Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1313/07. 6GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PROVA DIRECTA
PROVA INDIRECTA OU INDICIÁRIA
PRESUNÇÕES
Data do Acordão: 03/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 126.º E 127.º DO C.P.P. E 349.º DO C.C..
Sumário: I. - Para além da prova directa do facto, a apreciação do tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções.
II. - No recurso a presunções simples ou naturais (art. 349º do Cód. Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica.
III. - “As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

veio interpor recurso da sentença que o condenou pela prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, e de um crime de abuso de cartão de crédito, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 225º, n.º 1 e 30º, n.º 2, todos do Código Penal, nas penas parcelares de 160 e 240 dias de multa e, em cúmulo jurídico, na pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de € 11,00 , perfazendo o total de € 3.300,00, ou subsidiariamente, na pena de 200 dias de prisão.

Na procedência parcial do pedido de indemnização cível formulado pela demandante … foi ainda o arguido condenado no pagamento da quantia de € 369,93 acrescida de juros a contar da prolação da sentença.

A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:

1- O recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de furto, p. e p. pelo n.º 1 do art. 203º e de um crime de abuso de cartão de crédito na forma continuada, p. e p. pelo n.º 1 do art. 225° e n.º 2 do art. 30º, todos do Código Penal.

2- O presente recurso tem por objecto a matéria de facto e de direito, limitada à parte da douta sentença condenatória proferida nos presentes autos referente ao crime de furto, p. e p. pelo n.º 1 do art. 203º do Código Penal.

3- O Tribunal a quo considerou provada a seguinte matéria de facto:

· No dia 07.11.2007, entre as 12h00 e as 17h00, nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da comarca de …, o arguido, técnico de justiça nesses mesmos Serviços, dirigiu-se ao local onde usualmente exerce funções … e igualmente técnica de justiça a exercer funções nestes Serviços;

· tendo constatado que a mesma aí deixara a sua carteira pessoal, formulou o propósito de se apoderar dos cartões bancários que aí encontrasse;

· assim, apoderou-se de um cartão de pontos da Galp, um cartão Multibanco e o cartão de crédito Visa Gold com o n.° 412 489 300 132 2016 da queixosa, com o intuito de utilizar os mesmos em levantamentos bancários e aquisição de produtos;

· o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que tais cartões não lhe pertenciam e que, ao deles se apoderar, o fazia contra a vontade e sem o consentimento da legítima titular dos mesmos.

4- O recorrente exerceu o seu direito ao silêncio, havendo o Tribunal a quo formado a sua convicção pelo depoimento, decisivo, da ofendida …, relativamente à forma como o recorrente subtraiu o cartão Visa da mesma ofendida.

5- Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos supra referidos, porquanto, em relação aos mesmos, não foi produzida prova suficiente sobre a verificação da prática de um crime de furto, imputada ao recorrente.

6- Analisando a prova produzida, nomeadamente o depoimento da ofendida, não ficou demonstrado - como, aliás, o próprio Tribunal a quo reconhece na fundamentação da matéria de facto provada - o concreto momento em que o arguido se apoderou dos cartões, nem mesmo o específico modo.

7- Assim como não ficou plenamente demonstrado o local onde o recorrente se terá apoderado do cartão Visa da ofendida, o qual veio a ser utilizado pelo mesmo recorrente para adquirir determinados produtos.

8- Analisando o depoimento da ofendida, na sua globalidade, não resulta provado que o recorrente tenha agido da forma, no momento e no local constantes nos pontos 1, 2, 3 e 4 dos factos provados na douta sentença condenatória, proferida nos presentes autos.

9- Para além do depoimento da ofendida, não resulta dos autos qualquer outra prova com relevo no que respeita à prática, pelo recorrente, de um crime de furto, p. e p. pelo n.º 1 do art. 203º do Código Penal.

10- O Tribunal a quo faz apelo às regras da experiência comum, dando como provada, ainda que através da chamada prova indirecta, a factualidade referente à subtracção dos cartões.

11- Contudo, para que a prova indirecta, circunstancial ou indiciária possa ser tomada em consideração exigem-se alguns requisitos: pluralidade de factos-base ou indícios; precisão de que tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; racionalidade da inferência; expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência - cf. Ac. do. TR Coimbra, de 18.08.2004, processo n.º 1937/ 04, disponível em www.dgsi.pt.

