Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
| Descritores: | ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA INDICAÇÃO PELO DEVEDOR DECISÃO DE NOMEAÇÃO REGIME APLICÁVEL | ||
| Data do Acordão: | 06/27/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 52.º, N.º 2, E 32.º, N.º 1, DO CIRE | ||
| Sumário: | I – As normas do n.º 2 do art. 52.º e do n.º 1 do art. 32.º, ambos do CIRE, devem ser interpretadas, conjugadamente, no sentido de que, na nomeação do administrador da insolvência, o juiz pode ter em conta a proposta do devedor feita no requerimento inicial de apresentação à insolvência quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias: (1) no caso de processos em que seja previsível a existência de atos de gestão que requeiram especiais conhecimentos; (2) quando o devedor seja uma sociedade comercial em relação de domínio ou de grupo com outras sociedades cuja insolvência haja sido requerida e se pretenda a nomeação do mesmo administrador nos diversos processos; (3) no caso de a massa insolvente compreender uma empresa com estabelecimento ou estabelecimentos em atividade; (4) ou quando o processo de insolvência assuma grande complexidade.
II – Não se mostrando que ocorra alguma dessas circunstâncias, é aplicável o regime regra das nomeações do administrador da insolvência, nos termos do qual a decisão é da competência do juiz, recaindo a escolha em entidade inscrita na lista oficial de administradores da insolvência, com recurso a meio informático que assegure a aleatoriedade da escolha e a igualdade na distribuição dos processos. | ||
| Decisão Texto Integral: | Relator: Emídio Francisco Santos 1.ª Adjunto: Paulo Correia 2.ª Adjunto: Catarina Gonçalves Processo n.º 1853/23.0T8CBR
Acordam na 1.º secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
D..., SA, com sede na Rua ..., ..., ..., apresentou-se à insolvência. No requerimento inicial indicou para o exercício das funções de administrador da insolvência, AA, economista e administrador de insolvência. A requerente foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida em 21-04-2023. Na sentença, a Meritíssima juíza do tribunal a quo nomeou BB, como administrador da insolvência. A insolvente não se conformou com o segmento da sentença que nomeou o administrador da insolvência e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação de tal segmento e a substituição dele por decisão que nomeie, como administrador da insolvência o que ela, recorrente, indicou. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: Não houve resposta ao recurso. * Síntese das questões suscitadas pelo recurso: Saber se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e se violou os artigos 32.º e 52.º do CIRE e os artigos 11.º e 13.º do Estatuto do Administrador Judicial e, em caso de resposta afirmativa, se deve ser revogada e substituída por decisão que nomeie administrador da insolvente o que a recorrente indicou. * Os factos relevantes para a decisão do recurso são os narrados no relatório deste acórdão: * Resolução das questões: Nulidade da decisão por falta de fundamentação A recorrente acusa a decisão de ser nula por falta de fundamentação com uma dupla linha argumentativa: Apreciação do tribunal: A arguição de nulidade é de indeferir. Vejamos. A falta de fundamentação da sentença, como causa de nulidade, está prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável à sentença proferida em processo de insolvência por remissão do artigo 17.º do CIRE. Segundo tal preceito, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Na interpretação deste preceito, a jurisprudência do STJ tem afirmado de modo constante que só é de considerar que a sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão quando ela omite, por completo, as razões de facto e/ou direito que justificam a decisão e que, fora do alcance do preceito, estão as situações de fundamentação insuficiente e/ou errada. No caso, ao requerer, na parte final da petição com que se apresentou à insolvência, que o tribunal nomeasse como administrador da insolvência, AA, a devedora, ora recorrente, suscitou ao tribunal a quo uma questão que a este competia solucionar. Na verdade, apesar de a nomeação do administrador da insolvência ser da competência do juiz, como o afirma o n.º 1 do artigo 52.º do CIRE, decorre do n.º 2 deste mesmo preceito, bem como do n.º 1 do artigo 32.º do citado diploma, para onde remete aquele, que é lícito ao devedor que se apresente à insolvência propor a nomeação de um administrador da insolvência. Sempre que o devedor exerça esta faculdade, cabe ao tribunal pronunciar-se sobre tal proposta e justificar tanto a decisão que a acolha como a que a recuse. O dever de fundamentação decorre do n.º 1 do artigo 154.º do CPC, aplicável ao processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE, pois a proposta de nomeação de um administrador da insolvência apresentada pelo devedor, na petição inicial, torna a questão da nomeação do administrador como “controvertida”. Cita-se em abono desta interpretação, a título de exemplo, os seguintes acórdãos: o acórdão do STJ de 19-03-2019, proferido no processo n.º 2862/18.6T(AVR-B.P1.S1, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 11-07-2012, no processo n.º 134/12.9TBPBL-A.C1 e o acórdão da mesma Relação proferido em 29-10-2013, no processo n.º 254/13.2TBSRE-A.C1, todos publicados em www.dgsi.pt. A decisão sob recurso cumpriu este dever de fundamentação como o atesta o seguinte trecho dela: “No que concerne à nomeação de administrador judicial, nos arts. 32.