Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
569/10.1TATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS (2.º JUÍZO).
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 348º Nº 1 B) CP
Sumário: 1.- O crime de desobediência do Artº 348º CP tem como elementos objetivos:
a) a ordem ou mandado;

b) a sua legalidade formal e substancial;

c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

d) a regularidade da sua comunicação ao destinatário;

e) a cominação não legal mas expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b);

f) o conhecimento pelo agente dessa ordem.

2.- No que diz respeito ao elemento subjetivo do tipo, para a sua verificação exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal (direto, necessário ou eventual).

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I - Relatório.

1.1. O arguido A..., entretanto já devidamente identificado, submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum, com intervenção do tribunal singular, porquanto pronunciado pela prática de factualidade que o instituira na autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, realizado o contraditório, acabou condenado enquanto agente dessa infracção, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), ou seja, na multa global de € 400,00 (quatrocentos euros).

1.2. Desavindo com o teor do sancionamento imposto, interpôs recurso, sendo que, da minuta através da qual motivou tal irresignação, extraiu a seguinte ordem de conclusões:

1. A decisão recorrida tem por temas controvertidos, no entendimento do recorrente, os seguintes:

- A comprovada conduta do arguido integra a prática de um crime?

- Acaso assim se sustente, a Guarda Nacional Republicana que o constituiu como fiel depositário da viatura automóvel, cominando-o com a prática de um crime de desobediência, p.p.p. art.º 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, detinha poderes para efectuar tal cominação?

2. Apelo a justificar-se, sustenta o arguido, o do regime estatuído pelos art.ºs 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro. Com efeito,

3. Este último diploma legal remodelou o sistema de registo de propriedade automóvel, procurando ajustar a execução dos actos de registo à natureza muito especial das coisas que constituem o seu objecto, particularmente caracterizadas pela limitadíssima duração e extrema mobilidade negocial inerentes aos veículos automóveis [do seu preâmbulo].

4. Neste sentido, comina como crime de desobediência qualificada, dois tipos de situações, integradas no procedimento cautelar específico previsto no art.º 15.º:

- Quando provados os registos e o vencimento do crédito, ou quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordena a imediata apreensão do veículo e no acto de apreensão quando não for encontrado o certificado de matrícula (caso em que o “requerido” deve ser notificado para apresentar em juízo no prazo que lhe for designado, sob sanção cominada para o crime de desobediência qualificada [art.º 16.º]; e,

- Quando a apreensão, a penhora e o arresto envolvem a proibição de o veículo circular, caso em que “a circulação do veículo com infracção da proibição legal sujeita o depositário às sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada.” [art.º 22.º].

5. Há todavia a ponderar, com interesse para a o devido enquadramento do caso sub iudice, no art.º 851.º, do Código de Processo Civil, redacção conferida através do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro.

6. Atenda-se com particular acuidade que os seus n.ºs 2 e 3, na redacção introduzida pelo aludido diploma, apenas se aplicam aos processos entrados em juízo após a sua entrada em vigor (a saber, 31 de Março de 2009, ex vi do seu art.º 22.º, n.º 1).

7. Vale por dizer que, in casu, ao processo executivo em cujo âmbito ocorreu a apreensão dos documentos se aplicava, em tese, a anterior redacção desse art.º 851.º.

8. E que se coloca um problema de sucessão de leis no tempo quanto ao procedimento a observar (pela lei adjectiva) na penhora de viaturas sujeitas a registo e a apreensão dos seus respectivos documentos no âmbito de um processo executivo - que não nenhum dos previstos no citado art.º 15.º.

9. Porque sendo aplicável esta última redacção do art.º 851.º, ao processo executivo referido em a) dos factos provados e que deu origem à cominação na qual radica os presentes autos, que cominou o arguido na prática de um crime de desobediência em 18 de Novembro de 2009, caso não procedesse à entrega dos documentos nos dez dias após tal notificação, data em que o legislador já havia retirado há muito tal cominação legal do figurino daquele normativo [por força da sobredita alteração à redacção do art.º 851.º, do Código de Processo Civil].

10. Terá tal sucessão de leis, pese embora operada no domínio da lei civil, relevância para o caso vertente?

11. A resposta sera afirmativa, desde logo porque se não pode afirmar estarmos perante um regime (norma) transitório.

12. Adjuva a este entendimento, a abordagem efectuada a uma questão similar, concretamente no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 5/2009, publicado no Diário da República, I.ª Série, n.º 55, com data de 19 de Março de 2009, no qual o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que “O depositário que faça transitar na via pública um veiculo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.”

13. Ora, obre o restrito âmbito de aplicação do regime legal do registo de propriedade automóvel - por referência a uma norma similar do art.º 16.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 54/75,de 12 de Fevereiro, doutrinou-se que: “Na verdade, o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, visou remodelar a matéria de registo de automóveis, propriedade ou outros direitos ou factos com ele relacionados, individualizando os respectivos proprietários, tornar possível o seu tratamento automático e dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis (art.º 1.º).

