Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/07.0GAVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
VALOR PROBATÓRIO
AUTO
VALIDADE
PROVA AD PERPETUAM REI MEMORIAM
Data do Acordão: 01/15/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 150.º E 355.º E SS., DO CPP
Sumário: I - A reconstituição do facto - se realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada -, autonomiza-se das contribuições individuais de quem nela tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os seus termos e resultado; as declarações (rectuis, as informações) prévias ou contemporâneas que hajam possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto diluem-se nos próprios termos da reconstituição.

II - Porém, não constitui meio de prova válido o auto de reconstituição - lavrado, no decurso do inquérito, por órgão de polícia criminal -, que, em termos materiais, apenas contém meras declarações do arguido; a consideração/valoração desse auto conduziria inexoravelmente à violação do artigo 357.º do CPP.

III - Não podendo ser valorado tal auto de reconstituição, e não existindo prova documental e testemunhal suficientemente reveladora de o arguido ter praticado os factos que lhe estão imputados na acusação, deve o tribunal de recurso, por força do princípio in dubio pro reo, emitir veredicto de absolvição.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO:

1. Nestes autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 67/07.0GAVZL, do Tribunal Judicial de Vouzela, e em que são arguidos A..., B..., C... e D..., após realização da audiência de julgamento, em 02/05/2013 foi proferida sentença na qual foi decidido nos seguintes termos (transcrição):

“Decisão:

Pelo exposto:

a) Absolvem-se os arguidos A..., C... e D... da prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), ambos do Código Penal.

b) Absolvem-se os arguidos A..., B..., C... e D... da prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

c) Condena-se o arguido B... pela prática, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), ambos do Código Penal, numa pena de três anos de prisão.

d) Julga-se totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado a fls. 545, por G..., absolvendo os demandados da totalidade do pedido.

e) Condena-se o arguido B... no pagamento das custas do processo (art.º 513.º, n.º 1 do C.P.P.), fixando-se a taxa de justiça em 2 unidades de conta (art.º 85.º, n.º 1, al. b) do C.C.J.), a que acresce ¼ de procuradoria (95.º, n.º 1 do C.C.J.).

(…)”

                                                      *

2. Inconformado com o quanto a si decidido, o arguido B..., em 31/05/2013, interpôs recurso retirando das correspondentes motivações as seguintes conclusões (transcrição):

1 O presente recurso pretende impugnar a d. decisão, que levou à condenação do arguido B....

2  Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos, portanto, em relação aos mesmos não foi produzida prova suficiente sobre a verificação da prática de um crime de furto imputado ao recorrente.

3 Para fundamentar a sua decisão o Tribunal baseou-se nos testemunhos de G... e E..., bem como no auto de reconstituição.

4 No entanto, não ficou provado, pelas declarações dessas duas testemunhas os factos constantes dos pontos 1) a 3).

5 Não presenciaram.

6 Não souberam ao certo, como e quando ocorreram os factos descritos na acusação.

7. Logo, não têm conhecimento directo sobre o caso.

8 As suas declarações basearam-se em meras descrições do local onde ocorreram os factos.

9 Isto é, das condições em que encontrou o local após os factos.

10 Temos então que da prova testemunhal não existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter visto o arguido a cometer o crime.

11 Veja-se a expressão da testemunha G... "não sei, não conheço ninguém. Eu apenas cheguei lá e participei à GNR .... "

"vi as portas esventradas e vi que faltavam lá coisas dentro do lagar. E do alambique ... "

12 Ou ainda a expressão da testemunha E..." não estava ninguém. Já fomos chamados pelo proprietário que era a única pessoa que lá estava "

13 O Tribunal recorrido, decidiu ainda com base num auto de reconstituição, o qual não foi objecto de apreciação em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente através de declarações dos guardas que presidiram ao mesmo, que poderiam ter sido essenciais para a descoberta da verdade.

14 Auto de reconstituição esse que foi valorado por si só, sem recurso a outros meios de prova.

15 Para uma boa fundamentação da convicção do tribunal que recorre a este meio de prova, é conveniente que a reconstituição não seja avaliada só por si, mas corroborada por outros meios de prova, que mostrem a compatibilidade da reconstituição com essa provas e destas com aquela.

16 Do auto de reconstituição pode concluir-se que o furto podia ter sido, eventualmente, praticado pelo recorrente, NÃO QUE, EFECTIVAMENTE O FOI.

17 Perante esta falta de provas, era impossível o tribunal ter a certeza de que foi o arguido que praticou o furto, quanto muito poderia ter ficado a dúvida, mas na dúvida deveria ser absolvido.

18 Razão pela qual entendemos que a sentença deverá ser a de absolvição.

19 Porquanto se encontram incorrectamente julgados os pontos 1) a 3) da fundamentação da decisão.

20 E em consequência de tudo o que antecede, deve o arguido ser absolvido, pedindo JUSTIÇA”

                                                      *

3. O Ministério Público junto da 1ª instância, a fls. 782 a 784, respondeu ao recurso, terminado com as seguintes (transcritas) conclusões:

1. No recurso por si interposto o Recorrente afirma que, se por um lado, as testemunhas inquiridas em sede de audiência e julgamento não presenciaram nem souberam indicar as circunstâncias de tempo e modo como ocorreram os factos ilícitos em apreciação, por outro lado, valorou tal auto de reconstituição desacompanhado de quaisquer outros meios de prova.

2. Analisada toda a argumentação do Recorrente nesta parte, constata-se que o mesmo se limita a pôr em causa a livre convicção do julgador quanto a tal matéria, pretendendo que, em lugar dela, se coloque as suas.

3. Contudo, ao contrário do defendido pelo Recorrente, a nosso ver, a sentença recorrida procedeu a uma correta ponderação de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

4. Assim, resultando de forma inequívoca que o Tribunal a quo ponderou corretamente toda a prova produzida em sede de julgamento, a nosso ver, não merece provimento o recurso interposto pelo Recorrente.

