Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29-A/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA
Data do Acordão: 06/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANADIA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 1º, 2º E 3º, Nº 1, DA LEI Nº 75/98, DE 19/11, E 3º DO D. L. Nº 164/99, DE 13/05, E 189º OTM
Sumário: I – Uma leitura integrada dos artºs 1º da Lei nº 75/98, de 19/11, e 3º do D. L. nº 164/99, de 13/05, permite concluir que o FGADM assegura o pagamento da prestação de alimentos a menores até ao início do cumprimento da obrigação por parte de pessoa judicialmente obrigada a fazê-lo, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: - a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfaça as quantias em dívida pelas formas previstas no artº 189º da OTM; - os rendimentos líquidos do menor sejam inferiores ao salário mínimo nacional, e não beneficie dessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.

II – A responsabilidade do Estado pelo pagamento das prestações devidas a menores tem natureza autónoma e subsidiária em relação à anteriormente fixada ao progenitor/incumpridor, sendo o seu pressuposto a não realização coactiva da prestação através de alguma das formas previstas no artº 189º da OTM, ou seja, pressupõe a fixação prévia da obrigação de alimentos e a inviabilidade da sua cobrança coerciva.

III – A preocupação do legislador em conceder às crianças carecidas de alimentos o acesso a condições de subsistência mínimas não inviabiliza que possa ser paga pelo FGADM uma prestação superior ao valor devido pelo obrigado a alimentos.

IV – Se fixada no âmbito do processo de incumprimento uma prestação superior à fixada no processo de regulação do exercício do poder paternal, a sub-rogação que o FGADM venha a exercer contra o progenitor/incumpridor será apenas parcial e até ao limite da condenação deste último.

Decisão Texto Integral:


Acórdão

                Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Coimbra.

                1. Relatório

                No âmbito do processo nº 29/2000 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Anadia foi regulado o poder paternal dos menores, A..., B... e de C..., ficando o requerido – pai – obrigado a prestar alimentos no montante mensal de 45.000$00 -15.000$00 por cada um – remetendo tal montante, por cheque, numerário, vale correio ou transferência bancária à requerida – mãe dos menores – até ao dia 8 do mês a que respeitar – folhas 26 do processo principal.

                Por requerimento, que deu entrada em 20 de Novembro de 2000, a progenitora, ao abrigo do disposto no artigo181º da OTM, alegou que o requerido nada pagou a título de alimentos aos menores apesar da sentença já ter transitado em julgado.

                Os autos documentam um conjunto de vicissitudes que não permitiram o cumprimento, por parte do requerido, da prestação alimentar fixada a favor dos filhos, daí que a requerente tenha atravessado nos autos o requerimento de folhas 73, através do qual insistiu pela activação do Fundo de Garantia de Alimentos, a fim de poder fazer face às despesas com os filhos.

                Por despachos de folhas 74 e 76, a requerente foi notificada para informar das razões que a levaram a não lançar mão do disposto no artigo 189ºda OTM – cobrança da prestação de alimentos – e em consequência da mesma atravessou nos autos o requerimento de folhas 78, através do qual deu nota de se encontrar nas condições de receber a prestação regulada na Lei nº 75/98, de 19.11.


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                Por despacho de folhas 79, a Exma. Juiz ordenou a realização de um conjunto de diligências e determinou que realizadas fossem os autos com vista ao Ministério Público.

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                Realizadas, um conjunto de diligências destinadas a averiguar a situação profissional do requerido/progenitor, o Ministério Público tomou posição promovendo que se deferisse a pretensão formulada a folhas 73.

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                Na sequência desta promoção veio a ser proferida sentença com o seguinte pronunciamento decisório: determino que até que D... atinja a maioridade, o Estado através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, em substituição daquele, preste a C... (…) a importância de € 110,00 a título de alimentos.

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                Notificado o Ministério Público manifestou a sua irresignação através da interposição do competente recurso que foi recebido como agravo, a subir imediatamente e nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – folhas 144.

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                Nas suas doutas alegações o Ministério Público formulou, na parte que releva ao conhecimento do recurso, as seguintes conclusões:

1. Na regulação do poder paternal do menor C... foi decido, além do mais, que D..., seu pai, ficaria obrigado a prestar, a título de alimentos, a quantia de 15.000$00, a ser entregue à mãe E....