E as suas normas prendem-se, sempre, directa ou indirectamente, com questões de registo ou sobre automóveis. Reportam-se sempre a situações que estão previstas como actos sujeitos a registo (artigo 5.º) e procuram regular procedimentos, como a apreensão que visa acautelar a venda do veículo e o direito do credor (cfr., v.g., art.ºs 17.º e 18.º).

Isso mesmo, alias, consta do respectivo preâmbulo (23).

14. Significa que para o Supremo Tribunal de Justiça a apreensão em causa (ao lado da penhora e do arresto de veículos especialmente referidos no DL n.º 54/75 e sujeitos a registo) que envolve a obrigatoriedade de entrega de documentos (art.º 16.º, n.º 2) ou a proibição do veículo circular, é coisa distinta da penhora de veículos enquanto penhora de bens móveis sujeita às regras comuns do Código de Processo Civil ou de entrega de documentos, feita através da sua apreensão, mas que foram objecto de referência distinta no mencionado art.º 22.º.

14. Uma é a apreensão ordenada no âmbito da acção prevista no art.º 15.º, enquanto outra é a apreensão em que, nos termos gerais da lei do processo, a qual se materializa na penhora de veículos, bens móveis sujeitos a registo, sendo certo que a alínea e) do n.º 1 do art.º 5.º usa a expressão “prevista neste diploma” visando tão só a apreensão, não a estendendo à penhora ou arresto.

15. Este o entendimento que deve colher-se dos normativos indicados, pois que a  interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (ar.º 9.º, n.º 1, do Código Civil), além de que “na fixação e alcance o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (n.º 3 deste art.º 9.º).

16. Esse mesmo elemento, de alargado a todo o articulado do diploma não fornece indicação no sentido da aplicação genérica da referida cominação a casos não verificados no seu âmbito.

17. Âmbito que, vimos, se reporta à apreensão, penhora e arresto, envolvendo a proibição de o veículo circular, como forma de garantir a realização do registo obrigatório, ou de satisfação do crédito hipotecário vencido e não pago ou de incumprimento das obrigações que originaram a reserva propriedade.

18. Desapareceu pelas razões invocadas a remissão que o n.º 2 do art.º 851.º do Código de Processo Civil, quanto à apreensão dos documentos de viatura automóvel sujeita a registo, fazia para a legislação especial de veículo automóvel requerido por credor hipotecário. Qual seja?

19. Sendo certo que o regime estatuído pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, está na base da notificação que cominou ao arguido o crime de desobediência.

20. Não parece haver dúvidas que o legislador ao acabar com a remissão em bloco para o regime deste diploma, em detrimento dos art.ºs 161.º e 164.º, n.ºs 3 a 8, do Código da Estrada, que passaram a reger tal matéria, pretendeu deixar de punir a conduta daquele que estando obrigado a entregar os documentos o não faça em crime de desobediência qualificada, conforme decorre da exposição hermenêutica do acórdão de fixação de jurisprudência que se citou.

21. A consequência para a falta de colaboração do obrigado à entrega dos documentos, não se mostra agora tipificada em nenhum dos artigos do código da estrada para a qual o legislador opera a remissão na nova redacção do n.º 2 do art.º 851.º, do Código de Processo Civil.

22. Nem se encontrava já tipificado à data em que tal cominação foi feita ao arguido.

23. O que quer significar que, à semelhança do que sucede com a apreensão de cartas de condução a condenados a sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, que não as hajam entregue nos termos do art.º 69.º, do Código Penal, e 500.º, do Código de Processo Penal, não possam aquelas autoridades cominar sem mais a não entrega de tais documentos com a prática de crime de desobediência, nos termos consentidos pelo art.º 348.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal.

24. Tendo desaparecido a remissão legal para o regime jurídico que sanciona o comportamento do arguido faltoso com o crime de desobediência qualificada - à data da pretensa consumação 28/11/2009 (art.º 3.º, do Código Penal) - há que extrair as legais consequências da conduta do arguido (art.º 2.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal).

25. Resulta pois que o preenchimento do tipo legal de crime de desobediência p.e.p. p. art.º 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, depende, necessariamente, da existência de outra disposição legal (art.º 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro), que comine a punição como desobediência qualificada.

26. Na referida alínea a) o crime de desobediência parece destinado “a servir de norma auxiliar (em sentido forte, uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e da sua pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem fixarem uma moldura penal própria” (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, Parte Especial, III, 2001, pág. 353).

27. Enquanto isso, a al. b) “existe tão só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução incorrecta e desrespeitadora do principio da legalidade democrática (Cristina Libano Monteiro, ob. Cit, pág. 353).

28. A cominação legal que aqui se trata deixou de existir em 31 de Março de 2009, com a entrada em vigor da nova redacção do art.º 851.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, dada pela Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro, que revogou a remissão que aí existia para o art.º 16.º, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro - norma de natureza processual mas também de natureza material na parte em que por remissão permitia a cominação do agente com a prática de um crime de desobediência deixando a conduta de não entrega dos documentos de um veículo penhorado, a partir desse momento, de preencher o tipo legal de crime.

