Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
272/11.5GDCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
TITULO EXECUTIVO
ADQUIRENTE NÃO EXECUTADO
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 610.º A 616.º E 818, DO CC
Sumário: I – O problema central da impugnação pauliana é: um devedor fez sair do seu património bens, em nítida violação do princípio de garantia patrimonial, através de alienação fraudulenta acordada entre si e terceiro.
II – Na acção [impugnação pauliana] a relação controvertida envolve três sujeitos: o credor prejudicado; o devedor alienante e o terceiro adquirente, mostrando-se a intervenção de todos eles necessária, como salvaguarda do princípio do contraditório, e para que a decisão possa definir com força de caso julgado a relação controvertida.

III - Julgada procedente a acção [impugnação pauliana], e então declarada a ineficácia, relativamente à exequente, da doação titulada pela escritura outorgada, tendo por objecto o imóvel nela identificado, precisamente o em causa neste recurso, e reconhecido à exequente o direito de executar este mesmo bem no património do adquirente, outra ilação não pode extrair-se efectivamente senão essa.

IV - Mostra-se, consequentemente, infundada a asserção do recorrente quando sustenta que a sentença de impugnação pauliana apenas constitui título executivo contra o terceiro adquirente, caso este figurasse como executado na presente execução.

V - O visado figura já naquela acção como demandado e pode aí exercer a sua defesa.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


*

I. Relatório.

1.1. No âmbito dos autos principais de execução sumária supra referenciados, de que estes se mostram apenso, nos quais é exequente …, S.A., com sede na Rua dos …, n.º …, …, ..., e executado , residente na Rua do …, …, …, …, ... , ponderando requerimento apresentado pelo segundo identificado, foi proferido despacho judicial com o teor seguinte:

«Fls. 93 e ss:

…, executado nos presentes autos, veio a 23.06.2017 alegar, em suma, que a penhora efetuada nos presentes autos é nula.

Refere que o bem penhorado nos autos pertence a … (seu filho), o qual não é parte na execução, requerendo, assim, o levantamento da referida penhora.

Decidindo.

Como resulta dos autos, o aqui executado foi condenado na prática de um crime de receptação de bens pertencentes à exequente – cfr. fls. sentença crime proferida nos autos principais.

De igual modo, no pedido de indemnização cível enxertado na ação penal, foi condenado a pagar à exequente a quantia de € 57.403,89, acrescidos de prejuízos até € 9.900,00.

Sucede que, executado e esposa poucos meses antes do trânsito da sentença condenatória em questão, haviam doado o imóvel penhorado nos autos (capaz de garantir o pagamento do já conhecido crédito da exequente) ao seu filho .

Como assim, na sequência da presente ação executiva pela ora exequente foi instaurada Ação de Impugnação Pauliana, aí peticionando a restituição/ineficácia do bem doado a fim de poder efectivar-se a execução de forma a cobrar o seu crédito.

De harmonia com a sentença proferida a 28.03.2016, e transitada em julgado a 15.02.2017 (cfr. certidão de fls. 163 e ss), a ação foi julgada procedente, declarando-se a ineficácia, relativamente à autora “…S.A.”, da doação titulada pela escritura pública outorgada a 29/05/2013, no cartório Notarial em ... , a cargo da Notária …, tendo por objeto o imóvel nela identificado, e reconhecendo-se à autora o direito de executar tal bem no património do réu adquirente”.

Quer isto dizer que, de harmonia com a decisão judicial proferida na ação cível, a doação impugnada não tem qualquer eficácia relativamente à Exequente, podendo esta continuar com a execução e respetiva penhora sobre aquele bem – cfr. artigos 610.º a 616.º do Código Civil e Sentença Judicial transitada.

Custas do incidente a cargo do executado, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UCs (artigo 531.º C.P.C. e artigo 27.º do R.C.J.).

Notifique.

DN.»

1.2. Porque se não revê no assim decidido, recorre o mencionado executado …, extraindo da minuta através da qual motivou a discórdia a seguinte ordem de conclusões (sic):

«1. O ora Executado por requerimento datado de 23 de Junho de 2017, veio alegar em suma que a penhora efectuada nos presentes autos é nula. Em virtude de o bem penhorado pertencer ao seu filho …, o qual não é parte na execução. Requerendo a final o levantamento da penhora efectuada no âmbito dos presentes autos.

