Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
265/09.2T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
REPOSIÇÃO NATURAL
INDEMNIZAÇÃO
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
Data do Acordão: 01/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 562, 566, 762 CC
Sumário: I. Do confronto do artigo 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, se conclui que no nosso ordenamento jurídico se encontra consagrado o princípio da reposição natural, traduzido no dever que impende sobre o lesante, de reconstituir a situação anterior à lesão.

II. A indemnização em dinheiro tem carácter subsidiário, tendo lugar apenas nas situações excepcionalmente previstas no n.º 1 do artigo 566.º: i) quando seja inviável a reconstituição da situação anterior à lesão; ii) quando não repare integralmente o dano; iii) ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor

III. No nosso ordenamento jurídico, o princípio da reposição natural encontra-se estabelecido no interesse de ambas as partes, devedor e credor, daí decorrendo as seguintes consequências: i) se o credor reclama a reposição natural, o devedor só pode contrapor-lhe a indemnização pecuniária caso aquela seja impossível ou resulte excessivamente onerosa para ele, devedor; ii) se o devedor pretende efectuar a reposição natural, o credor apenas poderá opor-se com fundamento na impossibilidade fáctica ou na circunstância da reconstituição in natura não reparar todos os danos.

IV. A possibilidade de exigência do “custo da reparação” a título indemnizatório, não se encontra prevista na nossa ordem jurídica.

V. Tendo o lesado iniciado a reparação do veículo nas suas próprias instalações, decorridos dois dias úteis após a comunicação do acidente à seguradora, provando-se que esta pretendia peritar e reparar, às suas ordens e expensas, o veículo numa oficina por si garantida, terá que se concluir que a conduta do lesado inviabilizou a possibilidade de reposição natural por parte da seguradora, não lhe assistindo o direito a exigir a título de indemnização, o pagamento do “custo da reparação”.

VI. Tal indemnização apenas seria viável, caso se verificasse um atraso na resposta por parte da seguradora, susceptível de ser considerado violação do dever de diligência (actualmente consagrado no art. 36.º do DL 291/2007, de 21.08), corolário do princípio geral de boa fé, devendo nessa eventualidade o lesado notificar a seguradora, dando-lhe um prazo razoável para o cumprimento da obrigação a que estava adstrita, com a admonição de que, caso incumprisse, assumiria a reparação, exigindo mais tarde o pagamento do respectivo preço a título de indemnização.

VII. Nessas circunstâncias específicas, poderia equacionar-se a legitimação do afastamento do princípio da primazia da reconstituição natural, por excessiva onerosidade, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, traduzida numa injustificada espera, susceptível de causar outros danos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
T (…), Lda, pessoa colectiva n.º 500 289 107, com sede (…) , intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra Companhia de Seguros (…), SA, pessoa colectiva n.º ..., com sede (…) Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 19.329,74, a titulo de indemnização.
Alegou a Autora em síntese, que um dos seus veículos foi embatido por um veículo conduzido por um segurado da Ré, com culpa exclusiva deste, daí decorrendo prejuízos no montante peticionado.
Devidamente citada, contestou a Ré, por impugnação e excepção.
Alega em síntese que: a A. nunca lhe participou o acidente dos presentes autos, apenas a ela se tendo dirigido pela primeira vez, em 1 de Junho de 2007, sendo que anteriormente não lhe solicitou qualquer peritagem dos danos do veículo; após aquela comunicação a Ré tomou conhecimento que o veiculo já se encontrava reparado, não sendo possível efectuar-se a peritagem dos danos, nem era já possível à Ré escolher uma das oficinas para si garantidas, nomeadamente, algumas delas concessionárias e representantes oficiais da marca do veículo.
Foi proferido despacho saneador, com definição dos factos assentes e organização da base instrutória, conforme consta de fls. 143 e seguintes, não tendo sido deduzidas reclamações.
Procedeu-se à audiência de julgamento, na sequência da qual se decidiu a matéria de facto, nos termos constantes do despacho de fls. 179, que não foi objecto de reclamação.
Foi proferida sentença, onde se julgou totalmente improcedente a acção, e se absolveu a Ré do pedido.
Não se conformando, apelou a Autora, apresentando alegações, nas quais formaliza as seguintes conclusões:

1. De acordo com a matéria dada como provada, ficou indubitavelmente provada legitimidade de A. e Ré, o facto de ter ocorrido um acidente de viação, a circunstâncias de modo e tempo em que se produziu esse acidente de viação, a responsabilidade da Ré quanto a esse acidente, os prejuízos referentes à reparação, desvalorização e à paralisação do veículo da A..

