Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
964/07.3TBMGR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 917º DO C. CIV.; DL Nº 67/2003, DE 08/04, COM A REDACÇÃO ANTERIOR ÀQUELA QUE LHE INTRODUZIU O DL Nº 84/2008, DE 21/05; DIRECTIVA N.º 1999/44/CE, DE 25 DE MAIO.
Sumário: I - Os prazos de caducidade previstos no art. 917º do Cód. Civil para a acção de anulação de venda de coisa defeituosa aplicam-se aos demais meios de reacção do comprador contra aquela venda: reparação/substituição da coisa, redução do preço, resolução do contrato ou indemnização.

II - Prevendo a Directiva Comunitária nº 1999/44/CE de 25-05-1999 que os meios de defesa do comprador-consumidor de coisa defeituosa ali previstos: - reparação/substituição da coisa, redução do preço e rescisão -, não possam caducar antes de decorridos dois anos da entrega da coisa em causa, não respeitou tal norma o Dec.-Lei nº 67/2003 de 8/4 que declarando proceder à transposição da Directiva, manteve o prazo de seis meses para a caducidade daqueles direitos que já constava quer da lei de Defesa do Consumidor - Lei nº 24/96 de 31/7 - quer do art. 917º do Cód. Civil.

III - As Directivas Comunitárias têm aplicação directa no ordem jurídica interna - mesmo entre particulares, ou seja, têm efeito horizontal -, mesmo que não transpostas ou transpostas em termos que as violem, desde que haja decorrido o prazo para a sua transposição e sejam suficientemente claras e precisas, se mostrem incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados Membros».

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1)E…, residente na Rua …, intentou, em 29/05/2007, no Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, contra “A… – Comércio de Automóveis e Vestuário Ldª”, “B… - Comércio de Automóveis Ldª” e J…, acção declarativa, de condenação, com processo ordinário, alegando, em síntese, que:

· Contratou com a Ré A… - Comércio de Automóveis e Vestuário, Lda., em 15/07/2005, comprar-lhe um veículo automóvel usado, pela quantia de € 27.250,00, mais o valor - não inferior a € 5000 - do veículo automóvel que deu em retoma, tendo, para a concretização de tal compra, celebrado com a “S…” um contrato de financiamento para aquisição a crédito;

· Por razões que desconhece, o Réu J…, que se dizia representante de ambas as firmas RR., comunicou à “S...”, que o fornecedor do bem seria a “B… - Comércio de Automóveis Ldª”;

· Na proposta de compra e venda, de onde constavam as respectivas condições e características do veículo, referia-se, entre o mais, ser de 47.900, o número de quilómetros que o mesmo havia percorrido até então;

· Tendo o veículo sofrido uma avaria, já na sua posse, em Maio de 2006, quando o mostrador da quilometragem do mesmo apresentava 54.000 km, veio a ser-lhe comunicado, em 16/06/2006, na oficina da concessionária da Renault (“…”), aquando do pagamento da respectiva reparação, que aquele veículo, tendo sido objecto de uma reparação ainda na posse do anterior proprietário, já então registava ter 150.000 Km percorridos;

· Em Junho de 2006 comunicou tais factos ao R, tendo este admitido e reconhecido a desconformidade do veículo com as características que constavam do contrato, tanto assim que disponibilizou à A. um outro veículo alegando que iria resolver o assunto;

· Os RR., contudo, nada resolveram, nem sequer lhe tendo pago o valor da dita reparação e do reboque, acabando por pedir a entrega de tal veículo que lhe haviam disponibilizado;

· A desconformidade entre a quilometragem efectiva do veículo e aquela que o mesmo registava, decorreu de alteração do respectivo instrumento de medição dos quilómetros, levada a cabo pelo 3.º R. ou por ordem deste, para que o mesmo, quando fosse alienado, aparentasse ter um valor superior ao seu valor real;

· Tendo comprado o veículo na convicção de que este havia rodado apenas 47.900 km, nunca o teria adquirido caso soubesse que o mesmo, na realidade, já possuía cerca de 150.000 Km.