12- No caso em apreço, para que a prova indirecta pudesse ser tomada em consideração, teria necessariamente de ser plenamente demonstrado, face à prova produzida, o indício da prática de um crime de furto pelo recorrente, nomeadamente o facto do cartão Visa da ofendida que o recorrente utilizou para adquirir determinados produtos encontrar-se na sala onde a ofendida habitualmente exerce as suas funções.

13- No entanto, das declarações da ofendida, analisadas na sua globalidade, não resulta qual o destino dado por aquela ao seu cartão Visa, após transportar o mesmo para fora dos Serviços do Ministério Público de …, numa Quinta-Feira de manhã, em Novembro.

14- Dois dias após ter transportado o seu cartão Visa para fora das instalações dos Serviços do Ministério Público de …, quando a ofendida constatou que não tinha consigo o seu cartão Visa, colocou a hipótese de terem sido os seus filhos a retirar, da sua mala, a carteira onde este cartão se encontrava, colocando apenas como segunda hipótese ter deixado a mesma carteira naqueles Serviços.

15- A ofendida não fazia ideia, então, onde pudesse ter largado o dito cartão Visa.

16- E a ofendida apenas criou a convicção de ter deixado o mencionado cartão Visa nos Serviços do Ministério Público de ... após verificar, no dia 13.11.2007, que haviam sido efectuados determinados movimentos com o aquele cartão, nomeadamente para aquisição de determinados produtos, num posto de combustível sito em ....

17- Contudo, do mero facto de haverem sido efectuados os supra mencionados pagamentos com o cartão Visa da ofendida, não pode considerar­-se plenamente demonstrada a conclusão extraída pela mesma ofendida, ou seja, que esta haja deixado o seu cartão Visa nas instalações dos Serviços do Ministério Público de ...!

18- Pelo contrário, das declarações da ofendida, analisadas na sua globalidade, apenas resulta provado que aquela não se recorda o exacto local onde terá deixado a sua carteira,

19- Tanto mais que, conforme se extrai do depoimento da ofendida, o seu superior hierárquico comentou que esta andava tão desorientada que poderia ter deixado a mencionada carteira em qualquer lado, comentário com que a própria ofendida concordou.

20- Em consequência, não pode ser afastada a hipótese de o cartão Visa da ofendida ter sido deixado (ou perdido!), pela mesma ofendida, fora das instalações dos Serviços do Ministério Público de ..., e encontrado pelo recorrente fora daquelas instalações,

21- Ora, não podendo considerar-se plenamente demonstrado o facto indiciário, não poderá, em consequência, considerar-se provado o thema probandum que, no caso em apreço, sempre será: o recorrente dirigiu-se ao local onde habitualmente exerce funções a ofendida e, nesse local, apoderou-se da carteira da mesma ofendida, onde se encontravam um cartão de pontos da Galp, um cartão Multibanco e um cartão Visa.

22- Para que o tipo objectivo do crime de furto pudesse considerar-se preenchido, sempre seria necessário verificar-se a subtracção, pelo recorrente, do cartão Visa da ofendida.

23- E para que tal subtracção pudesse considerar-se verificada, era indispensável que o mencionado cartão de crédito, por um lado, se encontrasse na posse da ofendida e que, por outro lado, a acção do recorrente fosse apta a quebrar essa mesma posse.

24- Contudo, considerando as declarações da ofendida, não ficou plenamente demonstrado que o modo, o momento e o local que determinaram a entrada do mencionado cartão de crédito na posse do recorrente fossem aptos a quebrar a posse que a ofendida detinha sobre o mesmo cartão de crédito, simplesmente porque a mesma ofendida não foi capaz de demonstrar que o mencionado cartão se encontrava, precisamente, na sua posse.

25- Na verdade (repita-se), a ofendida limitou-se concluir que havia deixado o seu cartão de crédito nas instalações dos Serviços do Ministério Público, porquanto verificou existirem determinadas compras efectuadas com esse mesmo cartão, num posto de combustível sito em ....

26- Não podem, então, considerar-se preenchidos os elementos objectivos do crime de furto (ainda que por acção da prova indirecta).