4. Nesta instância, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, a fls. 793 a 794vº, sufragando a posição evidenciada pelo M.P. em 1ª instância, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida.

5. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o recorrente não respondeu.

6. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso, a principal questão suscitada, circunscrevendo-se à impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo e à crítica da valoração da prova feita por aquele mesmo tribunal, consiste em saber se o tribunal recorrido deveria ter dado como não provado que o recorrente tivesse tido intervenção nos factos 1 a 3, uma vez que, na sua perspectiva, as testemunhas em que o tribunal formou a sua convicção não presenciaram os factos e do auto de reconstituição, só por si e sem recurso outros meios de prova, não resulta que o arguido tenha sido autor ou co-autor dos factos. E, embora de modo residual da questão anterior, também é suscitada também a questão de saber se o auto de reconstituição deveria ter sido examinado em audiência de julgamento.


Vejamos o que da sentença recorrida resulta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à motivação da matéria de facto (transcrição):

 “Factos provados:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. Em data não concretamente apurada mas entre o dia 10 de Abril de 2007 e o dia 13 de Abril de 2007, o arguido B...deslocou-se a um alambique, pertença de G..., sito em (...), Vouzela.

2. De forma que não foi possível determinar, o arguido estroncou a porta da entrada daquele local e penetrou desse modo no seu interior.

3. No interior daquele local, o arguido lançou mão dos seguintes artigos, pertença de G..., sem a sua autorização, cujo valor não foi concretamente apurado mas é inferior a €5.000,00:

• três capacetes de coluna de alambique em cobre;

• dois refrigeradores em cobre;

• dois braços de ligação às cabeças das colunas de alambique em cobre;

• a canalização de vapores em cobre;

4. O arguido fez seus os objectos supra descritos, levando consigo o que alcançou do referido local, dando-lhes o destino que lhe aprouve em seu próprio proveito, apesar de saber que actuava sem autorização para tal e que agia contra a vontade do respectivo dono.

5. O arguido sabia também que ao penetrar no interior do espaço conforme descrito, actuava contra a vontade do seu dono.

6. Agiu de modo livre, voluntário e consciente, conhecedor que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. O arguido A... encontra-se detido no E.P. da Guarda, em cumprimento de pena.

8. Trabalha como cozinheiro na messe dos guardas, auferindo €60 mensais.

9. Tem o 12.º ano de escolaridade e um curso de hotelaria e turismo.

10. O arguido B...encontra-se detido no E. P. de Coimbra.

11. Desde 2011 que cumpre pena.

12. Recebe visitas de familiares.

13. Já requereu a prestação de trabalho no E.P., ainda não havendo vagas disponíveis.

14. Tem a 4.ª classe.

15. O arguido A... sofreu as condenações constantes de fls. 612 a 640.

16. O arguido C...sofreu as condenações constantes de fls. 663 a 676.

17. A arguida D... sofreu as condenações constantes de fls. 677 a 683.

18. O arguido B...foi condenado:

- por decisão transitada em julgado em 09/02/2005, por um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do D.L. 2/98, de 03/01, praticado em 23/01/2005, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €3, o que perfaz a quantia global de €180,00;

- por decisão transitada em julgado em 22/05/2006, por um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do D.L. 2/98, de 03/01, praticado em 29/09/2005, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €2, o que perfaz a quantia global de €240,00;

- por decisão transitada em julgado em 10/01/2007, por um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, praticado em 14/04/2005, na pena de um ano de prisão, suspensa pelo período de dois anos;

- por decisão transitada em julgado em 11/01/2007, por um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do D.L. 2/98, de 03/01, praticado em 17/08/2005, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €4, o que perfaz a quantia global de €400,00;

- por decisão transitada em julgado em 12/09/2007, por um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, do Código Penal, praticado em 20/01/2006, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz a quantia global de €600,00;

- por decisão transitada em julgado em 07/07/2008, por um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, da Lei 2/98, de 05/2006, de 23/02, praticado em 10/06/2007, na pena de 900 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz a quantia global de €4.500,00;

- por decisão transitada em julgado em 20/12/2010, por três crimes de furto qualificado, ps. e ps. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), ambos do Código Penal, e um crime de dano simples, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, do Código Penal, praticados em 10/06/2007, na pena única de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova;

- por decisão transitada em julgado em 06/07/2011, por um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. a), ambos do Código Penal, e um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2, do D.L. 02/98, de 03/01, praticados em 30/04/2007, na pena única de três anos e nove meses de prisão;

- por decisão transitada em julgado em 08/07/2011, por um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347.º, n.º 2, do Código Penal, um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 2, do D.L. 02/98, de 03/01, e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, praticados em 26/03/2009, na pena única de dois anos e dez meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de um ano;

- por decisão transitada em julgado em 01/08/2011, por um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347.º, do Código Penal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291.º, do Código Penal, um crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, do Código Penal, todos praticados em 04/2007, e um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do D.L. 02/98, de 03/01, na pena única de seis anos de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de um ano e seis meses;

- por decisão transitada em julgado em 30/09/2011, por dois crimes de furto qualificado, ps. e ps. pelo art.º 204.º, do Código Penal, praticados em 14/06/2007 e 11/09/2007, na pena única de seis anos e seis meses de prisão;

- por decisão transitada em julgado em 28/11/2011, por um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, 204.º, n.º 1, al. a), e 202.º, todos do Código Penal, praticado em 14/04/2007, na pena de dois anos e três meses de prisão;

- por decisão transitada em julgado em 02/04/2012, por um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, do D.L. 2/98, de 03/01, praticado em 30/11/2009, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz a quantia global de €900,00;

- por acórdão cumulatório transitado em julgado em 12/12/2012, na pena única de dez anos de prisão e pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de um ano e seis meses;

- por decisão transitada em julgado em 27/02/2011, por um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, al. a), e 202.º, al. a), todos do Código Penal, praticado em 04/02/2010, na pena de dois anos e oito meses de prisão;

- por acórdão cumulatório transitado em julgado em 29/10/2012, na pena única de quatro anos e dois meses de prisão e pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de um ano e seis meses.