º, n.º 1, e 52.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é previsto que a escolha e nomeação do administrador da insolvência deve incidir em entidade inscrita na lista oficial de administradores de insolvência e ser feita aleatoriamente, com recurso ao sistema informático a que se reporta o art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2012, de 26 de fevereiro. Decorre do que vem de se dizer que o juiz do processo apenas poderá ter em conta a proposta eventualmente feita pelo devedor em quatro hipóteses, a saber: (1) no caso de processos em que seja previsível a existência de atos de gestão que requeiram especiais conhecimentos; (2) quando o devedor seja uma sociedade comercial em relação de domínio ou de grupo com outras sociedades cuja insolvência haja sido requerida e se pretenda a nomeação do mesmo administrador nos diversos processos; (3) no caso de a massa insolvente compreender uma empresa com estabelecimento ou estabelecimentos em atividade; (4) ou quando o processo de insolvência assuma grande complexidade. Na situação em apreço, não se vislumbra razão, nem sequer é invocada, para se derrogar o regime regra das nomeações, pelo que se determina a nomeação do administrador da insolvência por sorteio”. Este trecho, que precede a nomeação de BB como administrador da insolvência, compreende a indicação das disposições legais aplicáveis à nomeação do administrador da insolvência, a interpretação de tais disposições e a indicação das razões pelas quais, no caso, não era de acolher o nome do administrador proposto pela devedora. É quanto basta para se dizer que a decisão sob recurso especificou as razões de direito e de facto que justificaram, por um lado, a não nomeação do administrador proposto pela devedora e, por outro, a escolha segundo o regime regra. Pelo exposto, é de afirmar que a decisão sob recurso não incorreu na causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Além de arguir a nulidade da decisão, por falta de fundamentação, a recorrente acusa-a ainda de violar os artigos 32.º e 52.º do CIRE e os artigos 11.º e 13.º do Estatuto do Administrador Judicial [EAJ], aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 17/2017, de 16 de Maio, pelo Decreto-Lei n.º 52/2019, de 17 de Abril, pela Lei n.º 79/2021, de 24-11, e pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro. Fê-lo com base na seguinte alegação: Esta argumentação não tem amparo nas disposições aplicáveis, no caso, à nomeação do administrador da insolvência, concretamente o n.º 2 do artigo 52.º do CIRE, o n.º 1 do artigo 32.º do mesmo diploma e o artigo 13.º do EAJ. Vejamos. Em primeiro lugar, se é certo que decorre do n.º 2 do artigo 13.º do EAJ, combinado com o n.º 2 do artigo 52.º do CIRE, que a nomeação do administrador da insolvência por meio de sistema informático não é a única prevista na lei, já não é certo que decorra de tais preceitos que a nomeação através do indicado método tem natureza subsidiária. Com efeito, ao dispor que, “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a nomeação a efectuar pelo juiz processa-se por meio de sistema informático que assegure a aleatoriedade da escolha e distribuição em idêntico número dos administradores judiciais nos processos”, o n.º 2 do artigo 13.º do EAJ aponta inequivocamente no sentido de que a regra é a nomeação com recurso ao sistema informático e de que a excepção é a nomeação sem recurso a este sistema. Em segundo lugar, se resulta do n.º 2 do artigo 52.º do CIRE que o devedor tem a faculdade de indicar, de entre entidade inscrita na lista de administradores de insolvência, aquela que poderá exercer as funções de administrador da insolvência, já não resulta de tal preceito nem do n.º 1 do artigo 32.º, do mesmo diploma, que o juiz tem o dever de atender a tal indicação. Com efeito, a letra do n.º 2 do artigo 52.º bem como os respectivos antecedentes vão no sentido de que o juiz não tem tal dever. Vejamos. A letra do n.º 2 depõe a favor deste sentido porque usa a fórmula “… podendo o juiz ter em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor…” e não a fórmula “devendo o o juiz ter em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor…”. Ora, na fixação do sentido da lei, o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil) e a fórmula “podendo o juiz…” não é a adequada para exprimir o sentido de que o juiz deve atender à indicação do devedor. Quanto aos antecedentes legislativos cabe dizer o seguinte. O artigo 52.º, n.º 2, do CIRE, na sua redacção inicial, dispunha: “aplica-se à nomeação do administrador da insolvência o disposto no n.º 1 do artigo 32.º, devendo o juiz atender igualmente às indicações que sejam feitas pelo próprio devedor ou pela comissão de credores, se existir…”. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 32.º dispunha que a escolha do administrador judicial provisório recaía em entidade inscrita na lista oficial de administradores, tendo o juiz em conta a proposta eventualmente feita na petição inicial. Quer a fórmula do n.º 2 do artigo 52.º quer a do n.º 1 do artigo 32.º apontavam no sentido de que era dever do juiz atender à indicação feita pelo devedor. O Decreto-lei n.º 282/2007, de 7 de Agosto, alterou a redacção tanto do n.º 1 do artigo 32.º como a n.º 2 do artigo 52.