2. O ora Executado não se conforma, nem se pode de modo algum conformar com o Despacho proferido, motivo pelo qual recorre nesta sede. No Despacho ora Recorrido considerou-se que na sequência da presente acção executiva pelo ora exequente foi instaurada Acção de Impugnação Pauliana, aí peticionando a restituição/ineficácia do bem doado a fim de poder efectivar-se a execução de forma a cobrar o seu crédito. Mais refere que de harmonia com a sentença proferida a 28.03.2016, e transitada a 15.02.2017 (cfr. certidão de fls. 163 e ss), a acção foi jugada procedente, declarando-se a ineficácia, relativamente à autora …, S.A., da doação titulada pela escritura pública outorgada a 29/05/2013, no Cartório Notarial da ... , a cargo da Notária …, tendo por objecto o imóvel nela identificado, e reconhecendo-se à autora o direito de executar tal bem no património do réu adquirente. Referindo ainda, que quer isto dizer que, de harmonia com a decisão judicial proferida na acção cível, a doação impugnada não tem qualquer eficácia relativamente à Exequente, podendo esta, continuar com a execução e respetiva penhora sobre aquele bem - cfr. artigos 610.º a 616.º do Código Civil e Sentença Judicial transitada.

3. Deste modo, a única questão que importa apreciar, aqui e agora, consiste em saber se, no caso, a sentença, obtida no âmbito da ação de impugnação pauliana, constitui, sem mais, sem que o terceiro adquirente in casu, …, figure como parte como executado na presente acção.

4. Acontece que a presente execução foi instaurada em 17 de Fevereiro de 2014, em data anterior á prolação da Sentença na Ação de Impugnação Pauliana, a qual data de 28 de Março de 2016 e que apenas transitou em julgado em 15 de Fevereiro de 2017. No respetivo requerimento executivo, a exequente alega ter um crédito para com o executado …. Não tendo sido instaurada até á data qualquer execução contra o filho de Executado o referido …, ou feita qualquer cumulação de Executados.

5. Constata-se, pois, que o ora exequente, após o trânsito em julgado da sentença proferida na ação pauliana, não propôs ação declarativa de condenação contra o ora executado, nem na pendência desta, nem instaurou qualquer execução com base naquela sentença, ou efetuou qualquer cumulação de executados.

6. Na decisão recorrida entendeu-se não existir qualquer motivo para considerar que a sentença de impugnação pauliana apenas constitui título executivo contra o terceiro adquirente, caso este figurasse como executado na presente execução.

7. Como é sabido, o Código Civil (arts. 610.º e segs.) admite a ação pauliana pela qual o credor pode tornar relativamente ineficazes atos de alienação ou oneração patrimonial perpetrados pelo devedor para o prejudicar.

8. Um dos direitos conferidos pelo n.º 1, do art.º 616.º, no caso de ser julgada procedente a impugnação, consiste no direito do credor executar os bens no património do obrigado à restituição. Direito este que é confirmado na 2.ª parte do art.º 818.º, do Código Civil, nos termos da qual o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro quando sejam objeto de ato praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado.

9. Deste modo, na impugnação pauliana, os bens alienados continuam a pertencer ao adquirente, mas respondem, dentro do seu património, pelas dívidas do alienante. Questão é que, nos termos do art.º 821.º, n.º 2, a execução seja movida contra ele.

10. Como se refere no Acórdão da Relação de Évora, de 9/5/02, C.J., Ano XXVII, tomo III, pág. 250, subjaz a estas normas a necessidade de intervir no processo de execução quem, na realidade, seja directamente atingido pelos actos de execução, independentemente da qualidade de devedor pertencer a outrem.

11. Acrescentando-se que tal solução é hoje inequivocamente assumida pelo art.º 56.º, n.º 2, para as dívidas providas de garantia real sobre bens de terceiro, onde se prevê que, em tais circunstâncias, pretendendo o credor valer-se dessa garantia, deve demandar o terceiro, sem prejuízo de também poder, desde logo, ser demandado o devedor.

12. Atente-se que o pedido formulado na ação pauliana pode assumir diversos conteúdos, para além da sempre presente declaração da ineficácia relativa.