2. No incidente de incumprimento o Tribunal decidiu, sem exercício do contraditório, quer ao MºPº quer ao FGA e ao pai do menor, que o FGA pagasse à menor do menor prestação superior àquela, ou seja, € 110,00 por mês, em substituição do progenitor/devedor originário, D....

3. A sentença interpreta erradamente a mens legislatoris e a ratio legis subjacente ao regime do FGA, designadamente o disposto no artigo 2º, nºs 1 e 2 da Lei nº 75/98, de 19.11 e artigo 3º, nº 3 do DL nº 164/99, de 13.05.

4. A intervenção do FGA reveste a natureza subsidiária visto que é pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada, dado que a responsabilidade do FGA é residual, pois cabe aos pais em primeira linha a satisfação desse encargo.

5. Por outro lado, o FGA subroga-se em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações – artigo 6º, nº3 da Lei nº 75/98, de 19.11 e 5º, nº 1 do DL 164/99, de 13.5.

6. Nem os representantes legais do menor, nem o Ministério Público, actuando em representação do menor, requereram a alteração da prestação de alimentos nos termos do disposto no artigo 182º da OTM.

7. Deve revogar-se a sentença de folhas 119 a 125, na parte em que condenou o FGA a pagar uma prestação superior a 75 euros, decisão que violou os artigos 2º, nº 2 e 6º, nº 3 da Lei nº 75/98, de 19.11 e artigos 3º, nº 3 e 5º do DL nº 164/99, de 13.5.


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                A Exma. Juiz lavrou despacho tabelar de sustentação do decidido.

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                2– Delimitação do objecto do recurso

                A questão[1] a decidir no presente agravo e em função da qual se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil, é a seguinte:

Ø Alteração oficiosa da prestação alimentar fixada no processo de regulação do poder paternal, vinculando o FGA a prestar alimentos em medida superior à fixada naquele processo.


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            3. Matéria de facto provada

1. O menor C... nasceu a 11 de Setembro de 1996.

2. O menor é filho de D... e E....

3. Nos autos de regulação do exercício do poder paternal, por sentença de 14 de Julho de 2000 foi determinado, para além do mais, que o pai ficaria obrigado a prestar, a título de alimentos devidos ao menor, a quantia de 15.000$00 a pagar à mãe, pelo menor C..., até ao dia 8 do mês a que respeitar.

4. Desde Setembro de 2005 o progenitor não paga a prestação de alimentos.

5. No âmbito daquele processo de regulação do poder paternal, foi suscitado, pela progenitora E... o incidente de incumprimento, o qual veio a ser decidido por sentença proferida a 26 de Julho de 2006, que o julgou procedente e considerou verificada a situação de incumprimento das responsabilidades parentais de alimentos por parte do progenitor D....

6. O agregado familiar onde se encontra o menor C... é composto pela mãe, pelo irmão B..., já maior, pelos avós maternos, pelo tio materno e pelo primo.

7. O menor frequenta o 5º ano de escolaridade na Escola Básica do 2º ciclo de Oliveira do Bairro.

8. O menor beneficia de acção social escolar integrando o Escalão A, sendo subsidiado integralmente ao nível dos transportes, refeições do almoço e material escolar e de prestação familiar no valor de €30,00.

9. A mãe trabalha no Hipermercado “Carrefour”, em Aveiro, como repositora, por conta da sociedade Clara Cunha, Lda.”, auferindo um rendimento mensal de €319,18 e na sociedade Go-Merchandising – promoções e Merchandising, Lda., auferindo um rendimento mensal de €385,32.

10. O irmão frequenta o 11º ano de escolaridade na Escola Secundária de Oliveira do Bairro e beneficia, tal como o menor C..., de acção social escolar integrando o Escalão A, sendo subsidiado integralmente ao nível dos transportes, refeições do almoço e material escolar e de prestação familiar no valor de €30,00.

11. O avô materno do menor encontra-se reformado, pelo que recebe, de reforma, o montante de €177,00.

12. A avó materna do menor é empresária em nome individual, em situação de baixa médica há cerca de 1 mês.

13. A avó materna do menor recebe um rendimento mensal de €379, respeitante à renda da empresa “ Lavandaria Branca de Neve”, sita em Sangalhos.