2. Ficou ainda provado, com interesse específico para a análise do presente recurso, que a Ré, até à presente data, não ressarciu a autora de qualquer quantia relativa aos danos causados pelo embate, bem como que a autora notificou a ré, e, 16.11.06, para esta efectuar a peritagem ao veículo e ainda que, sem que a ré tivesse diligenciado em tempo, a autora ordenou uma peritagem técnica para avaliação dos custos de reparação.

3. A A. e ora recorrente logrou provar todos os factos que fundamentavam a sua pretensão.

4. Não se encontra provado nem sequer alegado, que tenha a ora recorrida, nem que fosse por uma só vez, respondido a qualquer das missivas que lhe foram dirigidas pela recorrente, nem à de 16.11.2006, nem à de 01.06.2007, nem posteriormente e por qualquer modo ou forma.

5. Encontra-se provado que a Ré e ora recorrida nunca remeteu à A. e ora recorrente qualquer carta, faz ou correio electrónico, e que nunca exigiu à recorrente proceder a uma peritagem própria.

6. A sentença é bem clara ao dar como provada toda a matéria alegada pela A. e ora recorrente e, subsequentemente, a subsumir aos factos o direito aplicável, nomeadamente quanto à responsabilidade da Ré.

7. A aliás douta sentença recorrida apenas diverge daquilo que a A. e recorrente entende como boa aplicação do direito, quando, a partir do último parágrafo da folha nº 7 da decisão, analisa – erradamente, defende a recorrente – a questão do tempo que a A. levou a peritar e reparar o seu veículo.

8. Nunca a A. impediu que a Ré procedesse à peritagem, uma vez que a convidou expressa e atempadamente para o fazer. A Ré nunca marcou qualquer dia para proceder a essa peritagem, nunca enviou qualquer perito para proceder à mesma, quer antes, quer depois da reparação do veículo, nem nunca a A. impediu a Ré de proceder à mesma.

9. Verifica-se assim que existiu um total e manifesto desinteresse da Ré na realização da peritagem e posterior reparação, o que por si só impediria que o tribunal a quo pudesse decidir como decidiu, absolvendo a Ré de todo o pedido.

10. Não se compreende nem se consegue fundamentar à face da lei e da jurisprudência a afirmação constante da fundamentação da douta sentença, segundo a qual “(…) qualquer processo de sinistro leva o seu tempo, sendo pouco razoável, que em face de uma qualquer ausência de resposta, ou falta de comunicação com a seguradora responsável, se inviabilize uma peritagem e analise dos danos sofridos”.

11. Nunca a Ré solicitou por qualquer forma, seja verbal, escrita em carta, fax, correio electrónico a realização de uma peritagem.

12. A A. e ora recorrente procedeu de forma exemplar, correcta e honesta, informando a Ré imediatamente após o acidente, solicitando a realização de uma peritagem e só depois de constatar o silêncio da Ré ordenou a reparação do mesmo.

13. A A. é uma pequena empresa transportadora que se insere num mercado que é reconhecidamente difícil, em que os custos de exploração são extremamente elevados e não pode, nem podia na altura do acidente, permitir que um seu veículo estivesse paralisado e incapacitado para a sua actividade por um, dois, três ou quatro anos.

14. O veículo da A. ficou impossibilitado de circular, em consequência directa do acidente e consequentemente impossibilitado de prestar serviços ao seu proprietário, entre a data do acidente e a data de conclusão da sua reparação.

15. A verba peticionada a esse respeito decorre da aplicação da taxa de imobilização diária (€ 220,84) para veículos de peso bruto entre 26 e 40 toneladas afectos ao serviço internacional, conforme melhor se alcança pela tabela de paralisações para o ano de 2006, e que foi resultado do acordo realizado entre a ANTRAM e a APS, sendo que o conjunto circulante da A. tinha a devida licença de transporte internacional.