27- Por outro lado, do texto da douta sentença recorrida resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal,

28- Porquanto, na douta sentença recorrida o Tribunal a quo refere que, por apelo às regras da experiência comum, sendo (o arguido) colega da ofendida e tendo acesso aos seus haveres, consabido que é o ambiente de confiança entre colegas, e vindo pelo menos um dos cartões a ser utilizado pelo arguido, tudo foi de molde a dar como provada, ainda que através da chamada prova indirecta, a factualidade referente a subtracção dos cartões.

29- Contudo, a douta sentença recorrida omite a fundamentação sobre o modo como o Tribunal a quo veio a considerar plenamente demonstrado o facto indiciário essencial, ou seja, que o cartão Visa da ofendida se encontrava nas instalações dos Serviços do Ministério Público, na esfera de poder da mesma ofendida.

30- Pelo contrário, o texto da douta sentença recorrida não faz qualquer menção ao facto indiciário supra referido.

31- O próprio Tribunal a quo admite, na fundamentação da matéria de facto constante na douta sentença recorrida, que não ficou demonstrado o concreto momento em que o recorrente se apoderou dos cartões, nem mesmo o específico modo.

32- Para que a prova indirecta ou indiciária pudesse operar contra o recorrente (e conforme refere o próprio Tribunal a quo na fundamentação da matéria de facto constante na douta sentença recorrida), sempre seria necessário existir um indício plenamente demonstrado nomeadamente por prova directa -, do qual pudesse extrair-se a certeza da verificação do facto probando.

33- Assim, seria indispensável que o Tribunal a quo fundamentasse a sua convicção no que respeita à verificação do mencionado indício, que é o seguinte: no dia 08.11.2007 (e não no dia 07.11.2008, como vem referido na douta sentença recorrida) o cartão Visa da ofendida encontrava-se nas instalações dos Serviços do Ministério Público, concretamente no local onde a ofendida habitualmente exerce as suas funções, encontrando-se, assim, na sua esfera de poder.

34- É, então, evidente a insuficiência para a decisão na matéria de facto provada, na medida em que da douta sentença recorrida não constam os dados objectivos em que assentou aquela decisão.

35- Por outro lado, ainda, o Tribunal a quo considerou que o recorrente se apoderou do cartão Visa da ofendida no dia 07.11.2007, entre as 12h00 e as 17h00.

36- Contudo, a ofendida refere, no seu depoimento, que transportou a sua carteira, onde se encontraria o cartão Visa supra referido, para fora dos Serviços do Ministério Público de ..., numa Quinta-Feira, em Novembro,

37- Pela mera consulta do calendário gregoriano, resulta que o dia 07.11.2007 foi uma Quarta-Feira, pelo que é notório o erro do Tribunal a quo quanto ao dia da alegada subtracção do dito cartão Visa.

38- Não havendo tal alegada subtracção sido praticada no dia 07.11.2008, nunca poderia ter sido praticada no período balizado pelo Tribunal a quo, ou seja, entre as 12h00 e as 17h00, porquanto no dia 08.11.2007, que corresponde a uma Quinta-Feira, foram efectuados dois pagamentos no posto de combustível Repsol, em ..., pelas 13h09.

39- Pelo supra exposto é evidente o erro notório na apreciação da prova, pelo Tribunal a quo.

Em suma, nos presentes autos, foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos por que vem acusado o recorrente e quanto à culpa deste, no que respeita à prática de um crime de furto, p. e p. pelo art. o 203º, n.º 1 do Código Penal, pelo que deve ser absolvido do crime de furto por que vem condenado.

*
Foi produzida resposta pelo MºPº, concluindo pela improcedência do recurso.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Os autos tiveram os vistos legais.

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte, (dado que o presente recurso tem apenas por objecto a matéria relativa ao crime de furto, apenas transcrevemos os factos atinentes a este crime):

Factos Provados:

Com interesse para a decisão da causa ficou provado que:

. no dia 07.11.2007, entre as 12h00 e as 17h00, nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da comarca de ..., o arguido, técnico de justiça nesses mesmos Serviços, dirigiu-se ao local onde usualmente exerce funções … e igualmente técnica de justiça a exercer funções nestes Serviços;

. tendo constatado que a mesma aí deixara a sua carteira pessoal, formulou o propósito de se apoderar dos cartões bancários que aí encontrasse;