29. A eliminação da remissão determina a descriminalização da conduta de não entrega dos documentos da viatura penhorada pelo seu proprietário (executado em execução comum), não obstante para isso regularmente notificado por autoridade pública, nos termos do art.º 16.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, porquanto esse facto, muito embora estribando-se a remissão normativa existente e aplicável ao processo executivo em que a penhora da viatura se concretizou, foi substituída por uma outra redacção legal que deixou de prever essa mesma remissão que estatui o crime de desobediência qualificada, desde 31 de Março de 2009.

30. Ou seja, ao contrário do que acontece noutros casos, neste, nem mesmo quando o arguido cometeu, segundo a acusação o crime de que vem acusado - no dia 28 do mês de Novembro de 2009 - era tal conduta punível segundo a lei vigente nessa data, porque deixou de existir pela lei nova (nova redacção dada ao n.º 2 do art.º 851.º, do Código de Processo Civil) remissão que permitisse a cominação legal nos termos e com os fundamentos em que foi feita, o que equivale a dizer que eliminou a “conduta” do número de cominações legais com o crime de desobediência qualificada (art.º 2.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal).

31. É certo que o arguido foi notificado e ficou ciente de que em caso de falta de entrega dos documentos da viatura no prazo concedido para o efeito incorreria na prática do crime de desobediência que aqui se trata, do que ficou ciente e não observou.

32. Mas tais factos, por si só, sem que exista uma norma penal que criminalize essa conduta não têm relevância criminal.

33. E as condutas que não têm relevância criminal inserem-se no domínio da liberdade - penal - que a todos os cidadãos é permitido.

34. Socorrendo-nos das palavras de Américo Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis no Tempo, 2.ª Edição Revista, Almedina, pág. 176, não existe aqui sequer, segundo o seu critério aplicável a este caso, uma continuidade normativa-típica que permita equacionar a aplicação da lei mais favorável (art.º 29.º, n.º 4, 2.ª parte da Constituição da República).

35. Na verdade, o princípio do Estado de Direito conduz a que a protecção dos direitos, liberdades e garantias seja levado a cabo não apenas pelo direito penal, mas também perante o direito penal (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 165).

36. Esse limite intrínseco apontado por tal Mestre, visa impedir a intervenção estadual arbitrária ou excessiva, submetendo-a ao crivo do principio da Legalidade que se traduz, no seu conteúdo essencial, de que não pode haver nem crime nem pena que resulte de uma lei prévia, escrita e estrita - principio nullum crimen, nulla poena sine lege.

37. Adágio latino que tem plena vigência no nosso ordenamento a começar pela norma material inscrita na Constituição da República Portuguesa sob os art.ºs 1.º e 29.º, n.º 1.

38. De novo aquele Professor identifica como expressões diversas do principio da Legalidade no direito penal, entre as quais se destacam, pela sua pertinência para este caso, o plano que apelida de fonte.

39. Neste plano, o principio conduz à existência da lei formal, pois só uma lei da Assembleia da República pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de segurança e seus pressupostos.

40. Sendo esta exigência de legalidade - plano da fonte - abrange não só a lei penal em sentido estrito como a lei penal extravagante, na medida em que aquela seja chamada pela lei penal à fundamentação ou agravação da responsabilidade criminal (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 172).

41. Escreve ainda que “para esta fundamentação ou agravação serve-se muitas vezes a lei penal, com efeito, de procedimentos de reenvio para ordenamentos jurídicos não penais, v.g. o civil, o administrativo, o fiscal, etc; ordenamentos estes onde não vale, logo no plano da fonte, um principio da legalidade equivalente, ao que considera (…)” e onde o Governo e Administração têm competência geral para legislar.

42. Tal evidência potencia desencontros nas chamadas normas penais em branco que cominam uma pena para comportamentos que não descrevem, mas que se alcançam por uma remissão da norma penal (ou penal extravagante) para leis, regulamentos os actos administrativos promulgados e vice-versa.

43. Seja como for, tais “desencontros” e incongruências devem sempre ser decididas em termos favoráveis ao arguido.

44. A violação do princípio da Legalidade fere de morte o ius puniendi do Estado.

45. Com isto quer-se significar que a conduta do arguido que se mostra dada como provada estava descriminalizada à data em que actuou (art.º 3.º, do Código Penal) - 28 de Novembro de 2009 - por força da operada revogação legal da remissão feita pelo n.º 2 do citdo art.º 851.º para o regime do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, cujo art.º 16.º, n.º 2, previa a punição da conduta como um crime de desobediência qualificada.

46. O que nos leva à inelutável conclusão de que o arguido não podia ter sido, como foi efectivamente, a 18 de Novembro de 2009, notificado pela GNR para apresentar os documentos da viatura apreendida no prazo de 10 dias sob cominação de cometer um crime de desobediência qualificada, p.e.p. pelos art.ºs 851.º, n.º 2, e 16.º, n.º 2 elencados.

