Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
230/18.9PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA ROBERTO
Descritores: PENA ACESSÓRIA
CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 01/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 69.º, N.ºS 2 E 6 DO CP; 9.º, N.ºS 1 E 2 DO CC
Sumário: I. A interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, sendo certo, no entanto, que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso – artigo 9.º, n.º s 1 e 2 do CC.

II. Assim, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, deve entender-se que a ratio do n.º 6 do artigo 69.º do Código Penal assenta, essencialmente, na privação total da liberdade, ou seja, pressupõe que o arguido se encontra sem possibilidade de se ausentar com regularidade do local de cumprimento da pena e o n.º 2 do mesmo normativo não pode ser interpretado no sentido de ser completamente irrelevante uma remessa ou entrega da carta de condução em data anterior à do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na Secção Penal (4.ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I – Relatório

Por sentença de 04/06/2020, procedeu-se ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido RS, constando da mesma o seguinte dispositivo:

Pelos fundamentos expostos:

I- Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas nos presentes autos de Processo Sumário nº 230/18.9PTCBR e no Processo Sumário 228/17.4PTCBR, do juízo criminal – Juiz 2, condeno o arguido RS. na pena única de 390 dias de prisão, a que haverá de descontar a pena já cumprida no âmbito do Processo Sumário 228/17.4PTCBR, ou seja 260 dias de prisão (uma vez que já cumpriu 260 das 300 horas de trabalho a favor da comunidade correspondentes), pelo que lhe falta cumprir 128 dias (levando ainda em linha de o desconto de 2 (dois) dias de privação da liberdade, a efectuar nos termos do art. 80º do CPenal), pena esta que será executada em regime de permanência na habitação, na residência do arguido supra identificada, nos termos do art.º 43.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do Código Penal, e 7.º, n.º 4, da Lei 33/2010, de 02/09, com recurso a vigilância electrónica.

II-Autorizo ausências do condenado do local do cumprimento da pena, pelo período de tempo estritamente necessário, ao abrigo do disposto nos art.ºs art.ºs 43.º, n.º 2, e 3 do Código Penal, 7.º, n.º 4, e 11.º, n.º 1, da Lei 33/2010, de 02/09:

a) À comparência em consultas ou tratamentos médicos antecipadamente comunicados e justificados perante os serviços de reinserção social;

b) À comparência em diligências processuais para as quais se encontre regularmente notificado;

c) Ao cumprimento da sua actual actividade profissional, no estrito horário normal de trabalho, de terça-feira a sábado, entre as 10H30 e as 15H30 e as 18H00 e 21H00, nas instalações da respectiva entidade empregadora (restaurante denominado (…), nas proximidades das X..., em Coimbra).

III- Condeno o arguido RS. na pena única de proibição de conduzir veículos motorizados em 2 (dois) anos e 3 (três) meses, sendo que no cumprimento daquela pena, beneficia o arguido do desconto do tempo de proibição de conduzir veículos a motor que já cumpriu, à ordem do processo 228/17.4PTCBR, cujas penas foram aqui cumuladas, pelo que lhe restam apenas cumprir nove meses de proibição de conduzir veículos a motor.

IV- Sem tributação.”

                                                             *

Posteriormente, foi proferido o seguinte despacho:

Tendo em conta a realidade processual pertinente, examinados os fundamentos invocados, e considerando, também, os termos em que vem equacionada a questão jurídica a dirimir, cabe dizer que, sufragamos a argumentação expendida pelo Ministério Público quanto à data de inicio da pena acessória (03.08.2020) em face do disposto no nº2 e 6 do art. 69º do Código Penal, considerando que a sentença transitou em julgado em 15.07.2020 e o condenado foi restituído à liberdade em 03.08.2020.

Termos em que se homologa a liquidação da pena acessória efetuada na promoção de 07.09.2020, inserta na ref. citius 83475462, pelo que o seu termo ocorrerá em 03.05.2021.”

                                                             *

O arguido, notificado desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

“1) No âmbito da sentença de cúmulo jurídico efetuada dos processos sumários n.º 230/18.9PTCBR e 228/17.4PTCBR, do Juízo criminal – Juiz 2, o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, concluindo-se que, após o desconto do período de apreensão da carta de condução cumprido à ordem do processo 228/17.4PTCBR, apenas restava cumprir 9 (nove) meses de proibição de conduzir veículos a motor.