13. Quando se vise a restituição pelo adquirente do valor do bem transmitido ou do enriquecimento obtido com a sua aquisição, quando já não seja possível a execução desse bem, o pedido já será de condenação no pagamento de uma determinada quantia em dinheiro (art.º 616.º, n.º 2, do C.C.). No primeiro caso, estamos perante uma ação constitutiva, enquanto a segunda hipótese integra uma acção de condenação, atenta a classificação dos diferentes tipos de ações cíveis, prevista no C.P.C.

14. Acresce que, como refere o mesmo autor, ob. cit.. pág. 295, nada impede que, no mesmo processo, se cumule o pedido de condenação do devedor a satisfazer o crédito e o do terceiro adquirente nos efeitos da impugnação pauliana do ato que lesou a garantia patrimonial desse crédito, ao abrigo do disposto no art.º 30.º do C.P.C. (cfr., no mesmo sentido, Fernando Amâncio Ferreira. ob. cit.. pág.75, nota 129, onde reproduz os ensinamentos de Ribeiro Mendes).

15. Voltando ao caso dos autos, verifica-se que estamos perante a 1.ª situação atrás relatada. Isto é, a sentença proferida na ação pauliana reconheceu a possibilidade do credor impugnante executar os bens no património do filho de Executado (3.º adquirente), bem como praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

16. Assim sendo, não se vê que aquela sentença imponha a alguém, expressa ou tacitamente, o cumprimento de uma obrigação, ou que contenha uma ordem de prestação. Digamos que, na mesma, não se descobre uma qualquer condenação ou a imposição a alguém de determinada responsabilidade.

17. Refira-se que, no caso dos autos, curiosamente, a Exequente instaurou acção executiva ainda antes de ser proferida Sentença na Acção Pauliana. Só que após ter transitado a acção pauliana penhorou o bem do terceiro adquirente …, sem que este figurasse como parte, como Executado na Execução.

18. Sem ter contra este instaurado execução ou feito uma cumulação de executados. Mais acresce que pese embora se encontre junta aos autos certidão da sentença proferida no âmbito da acção pauliana, esta não constitui título executivo, em virtude de o executado não ter sido condenado a efectuar qualquer pagamento ao exequente.

19. Por outro lado o filho do Executado como já supra se disse não figura como parte na presente acção executiva, não tendo sido contra este instaurada execução ou efectuada cumulação de executados.

20. Por outro lado, não se pode considerar que a sentença obtida na ação pauliana, é título executivo por si só após a certidão da mesma se mostrar junta à presente acção executiva.

21. Parece ser este o entendimento da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, mas não é este o nosso entendimento, como já resulta do que atrás se expôs.

22. Na verdade, em situações como a dos presentes autos, em que o tribunal apenas reconheceu a possibilidade do credor impugnante executar os bens doados no património do donatário ou de praticar sobre eles os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, não determinando, pois, o cumprimento de qualquer obrigação, apesar de a pressupor.

23. Tal sentença não é suficiente para desencadear qualquer processo executivo, seja contra o devedor, seja contra o 3.º adquirente, uma vez que não é uma sentença condenatória. Assim a simples junção aos autos de certidão da sentença da ação pauliana, por si só, não transforma o “Réu Adquirente” em parte na ação executiva.

24. Devendo contra este ser instaurada execução ou ser efetuada uma cumulação de executados para que se possa penhorar o imóvel em causa propriedade do terceiro adquirente.

25. Haverá, assim, que concluir que, no caso, a sentença obtida no âmbito da ação de impugnação pauliana, não constitui, sem mais, título executivo contra o terceiro adquirente que não figura como parte na ação executiva, dos bens cuja doação foi impugnada com êxito.

26. Uma vez que este não figura como parte na ação executiva, contra este não foi instaurada ação executiva ou não foi efetuada qualquer cumulação de executados.

27. É que como sabemos, no caso de procedência da impugnação pauliana, o título executivo é constituído ou integrado, quer pelo que permite a execução contra o devedor, quer pela sentença de procedência da impugnação pauliana.

28. Como é sabido também, o Código Civil (artigos 610.º e seguintes) admite a acção pauliana pela qual o credor pode tornar relativamente ineficazes os atos de alienação ou oneração patrimonial perpetrados pelo devedor para o prejudicar.

