Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
855/23.0T8SRE-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
ESCRITURA DE MÚTUO
OUTORGANTES QUE DECLARAM AVALIZAR LIVRANÇA PREVISTA SER EMITIDA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 458.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 703.º, 1, B) E C), DO CPC
Sumário: i) Se numa escritura de mútuo, além da mutuária, os demais outorgantes se identificam e intervêm apenas como avalistas numa livrança, prevista emitir em tal contrato, e que não pode operar como título executivo, e inexistem outros elementos adicionais que permitam através das regras da interpretação dos negócios jurídicos chegar à conclusão que afinal prestaram fiança, não há título executivo contra os mesmos.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. AA e BB, residentes em ..., intentaram execução para pagamento de quantia certa, no montante de 705.435,12 €, acrescida de juros moratórios e compensatórios vincendos, com base em escritura, contra A..., com sede em ..., CC, residente em ..., DD, residente em ..., EE, residente em ... e FF, residente em ....

Para tanto alegaram no requerimento executivo que:

“1. Os Exequentes celebraram um contrato de mútuo com hipoteca com a 1ªExecutada, em 25.09.2017, conforme contrato que se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais. (DOC.01)

2. No âmbito do referido contrato de mútuo os Exequentes concederam à 1ª Executada, a seu pedido e no seu interesse, um empréstimo no montante de €600.000,00 (seiscentos mil euros).

3. Tendo o 2º, 3º, 4º e 5º Executados avalizado o referido contrato de mútuo com hipoteca.

4. No referido contrato clausulou-se, entre outras, as seguintes obrigações contratuais:

“SEGUNDA (Prazo e Reembolso)

1. O empréstimo é concedido pelo prazo de dezanove (19) meses e cinco (5) dias, com início na presente data.

2. O capital será reembolsado em nove prestações mensais, sucessivas, sendo as oito (8) primeiras prestações no valor de Setenta e três mil e oitocentos Euros (73.800,00€) e Nona (9ª) no valor de nove mil e seiscentos euros (9.600,00€), vencendo.se a primeira no trinta e um de Agosto de dois mil e dezoito e cada uma das restantes no último dia de cada mês subsequente.

(…)

TERCEIRA (Juros Remuneratórios)

1. A quantia mutuada vence juros, contados dia a dia, como remuneração da quantia mutuada, correspondentes ao valor global remuneratório de €78.000,00 (setenta e oito mil euros), para o período de duração do presente contrato.

2. Para efeito do número um e para pagamento da quantia global remuneratória de 78.000,00€ (setenta e oito mil euros), a Mutuária entregará aos Mutuantes onze (11) prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de 13.000,00€ (treze mil euros) e as restantes dez (10) no valor de 6.500,00€ (seis mil e quinhentos euros) cada, com início em vinte e cinco de Setembro de dois mil e dezassete para o NIB  ...13, de que os referidos AA e BB são titulares, junto do Banco 1..., Agência ....

3. A quantia ora acordada a título de remuneração será descontada em cada prestação a que os Mutuantes se encontram vinculados, nos termos da cláusula primeira, nas primeira 5 (cinco) prestações, entregando os Mutuantes à Mutuária o valor remanescente, mantendo-se quanto às demais prestações a obrigação de entrega prevista no número dois da presente cláusula.

4. Em caso de mora no cumprimento de qualquer obrigação ou pagamento de qualquer quantia serão devidos pela MUTUÁRIA juros moratórios calculados à taxa anual de 10% (dez por cento), que incidirá sobre o capital vencido e não pago, incluindo os juros remuneratórios capitalizados como previsto no número seguintes, sendo que os juros moratórios se vencem e são exigíveis diariamente e sem dependência de interpelação, nem aviso prévio.

5. Os Mutuantes podem capitalizar os juros remuneratórios correspondentes a períodos não inferiores a 1(um) mês, adicionando-os ao capital em dívida, para seguirem o regime deste.

5. Ademais foi estipulado que “o não cumprimento pontual de quaisquer obrigações da Mutuária assumidas pelo presente contrato produz o vencimento antecipado e a exigibilidade imediata de todas as demais obrigações, sem embargo de outros direitos conferidos por lei ou contrato, e especialmente nos seguintes casos:

a) Se não for paga alguma das prestações de capital ou de juros, no respetivo prazo, ou os juros moratórios, despesas, ou outras quantias devidas, nas datas estabelecidas.

(…)

2 O incumprimento do presente contrato confere ao Mutuante direito de exigir a totalidade das quantias devidas por força do presente contrato, incluindo a penalidade prevista no nº4 da cláusula quarta ainda as despesas judiciais e extrajudiciais, decorrentes do referido cumprimento, no montante máximo acordado de €12.000,00 (doze mil euros)”

6. No âmbito do referido contrato foi ainda nos termos na cláusula sexta, constituído hipoteca a favor dos Exequentes, do prédio urbano, sito na Rua ..., ... ou ..., freguesia ..., Concelho ..., correspondente a um Pavilhão Gimnodesportivo de cave, rés do chão, primeiro andar e logradouro, descrito na primeira Conservatória ... com o número trezentos e oitenta e seis/GG, com registo de aquisição a favor da A... pela apresentação número “trinta e um” do dia dez de abril de mil novecentos e oitenta e cinco e apresentação número “vinte e três” do dia vinte e três de dezembro de mil novecentos e oitenta e cinco, e inscrito na respetiva matriz predial urbano da mesma freguesia sob o artigo matricial ...88.

7. A 1ªExecutada cumpriu tempestivamente as cinco primeiras prestações, tendo as mesmas sido liquidadas por encontro de contas, de acordo com o número 3 da cláusula Terceira, do contrato já junto como doc.01.

8. A sexta e a sétima prestação foram liquidadas por transferência bancária na data de 30.04.2018, e não nas datas de 25.02.2018 e 25.03.2018, respetivamente, conforme contratualmente acordado.

9. A 1ªExecutada liquidou ainda a oitava, nona, décima, décima primeira e décima segunda e décima terceiras prestações e parte da prestação décima quarta.

10. Não tendo a 1ª Executada, desde a data de 22.02.2022, procedido ao pagamento de qualquer montante, seja ele a título de juros ou de capital.