. assim, apoderou-se de um cartão de pontos da Galp, um cartão Multibanco e o cartão de crédito Visa Gold com o n° 412 489 300 132 2016 da queixosa, com o intuito de utilizar os mesmos em levantamentos bancários e aquisição de produtos;

. o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que tais cartões não lhe pertenciam e que, ao deles se apoderar deles, o fazia contra a vontade e sem o consentimento da legítima titular dos mesmos;

.(…);

. sabia o arguido, igualmente, que as suas condutas eram previstas e punidas por lei penal;

. (…);

. o arguido foi condenado, por sentença datada de 15.06.2004 na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 4,00, bem como na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor por três meses pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo nº 1 do art. 292º do Código Penal;

 (…)

Fundamentação da matéria de facto

Para a decisão da matéria de facto o Tribunal procedeu a uma análise global e criteriosa de toda a prova produzida, que foi interpretada, conjugada e ponderada segundo cânones de razoabilidade, adequação e sempre em observância das regras por que se pauta o processo penal.

Assim, teve em consideração os documentos de fls. 5, 6, 12, 13, 17, 20, 24, 25, 28 a 30, 66, 82 a 85, 91 a 94 e 97, bem como os autos de reconhecimento de fls. 44, 45, 47, 48, 50, 51, 53 e 54.

Tendo o arguido exercido o direito ao silêncio, a ofendida e demandante, nas suas declarações, esclareceu o Tribunal do modo como chegou à conclusão ter sido o arguido quem retirou o cartão de dentro do seu porta-moedas.

As testemunhas … e …, funcionários dos postos de abastecimento de combustíveis, relataram os termos como chegaram à conclusão de ter sido o arguido que utilizou o cartão de crédito, reconhecendo-o ainda na sala do Tribunal.

A testemunha …, igualmente funcionário de um posto de combustível, relevou não ter recordação do arguido.

Cotejando toda a prova produzida, desde logo as declarações da ofendida e demandante, no que tange à matéria constante da acusação, foram consideradas merecedoras de crédito pela forma encadeada com que expôs os factos e explicou as conclusões obtidas, nomeadamente em termos de ter sido o arguido a subtrair os cartões.

De resto, da demais prova testemunhal produzida (à excepção da última testemunha inquirida), resultou igualmente, pelos pormenores evidenciados, seja da actuação do arguido (nomeadamente no testemunho de …, referindo que o arguido quis passar, ele próprio, o cartão na máquina, a testemunha … esclarecendo pormenores do veículo automóvel do arguido e a testemunha … por o ter anteriormente identificado e saber que trabalhava no Tribunal) ter sido o arguido o utilizador do cartão.

Assim, ainda que não se haja demonstrado o concreto momento em que o arguido se apoderou dos cartões, bem como o específico modo, por apelo às regras da experiência comum, sendo colega da ofendida e tendo acesso aos seus haveres, consabido que é o ambiente de confiança entre colegas, e vindo pelo menos um dos cartões a ser utilizado pelo arguido, tudo foi de molde a dar como provada, ainda que através da chamada prova indirecta, a factualidade referente à subtracção dos cartões.

Efectivamente, se na prova directa refere-se imediatamente ao thema probandum, ou seja, o meio de prova tem em vista, de modo imediato, o facto a provar, já a prova indirecta ou indiciária tem por referente factos diversos do tema da prova, que, com o auxílio das regras da experiência, nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal, permitem uma ilação ou inferência relativamente a este. Por sua vez, o indício revela o facto probando com tanta mais segurança quanto menos consinta a inferência de factos diferentes.([i])

Na prova indiciária, em primeiro lugar, há que ter um indício, plenamente demonstrado – nomeadamente por prova directa –, que corresponde à premissa menor do silogismo; em segundo lugar, tem de haver o despoletar de uma máxima de experiência ou regra de ciência que permita passar de um estado de ignorância para o esclarecimento; e, por último, em face do indício, infere-se o facto sob julgamento.([ii])

No que se refere ao conhecimento do significado ilícito das condutas, para além de ser do conhecimento geral dos cidadãos, não se pode o Tribunal alhear do facto de o arguido ser oficial de justiça, com especiais conhecimentos na matéria, o que acarreta necessariamente que tivesse tal ciência.

Os antecedentes criminais resultam do teor do certificado do registo criminal junto aos autos.

Relativamente à matéria dada como provada do pedido de indemnização civil, ancorou-se na prova documental, maxime no documento de fls. 84.