16. Se a A. houvesse procedido conforme foi decidido pelo tribunal a quo, ou seja, aguardando pacientemente por um contacto da Ré (o qual até à presente data não ocorreu), reclamaria à data de hoje, mil trezentos e noventa e seus (1396) dias de paralisação, o que à taxa de € 220,84 diários, implicaria que a Ré tivesse de pagar, só a título de paralisação, entenda-se, a quantia de € 308.292,64 (trezentos e oito mil, duzentos e noventa e dois euros e sessenta e quatro cêntimos), o que constituiria um manifesto abuso de direito.

17. Ao ordenar a reparação do veículo uma semana após o acidente e depois de ter expressamente avisado a Ré quer das consequências do mesmo, quer da necessidade de realização da peritagem, sem que esta houvesse respondido, a A. agiu não apressadamente, mas de boa fé, reduzindo ao mínimo o montante a pagar por esta a título de paralisação.

18. Nunca a Ré se dirigiu à A. solicitando a marcação de peritagem, nem nunca a Ré manifestou por qualquer modo a vontade ou decisão de proceder ela própria á reparação em oficina da sua escolha.

19. A Ré nada fez para fazer vingar ou executar a prevalência da reconstituição natural, antes primou por uma omissão que ditou inapelavelmente a decisão da A. em proceder à reparação do seu veículo.

20. A reparação ficou mais barata porque foi realizada nas instalações oficinais da A., com a necessária baixa de custos com pessoal, maquinaria e utilização de peças usadas, e, sobretudo, pelo facto de dessa forma não haver lugar à aplicação do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), que era à data do acidente de 21%, pelo que se pode concluir que a reparação foi bastante menos dispendiosa do que se fosse realizada noutra qualquer oficina, quer do representante da marca, quer em oficina independente.

21. Deveria assim concluir-se que a A., ao optar pela reparação nas suas instalações oficinais, permitiu precisamente a reconstituição natural, ao invés de a impedir.

22. O valor em dinheiro pedido pela A. apenas pretende ressarcir os custos suportados com essa reparação.

23. A obrigação de reparar um veículo do sinistrado cabe àquele que em função do risco ou da culpa, provada ou presumida, é responsável pela reconstituição natural.

24. A restauração natural não é possível se o lesado se adiantou na reparação, substituindo-se ao obrigado, caso em que o lesado só pode pedir a respectiva indemnização em dinheiro.

25. Se o lesante não diligenciar pela reparação do veículo, deve ser condenado a entregar ao lesado a quantia necessária para a sua efectivação.

26. A aliás douta sentença errou ao dar ao artº 562º do C.C. uma compreensão em que a reconstituição natural apenas pode ser feita pelo lesante e não pelo lesado, com a posterior e consequente condenação no pagamento da respectiva verba.

27.O mesmo sucede quanto à não aplicação do disposto no artº 566º, nº 2 em detrimento do disposto no nº 1 do mesmo diploma.

28. Mas mesmo o nº 2 levaria à conclusão óbvia que o ressarcimento do lesado, in casu a A., tem precisamente como medida o valor da reparação, da desvalorização e paralisação, as quais correspondem integralmente à diferença entre a sua situação antes de ocorrer o acidente e a data actual.

29. A reconstituição natural, no presente caso, concretiza-se no pagamento do valor da reparação, da desvalorização e paralisação.

30. A douta sentença recorrida viola assim os artigos 342º, 483º, 487º, 562º e 566º do C.C. e com a matéria de facto dada como provada teria necessariamente de condenar a Ré no pedido da A., in totum, uma vez que se teria obviamente de concluir que o ressarcimento do lesado, in casu a A., tem precisamente como medida o valor da reparação, da desvalorização e paralisação, as quais correspondem integralmente à diferença entre a sua situação antes de ocorrer o acidente e a data actual.
A Ré apresentou contra-alegações, onde preconiza a manutenção do julgado, alegando nomeadamente que a Autora iniciou a reparação do veículo, no terceiro dia útil após a notificação da Ré.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se, face à reparação efectuada pela própria autora, sem a realização de prévia perícia pela ré, é devida indemnização por parte desta.