Sustentando ter direito à anulação do contrato, por erro no objecto do negócio, ou à resolução contratual, por incumprimento por parte dos RR., concluiu nestes termos:

«…deve a presente acção ser julgada procedente por provada declarando-se resolvido ou anulado o contrato de compra e venda celebrado entre a A. e os RR. e, consequentemente, serem os RR. condenados:

a) na restituição da quantia e €: 32.250,00 correspondente ao valor do contrato de compra e venda do veículo matrícula …, onde se inclui o valor do veículo entregue pela A. (retoma), contra a entrega daquele;

b) no pagamento da quantia de €: 2.789,93 a título de indemnização pelas perdas e danos;

c) no pagamento de juros de mora desde a citação até efectivo e integral cumprimento».

2) - Contestaram os réus J… e “A…”, os quais, para além de impugnarem parcialmente os factos articulados na petição:

- Alegaram que a ré “A…”, em 13/06/2005, alterou a sua denominação social para “A…”, sempre tendo actuado o réu J… como representante legal e no interesse desta ré;

- Deduziram a excepção da caducidade, alegando, para esse efeito, que a autora teve conhecimento da viciação da viatura em 09/05/2006, e que tendo dito à 1ª R., logo nessa data, que a viatura tinha mais 100.000 km que aqueles que o contador marcava, não instaurou a acção nos seis meses subsequentes a tal denúncia, como prescreve o artº 917º do CC.

Concluíram defendendo a procedência da excepção e, em qualquer caso, a sua absolvição do pedido;

3) - A Autora apresentou réplica, mantendo o alegado na p.i e pedindo a improcedência da excepção da caducidade, porquanto teve conhecimento do vício da viatura em 16/06/2006 e comunicou o facto aos réus ainda nesse mês, os quais encetaram negociações criando a expectativa de uma resolução consensual do litígio, o que obsta ao funcionamento da excepção invocada, face ao disposto no artº 311º, nº 2 do Código Civil;

4) - No despacho saneador relegou-se para final o conhecimento da excepção da caducidade. Foram fixados os factos que se consideravam já assentes e foi elaborada a base instrutória.

B) - 1) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, após o que foi proferida sentença - em 19/01/2011-, decidindo, na parcial procedência da acção, nos seguintes termos:

«…I - Absolvo os réus J… e B… - Comércio de Automóveis Ldª do pedido;

II - Declaro resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a ré “A… - Comércio de Automóveis e Vestuário Ldª”, relativo ao veículo de matrícula…;

III - Condeno a ré “A… - Comércio de Automóveis e Vestuário Ldª” a restituir à autora a quantia de € 27.250,00 e a quantia que vier a ser liquidada correspondente ao valor atribuído ao veículo de matrícula … em 15 de Julho de 2005, acrescidas de juros de mora desde a data da citação, à taxa legal de 4% até efectivo e integral pagamento, mediante restituição, por parte da autora do veículo de matrícula …».

C) - Inconformada com esta decisão, dela apelou a ré A… - Comércio de Automóveis e Vestuário, Lda., findando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

D) - Questões a resolver:

Em face do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 4, 690, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).

Assim, as questões a solucionar, consistem em saber;

- Se deve ser alterada a matéria de facto em que se fundou a sentença recorrida;

- Se, em face da factualidade que se tenha como provada, se mostra acertada a condenação proferida pelo Tribunal “a quo”.

II - A) - Na sentença da 1.ª Instância considerou-se como factualidade provada, a seguinte matéria:

B) - Apreciemos, então, as questões que delimitam o objecto do presente recurso.

Tendo-se procedido à gravação dos depoimentos prestados na audiência, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre matéria de facto é susceptível de ser alterada pela Relação se for impugnada, nos termos do art.º 690.º-A, a decisão com base neles proferida - (alínea a) do n.º 1 do art.º 712.º do CPC).

A matéria que se tem por assente é, afinal, atento o expendido, aquela que foi dada como provada pelo Tribunal “a quo” e que acima se elencou.

Improcede, pois, o recurso da Apelante no que respeita à impugnação da matéria de facto em que assentou a decisão recorrida.