Quanto à matéria de facto dada como não provada resultou, na essência, de uma carência probatória nesse sentido.

Em primeiro lugar, a ofendida afirmou não se recordar se foram subtraídos cartões de desconto em hipermercados.

No demais, uma vez que, no que toca aos danos, a demandante não pode ser testemunha (al. c) do nº 1 do art. 133º do Código de Processo Penal) e as ouvidas nada lograram esclarecer nessa matéria.

APRECIANDO

Atendendo ao texto da motivação e respectivas conclusões, o recorrente impugna parte da decisão sobre a matéria de facto, imputando à sentença proferida em 1ª instância os vícios previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o de erro notório na apreciação da prova).

Quanto à matéria de direito, sustenta o recorrente que não se mostra preenchido o tipo objectivo do crime de furto porquanto seria necessário verificar-se a subtracção, pelo recorrente, do cartão Visa da ofendida e, não ficou demonstrado que o mencionado cartão se encontrava na posse daquela.

As Relações julgam de facto e de direito (art. 428º do CPP), estando o duplo grau de jurisdição condicionado e limitado à previsão do art. 410°, n.ºs 2 e 3 do CPP.

Ao impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto veio o recorrente alegar que toda a factualidade dada como assente relativa ao crime de furto “foi incorrectamente julgada, porquanto, em relação aos mesmos, não foi produzida prova suficiente sobre a verificação da prática de tal crime”.

Sustenta a sua discordância na forma como o tribunal a quo fundamentou a sua decisão, ao considerar que «Tendo o arguido exercido o direito ao silêncio, a ofendida e demandante, nas suas declarações, esclareceu o Tribunal do modo como chegou à conclusão ter sido o arguido quem retirou o cartão de dentro do seu porta-moedas.»,  ---------  apesar de « não se ter demonstrado o concreto momento em que o arguido se apoderou dos cartões, bem como o específico modo ».

Ou seja, alega que “analisando o depoimento da ofendida, não resulta provado que o recorrente tenha agido da forma, no momento e no local constantes nos pontos 1, 2, 3 e 4 dos factos provados da douta sentença condenatória”.

Não assiste razão ao recorrente.

O arguido usou do seu direito ao silêncio; mas se tal direito não o pode prejudicar e, não recai sobre si o ónus da prova dos factos que lhe são imputados na acusação, também esse direito não o pode beneficiar, só pelo facto de apenas a ofendida prestar declarações sobre um furto que não presenciou.

Na verdade, ainda que não haja prova directa da apropriação dos cartões, nomeadamente do cartão Visa, não teve a ofendida qualquer dúvida em afirmar que os mesmos lhe foram subtraídos no seu local de trabalho, os Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de ..., tendo explicado ao tribunal as razões que a conduziram a tal conclusão. Ora, foram essas razões convincentes para o tribunal a quo e para este tribunal de recurso, que procedeu à audição do depoimento de … em audiência.

Ao invés do que alega o recorrente, não foram as declarações da ofendida confusas e contraditórias.

Quando inicia o seu depoimento, afirmou desde logo que «foram furtados os cartões no tribunal». E, descrevendo como os factos ocorreram, disse que “saiu nesse dia de manhã e quando regressou, pensa que deve ter posto a carteira em cima da mesa, porque não está a ver o arguido ter ido buscá-la à mala”.  Referiu a ofendida que “foi em Novembro de 2007, numa 5ª feira; que na 6ª feira não deu por nada porque não precisou da carteira; só no sábado é que deu por falta, porque foi atestar a carrinha e não tinha a carteira”.

Conforme as suas declarações, naquele momento colocou duas hipóteses, ou tinham sido os miúdos (que sendo crianças, gostam sempre de ver e mexer no que tem na mala), ou tinha deixado a carteira no tribunal. Quando chegou a casa não encontrou a carteira, e na 2ª feira perguntou no tribunal se não a tinham visto, ao que lhe responderam negativamente.

“Quando foi ao banco na 3ª feira e viu os levantamentos, viu logo que não foram os filhos de certeza”. “Que lhe chamou a atenção o pagamento de € 6,10 que é o preço de dois maços de cigarros”.

E, acrescentou a ofendida: «confessa que associou logo ao Zé (o arguido) porque ele andava sempre a pedir dinheiro».

