10 e, desde aí, dos vincendos, à taxa legal dos juros civis, cuja condenação transitou em julgado e, por equidade, reduzindo a cláusula em causa, considerando terem ficado por pagar 102 alugueres (a partir do início do incumprimento – 120-18), a cada um correspondendo o valor mensal sem IVA, de 218,85, abatendo aquela quantia e aplicando a percentagem “razoável” de 20%, encontramos o valor indemnizatório de € 3.869,59 [(102x218,85)-2.974,73]x0,20.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC), temos:

            I – Apesar de a acção não ter sido contestada, com base nas conclusões das alegações de recurso pode a Relação conhecer da nulidade de cláusula contratual geral que serviu à condenação da recorrente, uma vez que se trata de matéria de direito e a nulidade sempre ser de conhecimento oficioso;

            II – É nula, por desproporcionada, a cláusula penal inserta nas condições gerais de contrato de adesão de aluguer de veículo automóvel sem condutor que fixa no mínimo de 50% do total do valor dos alugueres acordados a indemnização por desvalorização do veículo e pelo incumprimento do contrato;

            III – A equidade impõe que, em vez de ser decretada, sem mais, a nulidade, seja reduzida a cláusula para o valor equivalente a 20% do valor dos alugueres vincendos.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, na procedência parcial da apelação, acorda-se em revogar parcialmente a sentença recorrida, substituindo-se a condenação da recorrente ao pagamento ao A. recorrido da importância de € 2.974,73, acrescida da quantia de € 75,54 de juros de mora vencidos até 1.2.10 e, desde aí, dos vincendos, à taxa legal dos juros civis, bem como da importância de € 3.868,59 e juros legais vencidos e vincendos, a esta mesma taxa, desde a citação da R. até integral pagamento, o que tudo perfaz a quantia de € 6.919,86, acrescida dos juros legais nos termos referidos, ficando para o incidente posterior de liquidação somente a determinação do valor dos danos eventualmente apresentados pelo veículo automóvel objecto do contrato atinente aos autos.

            Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento.


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Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] Neste sentido e entre outros, v. Acs. STJ de 15.12.98, Proc. 98A1090, 10.7.08, Proc. 08B1846 e 9.3.10, Proc. 627/09.5YFLSB, in www.dgsi,pt.
[2] V. Ana Prata, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, 2010, pág. 423 e ss, onde transcreve excertos do estudo de Noronha do Nascimento “As cláusulas gerais na jurisprudência do STJ” e cita jurisprudência do mesmo tribunal.
V., ainda, Ac. STJ de 81.1.05, CJ/STJ, 2005, 3.º, pág. 80.
[3] V, entre outros, o cit. Ac. STJ de 15.12.98 e os demais citados na anotação ao art.º 19.º do diploma legal referido in A. Neto, “Código Comercial e Contratos Comerciais, Anot.”, 2008, pág. 407.
[4] Proc. n.º 98A1090, in www.dgsi.pt.