19. Por ter celebrado contrato de seguro relativamente aos bens que lhe retiraram, foi entregue a G... pela Seguradora valor entre €6.000,00 a €7.000,00, o qual abarcou todos os bens descritos na acusação.

Factos não provados:

Da discussão da causa, não resultou provado que:

A) Na situação aludida em 1), acompanharam B..., A..., C...e D....

B) Abeirados do dito alambique os arguidos A..., B...e C..., com o uso de um pé de cabra, partiram, em primeiro lugar, o sistema de alarme aí existente e, de seguida, utilizaram o mesmo instrumento para estroncar a porta da entrada daquele local, tendo A... e C...também penetrado desse modo no seu interior.

C) No interior do alambique, A... e C...lançaram mão dos seguintes artigos, no valor global de 9.496,00 €:

• três capacetes de coluna de alambique em cobre, no valor de 550,00 € cada um;

• dois refrigeradores em cobre, no valor total de 2.900,00 € cada um;

• dois braços de ligação às cabeças das colunas de alambique em cobre, no valor 98,00 € cada uma;

• a canalização de vapores em cobre, no valor de 1.850,00 €.

D) De seguida, os arguidos B..., A..., C...dirigiram-se ao lagar de azeite e, com o uso do pé-de cabra em cima mencionado, estroncaram este local, penetrando desse modo no seu interior.

E) Do interior do lagar de azeite os três arguidos ( B..., A..., C...) lançaram mão, sem qualquer autorização, dos seguintes objectos, também pertença daquele G..., com o valor global de 10.803,00 €:

• uma caldeira em cobre, no valor de 7.482,00 €;

• 6 tarefas em inox, no valor de 245,00 € cada uma;

• 3 aparadeiras de caldo com crivo e tampões de saída, no valor de 32,00€, cada;

• 6 crivos em inox, no valor de 27,00 €, cada uma;

• 1 crivo em inox para moinho, no valor de 202,00 €;

• 1 tampa em inox para o crivo do moinho, no valor de 198,00 €;

• 4 saias em inox para protecção da sangra de saída de carros, no valor de 177,00 € cada uma;

• a canalização de ligação das tarefas à centrifuga em tubo de inox com os respectivos acessórios e torneiras, no valor de 485.00 €.

F) De seguida, o arguido A...telefonou à arguida D..., que ficou sempre no exterior para acautelar que, caso aparecesse alguém, dali abalariam com presteza.

G) A arguida logo se dirigiu para junto dos seus comparsas para os ajudar a recolher o material.

H) Os arguidos A..., C...e D... fizeram seus os objectos e valores supra descritos, levando consigo o que alcançaram dos referidos locais, dando-lhes o destino que lhes aprouve em seu próprio proveito, e todos, incluindo B..., alienaram aqueles objectos em sucatas em troca de quantias monetárias.

I) Os arguidos A..., C...e D... sabiam que actuavam sem autorização para tal e que agiam contra a vontade do respectivo dono.

J) Sabiam também que ao penetrar no interior dos espaços, conforme descrito, actuavam contra a vontade do seu dono.

K) Agiram sempre de modo livre, voluntária e consciente, conhecedores que as mesmas condutas eram proibidas e punidas por lei.

L) O arguido B...sabia que ao penetrar no interior do lagar conforme descrito, actuava contra a vontade do seu dono.

M) Todos os arguidos, em todas as situações supra descritas, actuaram mancomunados uns com os outros, em repartição de tarefas, dando assim curso conjunto a plano que previamente engendraram e lograram concretizar, em combinação de esforços.

*

O tribunal não se pronuncia sobre a demais matéria alegada na acusação.

Contestações e pedido cível, porquanto a mesma contém matéria conclusiva, de direito ou irrelevante para a decisão da causa.

 “Motivação:

Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.

Para dar como provados os factos 1) a 3), o Tribunal baseou-se, desde logo, nas declarações sérias e espontâneas de G..., o qual confirmou que por volta das datas referidas alguém entrou no seu alambique, estragando a porta da entrada, que se encontrava fechada, e de lá retirou os objectos indicados, que conferem com a lista de fls. 18, confirmando, por outro lado, que os valores que constam desse orçamento se reportam a objectos novos e não ao valor que os que foram retirados tinham àquela data. Declarou ainda que, por ter celebrado contrato de seguro contra furtos, a companhia de seguros o indemnizou pelo valor dos bens indicados a fls. 16 a 18 em valor entre €6.000,00 e €7.000,00. Assim, se pela totalidade dos objectos lhe foi pago o valor acabado de mencionar, o Tribunal, recorrendo também às regras da experiência, deu como provado que os objectos elencados em 3) (constituindo uma parte minoritária daqueles que foram abrangidos pelo ressarcimento da seguradora, bem como a sua natureza) não teriam, seguramente, à data da prática dos factos, valor superior a €5.000,00, não se tendo, porém, apurado o seu valor exacto.

Para prova daqueles factos foram ainda determinantes as declarações peremptórias de E... - guarda da G.N.R. que se deslocou ao local e interveio nas fotografias tiradas e constantes de fls. 22 a 25 -, auto de recosntituição de fls. 158 a 161 e regras da experiência.

No que se refere à prova por reconstituição e à reserva ao silêncio por parte do arguido que interveio na mesma, em audiência de julgamento, caberá frisar o seguinte:

O art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Ora, tal como refere o Ac. TC nº 1165/96 “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão.

Assim, e com Paulo Pinto de Albuquerque “indícios para além da presunção de inocência são as «razões» que sustentam e revelam uma convicção indubitável de que, de acordo com os elementos conhecidos no momento da prolação da sentença, um facto se verifica.” (in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, 2ª ed., pp.330 e 331).

O art.º 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, consagra “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”, continuando o nº 2 “Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.”