2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante provada, não impugnada:

1) A autora é proprietária do veículo pesado com a matrícula ...IV (camião-grua).
2) No dia 15 de Novembro de 2006, ocorreu um embate envolvendo o veículo referido em A) e o conjunto circulante com as matrículas ...PR/C- ....
3) Nas circunstâncias de tempo referidas em B) o condutor do camião-grua identificado em A) encontrava-se estacionado, quando o condutor do conjunto circulante, por motivos que se desconhecem, e sem que nada o fizesse prever, lhe embateu.
4) O conjunto circulante com as matrículas ...PR/C- ..., havia transferido a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação para a ré, através da apólice n.º ....
5) A ré, até à presente data, não ressarciu a autora de qualquer quantia relativa aos danos causados pelo embate referido em B).
6) Em consequência do embate referido em B) a reparação do veículo referido em A) foi concluída em 21 de Dezembro de 2006, inclusive.
7) O conjunto circulante identificado em A) tem a devida licença de transporte internacional.
8) O embate referido em B) ocorreu pelas 23h00, na EN-1,junto ao nó de ligação da IP-5/IC-25, frente ao Restaurante Cubatas, Albergaria-a-velha,
9) Onde o veículo identificado em A) se encontrava em frente ao restaurante.
10) A autora notificou a ré, em 16.11.06, para esta efectuar a peritagem ao veículo referido em A);
11) Sem que a ré a tivesse diligenciado em tempo, a autora ordenou uma peritagem técnica para avaliação dos custos de reparação;
12) Determinou a reparação do veículo, que se iniciou em 21 de Novembro de 2006 inclusive.
13) Em consequência, directa do embate referido em B) ocorreram os seguintes danos materiais no veículo identificado em A): destruição da grelha centro; destruição da estrutura da fixação da grelha centro; destruição do amortecedor esquerdo da grelha centro; destruição do suporte do amortecedor; destruição da válvula de 4 vias; destruição do amortecedor frente esquerdo da cabine; destruição do tablier esquerdo destruição do tablier direito; destruição do tablier centro; destruição do pára-choques; destruição do suporte lateral esquerdo do pára-choques; empeno do radiador de água do motor; empeno da estrutura frente da cabine; empeno do painel frente em chapa da cabine; empeno dos pilares de fixação de ambas as portas; empeno da porta esquerda; empeno do piso frente esquerdo da cabine; empeno do sistema de suporte dos pedais; fracturado receptáculo da óptica esquerda; empeno ligeira da longarina esquerda do chassis; pintura das partes sinistradas, que foram objecto, quer de reparação, quer de substituição;
14) Tendo a autora dispendido na sua reparação o valor de € 9.254.50, valor sem IVA, atento o facto de a reparação ter ocorrido nas instalações oficinais desta.
15) O veículo identificado em A) valia, à data do embate referido em B), a quantia de € 42.500,00;
16) Tendo este, com a reparação em consequência do embate referido em B), sofrido uma desvalorização de € 2.125,00.
17) Em consequência do embate referido em B) o veículo referido em A) ficou impossibilitado de circular, e consequentemente impossibilitado de prestar serviços ao seu proprietário, entre a data do referido embate e a data de conclusão da sua reparação referida em F).
18) Em 1 de Junho de 2007, mediante fax, a A. enviou nessa data, uma carta datada desse dia e uma outra datada de 16/11/2006;
19) Após a recepção deste fax, a ré aguardou então alguns dias à espera que a sua segurada lhe participasse o acidente em causa nos presentes autos e;
20) Como tal tardasse, em 21 de Junho de 2007, a ré enviou uma carta à sua segurada, (…)” a solicitar-lhe que lhe participasse o sinistro em apreço;
21) Entretanto, a ré contactou a autora e, soube que o veículo desta já havia sido reparado há muito tempo;
22) E por carta de 6 de Julho de 2007, a ré comunicou à autora que já não lhe era possível atender a reclamação que esta lhe havia feito em 1/6/07;
23) Só posteriormente a estes factos é que a segurada da ré, por fax de 17 de Julho de 2007, participou o embate a esta.
24) A ré pretendia peritar e reparar, às suas ordens e expensas, o veículo identificado em A), numa oficina por si garantida, nomeadamente concessionárias e representantes oficiais da marca deste veículo e próximas da sede da autora e que lhe ofereciam todas as garantias de condições técnicas de prestarem um serviço de qualidade, rápido e eficaz a um preço justo e no mais curto prazo de tempo.

