Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
277/06.8GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
COMPETÊNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
ÂMBITO DO RECURSO
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Processo no Tribunal Recurso: Águeda
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Legislação Nacional: ARTIGOS 3º DO DECRETO-LEI 2/98; 123º Nº 9 DO CÓDIGO DA ESTRADA; – ARTIGO 402º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I. – Aquele que, estando habilitado com carta de condução da subcategoria A1 (motociclos de cilindrada não superior a 125 cm3 e de potência máxima até 11 Kw), for encontrado a conduzir veículos automóveis, não comete o crime de condução sem habilitação legal – artigo art. 3º do Decreto-Lei 2/98 – mas sim o a contra-ordenação do art.123º nº 9 do Código da Estrada;
II. – A existência ou ausência de um título habilitador bastante e a inerente existência de um risco acrescido para a circulação rodoviária devem constituir-se como o traço distintivo para a condenação por uma contra-ordenação de um infractor que sendo detentor de título legalmente bastante para conduzir determinada classe de veículos, conduza outra de classe diferente, para os quais não tem legal habilitação
III. – Não ocorre concurso aparente entre o disposto no art. 3º nº 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3.1 e no art. 123º nº 9 do Código da Estrada, já que as normas em apreço se propõem sancionar condutas distintas;
IV. As contra-ordenações, atendendo às regras de competência funcional, aliadas à especificidade do respectivo processamento apenas podem ser conhecidas num processo de natureza criminal, em caso de concurso real com um crime ou em caso de conexão de processos, quando um agente deva responder por crime, num deles e, no outro, por contra-ordenação, com origem nos mesmos factos.
V. - Fora das condições referidas no item antecedente não é adequado conhecer de factos que a lei prevê e pune como contra-ordenação num processo de natureza criminal
VI. Se em sede de recurso o tribunal superior concluir que os factos que ditaram a decisão impugnanda constituem contra-ordenações deve determinar o arquivamento do processo para que o Ministério Público, nos termos do art. 40º nº 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações, venha a extrair certidão dos elementos pertinentes e a remetê-los, à entidade competente para que esta proceda ao adequado processamento da contra-ordenação
VII. - O Código de Processo Penal consagra o princípio do conhecimento amplo do recurso – artigo 402º do Código de Processo Penal;
VIII. – Em congruência com o mencionado principio e, por aplicação da regra da reformatio in melius, pode o arguido vir a ser absolvido de um crime por que vinha condenado, não obstante não ter havido recurso dessa matéria, já que os poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do direito só são limitados pela proibição da reformatio in pejus.
IX. - O tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem reformatio in pejus, mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o princípio da verdade material e não há que impor entraves formais para evitar o erro judiciário
Decisão Texto Integral: Acordam – em conferência – na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
O arguido A.....,foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3.1, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa à razão diária de € 4,00 (quatro euros) o que perfaz o total de € 520,00 (quinhentos e vinte euros).
*
Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. 0 arguido, aqui recorrente, foi condenado pela prática , como autor material, de um crime de condução de veiculo automóvel sem habilitação legal, praticado no dia 29 de Março de 2006, na pena de 130 dias de multa à razão diária de 4 Euros, o que perfaz o total de 520 Euros.
2. Ficou provado sob o ponto 7 da sentença recorrida que o arguido nunca tinha sido condenado por um ilícito da mesma natureza, e sob o nº 9, que o arguido possui carta de condução de veículo automóvel categoria B desde 20/0412006.
3. No que respeita aos factos não provados, foi referido que não se provaram as condições económicas e pessoais do arguido.
4. 0 arguido quando foi julgado pelo crime de condução sem habilitação legal, já era possuidor de carta de condução á um ano e meio.
5. Com a aplicação de uma pena em processo penal, a mesma deve cumprir finalidades de prevenção geral e especial (art. 40 n° 1 CP)
6. A pena tem como medida e limite inultrapassável a culpa do agente, Principio da Unilateralidade da culpa (Art. 40 n° 2 do Cod. Penal)
7. 0 Mmo Juiz aquo, devia ter aplicado o disposto no artigo 72 nº 1 do Código penal, atenuando especialmente a pena ao agente.
8. E deveria tê-lo feito, porque a circunstancia de o mesmo já ser portador de carta de condução á um ano e meio quando foi julgado, demonstra por parte do agente um acto demonstrativo de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação do mal do crime, visto que da sua conduta não resultaram danos para terceiros.
9. Esta circunstância, diminui de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
10. Como refere a Jurisprudência do STJ a este Propósito" A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena, vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas (Vide Acórdão do Stj de 25/05/ 2005, www.dgsi.pt).
11. Tendo em conta a jurisprudência supra referida, e transportando-a para o caso concreto, depreende-se que a imagem global do facto, tendo em conta nomeadamente os factos dados como provados sob os nºs 8 e 9, impõe-se uma atenuação especial da pena.
12. Daí, que o Mmo Juiz deveria ter aplicado o artigo 72 n° 1 do Código Penal, com uma aplicação da pena tendo em conta os limites previstos no art.73n° 1.
13. Deveria pois, dando cumprimento ao estatuído no aft.72 nº 1 e 73 nº 1 limitar a pena de multa ao mínimo legal.
14. Do mesmo modo ao aplicar uma multa muito além da culpa do agente, violou o artigo 40 n° 2 do Código Penal.(Principio da Unilateralidade da culpa).
15. 0 Mmo juiz também não teve em conta as situações económicas do arguido, limitando-se a referir na sua fundamentação que “não obstante o arguido se encontrar desempregado, deve ter alguma forma de garantir a sua subsistência”.
16. E neste sentido condenou um desempregado numa multa de 520 Euros, valor este superior ao salário mínimo nacional.
17. Desta forma, pôs em causa a subsistência deste cidadão e violou o princípio da dignidade da pessoa humana
18. Consequentemente, foi violado o art. 1 da Constituição da Republica e o art. 47 n° 2 do Código Penal.
Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida, sendo o arguido A..... condenado apenas numa pena de multa reduzida ao mínimo legal.
Vossas Excelências, farão desta forma JUSTIÇA
*
Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:
1. A titularidade de carta de condução de motociclos e a obtenção de carta de condução de veículos poucos dias depois dos factos não constituem fundamento para atenuação especial da pena pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal.
2. Outrossim não são fundamentos para a atenuação especial prevista no art. 72º do Código Penal a circunstância de serem desconhecidos ao arguido antecedentes criminais de natureza idêntica aos factos dos autos.
3. As supra referidas circunstâncias relevam como atenuantes gerais e como tal foram consideradas na fixação da medida concreta da pena de multa.
4. A pena de multa de 130 dias, ligeiramente acima do ponto médio da moldura penal abstracta, afigura-se correcta e adequada, reflectindo as finalidades apontadas à pena criminal e obedecendo ao disposto no art. 71º do Código Penal.
5. A circunstância do arguido saber conduzir é de reduzida relevância, face à natureza do tipo legal de crime de condução sem habilitação legal – crime de perigo abstracto.
6. A fixação do montante diário da multa em € 5 obedeceu ao disposto no art. 47º nº 2 do Código Penal.
7. Uma pena de multa cujo montante diário fosse fixado em valor inferior não representaria, para o condenado, qualquer sacrifício real, assim se frustrando, por completo, as finalidades prosseguidas pela pena criminal.
Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso e manter-se a douta sentença recorrida.   
Nesta instância, a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido de que o recurso merece provimento, por razões diversas das invocadas pelo Recorrente devendo os autos ser reenviados para novo julgamento, nos termos do art. 426° do Código de Processo Penal para que se apurem elementos sobre a situação sócio-económica do arguido.
*
Colhidos os vistos legais e realizada audiência, cumpre decidir, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (artigos 419.º, n.º4, “a contrario”, e 421.º, n.º1, do mesmo diploma legal).