29. Trata-se, pois, de um meio conservatório de garantia patrimonial, a implicar o sacrifício do ato apenas na medida do interesse do credor impugnante, ou seja, mantendo-se como válido em tudo quanto exceda a medida daquele interesse.

30. Um dos direitos conferidos pelo n.º 1 do art.º 616.º do C. C., no caso de ser julgada procedente a impugnação, consiste no direito do credor executar os bens no património do obrigado à restituição.

31. Direito este que é confirmado na 2.ª parte do art.º 818.º do C.C., nos termos do qual o direito de execução pode incidir sobre os bens do terceiro quando sejam objecto do ato praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado.

32. Deste modo, na impugnação pauliana, os bens alienados continuam a pertencer ao adquirente, mas respondem, dentro do seu património, pelas dívidas do alienante. Porém nos termos do artigo 821.º n.º 2 a execução tem que ser movida obrigatoriamente também contra ele adquirente.

33. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09 de Maio de 2002, subjaz a estas normas a necessidade de fazer intervir no processo de execução quem, na realidade, seja directamente atingido pelos seus atos de execução, independentemente da qualidade de devedor pertencer a outrem.

34. Acrescentando-se que tal solução é hoje inequivocamente assumida pelo artigo 56.º n.º 2 do CPC para as dividas providas de garantia real sobre bens de terceiro, onde se prevê que, em tais circunstâncias, pretendendo o credor valer-se dessa garantia.

35. Deve para isso demandar terceiro, sem prejuízo de também poder desde logo, demandar o devedor.

36. Face ao exposto e sem necessidade de mais considerandos, dir-se-á que a penhora efetuada no âmbito dos presentes autos é nula, pois o imóvel pertence a … e a ação executiva não foi instaurada contra o mesmo, devendo em consequência ser revogado o Despacho proferido agora Recorrido e ser determinado o imediato levantamento da referida penhora.

DAS NORMAS VIOLADAS:

. Artigos 610.º a 616.º;

. Artigo 818.º; e,

. Artigo 821.º, n.º 2, todos do Código Civil;

. Artigo 56.º, n.º 2, do C.P.C.»

1.3. Proferido despacho admitindo o recurso interposto, bem como fixando o seu regime de subida e feito, notificada ao efeito, a exequente não respondeu.

Depois de devidamente instruído, foi o mesmo remetido para esta instância.

1.4. Aqui, aquando do respectivo exame preliminar, consignou-se que nenhuma circunstância impunha a sua rejeição ou apreciação sumária, donde que a dever prosseguir com a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sujeição a conferência.

Dos trabalhos desta, emerge a presente apreciação e decisão.


*

II. Fundamentação.

2.1. Delimitação do objecto do recurso.

Como é por demais consabido, são as conclusões das alegações dos recorrentes que fixam e delimitam o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4; 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

In casu, porque não se verifica esta última hipótese, atentando nas conclusões do recorrente/executado, resulta, então, que a questão decidenda consiste em aquilatarmos qual a extensão da sentença proferida nos aludidos autos certificados de fls. 163 e segs. dos autos principais na execução sumária a ser tramitada no tribunal recorrido.

2.2. Vejamos, começando por elencar alguns factos que possibilitarão melhor ajuizar do mérito do recurso. Assim:

a) O ora executado … foi condenado, por sentença de 26 de Novembro de 2013, proferida no Processo Comum Singular n.º 272/11.5GDCBR do 2.º Juízo Criminal dos Juízos Criminais de Coimbra, como autor material de um crime de receptação, p. e p. pelo art.º 231.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 12 meses de prisão, e, em pedido de indemnização civil, a pagar à ora exequente …, S.A., a quantia de € 57.403,89, acrescida dos prejuízos (até € 9.900,00, a liquidar em execução de sentença), e juros de mora desde a condenação até integral pagamento.

b) Os factos que ditaram a condenação indicada foram praticados pelo arguido/demandado, no dia 18 de Novembro de 2011.

c) A sentença aludida em a) transitou em julgado no dia 12 de Novembro de 2014.

d) Sendo ainda que o pedido de indemnização aí indicado foi deduzido pela ora exequente, no dia 10 de Abril de 2013, e notificado ao também ora executado … por via postal simples datada de 25 de Junho desse mesmo ano.