11. Por conseguinte, as restantes prestações acordadas encontram-se vencidas e não pagas há mais de um ano.

12. Em 16.09.2022 os Exequentes remeteram a juízo uma notificação judicial avulsa para capitalização dos juros, conforme consta da cláusula terceira, tendo sido notificados todos os Executados.

13. Os Exequentes notificaram os Executados do incumprimento e mora do contrato,

14. Tendo sido interpelados para cumprimento do contrato.

15. E, em face da manutenção da situação de incumprimento, da resolução do referido contrato.

16. As sobreditas quantias não foram liquidadas pela parte devedora, que infra se discriminam:

A) €73.800,00 - em dívida desde 31/10/2018;

B) €73.800,00 - em dívida desde 30/11/2018;

C) €73.800,00 - em dívida desde 31/12/2018;

D) €73.800,00 - em dívida desde 31/01/2019;

E) €73.800,00 - em dívida desde 28/02/2019;

F) €73.800,00 - em dívida desde 31/03/2019;

G) €9.600,00 - em dívida desde 30/04/2019;

17. Aos valores suprarreferidos acrescem os respetivos juros à taxa 10% conforme contratualmente definido, bem como a respetiva capitalização de juros desde a data da notificação judicial avulsa para o efeitos.

18. Bem como o valor de €12.000,00 constante do número dois da cláusula sétima em caso de incumprimento, como é o caso.

19. O que totaliza a quantia em dívida, à presente data, de €704.745,72 (setecentos e quatro mil, setecentos e quarenta e cinco euros e setenta e dois cêntimos)

20. Por força do referido contrato, foi ainda subscrita uma livrança em branco, conforme disposto na cláusula oitava do contrato, tendo os aqui 2º, 3º, 4º e 5º Executados, avalizado a mesma, conforme documento que se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos. (DOC.02)

21. Encontram-se assim em dívida os Executados no pagamento do valor de €704.745,72 (setecentos e quatro mil, setecentos e quarenta e cinco euros e setenta e dois cêntimos), vencida e não paga.

22. Para a instauração da presente execução, os Exequentes procederam ao pagamento de € 51,00 (cinquenta e um euros) de taxa de justiça, constituindo essa uma despesa a relevar na execução.

23. Ao valor em dívida na presente execução acrescem juros suplementares ou compulsórios, à taxa de 5 % ao ano, nos termos do artº 13º al. d) ex vi art.° 21º nº2 do Decreto-Lei nº 269/98, de 01.09, sendo 1/2 para a exequente e 1/2 para o Cofre Geral dos Tribunais.

24. Valor que atualmente ascende a €383,00 (trezentos e oitenta e três euros).

25. Ao valor em dívida na presente execução acrescem ainda juros de mora, à taxa de 4 % ao ano, o que atualmente perfaz o montante de €306,40 (trezentos e seis euros e quarenta cêntimos.

26. Relegando-se para momento posterior, a liquidação pela secretaria dos juros

moratórios vincendos a mesma taxa legal anual de 4% e dos juros compensatórios à taxa de 5%, devidos até à data do pagamento (art.º 716 do CPC).

27. Totalizando a divida exequenda, €705.435,12 (setecentos e cinco mil, quatrocentos e trinta e cinco euros e doze cêntimos) acrescida de juros moratórios e compensatórios vincendos.

28. A dívida é certa, líquida e exequível.

29. Pelo que, se requer a execução do presente título no processo supra indicado.

30. Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exa. entenda por convenientes, requer-se a execução do património de todos os Executados para pagamento da quantia

exequenda, incluindo o prédio urbano sobre o qual os exequentes detêm uma hipoteca, bem como dos juros de mora vincendos, custas processuais e honorários do Agente de Execução.

Sobre o capital em dívida do título executivo, incidem juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, a contar desde a data neles aposta e até integral cumprimento, sendo que na presente data ascendem já ao montante de € 306,40

Foram calculados juros suplementares ou compulsórios, previstos no artigo 829º-A do CC, sendo que, na presente data ascendem ao valor de € 383,00.

Valor líquido: 704 745,72 € Valor dependente de simples cálculo aritmético: 689,40 € Total 705 435,12 €”.

Juntaram as aludidas escritura e livrança.

Antes de decidir o tribunal proferiu despacho no qual exarou constatar que o título dado à execução é um contrato de mútuo com hipoteca, sem prestação de fiança, questão já suscitada em sede de embargos do executado FF. Em conformidade determinou que os exequentes se pronunciassem quanto à eventual falta de título executivo quanto aos executados pessoas singulares.

Estes pronunciaram-se (em 9.11.2023), não defendendo que havia fiança, mas sim que a aludida escritura é um documento que importa constituição de uma obrigação pecuniária pelos outorgantes executados, que a menção ao negócio causal não deixa dúvida quanto à existência de reconhecimento de dívida por parte dos executados, documento que incorpora uma confissão de dívida nos termos do art. 485º do CC.

*

Foi, posteriormente, proferido despacho que rejeitou a execução quanto aos executados CC, DD, EE e FF, por falta de título executivo (art. 726º, nº 2, al. a), ex vi art. 734º, nº 1, do NCPC).