47. Acresce ainda que jamais se poderá admitir a tese que comine a conduta do arguido como crime de desobediência simples – art.º 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, pois que o legislador penal criou um sistema normativo - criminal e processual penal - tendencialmente completo e preciso por força da imposição constitucional que se traduz nos princípios da proporcionalidade (art.º 18.º, da Constituição da República), da proibição da retroactividade penal (art.º 32.º, da mesma Lei Fundamental), da legalidade e da tipicidade, no que entende como direitos, liberdades e garantias.

48. Como tal, mesmo quem pugne, como parece ser o entendimento do Tribunal a quo, que o arguido efectivamente desobedeceu a uma ordem directa de uma autoridade pública sob cominação legal, comprometendo-se com o crime matricial do art.º 348.º, na modalidade da sua alínea b), terá que reconhecer que uma ordem dada nestas circunstâncias seria ilegítima porque era materialmente desproporcional e desnecessária à mencionada entrega.

49. Em questão debatida nos nossos tribunais superiores quanto a saber se o arguido condenado em pena de inibição de conduzir e não entrega a sua carta de condução nos 10 dias subsequentes ao trânsito em julgado, comete ou não um crime de desobediência que lhe haja sido cominado na sentença, escreve o Acórdão da Relação de Coimbra de 30 de Junho de 2010, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

50. Donde que a Guarda Nacional Republicana, não possuisse, per si, os poderes necessários e suficientes, para, sem mais, cominar alguém na prática de um crime, maxime crime de desobediência.

51. Apenas alguém dotado de ius imperii, nomeadamente o Juiz, possui legitimidade suficiente para exarar tal comando ou ordem, sob cominação legal.

52. Ou seja, e em conclusão, para além de a comprovada conduta do recorrente não integrar a prática de qualquer ilícito penal, sempre a autoridade que o cominou com a prática de um crime de desobediência, não detinha os poderes necessários e suficientes para de per si efectuar tal cominação.

Terminou pedindo que no provimento do recurso seja ordenada a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por acórdão que determine a sua absolvição.

1.3. Cumprido o disposto pelo art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, contra-alegou o Ministério Público sustentando, desde logo, a rejeição do recurso, atenta a inobservância pelo recorrente do estatuído no art.º 412.º, n.º 1, do diploma adjective penal (rectius, não constituirem as conclusões apresentadas um resumo das razões do pedido, antes integrarem a reproduçaõ quase integral da motivação do requerimento de interposição do recurso); porém, concedendo a possibilidade de assim se não entender, sustentou do improvimento respectivo, pois que a descrita actuação do recorrente integra, efectivamente, a prática do crime cominado na decisão recorrida.

1.4. Proferido despacho admitindo o recurso, cumpridas as formalidades devidas, os autos foram remetidos para esta instância.

1.5. Aqui, no momento processual a que allude o art.º 416.º, ainda do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geal Adjunto emitiu parecer conducente à manutenção do sentenciado, logo, ao não provimento da impugnação.

1.6. Foi dado acatamento ao subsequente art.º 417.º, n.º 2, sem que o recorrente haja apresentado então qualquer resposta.

1.7. No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se que nenhuma circunstância (a suscitada ou, inclusive, outra) impunha a apreciação sumária do recurso (fundamentação que se relegou para final, atentas razões de economia e de celeridadde processuais), ou obstava ao conhecimento de meritis, donde que a dever o mesmo prosseguir com a recolha de vistos – o que se verificou -, bem como submissão à presente conferência.

Urge, pois, ponderar e decidir.


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II – Fundamentação de facto.

2.1. A decisão recorrida, após discussão da causa, deu como provados os factos seguintes:

1. No âmbito dos autos de Execução n.º 255/07.0 ATNV, que corre termos no 2.º Juízo do Tribunal de Torres Novas, no qual o arguido figurava como executado, foi penhorado no dia 8 de Maio de 2009, o veículo automóvel da marca Fiat, com a matrícula … .

2. No dia 18 de Novembro de 2009, o referido veículo foi efectivamente apreendido pela GNR, tendo sido elaborado o respectivo auto de apreensão do veículo, que foi assinado pelo arguido, e no qual este foi constituído depositário da mencionada viatura.

3. Na ocasião referida em 2), o arguido foi advertido que o veículo ficaria à sua guarda, na qualidade de depositário, e ele ficava com a obrigação de não o utilizar, nem o alienar por qualquer forma, de o entregar quando lhe fosse exigido, e ainda que a utilização ou a alienação faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

4. Nesse mesmo dia o arguido foi notificado pessoalmente, tendo assinado a respectiva notificação, de que deveria apresentar no Tribunal de Torres Novas os documentos do referido veículo de matrícula ..., no prazo de 10 dias, sob cominação, caso não os apresentasse, de que incorreria na prática de um crime de desobediência qualificada.

5. O arguido recebeu tal notificação e ficou ciente do seu conteúdo.

6. Porém, o arguido não fez entrega daqueles documentos da viatura ..., nem no prazo de 10 dias, subsequente à notificação, nem em data posterior, pelo menos até ao dia 28 de Novembro de 2009.

7. Ao actuar como se descreve, previu e quis o arguido desrespeitar a ordem que lhe foi transmitida, não obstante saber que essa injunção fora emanada por autoridade competente, para, no prazo de 10 dias, entregar os documentos da viatura ..., de que havia sido nomeado depositário e que havia sido apreendida, no Tribunal de Torres Novas.