2) O arguido entregou a sua carta de condução à ordem do processo n.º 228/17.4PTCBR, em 12 de novembro de 2018, tendo a mesma sido oficiosamente remetida aos presentes autos em 12/05/2020, nunca tendo sido recusada pela secretaria judicial, onde, aliás, ainda hoje se mantém apreendida.

3) O arguido cumpriu a pena principal de prisão em Regime de Permanência na Habitação entre 27/03/2020 e 03/08/2020, com expressa autorização para cumprir a sua atividade profissional, no estrito horário normal de trabalho, de terça-feira a sábado, entre as 10H30 e as 15H30 e as 18H00 e 21H00, nas instalações da respetiva entidade empregadora (restaurante denominado (…), nas proximidades das X..., em Coimbra).

4) Durante o referido período, o arguido recorreu a terceiros e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho, cumprindo escrupulosamente a proibição de conduzir veículos a motor.

5) Até porque se o tribunal tivesse tido notícia que o arguido tinha conduzido o seu automóvel até ao local de trabalho, durante o cumprimento da pena principal no Regime de Permanência na Habitação, certamente estaríamos agora perante uma condenação pelo crime de desobediência.

6) Acreditou o arguido convictamente que o termo da pena ocorreria em 13/02/2021, 2 (dois) anos e 3 (três) meses após entrega da carta de condução à ordem do processo n.º 228/17.4PTCBR e precisamente 9 (nove) após a sua remessa aos presentes autos, sem que a secretaria judicial a tivesse recusado e sem que o arguido tenha sido notificado para a levantar.

7) Sucede, porém, que a sentença sub judice liquidou o términus da pena em 03/05/2021, desconsiderando o período entre 13/05/2020 (data de remessa da carta aos presentes autos) e 03/08/2020 (data de cessação do Regime de Permanência na Habitação).

8) O arguido entende que deve ser contabilizado o período referido, tanto porque a carta foi remetida aos presentes autos e apreendida à ordem deste processo a 13/05/2020, conforme documento n.º 1 já junto, como porque entende que o legislador criou o n.º 6 do art. 69.º do CP para as situações em que o cumprimento de pena ocorre no puro regime de privação de liberdade, sem autorização de deslocação.

9) A interpretação literal que o tribunal a quo faz dos n.ºs 2 e 6 do art. 69.º do CP, sem a necessária valoração dos factos do caso concreto, viola as legitimas expectativas do arguido, a confiança jurídica e o seu direito a um processo equitativo, desconsiderando o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que se invoca para todos os legais e devidos efeitos.

10) Além de que, não aplica as regras de interpretação plasmadas no art. 9.º do Código Civil, não garantindo a unidade do sistema jurídico, nem a unidade dos critérios de aplicação da própria sentença do cúmulo jurídico, que considerou, e bem, no desconto efetuado o período do cumprimento da pena principal em Regime de Permanência na Habitação, com autorização de deslocação para o local de trabalho. Ilegalidade que se invoca para todos os legais e devidos efeitos.

11) Pelo exposto e atentos os fundamentos invocados, não andou bem o tribunal a quo na decisão sub judice, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que aplicando a lei e os mais basilares princípios constitucionais, determine que o termo da referida pena de proibição de conduzir veículos a motor aplicada ao arguido, ocorrerá em 13/02/2020, precisamente 2 (dois) anos e 3 (três) meses, após a apreensão da carta e 9 (meses) após a remessa da carta aos presentes autos, conforme decisão de cúmulo já transitada em julgado.

Nestes termos e nos demais de direito sempre com o douto suprimento de V/ Exc. deve ser dado provimento ao presente recurso e assim revogar-se a decisão de homologação sub judice, determinando-se que o termo da referida sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados ocorrerá a 13/02/2021, com todas as consequências legais.”

*

O Ministério Público contra-alegou, concluindo que:

“1. O início do cômputo, para efeito de cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 9 (nove) meses, a que o recorrente foi condenado, por sentença cumulatória proferida em apenso aos presentes autos, deverá fixar-se a partir da data da respetiva restituição à liberdade, em observância ao disposto no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal; portanto a partir de 03/08/2020, com termo previsto para o dia 03/05/2021.