*

2. Os exequentes recorreram, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro na interpretação e aplicação do direito aos factos.

b) Entendeu o Tribunal recorrido, que os Recorrentes não beneficiam de título executivo por não constar no Contrato de Mútuo qualquer constituição ou reconhecimento da obrigação/dívida dos executados.

c) De acordo com o Tribunal a quo, os Recorrentes não assumiram qualquer obrigação nem prestaram qualquer garantia no contrato de mútuo, através da fiança.

d) Ora, salvo o devido respeito, tal entendimento não se pode aceitar.

e) Porque aceitá-lo, significaria admitir que os Recorridos assinem um contrato de mútuo, onde assumem responsabilidades e obrigações perante os Exequentes,

f) Que declarem prestar uma garantia,

g) Criando a expetativa nos mutuantes, ora Recorrentes, que possuem garantias de cumprimento do contrato em questão,

h) Mas nada lhes pode ser exigido, em caso de incumprimento do contrato em questão,

i) E nada lhe acontece em caso de incumprimento do contrato em questão.

j) Por um lado, os Recorridos assumem a natureza de garantes, na modalidade de fiança, no próprio contrato,

k) E adicionalmente, a natureza de avalistas através da entrega de uma livrança por si avalizada.

l) No texto do contrato de mútuo em questão são consagradas, e acordadas entre as partes, duas designações diferentes e distintas para os Recorridos, com implicações jurídicas totalmente distintas.

m) Na Cláusula Quinta do contrato em questão, ficou consagrado que “3. Ficam desde já expressamente autorizadas e aceites, sem necessidade de outro consentimento ou comunicação, as cessões da posição contratual e a cessão de créditos, total ou parcial, que os Mutuantes pretendam fazer para terceiros, e nas condições que entenderem, sem que tal diminua qualquer direito do Mutuante ou obrigação da Mutuária, Avalistas ou Garantes.

n) No número 4 da mesma cláusula consta “4. O MUTUÁRIO e os AVALISTAS e/ou Garante(s) declaram, sem reservas ou quaisquer limitações e para todos os efeitos legais e regulamentares, que expressamente renunciam a quaisquer dos seus direitos de compensação perante a entidade Mutuante e/ou perante qualquer entidade a quem o crédito seja cedido, independentemente da sua origem e/ou justificação.”

o) E, bem assim, no número 1 da Cláusula 7 quando referem “c) Se a MUTUÁRIA cessar ou interromper a sua atividade ou o negócio; ou se for sujeita a processo de insolvência, de falência ou de recuperação de empresa; ou se por qualquer motivo diminuir a solvência dela ou do Garante, ou a segurança dos créditos.”

p) E bem assim, quando foi consagrado através da cláusula 9ª nº2 do contrato em questão que, relativamente aos Executados ora Recorridos “…bem como declaram a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou benefício previsto por lei.”

q) Tal contrato de mútuo, e suas cláusulas, terão de ser analisado ao abrigo do princípio da autonomia privada e as declarações negociais dos Recorridos terão de ser interpretadas de acordo com os critérios fixados pelo artigo 236º, nº1 do Código Civil.

r) Ora de acordo com tais princípios e de acordo com o estabelecido no contrato de mútuo dado à execução nos presentes autos, apenas se pode concluir que:

i. Os Recorridos tinham intenção de assumir dívidas alheias – da A...;

ii. Os Recorridos pretenderam prestar uma garantia pessoal, equivalente à fiança;

Aos Recorridos não podiam deixar de saber que a livrança avalizada não tinha os Recorrentes como subscritores;

iii. Qualquer “bonus pater familiae” ao assinar e vincular-se ao contrato de mútuo perceberia que estava a assumir responsabilidades e obrigações pessoais pelo bom cumprimento do contrato;

s) No que resulta no estabelecimento de garantias pessoais por parte dos Recorridos no próprio contrato de mútuo, na modalidade de fiança.

t) Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 16/16/2015, processo nº1909/07.6TBVFR.P1.S, in dgsi.pt: 1 “A regra estabelecida no n.º 1 do art. 236.º é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Consagra-se uma doutrina objetivista – a teoria da impressão do declaratário – com duas excepções de natureza subjetivista: os casos em que não pode ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (art. 236.º, n.º 1, 2.ª parte), ou os casos em que o declaratário conhece a vontade real do declarante (art. 236.º, n.º 2). A interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado”[2]. Serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efetivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, a doutrina refere os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou o negócio concluído[3].”

u) Concluiu o referido Acórdão que “Neste contexto, os subscritores tinham intenção de assumir dívidas alheias – as da sociedade (1.ª Ré) de que são os únicos sócios – e a declaração escrita junta aos autos foi a forma de o 2.º Réu e a 3.ª Ré conseguirem manter as relações comerciais (fornecimento de cortiça) com a sociedade EE, que já detinha vários créditos sobre a 1.ª Ré. Tendo por referência os dizeres apostos no documento cujo teor está descrito no facto provado n.º 3, sufragamos o entendimento do acórdão recorrido, segundo o qual a expressão “aval” não foi aqui usada no seu sentido literal, mas com o significado de uma garantia pessoal equivalente à fiança. Assim, a aposição de tal garantia (aval) em escrito distinto dum título de crédito não pode constituir um aval e, quer os subscritores, quer os destinatários da declaração, enquanto pessoas com experiência em negócios, não podiam deixar de saber que não sendo a declaração aposta num título cambiário, não podia ter o significado de um aval. No condicionalismo relativo às circunstâncias em que foi redigido o mencionado escrito, julgamos que um declaratário normal compreenderia as palavras vertidas naquele documento como a assunção duma obrigação equivalente à prestação duma fiança, uma vez que o objetivo da garantia prestada era, como resulta da factualidade assente, garantir o fornecimento da matéria-prima à sociedade devedora. A seguir-se a tese do recorrente, o declarado nesse escrito pelo 2.º Réu e pela 3.ª Ré não teria qualquer sentido útil, pois a prestação de aval não fazia qualquer sentido. Ora, não é crível que estando a continuação da sua relação comercial com a empresa EE, que lhe fornecia a cortiça, dependente da prestação desta garantia, o 1.º Réu prestasse uma obrigação de garantia de aval com vício de forma.

Temos de entender, presumindo a boa fé de quem participa no tráfico jurídico, que os declarantes quiseram garantir pessoalmente as dívidas da sociedade até ao valor de 125.000,00 euros, conforme resulta do documento em litígio.