Declarou uma vez mais: «tinha a certeza que tinha trazido a carteira para dentro; não largou a carteira, disso tem a certeza; agora, se a pus dentro da mala, em cima da mesa ou no armário, não sabe onde a largou». «Só sabe que a carteira foi tirada no tribunal, não a perdeu».

Perante o depoimento da ofendida, afigura-se-nos que bem andou o Mmº Juiz quando na “Fundamentação da matéria de facto” deixou consignado que «Assim, ainda que não se haja demonstrado o concreto momento em que o arguido se apoderou dos cartões, bem como o específico modo, por apelo às regras da experiência comum, sendo colega da ofendida e tendo acesso aos seus haveres, consabido que é o ambiente de confiança entre colegas, e vindo pelo menos um dos cartões a ser utilizado pelo arguido, tudo foi de molde a dar como provada, ainda que através da chamada prova indirecta, a factualidade referente à subtracção dos cartões.».

Com efeito, para além da prova directa do facto, a apreciação do tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções. No recurso a presunções simples ou naturais (art. 349º do Cód. Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica.

“As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto” ([iii]). Ou seja, na dúvida, funcionará o princípio in dubio pro reo.

Por conseguinte, sendo permitido em processo penal o recurso a prova por presunções, porque não proibida por lei (art. 125º do CPP), “as normas dos artigos 126º e 127º do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo”([iv]).

Como decidiu o STJ, no Acórdão de 12-9-2007, disponível in www.dgsi.pt:

“I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.

II - “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).

III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.”.

Em função do exposto, segundo as regras da experiência comum, tendo o arguido utilizado em pagamentos que efectuou o cartão Visa que foi subtraído à ofendida …, e que tal cartão foi subtraído no local de trabalho da ofendida e do arguido (o que ficou plenamente demonstrado), nenhum reparo há a fazer à sentença recorrida quando dá por assente que o arguido foi o autor da subtracção dos cartões.

Argumenta ainda o recorrente que a decisão sob apreciação enferma dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova porquanto:

- a sentença recorrida omite a fundamentação sobre o modo como o Tribunal a quo veio a considerar plenamente demonstrado o facto indiciário essencial, ou seja, que o cartão Visa da ofendida se encontrava nas instalações dos Serviços do Ministério Público, na esfera de poder da mesma ofendida; ------------ e,

-  tendo o Tribunal a quo considerado que o recorrente se apoderou do cartão Visa da ofendida no dia 07.11.2007, entre as 12h00 e as 17h00. (…) a ofendida refere, no seu depoimento, que transportou a sua carteira, onde se encontraria o cartão Visa supra referido, para fora dos Serviços do Ministério Público de ..., numa Quinta-Feira, em Novembro, (…) e que o dia 07.11.2007 foi uma Quarta-Feira, é notório o erro do Tribunal a quo quanto ao dia da alegada subtracção do dito cartão Visa.

E, não havendo tal alegada subtracção sido praticada no dia 07.11.2008, nunca poderia ter sido praticada no período balizado pelo Tribunal a quo, ou seja, entre as 12h00 e as 17h00, porquanto no dia 08.11.2007, que corresponde a uma Quinta-Feira, foram efectuados dois pagamentos no posto de combustível Repsol, em ..., pelas 13h09.

Ora, a existência destes vícios, tem de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, sem recurso a elementos externos.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, n.º 2, al. a) do CPP) verifica-se quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido deixou de investigar matéria de facto relevante de tal forma que o que foi apurado não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação, deixando de observar o dever da descoberta da verdade material. Neste sentido Acórdãos do STJ de 14-11-98 (proc. n.º 588/98) e de 12-5-99 (proc. n.º 154/99).

O Prof. Germano Marques da Silva fala em “lacuna” no apuramento da matéria de facto.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova referido na alínea c), porque violador dos dados do conhecimento público generalizado, consiste em erro de tal modo evidente que não escapa ao comum dos observadores. Estar-se-á perante tal erro quando da leitura da decisão impugnada, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclua que os factos nela dados como provados não podem ter acontecido ou que os factos dados como não provados não podem deixar de ter acontecido, isto é, quando os factos dados como provados e/ou como não provados se revelam inequivocamente desconformes, impossíveis, ou seja, quando aqueles traduzem uma situação fáctica irreal ou utópica – (acórdão do STJ, de 11-3-2004, proferido no recurso 2674/02 deste TR).