8. Sabia que devia obediência a tal ordem, que lhe fora regularmente comunicada através de comunicação pessoal, bem como, que não a acatando, incorreria na prática de um crime de desobediência.

9. O arguido agiu de forma, livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.

Mais se provou que:

10. O arguido é desempregado, não recebendo subsídio de desemprego.

11. Faz alguns trabalhos na fazenda, sendo os bens para consumo próprio.

12. Vive com os seus pais, que o sustentam.

13. Não tem filhos menores.

14. Tem o 9.º ano de escolaridade.

15. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

2.2. Quanto a factos não provados, nada foi referido, tendo-se contudo consignado na dita decisão que Em audiência de julgamento não se provaram quaisquer outros factos.

2.3. Por fi, reza assim a motivação probatória constante da mesma sentença:

A convicção do Tribunal, quanto à matéria de facto que se considerou provada, baseou-se na ponderação e análise crítica do conjunto da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

O Tribunal atendeu, primeiramente, ao teor das certidões juntas aos autos a fls. 1 a 9 e a certidão junta em audiência. Salienta-se que resulta do conteúdo do documento de fls. 7 a 9 que o arguido foi notificado para, em dez dias, apresentar os documentos do veículo ... sob sanção cominada, caso os não apresente, para o crime de desobediência qualificada.

A testemunha … , militar da GNR, confrontada com tais documentos, assegurou, de forma isenta e objectiva, que o arguido foi notificada pessoalmente para apresentar os documentos, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal – crime de desobediência -, esclarecendo, ainda, que o procedimento habitual, nestes casos, é informar devidamente o depositário das cominações legais, como sucedeu.

Tal depoimento foi corroborado pela testemunha … , militar da GNR, que atestou os mesmos documentos e confirmou a aludida advertência feita ao arguido, tendo o mesmo ficado ciente desta.

Declarou o arguido que os documentos do veículo em causa se encontravam dentro da sua carteira pessoal guardados no interior de uma carrinha que lhe tinha sido furtado, tendo o arguido apresentado queixa-crime na GNR. Afirmou, ainda, que ficou com cópia dessa queixa, porém, na data em que os agentes da GNR lhe notificaram para apresentar os documentos (cfr. notificação de fls. 7 e ss), pese embora lhes ter relatado o sucedido, não lhes exibiu aquela cópia da queixa apresentada.

Ora, a versão do arguido não merece acolhimento em face da restante prova produzida. Com efeito, as militares da GNR inquiridos não atestaram tal justificação feita pelo arguido, ao invés, afirmaram que o arguido não fez nenhuma referência a qualquer furto e se tal tivesse sucedido, faziam constar em auto tais declarações, o que não ocorreu.

A prova feita em julgamento infirmou por completo a versão do arguido, que, de resto, não foi sustentada por nenhum documento, nem outra qualquer prova credível e cabal. Na verdade, o arguido nunca apresentou nos presentes autos a aludida cópia da queixa apresentada, sendo certo que o arguido até requereu abertura de instrução. Ora, o arguido afirma ter na sua posse cópia da aludida queixa e, até à data, nunca a juntou aos autos. Acresce que tal versão se mostra de uma extraordinária coincidência e pouco compatível com as regras da normalidade, sem qualquer sustentabilidade probatória, não merecendo qualquer credibilidade.

Igualmente o depoimento da testemunha … , irmão do arguido, não confirmou a versão deste, apenas referindo que uma viatura do irmão tinha sido furtada e que o irmão costuma ter os documentos na tal carrinha, não sabendo sequer a data do furto, e nada adiantado ou contribuindo para o apuramento da matéria em apreço.

Quanto às condições socio-económicas do arguido, a convicção do tribunal formou-se com base nas suas declarações a esse respeito.

Relativamente aos antecedentes criminais, foi tido em consideração o certificado de Registo Criminal do arguido.


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Quanto aos factos não provados, refira-se que mais nenhum facto foi apurado com interesse para a decisão em apreço.

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III – Fundamentação de direito.

3.1. O objecto de um recurso penal é definido através das conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal –.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º 1, daquele art.º 412.º, e conforme jurisprudência pacífica e constante[1], o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito[2].

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – ditos art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2[3].

Nesta perspectiva, ponderada a elencada questão prévia da rejeição liminar do recurso, e acaso se entenda não deva subsistir, porque não ocorre qualquer circunstância conducente à aludida intervenção oficiosa, vistas as conclusões apresentadas pelo arguido, a única questão decidenda consiste então em verificarmos se a sua comprovada conduta não é susceptível de sancionamento penal, mormente o aplicado.

3.2. Sustenta o Ministério Público que se impõe a rejeição do recurso interposto, uma vez que, compulsando-se, «logo se constata que o recorrente se limitou, no que tange às conclusões extraídas da sua motivação, a proceder à sua articulação por parágrafos e letras [de a) a iii)!!], utilizando o mesmo corpo de texto e fazendo uma reprodução quase integral de tudo quanto foi expondo ao longo da sua petição recursiva.»