Concluímos, tal como o acórdão recorrido, que os subscritores do documento tiveram intenção, através da mencionada declaração, de assumir a posição de garantes, enquanto fiadores, pelo pagamento de fornecimentos de cortiça a favor da 1.ª Ré.”

v) Mais se diz, e reforça-se que, além das demais cláusulas constantes do contrato de mútuo “sub iudice”, que de acordo com a clausula nona os Recorridos “(...) declaram a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou benefício previsto por lei”.

w) De modo claro, e pelo teor das suas declarações, os Recorridos pretenderam renunciar ao benefício da excussão prévia,

x) Sendo que tal benefício não existe na figura do aval, mas sim da fiança.

y) No que se reforça o entendimento da presença de uma obrigação de garantia, através da modalidade da fiança, resultante do próprio contrato dado à execução,

z) Dispõe o art. 458.º do Código Civil (CC), o seguinte:

“1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.”

aa) Por sua vez, dispõe o art. 1142.º do Código Civil (CC) o contrato de mútuo “é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”

bb) Trata-se, por conseguinte, de um contrato maioritariamente solene, uma vez que se encontra sujeito a forma escrita acima de determinado montante, sendo que, nos casos de valor superior a € 25.000,00, exige-se que seja celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado. (art.1143.º do CC).

cc) No caso em concreto, tendo por referência o valor mutuado, foi o dito contrato celebrado por escritura pública, perante Notário.

dd) Resulta do art. 703.º, n.º 1, al. b) do CPC que “À execução apenas podem servir de base: b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;”

ee) O documento apresentado pelos Recorrentes, é seguramente um documento que importe constituição de uma obrigação pecuniária pelos outorgantes, Recorridos.

ff) Os termos em que o Contrato de Mútuo está redigido, fazendo menção ao respetivo negócio causal, não deixam qualquer dúvida quanto à existência de reconhecimento de dívida por parte dos Recorridos,

gg) Bem como renunciaram expressamente a qualquer oposição ou benefício.

hh) Com efeito, o contrato de mútuo foi celebrado segundo a forma legalmente prescrita, forma essa que é o modo pelo qual devem ser expressas as declarações negociais constitutivas desse contrato,

ii) Pelo que o documento dado à execução constitui um título executivo válido, tal como definido no art. 703.º do CPC e que incorpora uma confissão de dívida nos termos do art. 485º do CPC.

jj) A escritura pública seria título executivo ainda que o devedor nada tivesse dito sobre a causa da dívida, sobre se a causa da dívida tinha sido, ou não, um empréstimo particular, ou vários empréstimos particulares [11]; a pari, deve ser título executivo desde que o devedor tenha dito que a causa da dívida tinham sido vários empréstimos particulares.” (sublinhado nosso).

kk) Em abono do que tudo se deixa exposto, não é despiciendo referir, que a livrança em branco, conforme consta da cláusula oitava do contrato foi entregue aos Recorrentes pela Mutuária e por conseguinte por parte dos ora Recorridos.

ll) Sucede que,

mm) Da mesma resulta que o seu subscritor não são os Recorrentes, conforme consta do contrato de mútuo por si assinado, constituindo uma violação do contrato de mútuo por si subscrito.

nn) Por outro lado, o Recorrido FF não assinou a referida livrança.

oo) Não tendo assinado a mesma, nem escrito no seu verso “Dou o meu aval ao subscritor”, ou algo equivalente.

pp) Não respeitando assim os requisitos objetivos do aval, conforme consta do contrato de mútuo por si assinado, constituindo uma violação do contrato de mútuo por si subscrito.

qq) A livrança entregue aos Recorrentes, por parte da Mutuária e por conseguinte dos Recorridos (seus representantes legais) não constitui uma obrigação/promessa de pagamento a estes, mas sim à Banco 2...,

rr) Pois a Banco 2... é que é o subscritor da referida livrança.

ss) Conforme consta do próprio texto da livrança, constituindo uma violação do contrato de mútuo por si subscrito.

tt) Apesar de o título em causa ter sido entregue pela Mutuária aos aqui Recorrentes e, como tal, serem os mesmos detentores e legítimos possuidores.

uu) O Contrato de mútuo constitui título executivo perante os executados, cujas obrigações de garantia vêm assumidas resultam do próprio contrato, enquanto fiança.

vv) Termos em que, deve a sentença ora recorrida ser revogada, por incorreta interpretação e aplicação do direito, sendo substituída por acórdão que decida pelo deferimento do requerimento executivo.

Tudo, com as demais consequências legais.

Fazendo-se, assim, a costumada JUSTIÇA!

3. O executado FF contra-alegou, concluindo que:

A. O recurso a que ora se responde vem interposto da sentença que indeferiu o pedido formulado nos presentes autos contra o Apelado, por se considerar que “… os exequentes não beneficiam de título executivo quanto aos executados CC, DD, EE e FF.”.

B. Os Apelantes centraram o seu recurso na questão de saber se o Tribunal a quo incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito aos factos, ao considerar que os Apelados não se obrigaram a garantir o cumprimento das obrigações emergentes no Contrato quando, no ponto de vista dos primeiros, estes assumiram obrigações pessoais de garantia do cumprimento do Contrato, na modalidade de fiança.

C. Sucede que não assistente qualquer razão aos Apelantes, porquanto a interpretação e aplicação do direito aos factos foi corretamente realizada pelo Tribunal a quo.

D. Com efeito, a interpretação que os Apelantes fazem da vontade negocial dos Apelados expressa no Contrato é uma verdadeira falácia e não tem qualquer respaldo quer na letra do Contrato, quer na vontade real manifestada pelos Apelados, que em momento algum pretenderam constituir fiança para garantia do cumprimento das obrigações que emergiam do Contrato para a A....

E. Também terá necessariamente de improceder o argumento de que, na ausência de constituição de fiança, os Apelantes ficam impossibilitados de exercer o seu direito de crédito, na medida em que, conforme resulta do Contrato e dos próprios autos, os Apelantes beneficiam de hipoteca nos presentes autos contra a A... – garantia real essa que não é de forma alguma afetada pela improcedência dos presentes autos quanto ao Apelado.

F. Por fim, no que às questões atinentes às vicissitudes da livrança diz respeito, cumpre notar que as mesmas não foram objeto de apreciação por parte do Tribunal a quo na sentença em apreço, na medida em que o título executivo nos presentes autos é o Contrato, e não a livrança.

G. Neste sentido, por extravasar o objeto da sentença em apreço, que incidiu apenas sobre a questão atinente à inexistência de título executivo contra o Apelado, não poderá o Tribunal ad quem conhecer das questões invocadas pelos Apelantes quanto à livrança.