De acordo com o disposto no art.º 357.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na versão aplicável aos autos, “A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida (…) a sua própria solicitação (…) ou quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições e discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.” Consagra, assim, esta disposição legal, no seguimento da consagração constitucional do direito ao silêncio do arguido, o Princípio da Proibição da Auto-Incriminação, ou, o velho brocardo nemo se ipse acusare.

Nos termos do art.º 150.º, n.º 1, do Código de Processo Penal “Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.”

Analisados os autos, verifica-se ter o arguido interveniente no auto de reconstituição exercido o seu direito ao silêncio em sede de audiência de discussão e julgamento, salvaguardando a faculdade que a lei lhe concede de não se auto-incriminar, tendo o outro arguido presente negado a prática dos factos.

Veja-se então em que medida é que, não obstante o seu direito ao silêncio e à não auto-incriminação, pode (e acrescenta-se, deve) o auto de reconstituição dos presentes autos ser valorado enquanto meio de prova válida e eficazmente obtida.

Com efeito, a prova por reconstituição não se reconduz à prestação de declarações por parte do arguido. Ela supõe uma demonstração da dinâmica verificada aquando da comissão da factualidade criminosa que prevê a colaboração expressa e livre do arguido, manifestando este o seu assentimento e cooperação ao longo do decorrer da diligência, contrariamente à mera tomada de declarações do arguido em sede de inquérito.

Ora, verificados que estejam os seus pressupostos legais de admissão, deve a prova por reconstituição ser autonomamente valorada.

Assim, não se confundindo a prova por reconhecimento com a prova por declarações do arguido, não está aquela limitada pelas condições de admissibilidade desta, isto é, não é aplicável à prova por reconstituição o disposto no art.º 357.º, do Código de Processo Penal.

Neste sentido, e com total pertinência, vejam-se as considerações a este propósito expendidas pelo Ac. STJ de 20/04/2006, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa no âmbito do Proc.06P363, disponível em www.dgsi.pt:

“A decisão cumpre as exigências de fundamentação se suporta com plausibilidade, segundo o processo que foi objectivado no raciocínio lógico que guiou a interpretação de todas as provas conjugadas entre si e com as regras da experiência, a opção que foi tomada em matéria de facto, surgindo essa solução como consequência lógica e adequada à realidade das coisas, tendo em vista as provas de que se serviu o tribunal e as ilações que segundo tal realidade - a da experiência vivida - elas permitiam.

- A reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio, sem que tal configure violação do art. 357.º do CPP.

- A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de «declarações», pois o discurso ou «declarações» produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto.

- As chamadas «conversas informais» são declarações prestadas pelo arguido a órgãos de polícia criminal à margem do processo, sem redução a auto e, portanto, sem respeitarem o princípio da legalidade processual decorrente dos artigos 2.º, 57.º e segs., 262.º e segs., 275.º, 355.º a 357.º do CPP e art. 29.º da Constituição (nulla pena sine judicio), não podendo as declarações assim produzidas serem valoradas como meio de prova e concorrerem para a formação da convicção do tribunal.

- As informações prestadas pelo arguido no acto de reconstituição não são declarações feitas à margem do processo a órgão de polícia criminal; são a verbalização do acto de reconstituição validamente efectuado no processo, de acordo com as normas atinentes a este meio de prova e particularmente com o prescrito no art. 150.º do CPP, e mesmo que prestadas, neste e naquele passo, a solicitação de órgão de polícia criminal ou do Ministério Público, destinam-se no geral a esclarecer o próprio acto de reconstituição, com ele se confundindo.

- Se o arguido que faz a reconstituição envolve outro arguido, a prova que dai resulta contra este último será havida como corroborada, numa exigência acrescida de prova, se ela for confirmada por outros elementos probatórios, derivados de provas directas e indirectas, que, devidamente conjugadas entre si e com as regras da experiência, mostrem a veracidade da reconstituição relativamente a esse arguido, que no julgamento optou pelo direito ao silêncio, bem como o que procedeu à reconstituição.

- Tendo todas estas provas e nomeadamente a reconstituição sido produzidas e examinadas na audiência e como tal sujeitas ao princípio do contraditório, não podendo a recorrente invocar a opção pelo silêncio de ambos os arguidos para arguir, por exemplo, a violação do princípio da cross examination em relação às «declarações» que incorporam o próprio acto de reconstituição, pois uma tal pretensão está para além do círculo de interesses que constituem a protecção essencial daquele direito, integrado no direito à defesa.”

Veja-se, ainda, de modo relevante, o que foi dito no Ac. STJ de 5/01/2005, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar no âmbito do Proc. 04P3276, igualmente disponível em www.dgsi.pt:

“A reconstituição do facto, autonomizada como um dos meios de prova típicos (artigo 150° do Código de Processo Penal), consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

- A reconstituição do facto, prevista como meio de prova autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizada e documentada em auto ou por outro vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - artigo 127° do CPP.

- Pela sua própria configuração e natureza, a reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coação física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no artigo 126° do CPP.

- A reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição, e as declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for processualmente adquirido.

- O privilégio contra a auto-incriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória.

-Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática e actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto.

-Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na proibição do artigo 356º, nº 7 do CPP.”

No cotejo de toda a prova produzida, mas principalmente articulando as declarações das testemunhas prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento com o teor do auto de reconstituição, documentos juntos e de acordo  com a sua livre convicção e as regras da experiência, o Tribunal dá por assente a autoria do arguido B... relativamente ao factos provados.

Com efeito, aquilo que se visualiza do auto de reconstituição em que o arguido interveio é em tudo coerente com as declarações das testemunhas mencionadas e as fotografias tiradas.

O que fica exposto não é prejudicado, como acima se disse, pela faculdade legal que ao arguido assiste de se remeter ao silêncio.

Quanto à factualidade constante dos pontos 4) a 6), resulta das regras da experiência comum que, agindo como agiu, o arguido B... revelou ter intenção directa de praticar os factos, como efectivamente o fez. Como se refere no Ac. da R.P. de 23/02/93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão.

Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”. No mesmo sentido vide Ac. da R.P. 0140379, 03/10/2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.