14. O tio materno do menor é solteiro e exerce a sua actividade profissional como engenheiro electrotécnico, numa cerâmica em Oliveira do Bairro, auferindo um vencimento mensal de €600.

15. De electricidade, gás e água, o agregado familiar do menor paga por mês a quantia de € 202,00 (duzentos e dois euros).

16. Do agregado familiar onde está integrado o menor resulta uma capitação mensal correspondente ao montante aproximado de € 257,00.

17. O pai do menor, D... executa trabalhos temporários para entidades e pessoas diferentes, estando colectado como trabalhador independente, na área da construção civil, não auferindo um rendimento mensal certo.

18. O pai do menor não possui quaisquer bens ou rendimentos susceptíveis de serem penhorados


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                4. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir

                A questão central e única a decidir no presente recurso é a de saber se o Tribunal, oficiosamente, pode alterar a prestação alimentar fixada em processo próprio e vincular o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores ao pagamento de uma prestação superior.

                A nossa resposta não pode deixar de ser positiva.


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                O artigo 69º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa atribui ao Estado à obrigação de velar pelas crianças órfãs, abandonadas ou privados de um ambiente familiar normal, explicitando o nº 3 do artigo 63º da CRP que o sistema de segurança social protege os cidadãos que se encontrem na situação de falta ou diminuição dos meios de subsistência.

                  A concretização deste desígnio constitucional             passou pela publicação da Lei nº 75/98, de 19.11, cujo artigo 1º preceitua: quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do DL nº 314/78, de 27.10 e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação.

                Uma leitura integrada dos artigos 1º da Lei nº 75/98, de 19.11 e do artigo 3º do Decreto-lei nº 164/99, de 13.5 permite concluir que o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores assegura o pagamento da prestação de alimentos até ao início efectivo do cumprimento da obrigação por parte de pessoa judicialmente obrigada desde que se verifiquem os seguintes requisitos:

Ø A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º da OTM[2].

Ø Os rendimentos líquidos do menor serem inferiores ao salário mínimo nacional, nem beneficie dessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.

                Estamos em presença de um incidente de incumprimento da regulação do poder paternal, que deve ser desencadeado quando «a pessoa judicialmente obrigada» a prestá-los não assegure o seu cumprimento, devendo o Ministério Público ou aqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue requerer, nos respectivos autos de incumprimento, que o Tribunal fixe o montante a suportar pelo Estado em substituição do devedor (nº 1 do artigo 3º da Lei nº 75/98, de 19.11), montante que não pode exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 Uc[3] (nº 3 do artigo 3º do DL nº 164/99, de 13 de Maio).

                Este incidente deve ser tramitado de acordo com a disciplina vazada nos números 2 a 6 do artigo 3º da Lei nº 75/98, de 19.11.

                Se tomarmos por referência os pressupostos enunciados no artigo 3º do DL nº 164/99, de 13.5 damo-nos conta que a responsabilidade do Estado pelo pagamento das prestações devidas a menores tem natureza subsidiária, sendo o seu pressuposto a não realização coactiva da prestação através de alguma das formas previstas no artigo 189º da OTM, ou seja, pressupõe a fixação prévia da obrigação de alimentos e a inviabilidade da sua cobrança coerciva.

                Uma leitura integrada dos artigos 1877º, 1878º, 1882º e 1885º do CC permite concluir que os filhos de idade inferior a 18 anos – artigo 122º do CC – ficam sujeitos ao poder paternal, competindo aos pais, entre outros deveres, o de prover ao seu sustento e de promover o seu desenvolvimento físico e intelectual.

                Na constância do matrimónio o exercício do poder paternal compete aos pais – artigo 1901º do CC – e em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, os alimentos devidos a menores são regulados por acordo dos pais e sujeitos a homologação judicial e em caso de desacordo cabe ao tribunal determinar qual dos progenitores passa a exercer o poder paternal – artigos 1905º e 1906ºdo CC.