Dúvida não existe de que a Mma. Juiz, na sentença, quanto à excepção da caducidade julgou-a procedente no que ao direito de anulação respeita, e improcedente quanto ao direito de resolução do contrato.

Resulta isso evidente da exposição que precedeu a seguinte frase, bem como daquilo que depois dela se discorreu: «Assim, com os fundamentos supra expostos se julga improcedente a excepção de caducidade invocada pelos réus, no que se refere ao pedido de anulação do contrato e improcedente no que se refere ao pedido de resolução do mesmo contrato».

Efectivamente, a preceder tal frase escreveu-se: «Se assim é, no que se refere ao pedido de anulação do contrato, por não estar prevista tal possibilidade no Dec.Lei 67/2003, são aplicáveis as normas do Código Civil dos artºs 913º ss e concretamente quanto ao prazo de caducidade da acção, o prazo de seis meses a que alude o artº 917º que, como vimos, já decorreu».

Enferma, pois, a sentença, de lapso de escrita manifesto quando aí se consigna julgar-se improcedente a excepção de caducidade invocada pelos réus, no que se refere ao pedido de anulação do contrato, devendo ler-se, pois, “procedente”, onde ora se lê “improcedente”.

Não havendo que indagar do peticionado direito de anulação, atenta a mencionada procedência da excepção da caducidade decretada pela sentença, que, nessa parte, transitou em julgado, importa tão só verificar do acerto do decidido quanto ao direito de resolução.

Ora, quanto a este aspecto – o da procedência do pedido fundado na resolução do contrato - adianta-se já, a sentença impugnada está bem elaborada, com fundamentação farta e apropriada, dando ao litígio a solução correcta.

Assim, bem poderia esta Relação limitar-se a negar procedência ao recurso, remetendo para os fundamentos da sentença impugnada (art.º 713.º, n.º 5 do CPC). Não obstante, não se deixará de explicitar, embora que sinteticamente, a nossa concordância quanto ao julgado.

Vejamos.

Na sentença recorrida entendeu-se, acertadamente, que a compra e venda “sub judice” encontrava a sua disciplina no DL nº 67/2003, de 08/04, com a redacção anterior àquela que lhe introduziu o DL nº 84/2008, de 21/05, embora que, quanto ao prazo de caducidade, se haja refutado a aplicabilidade daquele - de seis meses – que estava previsto no artº 5º, nº 4, do mencionado DL nº 67/2003, entendendo-se antes aplicável, por aplicação directa da Directiva n.º 1999/44/CE, de 25 de Maio, o prazo de dois anos, a contar da entrega, pois é esse o comando do artº 5º, nº1, dessa Directiva, nos casos em o legislador nacional – como sucedeu, na versão original do DL nº 67/2003 - estabeleça prazo de caducidade menor.

Deslocada, no tempo e na sede em que foi efectuada, é, salvo o devido respeito, a alegação da necessidade de prova pericial que a apelante agora invoca para comprovação de uma viciação que diz não estar assente.

A viciação, ou seja, a alteração da quilometragem do veículo, embora que sem paternidade atribuída, está cristalinamente espelhada na factualidade provada, designadamente, naquela que está elencada sob os pontos nºs. 6, 14, 16, 17, 18, 24 e 29, de II-A) “supra”.

E a imputação dessa alteração à acção dos RR – “rectius”, à conduta da ora Apelante – não se mostrava necessária para legitimar o pedido de resolução contratual que foi atendido, como bem se salientou na sentença.

Efectivamente, diz-se, na sentença, com clareza irrefutável, que o que legitimava a resolução do contrato, por parte da autora, estando em causa uma compra e venda por parte de um consumidor, era, à luz do regime instituído pelo DL nº 67/2003 (artº 4º, nº 1) na redacção anterior àquela que lhe introduziu o Dec. Lei 84/2008, a falta de conformidade do bem vendido com o contrato, o que foi assim explicitado: «Na data em que a autora adquiriu o veículo, o mesmo mostrava ter a quilometragem de 47.900 Km. Na sequência de uma assistência prestada em Maio de 2006, nas oficinas da Renault em Leiria, constatou-se que anteriormente a viatura havia sido assistida noutra oficina da mesma marca, apresentando à data 147.000 Km, concluindo-se assim que o instrumento de medição de quilómetros havia sido alterado.