º. Aquele passou a dispor: “A escolha do administrador judicial provisório recai em entidade inscrita na lista oficial de administradores da insolvência, podendo o juiz ter em conta a proposta eventualmente feita na petição inicial no caso de processos em que seja previsível a existência de actos de gestão que requeiram especiais conhecimentos”. Por sua vez, este estabeleceu: “aplica-se à nomeação do administrador da insolvência o disposto no n.º 1 do artigo 32.º, podendo o juiz ter em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor ou pela comissão de credores, se existir, …”. A alteração da redacção do n.º 1 do artigo 32.º foi explicada no preâmbulo do diploma nos seguintes termos: “… é restringida a possibilidade de designação de um administrador da insolvência na petição inicial aos casos em que seja exigida a prática de actos que requeiram especiais conhecimentos”. Comparando a redacção primitiva com a que resultou do Decreto-lei n.º 282/2007, vê-se que onde antes se escrevia “devendo o juiz…”, passou a escrever-se “podendo o juiz…”. Esta mudança de redacção quis significar que o juiz não tinha o dever de atender à indicação que que era feita pelo devedor. Em terceiro lugar, o poder de o juiz nomear um administrador da insolvência indicado pelo devedor é um poder vinculado, no sentido de que pressupõe a verificação das circunstâncias previstas na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 32.º, do CIRE, ou na 2.º parte do n.º 2 do artigo 52.º do mesmo diploma. Com isto entramos na questão suscitada no recurso de saber se a remissão do n.º 2 do artigo 52.º para o n.º 1 do artigo 32.º é uma remissão para a totalidade deste número ou uma remissão para a parte dele que dispõe que a escolha do administrador recai em entidade inscrita na lista de administradores de insolvência. Na interpretação deste tribunal, a remissão do n.º 2 do artigo 52.º para o número 1 do artigo 32.º é para a totalidade deste número, ou seja, com relevância para o caso, remete também para o segmento onde se estabelece, …”podendo o juiz pode ter em conta a proposta eventualmente feita na petição inicial no caso de processos em que seja previsível a existência de atos de gestão que requeiram especiais conhecimentos ou quando o devedor seja uma sociedade comercial em relação de domínio ou de grupo com outras sociedades cuja insolvência haja sido requerida e se pretenda a nomeação do mesmo administrador nos diversos processos”. Na verdade, a letra do n.º 2 do artigo 52.º não só não restringe o âmbito da remissão, como aponta no sentido de que esta compreende também o segmento que dispõe sobre as hipóteses em que o juiz pode ter em conta o administrador proposto pelo devedor. E aponta neste sentido porque nele se escreve que o juiz pode ter em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor … “também no caso de a massa insolvente compreender uma empresa com estabelecimento ou estabelecimentos em atividade ou quando o processo de insolvência assuma grande complexidade, cabendo a preferência, na primeira designação, ao administrador judicial provisório em exercício de funções à data da declaração de insolvência”. O uso do advérbio também imediatamente a seguir à expressão, “podendo o juiz tomar em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor…”, que, por sua vez está imediatamente a seguir à remissão para o n.º 1 do artigo 32.º, tem o claro significado de que o juiz pode ter em conta na nomeação do administrador da insolvência as indicações do devedor não apenas nas hipóteses que ele (n.º 2 do artigo 52.º) enuncia, mas igualmente nas previstas na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 32.º. Citam-se em abono desta interpretação o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-07-2012, proferido no processo n.º 134/12.9TBPBL-A.C1 e o acórdão do STJ proferido em 19-03-2019, no processo n.º 2862/18.68AVRB.P1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt. Na doutrina, citam-se em abono desta interpretação Catarina Serra, em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, página 81, Alexandre Soveral Martins, em Um Curso de Direito da Insolvência, Volume I, Almedina, página 294. Daí que não mereça qualquer censura a decisão sob recurso quando interpretou o n.º 2 do artigo 52.º combinado com o n.º 1 do artigo 32.º ambos do CIRE no sentido de que, na nomeação do administrador da insolvência, o juiz pode ter em conta a proposta do devedor feita no requerimento inicial de apresentação à insolvência quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias: (1) no caso de processos em que seja previsível a existência de actos de gestão que requeiram especiais conhecimentos; (2) quando o devedor seja uma sociedade comercial em relação de domínio ou de grupo com outras sociedades cuja insolvência haja sido requerida e se pretenda a nomeação do mesmo administrador nos diversos processos; (3) no caso de a massa insolvente compreender uma empresa com estabelecimento ou estabelecimentos em actividade; (4) ou quando o processo de insolvência assuma grande complexidade. Como não merece censura a decisão quando afirmou que não havia razão para se derrogar o regime regra das nomeações do administrador da insolvência, visto que a devedora, ora recorrente, não invocou nenhuma situação que justificasse, à luz do n.º 2 do artigo 52.º e da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 32.º, ambos do CIRE, a nomeação do administrador por ela proposto * Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. Responsabilidade quanto a custas: Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas. Coimbra, 27-06-2023 |