                Os autos evidenciam uma situação de ruptura do casamento, com a separação de facto dos progenitores, e daí que tivesse sido requerida a intervenção do Tribunal para regular o poder paternal dos menores. Instruídos os autos com os elementos considerados pertinentes pelo Tribunal veio a ser proferida sentença em 14 de Julho de 2000, que atribuiu o poder paternal dos menores à requerente/progenitora e vinculou o requerido/progenitor à obrigação mensal de prestar, a título de alimentos, a quantia de 45.000$00 -15.000$00.por cada um dos menores.

                Em 20 de Novembro de 2000, a requerente/progenitora atravessou nos autos o requerimento de folhas 2, dando conta do incumprimento por parte do requerido/progenitor e que este nada pagou em matéria de alimentos. Por razões várias que os autos demonstram, o progenitor/requerido nunca cumpriu com a sua obrigação de alimentos para com os seus filhos menores, até que em 17 de Janeiro de 2007 deu entrada no Tribunal de Anadia de um requerimento da progenitora/requerente solicitando que fosse activado o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, o que acabou por acontecer por sentença data de 28 de Fevereiro de 2008.

                Chegada a Fevereiro de 2008, a Exma. Juiz na sentença recorrida deu nota que há que considerar que o menor, actualmente com 11 anos tem necessidades distintas das que por ventura teria quando da fixação judicial de alimentos. Acresce que o nível médio do custo de vida sofreu um aumento ao longo destes anos, pelo que uma prestação de € 75,00 é manifestamente insuficiente para as despesas de educação, saúde, vestuário e alimentação do mesmo e daí ter considerado como adequada uma prestação de € 110,00.

                O decreto-lei regulamentar nº 164/99, de 13.5 manifesta no seu exórdio uma preocupação com os incumprimentos da obrigação de alimentos, por parte de quem tem especiais responsabilidades no dever de prestar alimentos a filhos, sejam por causas associadas a desemprego, doença ou toxicodependência, sejam por outra causa associada a uma qualquer incapacidade.

                Daí que tenha de forma expressa declarado que «ao regulamentar a Lei nº 75/98, de 19 de Novembro (…) criou-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores».

                No plano substantivo a Lei nº 75/98, de 19.11 declara que (…) o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação – parte final do artigo 1º – sendo que as prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo Tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC – nº 1 do artigo 2º – fixando o Estado, por devedor, um tecto máximo – 4 UC – montante que fixado pelo Tribunal perdura enquanto se verificarem os pressupostos que determinaram a sua atribuição e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado.

                Também o regulamento – DL nº 164/99, de 3 de Maio – expressa que as prestações a que se refere o nº 1 são fixadas pelo Tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC.              

                Competindo ao Tribunal fixar a prestação a suportar pelo FGADM, o legislador, para além de ter fixado o tecto máximo da prestação por devedor, consagrou um conjunto de princípios orientadores para a sua fixação: para a determinação do montante (…) o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação fixada e às necessidades específicas do menor.

                Na interpretação do quadro legal acima vazado, o Tribunal da Relação de Coimbra expendeu o seguinte entendimento: «da redacção do mencionado preceito pode concluir-se que uma coisa é a prestação fixada ao obrigado a alimentos e outra é (ou pode ser) a prestação fixada nos termos daquela lei, não tendo de coincidir os respectivos montantes: o quantitativo da prestação do obrigado é um facto a par de outros, que determina a fixação in concreto da prestação a suportar pelo Fundo, sendo certo que o nº 1 do artigo 2º supracitado apenas estabelece um limite máximo por cada devedor e que não poderá exceder o montante de 4 UC. Se assim não fosse não faria sentido a lei mandar pautar a prestação do Fundo pela do obrigado; aquela prestação seria única e exclusivamente do obrigado, embora sujeita a redução quando ultrapassasse o montante acima referido[4].

                Começamos por afirmar que nos revemos na interpretação que este acórdão faz do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 75/98, de 19.11 e do nº 3 do artigo 3º do DL nº 164/99, de 13.5, na medida em que a prestação a fixar pelo Tribunal é uma prestação nova e autónoma em relação à anteriormente fixada ao devedor, prestação que tem como limite 4 UC por devedor, mas que não inviabiliza que o Juiz, no respeito por aquele tecto, fixe prestação alimentar diversa da fixada, na medida em que, recorde-se é tão-só um dos índices a ter em conta pelo julgador.