No que concerne às condições pessoais dos arguidos, o Tribunal baseou-se nas declarações prestadas pelos mesmos, que se afiguraram verosímeis.

Para dar como provados os antecedentes criminais, serviram de meio de prova os certificados de registo criminal de fls. 612 e ss.

O facto 19) resultou das declarações do próprio G....

Quanto aos factos dados como não provados, o Tribunal atendeu à ausência de produção de prova no seu sentido.

De facto, nenhuma prova foi produzida que permita ao Tribunal concluir pela culpabilidade dos outros três arguidos, sendo que A... negou mesmo a prática dos factos. Por outro lado, não podem as declarações prestadas em sede de inquérito por B... (nelas se incluindo aquelas que este prestou em sede de auto de reconstituição) ser usadas contra aqueles. Quanto a B..., apenas se poderá valorar as suas declarações no âmbito do auto de reconstituição, desde que acompanhadas da respectiva recriação visual - aquilo que é indicado/apontado e utilizado pelo mesmo, sujeito a transposição para imagem, no caso, fotografias – e não aquilo que ele refere e que vai além do que demonstra visualmente.

Pela mesma razão se deu como não provado que foi o arguido B... que foi ao lagar e daí retirou os objectos que G... mencionou, pois não há qualquer prova que indicie tal e no auto de reconstituição, além das declarações do arguido (que se entende não poderem ser utilizadas sem qualquer representação visual que as corrobore), não houve, da parte do mesmo, qualquer demonstração visual, registada fotograficamente, que conduza à conclusão de que se dirigiu ao lagar depois de ter ido ao alambique, pelo que poderiam ter sido outros intervenientes a dirigir-se lá (ou, ainda que tenha sido o arguido, inexistem provas suficientes que permitam ao Tribunal alicerçar tal incriminação). Foi também com base nos mesmos argumentos que se deu como não provada a utilização do pé de cabra e a destruição do sistema de alarme, sendo que, quanto a este último, nem o próprio queixoso o mencionou.

Não se tendo provado que qualquer dos arguidos se dirigiu ao lagar também não se poderá concluir que foram os mesmos que retiraram os objectos elencados nos factos não provados.

Finalmente, inexistiu qualquer produção de prova quanto ao destino que o arguido B... deu aos objectos que retirou do alambique, pelo que não se pôde dar como provado que os vendeu a sucatas.

Depôs ainda H..., motorista, não tendo as suas declarações permitido a prova de qualquer facto relevante para os autos.”

                                                      *

Não se vislumbrando na sentença recorrida quaisquer dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal (vícios esses de conhecimento oficioso), entremos então na apreciação das questões suscitadas no recurso.

                                                      *

1. Começaremos por abordar a impugnação da matéria de facto.
De uma leitura atenta da motivação dos factos provados e relacionados com o imputado crime de furto ocorrido no mencionado alambique (factos esses que se estendem ao longo dos pontos 1 a 6 da matéria de facto, mas em que a sua objectiva base nuclear se situa nos pontos 1 a 3), resulta claramente que o tribunal recorrido alicerçou a sua convicção, para dar como assente ter sido o arguido/recorrente o autor desses factos relevantes para o preenchimento do referido tipo legal de crime, com base no depoimento das testemunhas G... e E..., conjugado com o auto de reconstituição de fls. 158 a 161 (concretamente o auto de restituição e fotos que o acompanham encontra-se a fls. 155 a 161), e ainda com o auxílio das presunções assentes nas regras da experiência comum.
E a questão que fundamentalmente se suscita, a par da discordância com que o recorrente se manifesta relativamente à forma como foi valorado o depoimento das atrás mencionadas testemunhas, é precisamente a de saber se o auto de reconstituição dos autos é susceptível de constituir um meio de prova autónomo e, como tal, adequado à comprovação dos factos imputados ao recorrente ou se porventura ao mesmo foi atribuído valor probatório desconforme às regra da admissibilidade da produção da prova.
Sendo, no âmbito do processo penal, admissíveis todas as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º do Código de Processo Penal, diploma a que se reportarão as demais disposições legais citadas sem menção de origem), nesse leque de provas admissíveis incluem-se, entre outras, a prova testemunhal, a prova documental e as presunções judiciais, sendo estas as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para afirmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil).

Com efeito, o artigo 349º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).
“As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).”- cfr. Ac STJ de 27/05/2010, acessível através do site www.dgsi.pt .
Por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, podem determinados factos (por exemplo aqueles que pela sua própria natureza não são directamente perceptíveis pelos sentidos, havendo que inferi-los a partir da exteriorização de uma conduta) ser comprovados através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como assente. Desde que as máximas da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas.
No entanto, a prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como aliás o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo) conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se afirma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede).
Ou seja, em resumo dos três itens que acabamos de expor, importa não olvidar um princípio estruturante do processo penal: o de que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. Na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa) e a regra, seu corolário, do in dubio pro reo.