e) Na Conservatória do Registo Predial de ... , encontra-se descrito, sob o n.º 5649 da freguesia de …, o seguinte prédio: prédio misto. Sito no …, com a área total de 1.640 m2, inscrito na matriz predial sob os artigos … rústica e … urbana, composto por casa de habitação de rés-do-chão com superfície coberta de 60 m2, dependências de 15 m2, e terra a mato e lenha com 1.565 m2, a confrontar do norte com caminho, do sul com …, do nascente com … e do poente com … e caminho.

f) Pela Ap. …, de 2 de Dezembro de 2009, este prédio foi inscrito a favor do executado … e esposa …, por compra a … e ….

g) Pela Ap. …, de 31 de Maio de 2013, o mesmo prédio encontra-se inscrito a favor de …, por doação dos referidos … e ….

h) Por escritura pública de 29 de Maio de 2013, o executado … e mulher declararam doar a …, seu filho - e que declarou aceitar a doação - o prédio indicado.

i) Com a celebração desta escritura de doação, os seus outorgantes agiram com o propósito de impossibilitar a ora exequente de receber a quantia que lhe é devida [ut alínea a) supra], e da qual tinham conhecimento.

j) Impedindo, com a referida doação, que a ora exequente levasse a cabo qualquer diligência executiva sobre o prédio, para cobrança do seu crédito.

l) A ora exequente não conseguiu obter a satisfação do seu crédito sobre o ora executado ….

m) A ora exequente …, S.A., instaurou acção declarativa comum (n.º º 2022/15.8T8AGD) contra o ora executado …; sua mulher, dita … e filho de ambos, …, em cujo âmbito, por sentença proferida a 28 de Março de 2016, e transitada em julgado a 15 de Fevereiro de 2017, a mesma foi julgada procedente, declarando-se a ineficácia, relativamente à (aí) autora …, S.A., da doação titulada pela escritura pública outorgada a 29 de Maio de 2013, no cartório Notarial da ... , a cargo da Notária …, tendo por objecto o imóvel mencionado em e), e reconhecendo-se à autora o direito de executar tal bem no património do réu adquirente (…).

n) Prédio relativamente ao qual foi proferido o despacho recorrido.

2.3. Primacial para a dilucidação da questão colocada no presente recurso é apurar da natureza/fundamento da acção de impugnação pauliana.

Em termos assaz elucidativos, fá-lo, por exemplo, o Ac. do STJ proferido a 14 de Janeiro de 1997, acedido em www.dgsi.pt, sob o n.º convencional JSTJ00031475, relatado pelo Exmo. Conselheiro Torres Paulo, do qual respigamos as considerações seguintes:

Como meios conservatórios de garantia patrimonial, círculo de providências que Pacchioni chamava “controle gestório dos credores sobre o património dos devedores”, o nosso Código Civil oferece quatro: declaração de nulidade - artigo 605 -; sub-rogação - artigos 606 a 609 -; impugnação pauliana - artigos 610 a 618 -; e arresto - artigos 619 a 622.

As regras práticas que levaram o legislador a proteger o credor situam-se num plano pré-jurídico.

Tradicionalmente foi-nos ensinado - Prof. Paulo Cunha - que a designação da acção era de acção pauliana.

Nome derivado do autor Paulus que a introduziu.

Contudo o nosso Código Civil chama-lhe impugnação pauliana.

E bem.

É que ela pode actuar, não só sob a forma de acção, como de excepção.

Hoje dúvidas não há quanto à natureza jurídica desta acção, ou seja, na determinação do seu regime, visando os efeitos jurídicos dela emergentes.

Mas dada a evolução dos sentidos, que ela tem recebido nos diversos ordenamentos jurídicos, não só ela foi completamente discutida, como infelizmente dessa discussão repercutem-se nefastos resquícios, mormente no que se refere à formulação do pedido.

Assim as teorias têm-se degladiado entre: acção de nulidade ou de anulação; acção constitutiva, restitutória ou recuperatória; ou acção ressarcitória - ver, para tanto, Prof. A. Varela, Fundamento da Acção Pauliana, Rev. Leg. Jur. ano 91, págs. 351 a 353; 366 a 370 e 379 a 383 e M. Cordeiro, Obrigações, Vol. II, pág. 494.