                Naturalmente que fixando o legislador um tecto máximo de 4 UC por devedor e existindo um progenitor/incumpridor obrigado à prestação de alimentos a filhos menores, o que a lei está a significar é que a função garantística do Fundo não pode ultrapassar aquelas quatro unidades de conta.

                Dito de outro modo, independentemente dos números de menores a quem sejam devidos alimentos, o Estado assume, através do FGADM, subsidiariamente a obrigação de garantir, transitoriamente, os alimentos devidos e previamente fixados, desde que verificados os requisitos legais exigidos por lei.

                A não ser este o entendimento, que sentido faria a lei impor ao Juiz a obrigação de solicitar a realização de um conjunto de diligências probatórias e relatório social/inquérito sobre as necessidades do menor – artigo 4º do DL nº 164/99, de 13.5 – permitindo a lei que o Tribunal solicite a colaboração de Centros Regionais da Segurança Social e de outros serviços do Estado que conheçam as necessidades e a situação sócio-económica do alimentado e da sua família.

                Na posse dos elementos de prova, impõe-se ao Juiz que fixe os alimentos devidos tendo em consideração os índices plasmados na lei, alimentos que podem ser superiores ou inferiores aos inicialmente fixados, impondo-se, apenas, ao Juiz o tecto de quatro unidades de conta por devedor.

                Como ensina o Sr. Prof. Remédio Marques «não vale objectar que esta actividade probatória se destina a averiguar a eventual diminuição das necessidades do menor, para o efeito da fixação de uma prestação inferior ao montante pré-fixado pelo Tribunal ou homologado pela Conservatória, pois que é um facto notório que as necessidades de um menor, v.g. educação, segurança, vestuário, alimentação, actividades extra-curriculares, aumentam com a idade (…). O Tribunal deve, outrossim atender, na fixação de um montante – que pode ser inferior a quatro unidades de conta de custas – à capacidade económica do agregado familiar da pessoa a cuja guarda se encontre, ao montante da prestação de alimentos fixada pelo Tribunal e às necessidades específicas do menor[5]».

                A preocupação do legislador em conceder às crianças carecidas de alimentos o acesso a condições de subsistência mínimas, não inviabiliza que possa ser paga pelo Fundo de Garantia uma prestação superior ao valor devido pelo obrigado a alimentos.

                No caso em apreço, as razões que determinaram a alteração para um valor superior da prestação inicialmente fixada estão claramente plasmadas na sentença recorrida, a qual chama e bem a atenção para o facto do menor ter hoje 11 anos de idade e consequentemente, necessidades completamente distintas daquelas que foram tidas em conta aquando da regulação do poder paternal.

                Recorde-se que entre a decisão de regulação do poder paternal e a decisão recorrida demandaram cerca de 8 anos e com eles outras necessidades – escolares, alimentares, segurança – se impõem ser satisfeitas.

                E que dizer da violação do princípio do contraditório defendido pelo Ilustre Procurador Adjunto nas suas doutas alegações?

                Não olvidamos a essencialidade do princípio do contraditório – artigos 3º, nº 3 e 3ºA do CPC – mas a verdade é que o Tribunal não tomou nenhuma decisão que se projecte na esfera jurídica do progenitor/incumpridor pese o facto de ter fixado uma prestação de alimentos a cargo do FGADM de valor superior ao ficado em sede de regulação do poder paternal.

                A situação reportada nestes autos de incumprimento não é confundível com a situação de alteração do poder paternal – artigo 182º da OTM – na medida em que aqui estão envolvidos os dois progenitores o que clara e objectivamente não acontece mo caso em apreço. Tal como documentam os autos, a intervenção do FGADM fica a dever-se ao facto do progenitor não cumprir, para com os seus filhos e mais recentemente para com um deles, com a prestação de alimentos que lhe foi fixada pelo Tribunal. De resto, e apesar do FGADM estar vinculado ao pagamento de uma prestação alimentar de montante superior, a sub-rogação que eventualmente venha a exercer contra o progenitor/incumpridor será, apenas, parcial e até ao limite da condenação deste último.

                  E que dizer do argumento avançado pelo Ilustre Procurador Adjunto de o FGADM ter que suportar «a fundo perdido» parte da prestação de alimentos, por via da sub-rogação parcial?