2. A circunstância de o condenado em pena principal de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, ter sido autorizado, quer na sentença proferida no âmbito dos presentes autos, quer na subsequente sentença cumulatória prolatada em apenso aos presentes, a ausentar-se do local do cumprimento da pena, para realizar a sua atividade profissional, em nada belisca o entendimento de que não deverá ser computado, no período de cumprimento da pena acessória, o tempo durante o qual o agente esteve privado de liberdade por força da pena principal. Eventual entendimento em sentido contrário não encontra, na letra da lei, um mínimo de correspondência verbal.

3. A sentença cumulatória, das penas parcelares aplicadas no âmbito dos presentes autos e no processo n.º 228/17.4PTCBR, transitou em julgado em 13/07/2020, portanto, em data posterior à da remessa (13/05/2020), aos presentes autos, da carta de condução apreendida ao recorrente no âmbito do processo n.º 228/17.4PTCBR, após terminus, em 12/05/2020, do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, ali aplicada. Nas referidas datas, o recorrente já se encontrava privado da liberdade.

4. O recorrente tinha conhecimento que se encontravam em curso diligências tendentes a cumular as penas parcelares aplicadas nos dois processos aqui em causa, até porque foi o próprio, por intermédio da sua ilustre defensora, quem requereu, em 27/03/2020, a realização de audiência de fixação de cúmulo jurídico; bem sabendo, pois, que a sentença cumulatória levaria à perda de autonomia das penas parcelares, logo que transitasse em julgado.

5. A decisão recorrida não padece de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, nem tão-pouco de ilegalidade, por inobservância das regras de interpretação da lei plasmadas no artigo 9.º, do Código Civil

Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida.

V.ªs Ex.ªs, porém, decidirão conforme for de Direito e de Justiça!”

                                                                       *         

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer.

                                                             *

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

                                                             *

II – Fundamentação

a) Matéria de facto provada:

A constante do relatório que antecede e, ainda:

1. A sentença supra referida que procedeu ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido transitou em julgado no dia 13/07/2020.

2. A carta de condução do arguido foi remetida aos presentes autos no dia 13/05/2020, conforme ordenado no processo n.º 228/17.4PTCBR, após cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados neste último.

                                                             *

                                                                       *

b) - Discussão

De acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do plenário das secções do STJ de 19/10/1995 (DR série I-A de 28/1271995) e conforme resulta do n.º 1, do artigo 412.º, do CPP, bem como, entre outros, do acórdão do STJ de 27/05/2010, disponível em www.dgsi.pt, o âmbito do recurso é delimitado pelas suas conclusões, com exceção das questões de conhecimento oficioso (artigo 410.º, do CPP).

Cumpre, então, apreciar a questão suscitada pelo arguido recorrente, qual seja:

Se o termo da sanção acessória de inibição de conduzir ocorrerá no dia 13/02/2021 e não no dia 03/05/2021, sendo inconstitucional a interpretação literal que o tribunal faz do disposto nos n.ºs 2 e 6 do artigo 69.º do CP.

                                                             *

Alega o recorrente que a sua carta de condução foi oficiosamente remetida aos presentes autos em 12/05/2020, nunca tendo sido recusada pela secretaria judicial; cumpriu a pena principal de prisão em Regime de Permanência na Habitação entre 27/03/2020 e 03/08/2020, com expressa autorização para cumprir a sua atividade profissional, no estrito horário normal de trabalho, de terça-feira a sábado, entre as 10H30 e as 15H30 e as 18H00 e 21H00, nas instalações da respetiva entidade empregadora; durante o referido período, o arguido recorreu a terceiros e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho, cumprindo escrupulosamente a proibição de conduzir veículos a motor; acreditou convictamente que o termo da pena ocorreria em 13/02/2021, 2 (dois) anos e 3 (três) meses após entrega da carta de condução à ordem do processo n.º 228/17.4PTCBR e precisamente 9 (nove) após a sua remessa aos presentes autos, sem que a secretaria judicial a tivesse recusado e sem que o arguido tenha sido notificado para a levantar; a sentença sub judice liquidou o términus da pena em 03/05/2021, desconsiderando o período entre 13/05/2020 (data de remessa da carta aos presentes autos) e 03/08/2020 (data de cessação do Regime de Permanência na Habitação); entende que deve ser contabilizado o período referido, tanto porque a carta foi remetida aos presentes autos e apreendida à ordem deste processo a 13/05/2020, como porque entende que o legislador criou o n.º 6 do art. 69.º do CP para as situações em que o cumprimento de pena ocorre no puro regime de privação de liberdade, sem autorização de deslocação.