II – FUNDAMENTAÇÃO
Como consta da acta da audiência procedeu-se à documentação das declarações prestadas oralmente, nos termos dos arts. 363º e 364º nº 1 do Código de Processo Penal, o que permite a este tribunal conhecer de facto e de direito conforme o art. 428º nº 1 do Código de Processo Penal, tudo, de resto, sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo diploma.
É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação com a especificidade supra apontada quanto ao local da especificação dos pontos de facto (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).
Nesta perspectiva, a única questão a decidir prender-se-ia com a medida da pena, sem embargo da necessidade de apreciar a existência do vício a que alude a aI. a) do nº 2 do art. 410° do Código de Processo Penal invocado pela Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta.
*
Apesar do supra exposto, importa não olvidar que o art. 402º do Código de Processo Penal consagra o princípio do conhecimento amplo do recurso e que, por aplicação da regra da reformatio in melius pode o arguido vir a ser absolvido de um crime por que vinha condenado, não obstante não ter havido recurso dessa matéria, já que os poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do direito só são limitados pela proibição da reformatio in pejus[i]. Efectivamente, o tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem reformatio in pejus, mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o princípio da verdade material e, quando está em jogo a liberdade do cidadão cuja inocência é protegida constitucionalmente até ao trânsito em julgado da condenação, não há que impor entraves formais para evitar o erro judiciário[ii].
Ora, no caso dos autos, por força desta regra, a única questão a decidir prende-se com a verificação dos elementos constitutivos do crime de condução sem habilitação legal, com base nos factos considerados assentes em 1ª instância e que o Recorrente não pôs em crise.
***
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:
A) DOS FACTOS PROVADOS:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
No dia 29 de Março de 2006, pelas 17H30, na Rua …., o arguido circulava ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula OL-05-95;
O arguido não era possuidor de carta de condução da categoria “B” ou de qualquer outro título que o habilitasse a conduzir veículos automóveis;
O arguido conhecia as características do veículo, bem como as da via por onde circulava;
Sabia ser necessário possuir licença de condução para conduzir o mencionado veículo naquele local;
Ainda assim, quis conduzir;
Actuou de forma livre e determinada, sabendo ser o seu comportamento proibido e por lei punido;
O arguido não tem averbada ao seu registo criminal qualquer condenação;
O arguido é titular de carta de condução da categoria A1 (motociclos) desde 19/12/2003;
O arguido é titular de carta de condução da categoria “B” desde 20/04/2006;
O arguido tem averbada ao seu registo criminal uma condenação, proferida em 12/10/2006, transitada em julgado em 27/10/2006, pela prática, em 23/01/2005, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo art.º 204.º do Cód. Penal, na pena de 400 dias de multa à razão diária de € 1,50.
B) DOS FACTOS NÃO PROVADOS:
Não há factos não provados, nem se provaram quaisquer outros com relevo para a decisão da causa, designadamente quanto às condições pessoais e económicas do arguido..
Com base nesses factos, a sentença fundamenta a existência do crime de desobediência da seguinte forma:
Da Responsabilidade Penal:
O art.º 121.º, n.º 1, do Cód. da Estrada, só permite a condução de um veículo a motor na via pública a quem esteja legalmente habilitado para o efeito, determinando o art.º 3.º, n.º 1, do Dec.-Lei 2/98, de 3/1, que “Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”. E o n.º 2 que “se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”.
Um dos pressupostos objectivos deste crime encontra-se, desde logo, preenchido: a condução de veículo em via pública – a via por onde o arguido circulava é, claramente, nos termos do art.º 1.º, al. v), do Cód. da Estrada, uma “via de comunicação terrestre afectada ao trânsito público”.
O veículo que o arguido conduzia é qualificado pela lei como veículo automóvel (cfr. art.º 105.º do Cód. da Estrada), pelo que, para que alguém o possa conduzir na via pública, é necessário que possua a respectiva carta de condução (art.ºs 121.º, n.º 1, 122.º, n.º 1, e 123.º, todos do Cód. da Estrada), o que não sucede com o arguido.
Quanto ao lado subjectivo do tipo, o arguido bem sabia ser necessária a carta de condução para que pudesse conduzir o veículo dos autos na via pública, tendo, portanto, pleno conhecimento da proibição e punição por lei da sua conduta. Querendo conduzir da forma como o fez, sabendo que tal lhe era vedado por lei, actuou com dolo directo (art.º 14.º, n.º 1, do Cód. Penal, ex vi art.º 8.º do mesmo código).