H. Em face do exposto, impõe-se que o Tribunal ad quem mantenha a decisão do Tribunal a quo de que nos presentes autos não existe título executivo contra o Apelado, absolvendo-o integralmente dos mesmos.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO APLICÁVEIS, deverá ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida, assim se cumprindo o Direito e fazendo a costumada Justiça!

II - Factos Provados

A factualidade a considerar é a que decorre do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC).

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- A escritura pública é título executivo contra os recorridos.

2. Na decisão recorrida exarou-se o seguinte:

“O título dado à execução, conforme expressamente se consigna no campo próprio do requerimento executivo, é uma escritura publica de contrato de mútuo com hipoteca, por força do qual aqueles emprestaram à executada pessoa colectiva a quantia de 600.000,00€, que aquela se obrigou a reembolsar, acrescida dos juros convencionados, em 9 prestações mensais

e sucessivas, sendo as primeiras 8 no montante de 73.800,00€ e a 9.ª de 9.600,00€, vencendo-

se a 1.ª no dia 31/08/2018 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.

No que concerne aos demais executados, é alegado no requerimento executivo que os mesmos “avalizaram” o referido contrato de mútuo com hipoteca (art. 3.º) e ainda que, “[p]or força do referido contrato, foi ainda subscrita uma livrança em branco, conforme disposto na cláusula oitava do contrato, tendo os aqui 2º, 3º, 4º e 5º Executados, avalizado a mesma, conforme documento que se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.” (art. 20.º).

Com o requerimento executivo, os exequentes juntaram a escritura pública de mútuo com hipoteca e um impresso de livrança não preenchido, do qual constam apenas assinaturas no verso e anverso, sendo que no primeiro constam ainda os dizeres “Dou o meu aval ao subscritor” antes de cada uma das 3 assinaturas.

(…)

Descendo ao concreto, temos por assente que o título dado à execução é uma escritura pública de mútuo com hipoteca, já que, pese embora dúvidas não subsistissem da mera leitura do requerimento executivo (não só na exposição fáctica como na discriminação do título no campo próprio), os próprios exequentes reiteram-no no requerimento apresentado em 09/11/2023, onde afirmam, entre o mais, que o contrato de mútuo com hipoteca exequendo “não deixa qualquer dúvida quanto à existência da constituição de obrigação pecuniária parte dos executados pessoas singulares” (art. 2.º).

Significa isto que, pese embora seja junto com o requerimento executivo um formulário de uma livrança não preenchida – mas cujo pacto de preenchimento está inserto no aludido contrato de mútuo - não é esse o título dado à execução. Nem podia sê-lo, por lhe faltarem (todos os) requisitos essenciais e por isso, não produzir efeitos enquanto tal (ex vi artigos 75.º e 76.º da Lei Uniforme relativa a Letras e Livrança, estabelecida pela Convenção assinada em Genebra, em 7 de Junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de Junho de 1934.).

Sintetizando, os presentes autos de execução estribam-se num contrato de mútuo exarado por notário, que assim ascende à categoria de título executivo mercê do disposto no art. 703.º, n.º 1, al. b) do CPC. E é à luz deste preceito que se impõe aferir se existe título executivo quanto aos executados pessoas singulares.

Dispõe o art. art. 703.º, n.º 1, al. b) do CPC que, à execução podem servir de base, “os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”.

Além dos pressupostos formais inerentes à competência da entidade emitente, e cuja verificação nestes autos não é questionável por se trata de documento exarado por notário, exige o legislador que o mesmo seja constitutivo de uma obrigação ou recognitivo de uma obrigação pré-existente.

Para se aferir se o titulo comporta tal conteúdo, importa não perder de vista que, na interpretação e qualificação dos contratos, relevará exclusivamente a vontade das partes segundo as regras estatuídas nos art. 236.º a 239.º do C. Civil. No domínio da interpretação das declarações negociais, rege a doutrina da impressão do destinatário, vertida no artigo 236º do Código Civil. Segundo a mesma, “releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer” (Teoria Geral do Direito Civil, Mota Pinto., Coimbra Editora,3ª edição, pág. 448).

Ora, analisada a escritura pública dada à execução, constata-se, com linearidade, que a mesma não reúne tais predicados relativamente aos executados pessoas singulares, mas tão-somente quanto à pessoa colectiva executada, enquanto mutuária.

Resulta do documento que CC, DD e EE outorgam por si e na qualidade de membros da Direcção da A..., A... e FF outorga apenas em nome pessoal. Antes mesmo do clausulado, é dito que “entre os primeiros outorgantes como MUTUANTES credores, a associação A... como MUTUÁRIA devedora e proprietária HIPOTECANTE, e os terceiros e representado do quarto outorgante em seu nome pessoal, como AVALISTAS, celebra o presente contrato de mútuo com hipoteca e aval que se rege pelas cláusulas seguintes:”.

Não é de desprezar a referência aos outorgantes não mutuários como “avalistas” e a referência ao contrato como “contrato de mútuo com hipoteca e aval” uma vez que, ainda que o nomem iuris escolhido pelos contraentes não seja vinculativo para o tribunal, não deixa de constituir um elemento interpretativo da vontade das partes, tanto mais que, nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (cf. art. 238.º, n.º 1 do C. Civil).

É consabido que o aval é uma garantia típica dos títulos de crédito, consistente no negócio jurídico cambiário pelo qual um terceiro garante o seu pagamento por parte de um dos subscritores da letra ou da livrança (artigos 30.º e 31.º da LULL). Através dele, introduz-se um novo valor patrimonial que acresce ao valor patrimonial do direito de crédito que é próprio da operação, garantindo-o, estando, em causa, não uma garantia subsidiária, mas cumulativa, respondendo o avalista solidariamente (art. 47.º § 1 da LULL), na medida em que, com a sua prestação, presta uma garantia cambiária consistente no próprio pagamento da livrança e não uma obrigação de cumprimento da obrigação avalizada.

Por isso mesmo, a responsabilidade do avalista é autónoma, não estando sequer dependente da validade da obrigação garantida (art. 32.º § 2 da LULL), nem mesmo da existência da obrigação do afiançado, razão pela qual responde da “mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, como refere o citado art.º 32.º, § 1, da LULL, ou seja, o avalista ocupa posição igual àquele por quem deu o seu aval.