Mais alega que:

- a interpretação literal que o tribunal a quo faz dos n.ºs 2 e 6 do art. 69.º do CP, sem a necessária valoração dos factos do caso concreto, viola as legitimas expectativas do arguido, a confiança jurídica e o seu direito a um processo equitativo, desconsiderando o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que se invoca para todos os legais e devidos efeitos e

- não aplica as regras de interpretação plasmadas no art. 9.º do Código Civil, não garantindo a unidade do sistema jurídico, nem a unidade dos critérios de aplicação da própria sentença do cúmulo jurídico, que considerou, e bem, no desconto efetuado o período do cumprimento da pena principal em Regime de Permanência na Habitação, com autorização de deslocação para o local de trabalho. Ilegalidade que se invoca para todos os legais e devidos efeitos.   

A este propósito consta da decisão recorrida o seguinte:

Tendo em conta a realidade processual pertinente, examinados os fundamentos invocados, e considerando, também, os termos em que vem equacionada a questão jurídica a dirimir, cabe dizer que, sufragamos a argumentação expendida pelo Ministério Público quanto à data de inicio da pena acessória (03.08.2020) em face do disposto no nº2 e 6 do art. 69º do Código Penal, considerando que a sentença transitou em julgado em 15.07.2020 e o condenado foi restituído à liberdade em 03.08.2020.

Termos em que se homologa a liquidação da pena acessória efetuada na promoção de 07.09.2020, inserta na ref. citius 83475462, pelo que o seu termo ocorrerá em 03.05.2021.”

E consta da promoção que procedeu à liquidação da pena:

Por sentença cumulatória (que englobou as penas parcelares aplicadas nestes autos e naqueles outros de inquérito NUIPC: 228/17.4PTCBR) transitada em julgado em 15/07/2020, foi o arguido RS condenado na pena única de 390 (trezentos e noventa) dias de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, com recurso a vigilância eletrónica.

Dessa pena, após desconto de parte da pena parcelar cumprida no Processo n.º 228/17.4PTCBR, bem assim dos 2 (dois) dias de detenção sofridos pelo arguido neste e naqueles autos, foi imposto ao mesmo o cumprimento de 128 (cento e vinte e oito) dias de prisão.

O arguido esteve ininterruptamente privado da sua liberdade, à ordem dos processos que integram o cúmulo jurídico de penas, desde 28/03/2020.

A fls. 161 dos presentes autos consta fax datado de 03/08/2020, remetido pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ao Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, por via do qual se informa que, naquela mesma data, pelas 09h36, foram desativados e desinstalados os equipamentos de vigilância eletrónica.

Nestes termos, promovo seja oficiado ao T.E.P., solicitando remessa de informação relativa à extinção da pena de prisão a que o arguido aqui foi condenado.


***

Porque o arguido RS foi igualmente condenado na pena acessória única de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, sendo que no cumprimento daquela pena beneficia do desconto do tempo de proibição de conduzir veículos a motor que já cumpriu à ordem do Processo n.º 228/17.4PTCBR, restando-lhe apenas cumprir 9 (nove) meses de proibição, o cumprimento da predita pena acessória iniciou-se em 03/08/2020 (data da sua restituição à liberdade), pelo que o seu termo ocorrerá em 03/05/2021.

                                                             *

Apreciando a pretensão do recorrente:

Conforme resulta do artigo 69.º do CP:

<<1. É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) (…) por crimes previstos nos artigos 291º e 292º;

 (…)

2. A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão (…).

(…)

6. Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coação processual, pena ou medida de segurança.>>

Esta norma prevê a aplicação de uma pena acessória.

<<1. A sanção de proibição de conduzir veículos com motor é uma verdadeira pena acessória. Desde logo, a sua aplicação depende da gravidade dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa, e, por isso, a pena deve ser graduada no âmbito de uma moldura.