Ora, continua, «o recorrente ao enveredar por tal exposição, violou claramente o que a lei processual penal lhe impõe nesta matéria, que consiste em o recorrente, nas conclusões, “resumir as razões do pedido”, o que não fez, nos termos sobreditos e de modo ostensivo.»

Por outro lado, adita, «Também… não deve ser formulado ao recorrente um convite para aperfeiçoar (nos termos do art.º 417.º, n.º 3, do CPP), nesta parte, a motivação de recurso uma vez que não estamos perante uma mera deficiência na formulação das conclusões mas sim uma reformulação dos próprios termos da motivação de recurso.

A proceder-se deste modo não ocorre a violação do princípio da proporcionalidade, nem desrespeito pelo princípio de defesa do arguido, consagrado no art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, visto que o mandatário do arguido deve respeitar as mais elementares regras processuais se pretende ver o seu recurso apreciado.»

Quid iuris?

De acordo com o art.º 412.º, do Código de Processo Penal:

1. A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

2. Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a) As normas jurídicas violadas;

b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma juridical que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.”

Isto é, na sua actual estruturação, o recurso cinde-se em duas partes: a «motivação», na qual o recorrente enuncia especificadamente os seus argumentos, e, as «conclusões», onde são resumidas as razões do recurso.

Estruturação pois agora mais exigente do que aquela que anteriormente era imposta para as alegações do recurso.

Propósito deliberado do legislador, foi o de, por tal forma, obstar ao prosseguimento de recursos inviáveis ou nos quais os recorrentes não exponham com clareza o sentido das suas pretensões.

Também primordial, ainda, o princípio da lealdade processual, pois que através dos ónus referidos se convocam os sujeitos prcessuais a coadjuvarem, adequadamente, à breve, eficaz e boa decisão da causa.

No caso vertente, vimos, o Ministério Público questiona da inobservância pelo recorrente do segundo dos elencados segmentos, isto é, de as conclusões apresentadas não permitirem, como mister, uma sua fácil e rápida apreensão por este Tribunal ad quem.

O Supremo Tribunal de Justiça, em aresto de 4 de Março de 1999[4], entendeu ter de rejeitar-se o recurso no qual o recorrente apresentou, como conclusões, uma cópia integral do texto da motivação, nomeadamente no que concerne às epígrafes das matérias tratadas e aos números dos artigos, apenas com pequeníssimas e irrelevantes diferenças de pormenor.

A tese que todavia se foi sedimentando, fixou-se no sentido em que a observância dos ónus elencados, tem de ser encarada com equilíbrio e sensatez, de forma a que, sendo apercebido, num mínimo, o desiderato do recurso, se não fruste com aspectos formais o objectivo primordial de aplicação da justiça[5].

A tal entendimento não foram alheios os mandamentos constitucionais.

Com efeito, expendeu repetidamente o Tribunal Constitucional[6] que a deficiência na formulação das conclusões (por prolixidade, por omissão das indicações mencionadas no citado art.º 412.º, n.º 2 ou por outro motivo) não pode ter o efeito de levar à rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja facultada a oportunidade de suprir as deficiências. Ponto era que o recorrente, na motivação, tivesse exposto correctamente as suas razões, pois, caso contrário, estar-se-ia a facultar ao visado a interposição de um novo recurso, o que era legalmente vedado. A mera imperfeição das conclusões não justificaria um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso, sob pena de violação ao direito correspectivo, consagrado no art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República.

Esta a solução entretanto legislativamente assumida no n.º 3 do art.º 417.º, do Código de Processo Penal, em cujos termos, Se a motivação do recurso não tiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º o relator convida o recorrente a apresentar, completer ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.

Compulsando-se a peça recursiva do arguido, o que pode afoitamente afirmar-se é que a mesma em pouco acatou o normativo em causa – art.º 412.º, n.ºs 1 e 2 -.

Na verdade, as conclusões redundam numa cópia quase fiel daquilo que ao longo da motivação alegou no sentido de clamar a sua irresponsabilização penal.

Solução seria, então, o convite ao expurgar de muitas delas, cingindo-se ao “resumo” do pedido.

Ressalvado o devido respeito, afigura-se-nos que antes mais se justificaria um tal convite acaso as conclusões pecassem por deficiência – então, sim, urgiria precisar os termos concretos em que se configurava a impugnação.

Na hipótese vertente, embora concedendo a prolixidade utilizada nas conclusões, longe do resumo que devem constituir, sempre contudo o recorrente nelas definiu o objecto do recurso: a não criminalização da conduta que, tendo-o como agente, foi considerada por provada no Tribunal a quo.

Seja, consequentemente, da já consignada admissibilidade do recurso interposto, isto independentemente de qualquer convite prévio ao recorrente para que reformule as conclusões ofertadas.