Quanto à invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada cumpre-nos dizer o seguinte: o arguido, em audiência, remeteu-se ao silêncio e, quanto à fundamentação que o cartão Visa da ofendida se encontrava nas instalações dos Serviços do Ministério Público, na esfera de poder da mesma ofendida, como resulta da fundamentação da matéria de facto que efectuou, o Tribunal a quo formou a sua convicção com base nas declarações da ofendida, “declarações merecedoras de crédito pela forma encadeada com que expôs os factos e explicou as conclusões obtidas” (…) “e por apelo às regras da experiência comum, sendo o arguido colega da ofendida e tendo acesso aos seus haveres, consabido que é o ambiente de confiança entre colegas”.

Segundo o entendimento do Tribunal Constitucional, sufragado no Ac. n.º 27/2007 (Proc. n.º 784/05), in DR n.º 39, 2.ª Série, de 23 de Fevereiro de 2007, “a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética.

Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição (…) de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles. (…) o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou (…)”.

Ora, o tribunal a quo ao remeter para as declarações da ofendida, de acordo com a sua livre apreciação conjugada com as regras da experiência comum, implicitamente fundamentou nelas o sentido da matéria de facto. Não tendo a ofendida qualquer dúvida de que não perdeu a carteira com os cartões, e que não voltou a utilizar nenhum dos cartões depois de naquela manhã, a carteira estava no seu local de trabalho, na sua esfera de poder, como refere o recorrente.

Por outro lado, como é sabido por todos os que trabalham nos tribunais (o arguido e a ofendida eram ambos técnicos de justiça nos Serviços do MP do Tribunal Judicial de ...), na generalidade dos casos é exíguo o espaço dos serviços, com secretárias “coladas” umas às outras, com um armário comum para guardar os pertences dos funcionários, e às vezes nem isso, estando as malas e as pastas de cada um acessíveis a todos os que naquele espaço exercem funções.

Quanto ao «ambiente de confiança entre colegas» como se salienta na Fundamentação, ele existia naqueles Serviços, e de entreajuda, acrescentamos nós, pelo menos entre a ofendida e o arguido, dado que no sábado seguinte, estando o arguido de “turno”, arrumou o armário dos processos da ofendida.

Inexiste, pois, o invocado vício de insuficiência, assim como o de erro notório quanto ao dia da alegada subtracção do cartão Visa.

Vejamos,

Quando apresentou queixa a ofendida indicou como data da ocorrência o dia 7 de Novembro de 2007, entre as 12h00 e as 17h00. Na acusação vem indicada essa data e no pedido de indemnização civil também.

Em audiência, a ofendida declara que os factos aconteceram em Novembro de 2007, uma 5ª feira, não lhe tendo sido perguntado o dia concreto do mês (admitimos que o dia 7 foi tido pelo tribunal como correcto, face à cronologia dos demais factos, designadamente a utilização do cartão Visa que aconteceu no dia 8).

Efectivamente, o dia 7 corresponde a uma 4ª feira e, tendo a queixa sido apresentada na semana seguinte (em 13-11-2007), afigura-se-nos que então a ofendida tinha as datas mais presentes do que em 29-5-2008 (data da audiência).

De qualquer forma, ainda que o furto tenha ocorrido na 5ª feira, dia 8, terá acontecido entre as 12h00 e as 13h00, já que os dois primeiros pagamentos foram efectuados pelas 13h09 do dia 8. Portanto, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, poderia o cartão ter sido subtraído no próprio dia 8

Concluímos deste modo que a prova produzida foi criteriosa e globalmente avaliada pelo tribunal a quo, não se vislumbrando do texto da decisão recorrida qualquer dos vícios invocados pelo recorrente.

E, estando preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo do crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do CP impunha a condenação do arguido pela prática do mesmo.

Improcede pois, na totalidade, a argumentação do recorrente.
III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.


[i] - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1999, pág. 96 e ss.
[ii] - Ac. STJ 29.02.1996, BMJ 454º, pág. 531; Ac. RC 06.03.1996, CJ, ano XXI, tomo II, pág. 44 e ss.
[iii] - Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.
[iv] - Ac. STJ, de 23-11-2006, in www.dgsi.pt.