É contudo, importante frisar que aqueles artigos da Revista foram escritos, estando em vigor o anterior Código Civil, que desta acção continha um articulado diferente.

Uma teoria jurídica não é uma construção teórica visando um objectivo, mas sempre uma orientação pautada para a justiça material a ser proferida e projectada em casos concretos.

Daí a sua plena utilidade.

O problema central da impugnação pauliana é este: um devedor fez sair do seu património bens, em nítida violação do princípio de garantia patrimonial, através de alienação fraudulenta acordada entre si e terceiro.

Já assim no direito romano.

Ela era então exercida por três meios: actio pauliana poenalis, emergente do ilícito, visando a reparação pecuniária; interdictum fraudatorium com o fim de recuperar a coisa; in integrum restutio, a decisão revogatória.

No direito justinianeu ficou o ilícito, a fraude, isto é, “a consciência pelo devedor de diminuir a garantia dos credores e dá-se à providência a finalidade de recuperação da coisa alienada fraudulentamente” - Prof. V. Serra, Bol. 75, pág. 193.

Assim concedia-se ao autor uma acção revogatória, como se diz no Digesto “Quae in fraudem creditorum alienata sunt, revocantur”.

Mas o texto do edicto pretoriano não diz que o acto fraudulento é nulo.

Modernamente conserva a ideia de fraus creditorum - subtracção consciente ao credor de garantia patrimonial.

Só que este consilium fraudis é recebido diferentemente pelas legislações: quanto à francesa, italiana e alemã - ver, Prof. M. Cordeiro, Parecer, Col. Jurisp., ano XVII, 1992, tomo III, págs. 58/59.

No artigo 1044 do Código Civil de 1967 estipulava-se:

“Rescindindo o acto ou contrato, revertem os valores alienados ao cúmulo dos bens dos devedores, em benefício dos seus credores.”

Perante esta redacção o Prof. M. Andrade - Teoria Geral das Obrigações, 1954-55, pág. 755, qualificava a impugnação pauliana como acção anulatória e Prof. P. Lima e A. Varela, Noções Fundamentais, Vol. I, 6. ed., 1973, pág. 359, da acção revogatória ou rescisória, por os bens regressarem ao património do devedor para efectivação da execução.

Orientação completamente diferente seguiu o Prof. V. Serra - artigo 15 n.º 2 do seu projecto - Bol. 75, pág. 401:

“Os bens não têm de sair do património do obrigado à restituição, onde o credor poderá executá-los ou praticar os actos de conservação autorizados por lei aos credores.”

Orientação que foi seguida pelo artigo 2901 do Código Civil Italiano “o credor... pode pedir que sejam declarados ineficazes...”.

E naturalmente pelo artigo 2902 “O credor, obtida a declaração de ineficácia, pode promover, em face dos terceiros adquirentes, as acções executivas ou conservatórias...”.

Daí o nosso artigo 616 n.º 1, onde os Profs. P. Lima e A. Varela em sua anotação ensinam:

“Sacrificando-se o acto apenas na medida do interesse do credor impugnante, mostra-se claramente que ele não está afectado por qualquer vício intrínseco capaz de gerar a sua nulidade, pois se mantém de pé, como acto válido, em tudo quanto exceda a medida daquele interesse.

Trata-se, pois, de uma acção declarativa desviante de dois princípios basilares do direito das obrigações: o de autonomia privada e o de responsabilidade patrimonial.

Com efeito ela “destrói a barreira que se impunha entre o direito de execução dos credores e os bens alienados pelo devedor; levanta o véu que, por força do artigo 821 do Código de Processo Civil, ocultava esses bens à execução; proclama, numa palavra, a ineficácia da alienação perante os credores...” - Prof. A. Varela, Rev. citada, pág. 381.

Não é acção real, tipo reivindicação.

É acção pessoal, onde se faz valer apenas um direito de crédito do Autor.

Pelo n.º 1 do artigo 612 depende de o devedor e terceiros - quanto ao acto oneroso - terem agido de má-fé, igualitariamente.

Fraude do devedor com consciência de prejudicar o credor com conhecimento de terceiro: comportamentos atentatórios da boa-fé.

Boa-fé que nesta acção segue o regime normal da sua aplicação.