Cometeu, assim, o arguido, um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei 2/98, de 3/1..
***
De acordo com a matéria de facto provada na data da prática dos factos, em 29.3.06, o arguido era titular de carta de condução da categoria A1 (motociclos) desde 19/12/2003 (facto 8), porém, não era possuidor de carta de condução da categoria “B” (facto 2), necessária para a condução de veículos automóveis ligeiros de passageiros, como aquele que o arguido conduzia.
Perante esta factualidade a questão que logo ocorre é a de saber se o possuidor de uma carta de condução para determinado tipo de veículos comete o crime previsto e punido pelo art. 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3.1, quando conduz veículo de outro tipo, para o qual não tem habilitação legal para conduzir.
A questão, como é óbvio, deve ser colocada porque nos termos do disposto no art. 123º nº 9 do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 44/05 de 23.2, em vigor na data da prática dos factos:
“Quem conduzir veículo de qualquer das categorias ou subcategorias referidas nos nºs 1 e 2 para a qual a respectiva carta de condução não confira habilitação é sancionado com coima de € 500 a € 2500”.
Se atendermos a que o nº 1 do art. 123º refere que a carta de condução habilita a conduzir uma ou mais categorias de veículos que descreve (entre elas das categorias A e B) e que o nº 2 alude à subcategoria A1, verificamos que com a sua conduta – ao conduzir veículo da categoria B quando apenas era titular de carta de condução da categoria A1 – o arguido, ora Recorrente praticou a dita contra-ordenação p. e p. pelo nº 9 do art. 123º do Código da Estrada.
Então, como se conjuga esta disposição com o determinado no art. 3º nº 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3.1, que estipula:
“1- Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”.
“2- Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”. 
Para quem sustente a existência de concurso aparente de normas a solução decorre directamente do disposto no art. 134º nº 1 do Código da Estrada:
“Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente é punido sempre a título de crime…”.
Mas essa solução é demasiado simplista:
Deixa sem explicação porque é que as alterações ao Código da Estrada[iii] posteriores ao Decreto-Lei 2/98 de 3.1 mantiveram a consagração como contra-ordenação punível com coima da condução com carta de condução que apenas habilita para a condução de veículos de categoria diferentes, quando, a entender-se que existe concurso aparente a norma que consagra essas contra-ordenações deixa absolutamente de ter campo de aplicação.
É manifesto que a opção por uma solução de concurso aparente de normas peca por não presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” como comanda o art. 9º nº 3 do Código Civil.
A solução pretendida pelo legislador é distinta.
Note-se que, nos termos do art. 122º nº 1 do Código da Estrada quem tem documento que o habilita a conduzir automóveis, motociclos, triciclos e quadriciclos é possuidor de «carta de condução»[iv].
Para esse efeito, submeteu-se a exame de condução, o qual inclui uma prova teórica e uma prova das aptidões e dos comportamentos (art. 7º nº 2 do Decreto-Lei 45/05 de 23.2).
No caso concreto, o possuidor de carta de condução da categoria A fica isento da sujeição a prova teórica para a obtenção de outra categoria ou subcategoria B, como se alcança da conjugação do nº 4 do art. 7º do Decreto-Lei 45/05 com o disposto no ponto 1.2 do Anexo II a esse diploma. Ou seja, ao ora Recorrente era-lhe legalmente reconhecida correspondência à aptidão teórica para conduzir veículos da categoria B, faltando-lhe apenas a aprovação na prova de aptidões e comportamentos.
Do supra exposto, resulta que a lei discrimina de forma clara e marcada o comportamento daquele que conduz sem ter qualquer título que o habilite a conduzir e que merece ser criminalmente sancionado, daqueloutro que, habilitado com «carta de condução» a conduzir determinadas categorias de veículos, conduz veículo de categoria ou subcategoria diferente.
Trata-se de cidadão habilitado a conduzir mas que não possui os requisitos necessários à condução de determinada categoria ou subcategoria de veículos. Justifica-se que o seu comportamento seja sancionado, porém, como decorre da lei, com um ilícito de mera ordenação social.