O avalista é, assim, responsável “nos termos da medida típica da operação avalizada, não considerada em concreto, mas de acordo com a sua aparência” (Pereira de Almeida, Direito Comercial III, Títulos de Crédito, 1986/87, pág. 222), gerando uma obrigação autónoma que nasce, vive e subsiste independentemente daquela, abstraída do regime substantivo que eventualmente exista entre o avalista e o avalizado - cf. Oliveira Ascensão, “Direito Comercial”, Títulos de Crédito, vol. III, p. 170 e Prof. Vaz Serra, RLJ, ano 103, p. 429, nota 2.

Posto isto, sabendo-se que o aval é uma garantia exclusiva do direito cambiário e não existe senão quando concedido num título de crédito, a denominação dada pelas partes ao negócio (“contrato de mútuo com hipoteca e aval”) é tecnicamente errada, já que não é possível avalizar directamente um contrato de mútuo com hipoteca.

Como assim, tal referência só pode ser compreendida num de dois sentidos: ou as menções a “aval” e “avalistas”, reportam-se à livrança que é referida no texto contratual e junta ao requerimento executivo (mas que não foi preenchida e executada), ou devem ser entendidas, de harmonia com as regras de interpretação das declarações negociais a que se fez alusão supra, como reportadas a uma distinta garantia pessoal, nomeadamente uma fiança, ainda que impropriamente denominada (é a situação sobre a qual versa o Ac. do STJ de 16/06/2015, proc. 1909/07.6TBVFR.P1.S1, em www.dgsi.pt).

Neste caso entendemos que será de afastar a segunda possibilidade, aliás não alegada pelos exequentes quando convidados a pronunciarem-se quanto à eventual falta de título por não ter sido prestada fiança. Basta ver que, à excepção da Claúsula Oitava (que mais não é do que um pacto de preenchimento da livrança), não existe uma outra disposição contratual que possa ser interpretada pelo declaratário médio com o sentido de que os executados pessoas singulares garantem o bom e pontual pagamento da quantia mutuada. Tais executados não são mutuários e não garantem, por força daquele negócio jurídico, o cumprimento das obrigações da mutuária.

Pelo contrário, avulta do texto contratual que todas as obrigações que dele emanam repercutem-se exclusivamente na esfera jurídica da pessoa colectiva, enquanto mutuária. As escassas referências aos outorgantes singulares (limitadas às Cláusulas Quinta, n.ºs 2 e 4 e Oitava) referem-se à a sua qualidade de “avalistas” e não podem senão ser compreendidas em articulação com o aval que terão prestado numa livrança em branco. Título que, como já dito, não deram à execução.

Resulta, assim, evidente que foi apenas através da concessão de aval à subscritora que os exequentes pretenderam materializar a garantia a prestar pelos executados pessoas singulares e não no contrato exequendo.

Diga-se ainda que entendemos não ser defensável a argumentação dos exequentes quando convocam o disposto no art. 458.º do C. Civil, já que não está em causa uma declaração unilateral dos executados pessoas singulares, muito menos em que prometam uma prestação ou reconheçam uma dívida, mas sim um contrato de mútuo. Não há qualquer similitude com a questão decidida pelo Ac. do STJ proferida no processo 6329/16.9T8VNF-C.G1.S1, citado pelos exequentes.

Assim se conclui que, no perímetro do título executivo (que delimita objectiva e subjectivamente a acção executiva), não se inscreva a constituição ou reconhecimento da obrigação exequenda por parte dos executados pessoas singulares.

Destarte, e pelas razões expostas, os exequentes não beneficiam de título executivo quanto aos executados CC, DD, EE e FF.”.

Os recorrentes discordam pelos motivos constantes das suas conclusões de recurso. Afigura-se, porém, que se decidiu bem. Vejamos então.

Principiamos pela observação que os exequentes no título executivo tanto dizem que os recorridos avalizaram o referido contrato de mútuo (com hipoteca) – ponto 3., como afirmam que os mesmos avalizaram uma livrança subscrita em branco, conforme imposto na cláusula 8ª do contrato de mútuo – ponto 20., o que causa alguma admiração, por tal dualidade e anormalidade.

Mas tal como vem bem explicado na decisão do tribunal a quo isso nunca pode acontecer num contrato de mútuo, só fazendo sentido jurídico em sede de direito cambiário. Não interessa, porém, considerar se estamos perante um título executivo, assente num título de crédito – art. 703º. Nº 1, c), do NCPC -, já que, em bom rigor, a referida livrança nunca poderia ser reconhecida com tal característica, como a mesma decisão apelada demonstrou, mas também porque os próprios exequentes já disseram nos autos, repetidamente, que a execução não tem por base a dita livrança.

Assim, é irrelevante o que os mesmos alegam nas suas conclusões de recurso k), e kk) a tt), sobre este âmbito e vicissitudes da livrança.

Igualmente merece a nossa adesão, a argumentação jurídica da 1ª instância no sentido de que inexiste título executivo à sombra do art. 703º, nº 1, b), do NCPC, sustentado no que se dispõe no art. 458º do CC acima transcrito.

Ao contrário do que os apelantes afirmam nas suas conclusões de recurso z) a jj), os recorridos na referida escritura de mútuo não produziram uma declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida. Efectivamente o mútuo foi prestado unicamente à 1ª executada A..., cabendo só a ela a obrigação de pagar o mesmo, nos termos contratuais, sem que os recorridos tivessem assumido, fora do aval concedido, outra qualquer obrigação.

Prosseguindo, entramos agora no cerne da questão a de saber se o aval dado pelos apelados pode ser convertido em “fiança”, como afincadamente defendem os recorrentes.

Bom a 1ª observação a fazer é a de que quando os exequentes foram ouvidos quanto à eventual falta de título executivo, relativamente aos ora recorridos, pronunciaram-se (em 9.11.2023), mas nunca defenderam que havia fiança (como se indicou no Relatório supra). Só agora, em recurso, parece terem, convenientemente, descoberto que afinal há fiança !  