Daí que se diga que a impugnação pauliana se baseia num facto ilícito quando existir má-fé e num enriquecimento sem causa quando existir boa-fé.

O enriquecimento sem causa alberga uma deslocação indevida por parte do beneficiado.

Quando entre em equação ponderativa o dano a ressarcir então teremos de socorrer-nos da responsabilidade civil.

Face ao prejuízo causado ao credor trata-se de “uma acção de responsabilidade ou indemnizatória, não podendo os bens ou direitos adquiridos pelo terceiro ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor impugnante” - Prof. Henrique Mesquita, Rev. Leg. Jur., ano 128, pág. 223.

Com todos os assinalados desvios é, no fundo, uma acção independente, fundada directamente na lei, em face de equidade, razoabilidade, oportunidade e boa-fé.

O que o ordenamento jurídico quer é a melhor defesa do credor do alienante.

Por isso dada a conhecida dificuldade de prova em acção simulatória os fundamentos de equidade e oportunidade teriam aconselhado o legislador português - ver noutras legislações Prof. V. Serra, Bol. 75, pág. 229 e 230 - a permitir que o credor do alienante se possa socorrer de impugnação pauliana contra tais actos.

“Não sendo razoável que fossem menos defendidos em relação a actos nulos do que em relação a actos válidos” - Prof. V. Serra, Obr. cit., pág. 230 e A. Varela, em anotação ao artigo 615.º do Código Civil.

Daí que o n.º 1 do artigo 615.º preceitue “Não obsta à impugnação a nulidade do acto realizado pelo devedor.”

A lei dá ao credor a escolha de dois meios: acção de nulidade e impugnação pauliana, cada uma com os seus requisitos e efeitos próprios.

2.4. Nesta perspectiva, outra conclusão não pode extrair-se, senão a do infundado da alegação do recorrente.

Com efeito, através da acção n.º 2022/15.8T8AGD, mais certificada a fls. 163 e segs. dos autos principais, a credora …, S.A. instaurou típica acção de impugnação pauliana.

Por outro lado, e demais consabido que nessa acção a relação controvertida envolve três sujeitos: o credor prejudicado; o devedor alienante e o terceiro adquirente, mostrando-se a intervenção de todos eles necessária, como salvaguarda do princípio do contraditório, e para que a decisão possa definir com força de caso julgado a relação controvertida (cfr. Ac. TRE, in processo n.º 284/16.2T8STR-B.E1, acedido também em www.dgsi.pt, o credor prejudicado (dita …, S.A.), propôs tal acção contra o devedor alienante (indicado … [e esposa]) e o terceiro adquirente (o filho de ambos, mencionado …).

Julgada procedente a acção, e então declarada a ineficácia, relativamente à exequente, da doação titulada pela escritura outorgada a 29 de Maio de 2013, no Cartório Notarial da ... , a cargo da Notária …, tendo por objecto o imóvel nela identificado, precisamente o em causa neste recurso, e reconhecido à exequente o direito de executar este mesmo bem no património do adquirente, outra ilação não pode extrair-se efectivamente senão essa.

Mostra-se, consequentemente, infundada a asserção do recorrente quando sustenta que a sentença de impugnação pauliana apenas constitui título executivo contra o terceiro adquirente, caso este figurasse como executado na presente execução.

O visado figura já naquela acção como demandado e pode aí exercer a sua defesa. Violado o direito da … no dia 18 de Novembro de 2011 e por si obtida sentença reconhecendo o direito à sua reparação, no dia 12 de Novembro de 2014, através da acção n.º 2022/15.8T8AGD a mesma exequente acautelou a “execução” no património do terceiro adquirente nos termos estritos ao recebimento da quantia reclamada a coberto do regime plasmado pelo art.º 818.º do Código Civil.

Por outro lado, não era caso de aplicação do regime decorrente do art.º 56.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, uma vez inexistir garantia real sobre bens de terceiro.

Sem mais considerações, mostra-se o bem fundado do despacho recorrido.


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III. Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente e, em consequência, decidem manter o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se em três UCs a taxa de justiça devida.


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Coimbra, 5 de Junho de 2019

[Documento integralmente processado e revisto pelo signatário e assinado electrónicamente – art.º 94.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal]

Brizida Martins (relator)

Orlando Gonçalves (adjunto)