O traço distintivo faz-se, assim, pela existência ou ausência de um título habilitador bastante e inerente existência de um risco acrescido para a circulação rodoviária. É esta a posição assumida pelo Tribunal Constitucional quando a propósito da proporcionalidade e compatibilidade com a dignidade humana do sancionamento criminal da condução sem habilitação legal previsto pelo art. 3º nº 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3.1 que sustenta, afirma que “é aliás este o traço distintivo … quando se confronta com … os casos em que somente é sancionado com uma contra-ordenação quem, embora detendo título legalmente bastante para conduzir determinada classe de veículos, conduz outros de classe diferente, para os quais não tem legal habilitação. É que, como desde logo parece claro, nestes casos há, ao menos, uma aprendizagem quanto à circulação de veículos e uma certificação – esta por parte do Estado – do conhecimento das regras da circulação rodoviária, o que diminui acentuadamente o factor de insegurança que legitimamente se pode suscitar relativamente a quem não possui algum daqueles requisitos”[v].
*
Do supra exposto resulta não existir concurso aparente[vi] entre o disposto no art. 3º nº 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3.1 e no art. 123º nº 9 do Código da Estrada, já que as normas em apreço se propõem sancionar condutas distintas[vii].
Com a conduta considerada assente o arguido, ora Recorrente terá cometido a contra-ordenação p. e p. pelo art. 123º nº 9 do Código da Estrada.
“O processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas, ressalvadas as especialidades do presente diploma”, conforme estipula o artigo 33º do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei 433/82 e sucessivamente alterado pelos Decretos-Lei 356/89, 244/95 e Lei 109/01.
Em termos de competência em razão da matéria dispõe o artigo 34º nº 1 do mesmo diploma que a competência pertencerá às autoridades determinadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações.
Por sua vez, o artigo 169º nº 1 do Código da Estrada define a autoridade administrativa competente para o processamento das contra-ordenações rodoviárias.
Nos termos do artigo 38º nº 1 do RGCO, quando se verifique concurso de crime e contra-ordenação ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contra-ordenação, o processamento da contra-ordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal. Nos termos do nº 3 quando o Ministério Público arquivar o processo criminal mas entender que subsiste a responsabilidade pela contra-ordenação, remeterá o processo à autoridade administrativa competente.
Por sua vez, o processamento das contra-ordenações rodoviárias, inserido no Título VIII do Código da Estrada, pressupõe que ao agente seja feita a comunicação da infracção, artigo 175º, com a informação das sanções aplicáveis e da possibilidade de pagamento voluntário da coima, concedida pelo artigo 172º nº 1, pelo mínimo, prazo e modo de pagamento.
Donde decorre, que pelas regras da atribuição de competência funcional, aliadas à própria especificidade do processamento das contra-ordenações, estas apenas podem ser conhecidas num processo de natureza criminal, em caso de concurso real com um crime ou em caso de conexão de processos, quando um agente deva responder por crime, num deles e, no outro, por contra-ordenação, com origem nos mesmos factos.
Fora destas condições, num processo de natureza criminal, não se pode conhecer de factos que a lei prevê e pune como contra-ordenação.
Se o Ministério Público após analisar a situação considerasse que a infracção não constituía crime ordenaria a devolução dos autos à autoridade administrativa, por força do nº 2 do art. 40º do RGCO.
O facto de só em sede de recurso se ter concluído que a infracção em causa não constitui crime não justifica procedimento diferente, devendo aplicar-se a aludida norma com as devidas adaptações: o Tribunal limita-se a determinar o arquivamento do processo crime, abrindo-se vista ao Ministério Público a quem cabe, nos termos do art. 40º nº 2 do RGCO o poder/dever de extrair certidão dos elementos pertinentes, remetendo-os à entidade competente para o adequado processamento da contra-ordenação[viii].
Assim se entendendo, operou-se a suspensão do prazo de dois anos de prescrição do procedimento contra-ordenacional em matéria estradal (art. 188º do Código da Estrada) por seis meses (art. 27º nº 1 al. b) e nº 2 do RGCO).
***
Face ao exposto, conclui-se:
- Ao conduzir um veículo automóvel ligeiro estando habilitado com carta de condução da subcategoria A1 (motociclos de cilindrada não superior a 125 cm3 e de potência máxima até 11 Kw) o arguido cometeu a contra-ordenação do art.123º nº 9 do Código da Estrada, e não o crime do art. 3º do Decreto-Lei 2/98.
- Não sobejando qualquer relação de concurso que justifique o julgamento da contra-ordenação pelo Tribunal, deve determinar-se o arquivamento do processo crime, cabendo ao Ministério Público, nos termos do art. 40º nº 2 do RGCO, o poder/dever de extrair certidão dos elementos pertinentes, remetendo-os à entidade competente para o adequado processamento da contra-ordenação.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação na procedência do recurso, embora com fundamentos totalmente distintos dos alegados e em revogar a sentença recorrida, que se substitui por decisão de arquivamento do processo crime, devendo em primeira instância seguir-se os trâmites supra definidos.