                Se tivermos por referência o quadro legal internacional, nomeadamente a Recomendação do Conselho da Europa R (82)2 de 4 de Fevereiro de 1982 em matéria de antecipação pelo Estado das prestações de alimentos devidas a menores e se interiorizarmos em matéria de direitos consagrados na nossa Lei Constitucional – artigo 69º – rapidamente concluiremos que a intenção do legislador foi a de garantir a dignidade da criança como pessoa em formação e a quem deve ser concedida a necessária protecção – preâmbulo do DL nº 164/99, de 13.5 – mesmo que daqui decorra, como necessariamente, decorre um encargo para o Estado.

                Ciente do aumento significativo das acções de regulação do exercício do poder paternal e dos igualmente significativos incumprimentos por parte de alguns progenitores apanhados pelo desemprego, doença, acidente/incapacidade, toxicodependências, etc., o Estado entendeu criar um Fundo que «assegurasse o pagamento das prestações de alimentos atribuídos a menores» nº 2 do artigo 2º do DL nº 164/99, de 13.5, acautelando, naturalmente a lei, a possibilidade de o progenitor/incumpridor passar a ter possibilidades de reembolsar o FGADM e daí ter consagrado a sub-rogação do Fundo «em todos os direitos do menor» com vista à garantia do respectivo reembolso – artigo 5º, nº 1 do DL nº 164/99,de 13.5 – sub-rogação esta que o próprio legislador interiorizou poder ser parcial na medida em que permitiu ao julgador a fixação de prestações de alimentos em valor superior às inicialmente fixada na regulação do poder paternal – artigos 2º, nº 2 da Lei 75/98 e 3º, nº 3 do DL nº 164/99, de 13.5.


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                Resumindo

I. A prestação a fixar pelo Tribunal, nos termos do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 75/98, de 19.11 e do nº 3 do artigo 3º do DL nº 164/99, de 13.5, é nova e autónoma em relação à anteriormente fixada ao progenitor/incumpridor no âmbito do processo de regulação do poder paternal.

II. Esta prestação tem como limite 4 UC por devedor, mas o quadro legal mencionado em I permite que o Juiz, no respeito por aquele tecto, fixe prestação alimentar em montante diverso do fixado – maior ou menor.

III. Se fixada no âmbito do processo de incumprimento uma prestação superior à fixada no processo de regulação do poder paternal, a sub-rogação que o FGADM venha, eventualmente, a exercer contra o progenitor/incumpridor será, apenas, parcial e até ao limite da condenação deste último.


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                Decisão

                Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.


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                Sem custas.

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                Notifique.

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                Coimbra[6], 24 de Junho de 2008


[1] É dominantemente entendido que o vocábulo «questões» não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por «questões» as concretas controvérsias centrais a dirimir – Ac. STJ, datado de 2.10.2003, proferido no âmbito do recurso de revista nº 2585/03 da 2ª Secção.
[2] O artigo 189º visa a cobrança coerciva da prestação de alimentos através de processo pré-executivo. O recurso a este artigo pressupõe a fixação judicial da prestação de alimentos e o seu não pagamento no prazo de 10 dias após o seu vencimento.
[3] À data da prolação da sentença Fevereiro de 2008 a Unidade de Conta correspondia a 96 euros.
[4] Ac. RC, datado de 5 de Março de 2002, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Távora Vítor – CJ, XXVII, II, 6; no mesmo sentido Ac. RC, datado de 9.10.2001, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Hélder Roque, proferido no âmbito do processo nº 1788/2001 e publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt; Ac. RP, datado de 18.6.2007, proferido no âmbito do processo nº 0733397 e relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador José Ferraz; em sentido contrário – Ac. RC, datado de 25.05.2004, proferido no âmbito do processo nº 70/04, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador António Piçarra; Ac. RC datado de 6,6.2006, proferido no âmbito do processo nº 419/06 e relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Virgílio Mateus – ambos disponíveis no endereço electrónico www.dgsi.pt.  
[5] Sr. Prof. Remédio Marques – Algumas Notas Sobre Alimentos Devidos a Menores – Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 237/39
[6] Acórdão elaborado e revisto pelo relator.