Cremos que não.

Como hipotizou a 1ª instância, ou as menções a “aval” e “avalistas”, reportam-se à livrança que é referida no texto contratual e junta ao requerimento executivo (mas que não foi preenchida e executada), ou devem ser entendidas, de harmonia com as regras de interpretação das declarações negociais, como defendem os recorrentes, como reportadas a uma fiança, ainda que impropriamente denominada (é a situação sobre a qual versa o Ac. do STJ de 16.6.2015, Proc.1909/07.6TBVFR.P1.S1, em www.dgsi.pt, e que os apelantes invocam a seu favor).

Aí se refere que:

A regra estabelecida no n.º 1 do art. 236.º é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Consagra-se uma doutrina objetivista – a teoria da impressão do declaratário – com duas excepções de natureza subjetivista: os casos em que não pode ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (art. 236.º, n.º 1, 2.ª parte), ou os casos em que o declaratário conhece a vontade real do declarante (art. 236.º, n.º 2).

A interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado”[2].

Serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efetivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, a doutrina refere os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou o negócio concluído[3].

O documento a interpretar está descrito no ponto 3 da matéria de facto e corresponde ao documento de fls. 53 dos autos de arresto apensados. Tem data de 2.9.2004. Nele, o 2. º Réu, como sócio-gerente da 1.ª Ré, e a 3.ª Ré, como sócia da 1.ª R., declararam que: “Dão o seu aval pessoal como garantia às Firmas ‘EE, Sociedade Unipessoal, Ld.ª’ e a ‘EE ,,,, Ld.ª’, em todas as compras feitas ou a efectuar pela ‘BB, … de ..., Ld.ª’ e tituladas por factura até ao montante de cento e vinte e cinco mil euros”;

O contexto factual da emissão da referida declaração escrita e da sua subscrição pelos dois únicos sócios da sociedade devedora, foi o descrito no ponto 15 da matéria de facto: «O documento referido no Ponto 3 supra foi exigido pelo sócio gerente da “EE, Ld.ª” para continuar a fornecer cortiça até ao montante de 125.000 €».

O 2.º Réu e a 3.ª Ré eram os únicos sócios da 1.ª Ré (facto provado n.º 1).

Neste contexto, os subscritores tinham intenção de assumir dívidas alheias – as da sociedade (1.ª Ré) de que são os únicos sócios – e a declaração escrita junta aos autos foi a forma de o 2.º Réu e a 3.ª Ré conseguirem manter as relações comerciais (fornecimento de cortiça) com a sociedade EE, que já detinha vários créditos sobre a 1.ª Ré.

Tendo por referência os dizeres apostos no documento cujo teor está descrito no facto provado n.º 3, sufragamos o entendimento do acórdão recorrido, segundo o qual a expressão “aval” não foi aqui usada no seu sentido literal, mas com o significado de uma garantia pessoal equivalente à fiança. 

Assim, a aposição de tal garantia (aval) em escrito distinto dum título de crédito não pode constituir um aval e, quer os subscritores, quer os destinatários da declaração, enquanto pessoas com experiência em negócios, não podiam deixar de saber que não sendo a declaração aposta num título cambiário, não podia ter o significado de um aval.

No condicionalismo relativo às circunstâncias em que foi redigido o mencionado escrito, julgamos que um declaratário normal compreenderia as palavras vertidas naquele documento como a assunção duma obrigação equivalente à prestação duma fiança, uma vez que o objetivo da garantia prestada era, como resulta da factualidade assente, garantir o fornecimento da matéria-prima à sociedade devedora.

 A seguir-se a tese do recorrente, o declarado nesse escrito pelo 2.º Réu e pela 3.ª Ré não teria qualquer sentido útil, pois a prestação de aval não fazia qualquer sentido. Ora, não é crível que estando a continuação da sua relação comercial com a empresa EE, que lhe fornecia a cortiça, dependente da prestação desta garantia, o 1.º Réu prestasse uma obrigação de garantia de aval com vício de forma. Temos de entender, presumindo a boa fé de quem participa no tráfico jurídico, que os declarantes quiseram garantir pessoalmente as dívidas da sociedade até ao valor de 125.000,00 euros, conforme resulta do documento em litígio.

Concluímos, tal como o acórdão recorrido, que os subscritores do documento tiveram intenção, através da mencionada declaração, de assumir a posição de garantes, enquanto fiadores, pelo pagamento de fornecimentos de cortiça a favor da 1.ª Ré.”.

Note-se, todavia, e decisivamente que a situação fáctica entre o nosso caso e o analisado em tal aresto é bem diferente. Neste houve um apuramento de diversa factualidade (após julgamento, no âmbito de uma acção declarativa) e circunstâncias, bem diferentes daquele, pois o nosso caso, além de factualmente diferente, emerge tão-só de uma escritura, sem mais, com cláusulas contratuais indiscutidas, sem qualquer outro elemento ou circunstâncias adicionais esclarecedoras. Sem os tais coeficientes que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efetivo, teria tomado em conta, e que no dito aresto vêm exemplificados.

Entendemos, pois, que no nosso caso será de afastar a interpretação a que se chegou em tal acórdão.

Assim, resulta da escritura de mútuo, e antes mesmo do clausulado propriamente dito, que entre os primeiros outorgantes como MUTUANTES credores, a associação A... como MUTUÁRIA devedora e proprietária HIPOTECANTE, e os terceiros e representado do quarto outorgante em seu nome pessoal, como AVALISTAS – os ora apelados CC, DD, EE e FF - se celebra o presente contrato de mútuo com hipoteca e aval que se rege pelas cláusulas seguintes. Ou seja, os recorridos são desde logo e apenas indicados como avalistas.