Voltando ao caso dos autos, a questão reside, então, em saber se aos factos e os meios de prova em que se baseia a sentença recorrida (e frisemos factos e meios de prova e não a argumentação jurisprudencial inserida na parte respeitante à convicção do tribunal) são suficientes como indícios seguros e inequívocos, capazes de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que foi o arguido/recorrente o autor (ou co-autor, repare-se que o arguido/recorrente tinha sido acusado com outros três arguidos) do crime de furto qualificado em apreço.
Para impugnar a dada como provada autoria dos factos, e invocando que as testemunhas nada presenciaram que ligasse o recorrente aos factos, traz o recorrente à colação parte dos (por si transcritos) depoimentos das testemunhas G... (proprietário daquele alambique) E... (guarda da GNR), testemunhas esses que, pela leitura da motivação da matéria de facto também serviram para formar a convicção do tribunal.
Tendo o recorrente dado cumprido o que estabelece o artigo 412º nº 3 a) e b) e 4 do Código de Processo Penal, em conformidade com o que estabelece o nº 6 do mesmo artigo, procedemos à audição (integral) de toda a prova oralmente produzida em audiência.
Nessa sequência, da auscultação do depoimento da testemunha G... (proprietário do alambique e lagar em causa) dele decorre que quando chegou junto ao local (dando a entender ter ali ido no dia 13/04/2007 e que a última vez que ali se deslocara tinha sido dois dias antes dessa data) constatou que as portas estavam esventradas, arrombadas e faltavam coisas (tanto no lagar como no alambique), sendo que do alambique foram retirados, entre outros objectos, capacetes, refrigeradores e colunas, não sabendo precisar nem fazer a mínima ideia de quem terá sido o autor ou autores dos factos, tendo a certa altura do seu depoimento dito ”Eu apenas cheguei lá e participei à GNR. Mais nada.” Antes disso, logo no início do seu depoimento, a em reposta a uma pergunta da Sra. Juíza, disse não conhecer os arguidos, utilizando a expressão “não conheço ninguém, minha senhora”.
E pela testemunha E...(guarda da GNR) também nada foi dito que apontasse para que o arguido/recorrente tivesse sido o autor dos factos ou que tivesse tido intervenção nos factos. Com efeito, ouvindo o seu depoimento, esta testemunha começou por dizer que não conhece os arguidos (recorde-se que na sala de audiências apenas se encontravam os arguidos B... (recorrente) e A..., estando a faltar os arguidos C... e D...). Mais referiu que a sua intervenção apenas consistiu em se deslocar ao local com o cabo Borges, quando foram chamados pelo proprietário, ali constando que uma porta e um portão se encontravam danificados, tendo questionado o proprietário de quais os bens que tinham sido furtados. Acrescentou ainda que, à excepção do proprietário não viu por ali mais ninguém. Disse ainda que não teve qualquer intervenção no auto de reconstituição.
Ou seja, do depoimento destas duas testemunhas nenhum elemento palpável se colhe no sentido de que o arguido/recorrente tivesse sido autor ou participante da subtracção dos objectos daquele alambique. Pela conjugação dos seus depoimentos, apenas decorre que se limitaram a comprovar que alguém, sem autorização e contra a vontade do respectivo proprietário, retirou e levou daquele alambique objectos que não lhe pertenciam, depois de ter entrado no mesmo por meio de arrombamento de porta ou portão.
Também as fotografias de fls. 22 a 25 (reveladoras de estragos causados nos locais onde terão sido retirados objectos) nenhuma pista nos dão que possa ser reveladora quanto à identidade do autor (ou autores) da subtracção dos objectos daquele alambique.
Resta-nos o auto de reconstituição de fls. 155 a 157 (e não propriamente fls. 158 a 161 como era localizado na sentença), completado pelas fotos de fls. 158 a 161, auto esse que o tribunal a quo deu toda a relevância no sentido de, com base nele, dar como provado ter sido o arguido/recorrente o autor dos factos.
Lendo a fundamentação da matéria de facto (já supra transcrita e que aqui damos por reproduzida), dela decorre que o tribunal recorrido, com base naquele auto e apoiando-se na jurisprudência ali citada, chegou à conclusão que mencionado auto de reconstituição, não obstante nele ter intervindo o arguido B... (aqui recorrente), poderia ser autonomamente valorado e por isso o mesmo não seria confundível com a prova por declarações do arguido; ou seja, ao mesmo auto de reconstituição, no entendimento do tribunal recorrido, não seria aplicável o disposto no artigo 357º do Código de Processo Penal.
Para dilucidar tal questão, é, pois, essencial debruçarmo-nos sobre a prova por reconstituição para concluirmos se merece, ou não, censura a valoração feita pelo tribunal a quo quanto ao mencionado auto de reconstituição, auto esse que consta, como acabámos de referir, não a fls. 158 a 161 (a fls. 158 a 161 constam fotografias que o acompanham), mas sim a fls. 155 a 157, ao qual se seguem as fotos de fls. 158 a 161 (sendo que no auto, cada um delas é referidas como “foto em folha de suporte”)
Vejamos, desde já o que, no essencial consta de referido auto de reconstituição de fls. 155 a 157, intitulado de “AUTO DE DILIGÊNCIA (Reconstituição)”

“Ao décimo primeiro dia do mês de Janeiro do ano de dois mil e nove, pelas 11h00, acompanhado do investigador Almeida, deste Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Viseu, efectuou-se a reconstituição do trajecto efectuado pelo arguido no dia dos factos em investigação sob o NUIPC 67/07.0GAVZL, isto segundo as indicações do arguido B..., devidamente identificado a fls. 115.

Assim, iniciou-se a diligência na cidade de Viseu, tendo o arguido indicado a estrada A25 em direcção a Aveiro, dizendo que foi aquele sentido que tomou, tendo por acompanhante, C..., numa viatura pesada que haviam furtado, ele, o C..., o B... e a D..., nessa noite em Penedono, cuja matrícula desconhece. Seguiam um veiculo automóvel, cuja marca já não recorda, no qual se faziam transportar a D... e o A....

Chegados ao nó de acesso de Tondela e Vouzela, dirigiram-se até à localidade de Vasconha, sendo que "cortaram" no cruzamento cujas placas indicativas referem “ (...), Moçamedes, Loumão e Carregar de Estanho”, dirigindo-se até à localidade de Crescido, onde deixou estacionada a viatura pesada que haviam furtado em Penedono (foto em folha de suporte).

Referiu que entrou com o C... na viatura conduzida pela D..., esta levou-os até junto do alambique e lagar de azeite, sitos junto à estrada principal que liga à localidade de (...), ficando aí apeados, tendo a D... ido com a viatura se situar em local estratégico com o intuito de alertar o A... da hipotética presença das autoridades.

O arguido apontou para o local (foto em folha de suporte),

Declarou que conjuntamente com o C... e com o A... partiram os alarmes com um pé-de-cabra e foi com a ajuda deste que forçaram os portões de acesso ao interior do alambique e do lagar de azeite (foto em folha de suporte).