3.3. Tempo, pois, de centrarmos a atenção na apreciação dessa concreta questão.

E, precisão que importa começar por fazer-se,  de que tal apreciação não deve atentar ao que eventualmente contenderia com uma qualquer desobediência qualificada. Na verdade, pese embora a notificação feita ao arguido, ut fls. 9, fosse no sentido em que estava adstrito a apresentar, no prazo de dez dias, os documentos do veículo de matrícula ..., sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada, p.p.p. art.º 348.º, n.º 2, do Código Penal, ex vi do art.º 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, certo é que a pronúncia e a decisão recorrida (sem qualquer alteração no que concerne), o sancionou apenas enquanto agente de um crime de desobediência simples, p.p.p. mesmo art.º 348.º, mas seu n.º 1, al. b).

Idem quando apela à descriminalização dos factos que lhe são imputados, por força da alteração introduzida no art.º 851.º, do Código de Processo Civil, através do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro.

Ora, nesta perspectiva, falecem de conteúdo útil, desde logo, os argumentos expendidos[7] pelo recorrente no sentido em que não seria hipótese de apelo ao regime além consignado. Na verdade, não o era, já que o processo em cujo âmbito foi dada a ordem indicada era um processo executivo comum, por custas. Por outro lado, tão sómente em causa indagar da verificação dos pressupostos exigíveis ao emergir do ilícito previsto pelo citado art.º 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Punctum saliens, assim, indagar se a ordem dada ao arguido, tal como notificação constante de fls 9, e uma vez que o mesmo a não acatou, integra (ou não) a prática deste tipo de ilícito.

Segundo o citado art.º 348.º,

1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

(…)
b) na ausência de disposição, a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação
.”

Ou seja, constituem elementos objectivos deste tipo de ilícito[8]:

Falta à obediência devida de,

a) uma ordem ou mandado;

b) legalidade formal e substancial dessa ordem ou mandado;

c) competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

d) regularidade da sua comunicação ao destinatário;

e) uma cominação não legal mas expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b);

f) o conhecimento pelo agente dessa ordem.

Faltar à obediência devida não constitui, só por si, facto criminalmente punível, exige-se, para além disso, que a fonte de onde emana essa ordem ou mandado seja uma disposição legal que comine a sua punição ou, na falta desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar tal ordem ou mandado[9].

No que diz respeito ao elemento subjectivo do tipo, este crime é um crime doloso, o mesmo é dizer que, para a sua verificação se exige o dolo, em qualquer das suas modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal (directo, necessário ou eventual), que se preenche sempre que “o agente não cumpre, de modo voluntário e consciente, uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionários competentes.”

Por outro lado – conforme resulta hoje claramente do confronto da pré-vigente e da actual redacção do crime de desobediência, art.ºs 388.º do Código Penal de 1982 e 348.º do Código Penal de 1995 – a desobediência atípica ou inominada – art.º 348.º, n.º 1, al. b), do actual Código Penal – exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário fizeram a correspondente cominação. Ora, a correspondente cominação funcional, no mínimo, atendendo ao que deixamos dito, só pode ser: faz isto ou não faças aquilo, sob pena de incorreres em crime de desobediência.

O legislador na reforma[10] teve o cuidado de acrescentar a necessidade de ser feita a correspondente cominação, que só pode ser, no mínimo, a de a prática de crime de desobediência.

Em suma, se na alínea a), do citado art.º 348.º, se exige, apenas, que a ordem seja legal, regularmente comunicada, emanada de autoridade competente, e «uma disposição legal a cominar, no caso, a punição da desobediência simples», já na al. b), do mesmo preceito legal, o que se estatui é a exigência de «na ausência de disposição legal», a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

No dizer de Cristina Líbano Monteiro[11], «em ambos os casos temos, portanto, um dever qualificado de obedecer – qualificado na medida em que o seu não cumprimento traz consigo uma sanção criminal. Com a diferença de que, no primeiro [alínea a)], a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto; enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente (...)».

O crime imputado ao arguido, na pronúncia, consubstancia-se no facto de, apreendido o veículo e na mesma data (18 de Novembro de 2008) notificado pela autoridade policial que procedeu à diligência para a obrigatoriedade de, nos 10 dias seguintes, proceder à entrega no Tribunal Judicial de Torres Novas, dos documentos a ele respeitantes, e pese embora logo advertido de que tal não entrega o instituiria em responsabilidade penal, volvido o prazo fixado, não o haver feito. 

No crime em análise, sanciona-se o fazer (facere) ou deixar de fazer (non facere) aquilo que foi legitimamente ordenado, independentemente das consequências ou do resultado posterior, sendo o resultado imputado ao sujeito pela simples acção ou omissão.

Só haverá ilícito criminal quando o destinatário, ao ser-lhe transmitida a ordem ou mandado, sabe que, se os não cumprir, incorre na prática de um crime de desobediência – assim cumpre esclarecer que: a advertência ao arguido feita pela autoridade de que a não entrega dos documentos do veículo apreendido integraria o crime de desobediência, ao contrário da cominação legal, constitui, aqui, elemento objectivo do tipo, dado que estamos perante uma cominação funcional, para a qual a lei incriminadora, em apreço, exige tal advertência.

E sequer se questione da legitimidade da cominação como desobediência da conduta omissiva do arguido.