[i] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.03, no BMJ 429, pg. 501 e de 19.10.2000, no proc. 2803/00-5, em Sumários dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça –Secções Criminais, Ano 2000, pg. 184 e Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed. 2007, pg.s 79 e 86 a 87. 

[ii] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.3.06, no proc. 06P547, em www.dgsi.pt

[iii] V. também o art. 123º nº 9 do Código da Estrada na redacção do Decreto-Lei 265-A/01 de 28.9

[iv] Documento distinto da «licença de condução» (art. 122º nº 2 do Código da Estrada).

[v] Acórdão do Tribunal Constitucional 337/02, de 10.7.02, no proc. 98/2002, em www.tribunalconstitucional.pt; no sentido, de que a conduta em análise constitui contra-ordenação e não crime cfr. também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.4.07, proc. 0647206, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Francisco Marques Vieira, “Direito Penal Rodoviário – Os Crimes Dos Condutores”, Univ. Católica, Porto, 2007. pg.s 168 e 169.  

[vi] Concurso ideal heterogéneo que se verifica “quando exista unidade de acção, mas pluralidade de normas jurídicas violadas” (Prof. Eduardo Correia, “Direito Criminal, vol II, pg. 198)

[vii] Neste sentido, Francisco Marques Vieira, “Direito Penal Rodoviário – Os Crimes Dos Condutores”, Univ. Católica, Porto, 2007. pg. 203.

[viii] Em sentido semelhante, o supra citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.4.07.