Outras menções no contrato de mútuo aos avalistas constam da cláusula QUINTA (Condições gerais)

(…)

2. A Mutuária e os Avalistas também se obrigam a:

a) Pagar os impostos e os encargos relativos a este contrato, à livrança, às garantias e registos, bem como a despesas, judiciais ou extra-judiciais, que o Mutuante faça para assegurar ou obter o pagamento dos seus créditos.

b) Respeitar as condições das garantias prestadas para segurança dos créditos e não praticar qualquer ato que as possa desvalorizar ou afetar, outrossim reforçá-las se o Mutuante o exigir; e, caso haja bens dados de garantia, não os onerar, locar ou ceder, nem prometer esses atos.

c) Dar imediato conhecimento ao Mutuante de toda e qualquer diligência administrativa, judicial ou extrajudicial de que sejam citados ou interpelados e que possa, de alguma forma, afetar ou pôr em risco o seu património, o cumprimento das obrigações e as garantias.

d) Não realizar qualquer fusão, cisão, cessação ou suspensão da atividade, ou outra alteração que possa ocasionar relevante diminuição patrimonial ou da segurança dos créditos.

e) Fornecer prontamente aos Mutuantes, sempre que ela solicite, os documentos e informações de carácter económico, patrimonial, contabilístico e jurídico que lhes respeitem; e tratando-se de sociedade, também os seus relatórios e contas, as atas dos seus órgãos, registos e certificações.

3. Ficam desde já expressamente autorizadas e aceites, sem necessidade de outro consentimento ou comunicação, as cessões da posição contratual e a cessão de créditos, total ou parcial, que os Mutuantes pretendam fazer para terceiros, e nas condições que entenderem, sem que tal diminua qualquer direito do Mutuante ou obrigação da Mutuária, Avalistas ou Garantes.

4. O MUTUÁRIO e os AVALISTAS e/ou Garante(s) declaram, sem reservas ou quaisquer limitações e para todos os efeitos legais e regulamentares, que expressamente renunciam a quaisquer dos seus direitos de compensação perante a entidade Mutuante e/ou perante qualquer entidade a quem o crédito seja cedido, independentemente da sua origem e/ou justificação.

E dela nada se extrai de relevante para concluir que poderemos estar perante uma fiança.

E da cláusula OITAVA (Livrança e aval)

1. A MUTUÁRIA entrega uma livrança por si subscrita em branco, com o aval a seguir previsto, aos Mutuantes, para titular as obrigações emergentes deste contrato e de eventuais alterações, e para assegurar o seu pagamento, sem que tal constitua novação, e desde já autoriza o Mutuante a preencher essa livrança, em qualquer momento, inclusive através de representante, e nela inscrever as quantias que lhe sejam devidas, as datas e os locais de emissão, de vencimento e de pagamento, mesmo à vista, bem como as c|áusulas "sem despesas" e "sem protesto" e "bom para aval", ainda que por outras expressões equivalentes, além de a poder descontar, endossar e utilizar como bem entender e for do seu interesse, ficando, desde já autorizado que, em caso de cessão dos créditos emergentes deste contrato, o Mutuante pode entregar à cessionária esta livrança e a cessionária fica expressamente autorizada a preenchê-la e utilizá-Ia nos exatos termos da autorização prevista na presente cláusula e concedida pela MUTUÁRIA e pelos AVALISTAS aos MUTUANTES.

2. Os AVALISTAS dão o seu aval nessa livrança e autorizam o seu preenchimento, nas condições referidas no número anterior, e para nela ser inscrita a cláusula "bom para aval", vinculando-se solidariamente com a MUTUÁRIA pelo pagamento de todas as sobreditas responsabilidades, por qualquer prazo, prorrogação ou renovação; bem como declaram a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou beneficio previsto por lei.

Trata-se da obrigação contratual do mútuo dos aí identificados como avalistas darem o seu aval e do pacto de preenchimento.

E, mais uma vez, dela nada se extrai de relevante para concluir que poderemos estar perante uma fiança.

Constata-se, pois, à excepção da claúsula 8ª (que mais não é do que um pacto de preenchimento da livrança), que não existe uma outra disposição contratual que possa ser interpretada pelo declaratário médio com o sentido de que os ora recorridos não mutuários garantem, fora do âmbito do aval, o cumprimento das obrigações da mutuária.

Pelo contrário, avulta do texto contratual que as obrigações que dele emanam repercutem-se exclusivamente na esfera jurídica da 1ª executada A..., enquanto mutuária. As escassas referências aos outorgantes singulares (limitadas às referidas cláusulas 5ª, nºs 2 a 4 e 8ª) referem-se à sua qualidade de “avalistas” e não podem senão ser compreendidas em articulação com o aval que terão prestado numa livrança em branco.

Os apelantes ainda objectam (nas p) e v) a x) das suas conclusões) que foi consagrado na mencionada cláusula 8ª, nº 2, 2ª parte, do contrato de mútuo, que os apelados declararam a sua expressa renúncia a qualquer oposição ou benefício previsto por lei, ou seja, renunciaram ao benefício da excussão prévia, porque tal benefício não existe na figura do aval, mas sim da fiança.

É uma petição de princípio, dado que havia que demonstrar primeiro que foi contratada fiança pelos recorridos no mútuo, para se concluir depois que o texto da cláusula equivale a renúncia ao benefício da excussão prévia.

Aparentemente pelo teor literal os recorridos só renunciaram a qualquer oposição/benefício no âmbito do aval dado, pois a epígrafe da dita cláusula 8ª reporta-se expressamente à livrança e ao aval. Não havendo elementos para permitir concluir que os apelados concederam a garantia de fiança, não é possível afirmar-se que renunciaram ao benefício da excussão prévia.

Resulta, assim, para nós que foi apenas através da concessão de aval à subscritora que os exequentes materializaram a garantia a prestar pelos executados ora recorridos e não através de constituição por estes de qualquer obrigação, no contrato exequendo, de uma fiança. Não existe, por isso, o título executivo referido no art. 703º, nº 1, b), do NCPC.

Duas notas mais.

As exequentes não estão destituídas de garantias, pois dispõem da hipoteca.

A falha que estes autos demonstram em relação aos recorridos, terá ocorrido na emissão da livrança, que, embora se possa dever a vários motivos não apurados, se deverá também aos próprios exequentes. Logo, sibi imputet.

(…)

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pelos recorrentes.

*

                                                                    Coimbra, 23.4.2024

                                                                    Moreira do Carmo

                                                                    Luís Cravo

                                                                    Vítor Amaral