Ora, não se pode pretender que um veículo automóvel usado tenha idênticas características, caso tenha 47.900 Km ou caso tenha 147.000 Km. Precisamente no mercado de automóveis usados, trata-se de um item que assume especial importância, uma vez que se espera um desempenho e uma durabilidade diferentes num e noutro caso, com implicações óbvias na determinação e aceitação do preço.

O veículo adquirido pela autora, tendo na realidade uma quilometragem superior a 147.000 Km, não pode naturalmente ter uma qualidade e desempenho idêntica à de um veículo da mesma marca e modelo com apenas 47.900 Km, razão pela qual entendemos verificada a condição a que se alude na alínea d) do artº 2º nº 2 do Dec.Lei 67/2003.

Se assim é, uma vez que tal falta de conformidade existia à data da entrega do bem, independentemente de qualquer culpa dos réus, que aliás não resulta dos factos provados, tem a autora o direito de resolver o contrato, nos termos do artº 4º nº 1 do Dec. Lei 67/2003».

Insurge-se a Apelante, mas sem razão, quanto a ter-se entendido “in casu”, fazer-se a aplicação directa da mencionada Directiva n.º 1999/44/CE.

Na verdade, é de perfilhar o entendimento seguido no Acórdão do STJ de 12 de Janeiro de 2010 (Revista n.º 2212/06.4TBMAI.P1.S1), aresto este que a sentença, confessadamente, seguiu de perto, e cujo sumário aqui se reproduz, na parte que releva[3]: «I - Os prazos de caducidade previstos no art. 917º do Cód. Civil para a acção de anulação de venda de coisa defeituosa  aplicam-se aos demais meios de reacção do comprador contra aquela venda: reparação/substituição da coisa, redução do preço, resolução do contrato ou indemnização.

II - Prevendo a Directiva Comunitária nº 1999/44/CE de 25-05-1999, que os meios de defesa do comprador-consumidor de coisa defeituosa ali previstos: - reparação/substituição da coisa, redução do preço e rescisão -, não possam caducar antes de decorridos dois anos da entrega da coisa em causa, não respeitou tal norma o Dec.-Lei nº 67/2003 de 8/4 que, declarando proceder à transposição da Directiva, manteve o prazo de seis meses para a caducidade daqueles direitos que já constava quer da Lei de Defesa do Consumidor - Lei nº 24/96 de 31/7 - quer do art. 917º do Cód. Civil.

III - As Directivas Comunitárias têm aplicação directa no ordem jurídica interna - mesmo entre particulares, ou seja, têm efeito horizontal -, mesmo que não transpostas ou transpostas em termos que as violem, desde que haja decorrido o prazo para a sua transposição e sejam suficientemente claras e precisas, se mostrem incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados Membros».

Ora, no caso “sub judice”, como se refere na sentença impugnada, tendo o veículo em causa sido entregue em Julho de 2005, à data da instauração da acção, que ocorreu em 29/05/2007, ainda não havia decorrido o mencionado prazo de caducidade de 2 anos. Assim, bem se decidiu ao julgar-se improcedente a excepção da caducidade relativa ao direito de resolução do contrato.

Improcedendo, pois, em face de tudo o exposto, as conclusões da Apelante, é de manter “in totum” a sentença da 1.ª Instância.
III - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Falcão de Magalhães (Relator)
Regina Rosa
Jaime Ferreira


[1] Os preceitos que deste Código forem citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os correspondentes sumários, citados sem referência de publicação.
[3] O sumário é o que consta da Colectânea de Jurisprudência, onde o Acórdão, Relatado pelo Exmo. Cons. João Camilo, pode ser consultado em texto integral (Col. Jur., Acórdãos do STJ, Ano XVIII - 2010, tomo I, págs. 19 a 23).