Com é consabido, só podem ser objecto de incriminação as condutas que violem bens jurídicos carecidos de tutela jurídico-penal, como decorre dos art.ºs 29.º, da Constituição da República, e 1.º, do Código Penal. O Direito Penal só deve, pois, intervir quando a sua protecção se revele imprescindível à salvaguarda dos bens jurídicos que sejam fundamentais à defesa do Estado de Direito. E só intervém se e quando os outros ramos do ordenamento jurídico se revelem incapazes de os defender eficazmente, o que vale por dizer que o Direito Penal constitui a ultima ratio.

É neste sentido que se afirma que o Direito Penal é subsidiário dos outros ramos de direito: o que é adequadamente tratado pelos outros ramos do Direito, não deve ser objecto de tutela penal. E é também neste sentido que se considera o Direito Penal fragmentário pois que, de toda a gama de acções proibidas e bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico, o Direito Penal só se ocupa de uma parte ou fragmento, se bem que da maior importância.
Este carácter fragmentário do Direito Penal aparece numa tripla forma em todas as actuais legislações penais: em primeiro lugar, defendendo o bem jurídico só contra ataques de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo a punição da comissão negligente nalguns casos, etc; em segundo lugar, tipificando só uma parte do que nos demais ramos do ordenamento jurídico se considera como antijurídico; e, por último, deixando sem castigo, em princípio, as acções meramente imorais.
No caso dos autos, efectivada a apreensão do veículo, urgia acautelar o prosseguimento do procedimento executivo em cujo domínio fora ordenada, possibilitando, desde logo, o registo da penhora para cuja realização se mostravam necessários os documentos respectivos.

Para alcançar tal desiderato, o legislador cometeu os agentes de autoridade de, após ordem judicial ao efeito, apreenderem o veículo e notificarem o arguido, isto é, conferindo-lhe poderes para o efeito, legitimou-os para efectuarem a notificação aludida.

Logo, porque a ordem contida na notificação realizada é legítima e provém da entidade a quem a lei conferiu poderes para a dar, é óbvio que o desrespeito tem de ser punido. E é punido como desobediência, pois que, não se procedendo à entrega tempestiva dos documentos, viola-se mandamento transmitido por agente de autoridade, investido de poderes para tanto.

Nesta perspectiva, também se não põe em causa a natureza subsidiária que alguns vislumbram na incriminação do art.º 348.º: in casu, o âmbito de aplicação dessa norma não colide com qualquer outra norma em confronto, não podendo, consequentemente, fazer-se apelo ao princípio da fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal[12].

Face ao que vem de afirmar-se, subsumindo a factualidade provada à norma supra referida, conclui-se que o arguido preencheu com a sua conduta, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito, do crime de desobediência do citado art.º 348.º, n.º 1, al. b), tal como definiu a sentença recorrida.


*

III - Decisão.

Face ao exposto, acorda-se pois em julgar por improcedente o recurso interposto pelo arguido, e, consequentemente, manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 Ucs.


*

Brízida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves



[1] Designadamente, do S.T.J. – Acs. de 13 de Maio de 1998; de 25 de Junho de 1998 e de 3 de Fevereiro de 1999, in, respectivamente, BMJ´s 477/263; 478/242 e 477/271.

[2] Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19 de Outubro de 1995, in Diário da República, I.ª Série – A, de 28 de Dezembro de 1995.

[3] A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2.ª edição, 2000, fls. 335: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”

[4] Publicado na CJ (Acs STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 239.
[5] Cfr. Ac. do STJ, de 21 de Janeiro de 1999, in SASTJ, n.º 27, 80.
[6] Ac. n.º 320/02, de 9 de Julho de 2002, publicado no Diário da República, I.ª Série-A, de 7 de Outubro de 2002.

[7] Tal como, v.g., no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 11 de Maio de 2011, relatado pelo Ex.mo Desembargador Artur Oliveira, no âmbito do recurso n.º 5300/09.1 TAVNG.P1, acessível em www.dgsi.pt.jtrp.

[8] Nas considerações seguintes acompanharemos, porquanto pertinentes, pensamos, as considerações contidas no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, recurso n.º 10452/08.5 TDPRT.P2, prolatado a 4 de Maio de 2011, sendo relatora a Ex.ma Desembargadora Ana Paramés, disponível em www.dgsi.pt.jtrp.
[9] Neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 351, § 6.
[10] Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, 1993, pág. 408.
[11] Ob. cit., pág 350.
[12] Neste sentido, vejam-se, entre ouros, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 29 de Novembro de 2010, processo 532/10.2 GAFLG.G1; da Relação do Porto, de 27 de Outubro de 2010, processo 628/09.3 PTPRT.P1. Também com interesse, os Acórdãos da Relação de Évora, de 19 de Dezembro de 2006, processo 1752/06-1; desta Relação de Coimbra, de 7 de Março de 2007, processo 15/04.0 GAVGS.C1; da Relação do Porto, de 10 de Novembro de 2010, processo 14/07.0 PTPRT.P1 – 1.ª Secção (todos disponíveis em www.dgsi.pt).