2. O pressuposto material da pena acessória é o de o exercício da condução se ter revelado especialmente censurável. Esta pena acessória exerce assim uma função de prevenção geral de intimidação (já assim, a sugestão de FIGUEIREDO DIAS, 1993: 165).>>[1].

Nas palavras do mesmo Professor a pena acessória de proibição de conduzir <<deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução (…); e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável (…). (…) então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (…). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano>>. (…)

O que importa então é que tais sanções se assumam como verdadeiras penas, indissoluvelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente, dotadas de uma moldura penal específica e permitindo assim a tarefa judicial da determinação da sua medida concreta em cada caso; (…)>>[2].

Posto isto, dúvidas não existem de que a lei determina que a pena acessória de proibição de conduzir produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e que não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força do cumprimento de pena.

Acontece que estas previsões pressupõem todo um desenrolar processual normal de condenação numa sanção acessória, subsequente trânsito e entrega da carta de condução, por um lado e, por outro, que o arguido tenha sido condenado em pena privativa da liberdade sem quaisquer exceções.

Na verdade, não são idênticas as situações em que o arguido é condenado, sem mais, numa pena de prisão a executar em regime de permanência na habitação e é condenado nesta mesma pena mas com ausências autorizadas para atividade profissional.

Ora, como resulta da sentença que procedeu ao cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado, este  foi condenado na pena única de 390 dias de prisão, restando-lhe cumprir 128 dias, pena que será executada em regime de permanência na habitação, tendo sido autorizadas ausências do condenado do local do cumprimento da pena, além do mais, pelo período de tempo estritamente necessário ao cumprimento da sua atual atividade profissional, no estrito horário normal de trabalho, de terça-feira a sábado, entre as 10H30 e as 15H30 e as 18H00 e 21H00, nas instalações da respetiva entidade empregadora (restaurante denominado (…), nas proximidades das X..., em Coimbra).

Assim sendo, tendo em conta que aquando da prolação da sentença do cúmulo (em 04/06/2020) o arguido se encontrava a cumprir a pena de 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação, desde 28/03/2020, sendo entendimento do tribunal que só após o fim do cumprimento dos dias em falta poderia o arguido cumprir os 9 meses de inibição de conduzir em que foi condenado, então, inexiste qualquer fundamento legal para que a carta de condução do arguido enviada aos presentes autos no dia 13/05/2020, tenha permanecido apreendida nos mesmos desde tal data, sob pena de o arguido cumprir duas vezes a sanção acessória e da consequente violação do princípio non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da CRP.

Acresce que, estando o arguido autorizado a ausentar-se da habitação para exercer a sua atividade profissional, então não vislumbramos qualquer impedimento para o mesmo se deslocar para o trabalho no seu veículo dentro do horário supra fixado. E se não o pôde fazer porque a sua carta estava apreendida nos presentes autos, só podemos concluir que estava a cumprir a inibição de conduzir, sob pena de assistirmos a um prolongamento e manutenção ilegal da pena acessória em que foi condenado.

Na verdade, se no regime de permanência na habitação, a autorização de ausência para atos esporádicos como uma consulta médica ou deslocação a um local determinado, não assume relevância para o cumprimento da sanção de inibição de conduzir, o mesmo já não ocorre no que concerne à autorização para o exercício da atividade profissional regular, posto que, nesta estão reunidas <<as condições pessoais e jurídicas necessárias e bastantes à prática da condução automóvel pelo condenado infractor, de modo a que a respectiva proibição possa por si ser de facto sentida como efectiva pena, como manifestação de censura comportamental do próprio Estado>>[3].

Como já ficou dito, o n.º 2 do artigo 69.º do CP faz referência à produção do efeito da proibição a partir do trânsito em julgado da decisão e o seu n.º 6 reporta-se, apenas, ao tempo em que o agente estiver privado da liberdade.

Acontece que, << a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.>>, sendo certo, no entanto, que não pode ser considerado  pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso – artigo 9.º, n.º s 1 e 2 do CC.