Que desmantelaram caldeiras e refrigerantes em cobre, demorando cerca de duas horas a realizarem esse "trabalho".

Após isso, o A... telefonou à D... para vir ao encontro dos mesmos, este foi com ela buscar a viatura pesada que tinha estacionado na localidade da Crescido – Vouzela, ao chegar ao local, deslocou-a de marcha-atrás até às referidas instalações, tendo sido imediatamente carregados os artigos furtados.

O arguido conduziu o veiculo pesado, tendo como acompanhante o C... e o A... foi com a D..., até à residência do F..., sita em .Moreira - Nelas, onde foi deixado aí a viatura e o material furtado.

Desconhece mais pormenores, sabendo apenas que no dia seguinte recebeu 250 euros pelo "trabalho" efectuado.

Da diligência foi efectuada reportagem fotográfica que se junta imediatamente a seguir.

Para constar se lavrou o presente auto que depois de lido em voz alta e ratificado, vai ser assinado por todos os intervenientes.”
O dito auto mostra-se assinado por dois militares da GNR e, de seguida, pelo arguido B..., ao qual são anexadas 4 fotografias, sendo que em todas elas se visualiza o arguido a apontar para locais nelas visualizáveis.
A propósito da reconstituição, como meio de prova, estipula o artigo 150º nos seus nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal:
“1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
2. O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audovisuais
3. (…)”
Refere Germano Marques da Silva que a “reconstituição consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo (art. 150.º, n.º 1) e tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma.
A reconstituição, contrariamente à generalidade dos meios de prova, não tem por finalidade a comprovação de um facto histórico, mas antes verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma da sua execução. A reconstituição do facto é uma representação da realidade suposta e por isso para ter utilidade pressupõe que o facto seja representado, tanto quanto possível, nas mesmas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e que se possam verificar essas condições” (cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 2002, pág. 196).
Também Manuel Simas Santos e Manuel Leal – Henriques (in Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, 2010, pág. 213) se pronunciam sobre este meio de prova referindo que se dá “a reconstituição quando se procura certificar a forma como determinado facto terá ocorrido, tentando repeti-lo nas mesmas circunstâncias de modo e lugar, a fim de se aquilatar do merecimento da descrição que dele é feita pelos intervenientes processuais».
E citando Costa Pimenta (reportando-se à anotação feita por este no seu Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., pág. 426) dizem ainda que a reconstituição do facto é, pois, um processo de «controlo experimental de um dado acontecimento, relevante para fins processuais», desenvolvido de acordo com determinadas «condições de tempo e de topografia».
E em anotação que fazem ao artigo 150º do Código de Processo Penal já diziam: “Estando para além do simples exame aos vestígios e demais indícios deixados pelo crime (previsto no artigo 171º), pretende-se com tal reconstituição ir mais longe e avançar no sentido de se «apreender o próprio modo» como ocorreram os factos cuja veracidade se quer atingir e em ordem à dissipação de eventuais dúvidas” (cfr. Código de Processo Penal Anotado, Iº Vol. Rei dos Livros, 2ª Ed., Reimpressão, 2004, pag. 793).
A nível jurisprudencial, sobre este específico meio de prova, entre outros, pode-se destacar o acórdão do STJ de 03.07.2008 [proc. n.º 824/08 – 5], do qual, em síntese, ficou a constar: «I. A reconstituição do facto, como meio de prova, a que se refere o art.º 150.º do CPP representa em si um meio autónomo de prova tal como os demais legalmente admitidos. II. Envolvendo a participação de personagens que podem ter intervindo no âmbito de outras vias de captação probatória, como o interrogatório de arguido, a prova testemunhal, pericial e outros, aquela participação assume autonomia face às demais participações ocorridas no âmbito desses outros meios de prova. III. Decorre daqui que tratando-se da participação de um arguido na reconstituição do facto há que não confundi-la, por exemplo, com as suas respostas em interrogatório judicial, visto estar-se face a duas intervenções autónomas, não confundíveis e sujeitas ao regime da sua livre apreciação, tal como prevista no art.º 127.º do CPP»
Este mesmo entendimento já transparecia do acórdão do STJ de 05.01.2005 (in CJ, Acs. STJ XIII, 1, 159) ao considerar que “A reconstituição do facto, prevista como meio de prova autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizada e documentada em auto ou por outro modo, vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - art.º 127.º do Código de Processo Penal”, para concluir no sentido de que «A reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição, e as declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto diluem-se nos próprios termos da reconstituição …».
E será que o denominado “auto de diligência (reconstituição)” em apreço e a que o tribunal a quo deu toda a relevância evidencia um meio de prova autonomizado das declarações do arguido/recorrente?
Salvo o muito respeito por opinião divergente, consideramos que não.
Deixando de lado qualquer abordagem acerca da sua conformidade (ou não) a nível formal, a nível material ou substancial, do auto em apreço, como fonte de apuramento da verdade, subsistem única e exclusivamente as declarações do arguido B... que, ao fim e ao cabo, são o seu substrato, a sua fonte exclusiva de informação, sendo o mesmo o espelho/ilustração daquilo que pelo arguido (ora recorrente) é declarado e ali reduzido a escrito, por quem elaborou tal auto, sob a forma de discurso indirecto.
Dito de outro modo, sob a designação de auto de reconstituição, tal auto acaba por ser a recolha de declarações no decurso de uma diligência realizada com deslocação ao local nas quais o arguido B... relata aquela que diz ter sido a sua intervenção (e a dos demais arguidos) nos factos em investigação, o que permitiu ilustrar o conteúdo dessas declarações com registo fotográfico (onde consta o arguido a apontar para locais visualizáveis nessas fotos) e gerar um auto em que essas declarações (repetimos transcritas em discurso indirecto) adquirem visibilidade/expressividade.
Ou seja, procurando sintetizar, são declarações do arguido B... transpostas para o auto, em discurso indirecto, acompanhadas de registo fotográfico do mesmo arguido e do local onde as mesmas terão sido reproduzidas.
Para além disso, materialmente/substancialmente este auto de reconstituição não carreia para o processo qualquer outra fonte de conhecimento que não seja a que provém, estritamente, das declarações do arguido B....
Tal como é referido no Acórdão desta Relação, de 25.09.2013 (in www.dgsi.pt) ”não é o nomen juris que releva, mas antes a substância da coisa, não podendo, pois, a «reconstituição» ser confundida com meras declarações, ainda que a espaços, ilustradas, como, com o devido respeito, transparece do auto [com o teor acima reproduzido], que materializa a diligência em questão”.
Analisando o auto, tendo presente que na reconstituição se reproduzem as condições e, em simultâneo, se repetem os factos, visando a comprovação da possibilidade empírica de determinadas circunstâncias processualmente relevantes, forçoso se torna concluir pelo vazio do mesmo no que concerne à substância do específico meio de prova, ou seja a versão cénica que se pretendia ver reproduzida foi, pode-se dizer na íntegra, substituída pelas afirmações/relatos dos factos por parte do arguido B..., ou, dito de outro modo, a realidade dinâmica suposta por tal meio de representação dos factos resulta inexistente.
Quer se adopte a posição mais restritiva, defendida, entre nós, por Germano Marques da Silva, que se traduz em negar à reconstituição do facto o poder probatório para atestar da existência ou inexistência de um determinado facto histórico, reservando a reconstituição para o campo da mera verificação do modo e condições em que hipoteticamente terá ocorrido o facto probando [cf. o acórdão do TRC de 16.11.2005, no sentido de não ter a reconstituição «por finalidade apurar a existência do facto em si, mas se podia ter ocorrido de determinada forma» ou «que serve para confirmar ou infirmar a veracidade ou possibilidade intrínseca de outros meios de prova … que não para provar o facto em si»], quer a posição alargada – a que melhor acolhimento tem merecido no seio da jurisprudência, designadamente do STJ [cf. acórdãos de 05.01.2005 e de 20.04.2006, sustentando que a reconstituição é um «meio válido de demonstração da existência de certos factos», acórdãos esses, aliás citados na decisão recorrida e que serviram de suporte para a valoração qua tale daquele, ora sindicado, meio de prova] - o certo é que não pode a mesma servir finalidades de obtenção, conservação da prova, designadamente por confissão, circunstância a que o acolhimento/valoração do auto em questão, no caso conduziria, em violação do disposto nos artigos 355º e ss. do CPP, pois que de verdadeiras «declarações», e tão só «declarações» (detectando-se, aliás, a utilização das expressões “Referiu”, “Declarou”), se trata.
E da acta da audiência e do registo áudio da prova produzida, o arguido B... (ora recorrente) no exercício de um direito fundamental que lhe assiste, remetendo-se ao silêncio, não prestou declarações quanto aos factos de que estava acusado.
Ora, artigo 357º do Código de Processo Penal, na redacção vigente à data dos factos elencados na acusação e à data da realização da diligência em causa (ou seja na redacção anterior às alterações nele introduzidas pelo artigo 2º da Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro), sob a epígrafe “Leitura permitida de declarações do arguido estabelecia:
1 - A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou

b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 7 a 9 do artigo anterior.

Ora, como referimos e se constata da acta da audiência de julgamento, em sede de audiência de julgamento, o arguido (ora recorrente) remeteu-se ao silêncio. Por outro lado, a par disso, em lado algum da acta resulta que o recorrente tivesse solicitado a leitura de quaisquer declarações que, eventualmente, tivesse prestado ao longo do processo.

Por isso, como atrás referimos, em termos materiais/substanciais, não representando aquele auto de reconstituição mais do que meras declarações (ilustradas) do arguido no âmbito de uma diligência de inquérito, e não tendo o mesmo requerido a leitura das mesmas, tais declarações não podem ser valoradas como meio de prova dos factos de que estava acusado. Fazê-lo, seria violar o plasmado no já citado artigo 357º do Código de Processo Penal, acolhendo um meio de prova não permitido por lei.

Não podendo ser valoradas como meio de prova é como se as mesmas inexistissem nos autos.

Daqui decorre que o denominado “auto de diligência (reconstituição) constante dos autos não pode ser acolhido como meio de prova dos factos alegados na acusação.
Assim, não podendo ser valorado tal auto e não resultando, pela análise da demais prova documental e testemunhal, elementos minimamente consistentes que o arguido B... (ora recorrente) tivesse sido o autor dos factos (ou, de qualquer modo tivesse tido participação nos mesmos) terá que imperar o velho brocardo do in dubio pro reo.
Ou seja, e em resumo, nenhuma prova segura foi feita acerca dos factos imputados ao arguido/recorrente e relacionados com o imputado crime de furto por que veio a ser, pelo tribunal a quo, condenado. Não se verifica no caso uma relação directa e imediata com exclusão de qualquer outra possibilidade razoável e, por outro lado a prova produzida (quer a de carácter documental quer a de carácter testemunhal) não permite, com o mínimo de segurança concluir se o arguido/recorrente foi o autor ou se teve alguma intervenção nos factos.
Suscitam-se demasiadas dúvidas sobre se o recorrente teve alguma intervenção nos factos, dúvidas essas intransponíveis também por recurso à mera presunção judicial.
Daqui decorre que (e não podendo ser postergado o princípio do in dubio pro reo, plasmado no artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa) não havendo elementos suficientes para se poder, com segurança bastante, concluir que o recorrente tivesse sido o autor dos factos, deverá o mesmo ser absolvido, como resultado da imposição da revogação da sentença recorrida derivada da, aqui, anunciada, procedência do seu recurso.

Nessa sequência, fica prejudicada a outra questão suscitada pelo arguido recorrente.
                                                      *
III- DECISÃO.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso e revogando a sentença recorrida, absolver o arguido/recorrente B... do crime de furto por que havia sido condenado na primeira instância.
Sem tributação, em ambas as instâncias.
                                                      *

Coimbra, 15 de Janeiro de 2014

 (Luís Coimbra - Relator)

 (Isabel Silva)