Assim, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, entendemos que a ratio do citado n.º 6 do artigo 69.º assenta, essencialmente, na privação total da liberdade, ou seja, pressupõe que o arguido se encontra sem possibilidade de se ausentar com regularidade do local de cumprimento da pena e o nº 2 do mesmo normativo não pode ser interpretado no sentido de ser completamente irrelevante uma remessa ou entrega da carta de condução em data anterior à do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Como se decidiu no acórdão desta Relação, de 04/12/2019, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos:

<<É indubitável que o artigo 69º, nº 2 do Código Penal estipula que a proibição de conduzir produz efeito após o trânsito em julgado da decisão, o que tem o sentido de consignar que essa pena (como, aliás, todas) só deve ser cumprida depois de a decisão transitar em julgado posto que só a partir desse evento se torna definitiva, estipulando o nº 3 do mesmo artigo e o artigo 500º, nº 2 do Código de Processo Penal que a licença de condução deve ser entregue para cumprimento da pena acessória no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado.

Não será por acaso que o artigo 9º, nº 1 do Código Civil estipula em matéria de interpretação da lei que esta “não deve cingir-se à letra lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…).

No vértice da pirâmide legislativa encontra-se a constituição que define os princípios básicos do estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

Se assim é, a conclusão de interpretação literal no sentido de que a proibição de conduzir só pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória e só pode ser imputado no seu cumprimento o tempo em que o condenado esteve privado da licença de condução depois do trânsito em julgado, tem, obviamente, que passar pelo crivo do disposto no artigo 20º, nº 4 da CRP que contempla um princípio estruturante de qualquer procedimento judicial e mormente do processo penal; o princípio do processo equitativo que implica, antes de mais, que em todos os termos do processo as partes sejam tratadas com lealdade e possam confiar na inexistência de decisões que as possam surpreender. O tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são, aliás, a base para a possibilidade de um processo equitativo com os derivados princípios do contraditório e da igualdade de armas que geralmente são salientados, mas que admite várias outras derivações, entre as quais o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira na sua CRP anotada, em comentário ao referido artigo.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) de ser um processo equitativo (due process of law – conceito importado para o nosso ordenamento jurídico através da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro de valores como a lealdade e a confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo.

(…)

Encontrar nos artigos 69º do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal motivo para divergir do exposto seria violar directamente o disposto no preceito acabado de referir e negar a validade da necessária interpretação sistemática que tem como elemento primário e primordial a Constituição.”[4]

Resta dizer que, salvo o devido respeito, não colhe o argumento do recorrido no sentido de que não ocorreu qualquer violação do direito a um processo justo e equitativo porque o recorrente tinha conhecimento das diligências com vista ao cúmulo.

Na verdade, o facto de o arguido ter conhecimento de tais diligências não anula aquele outro, também do seu conhecimento de, em 13/05/2020, ter sido remetida a sua carta de condução para os presentes autos onde permaneceu, encontrando-se o mesmo a cumprir pena desde 28/03/2020 no regime supra enunciado.

Em suma, uma interpretação literal do disposto no artigo 69.º, n.ºs 2 e 6, no sentido de que a proibição de conduzir só pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória e que não conta para o prazo da mesma o tempo em que o agente estiver privado da liberdade, sem ponderação dos factos concretos, viola o direito a um processo equitativo (consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da CRP[5]), a um processo justo e materialmente informado pelos princípios materiais da justiça.

Pelo exposto, entendemos que o cumprimento da sanção de inibição de conduzir por 9 meses em que o arguido foi condenado teve início em 13/05/2020 e terminará no dia 13/02/2021.

                                                                       *

Na procedência das conclusões do recorrente, impõe-se a revogação do despacho recorrido.

                                                          *

                                                             *

  III – DECISÃO

  Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, em conferência, na procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido, fixando-se a data de 13/05/2020 como a do início do cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de nove meses, aplicada ao arguido e cujo termo ocorrerá em 13/02/2021.

                                                                *

  Sem custas por delas estar isento o recorrido.                                                                                                                                                      *         

Coimbra, 27 de Janeiro de 2021

                

Paula Maria Roberto (relatora)

Rosa Pinto (ajunta)

                                                                                                                                                                                                                                                                 

                                                                                                                                                                                                                                 

                                                 

 

 


[1] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2008, pág. 225.
[2] Figueiredo Dias, obra citada, págs. 165 e 181.
[3] Ac. desta Relação, de 01/03/2007, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Em sentido idêntico, cfr. o acórdão da RL, de 10/11/2016, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Também consagrado no artigo 6.º da CEDH.