3. Fundamentos de direito
3.1. A primazia da reconstituição natural e a consequente subsidiariedade da obrigação de indemnizar
Dispõe o artigo 562.º do Código Civil: «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação
Prescreve o n.º 1 do artigo 566.º do mesmo diploma legal: «A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor
Do confronto dos normativos transcritos, se conclui que no nosso ordenamento jurídico se encontra consagrado o princípio da reposição natural.
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[1], estabelece-se como princípio geral, o dever de reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano.
Como exemplo da aplicação do princípio da reposição natural, referem os autores citados, o concerto de um automóvel danificado em acidente.
Mais referem o princípio de que «a indemnização em dinheiro (…) tem carácter subsidiário», tendo lugar apenas nas situações excepcionalmente previstas no n.º 1 do artigo 566.º: quando seja inviável a reconstituição da situação anterior à lesão, quando não repare integralmente o dano ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor[2].
E concluem os mesmos autores que: «o fim precípuo da lei nesta matéria é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes».
No mesmo sentido, escreve Almeida Costa[3], questionando-se: «Poderá o credor da indemnização opor-se à reconstituição natural que o devedor pretenda efectuar, optando pela indemnização pecuniária?».
E a resposta negativa, decorre dos fundamentos que o autor citado adianta: «Em certos sistemas - por exemplo, o do Cód. Civ. italiano (art. 2058) , a restauração natural constitui um direito do credor, embora com limites, quer dizer, está consagrada no seu interesse, pelo que o mesmo credor pode renunciar a essa forma de indemnização, preferindo uma indemnização pecuniária. Afigura-se, porém, que a nossa lei estatuiu uma so1ução diversa. É no interesse de ambas as partes e como modo normal de indemnização que a restauração natural se encontra estabelecida. Portanto: se o credor reclama a restauração natural, o devedor só pode contrapor-lhe a indemnização pecuniária se aquela for impossível ou resultar excessivamente onerosa para ele, devedor; e, da mesma sorte, se o devedor pretende efectuar a restauração natural, também o credor apenas poderá opor-se com fundamento na referida impossibilidade fáctica ou na circunstância da reconstituição “in natura” não reparar todos os danos»[4].
No mesmo sentido, veja-se a posição do Professor Paulo Mota Pinto[5]:
«Esta prioridade de um ressarcimento in natura ao credor; diversamente da execução espe­cífica, está subordinada (além de aos restantes requisitos da responsabilidade civil) às exigências previstas no artigo 566.°, n.º 1, ou seja, à sua possibilidade, suficiência e não excessiva one­rosidade para o devedor, mas é uma prioridade objectiva, isto é, que se impõe ao credor e ao devedor, não sendo disponível pelo primeiro. Impõe-se ao devedor, que só pode con­trariá-la invocando as circunstâncias previstas no artigo 566.°, n.º 1: mostrando que a recons­tituição natural não é possível ou que é excessivamente onerosa para ele, pois o credor pode ter, e frequentemente terá, interesse em que a indemnização tenha lugar in natura.
Mas impõe-se em geral também ao credor, que não pode exigir imediatamente uma indemnização por equivalente, só o podendo fazer se (de entre as circunstâncias previstas no artigo 566.°) a reconstituição natural não for possível ou, sobretudo, se não reparar integral­mente os danos».
Aderindo a esta posição doutrinária, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 30.05.2006[6], cujo sumário se transcreve:

Da articulação dos arts. 562º e 566º, nº 1 do CC, resulta a primazia da chamada reconstituição natural sobre a indemnização em dinheiro. A ideia de restauração natural é estabelecida tanto no interesse do credor como no interesse do devedor da obrigação.

As limitações recíprocas fixadas no nº 1 do art. 566º citado, a favor de ambas as partes, pressupõem que tanto o credor tem a faculdade de exigir a restauração natural contra a vontade do devedor, como, inversamente, pode este prestá-la mesmo em oposição à vontade daquele. Trata-se de um princípio que pode ser afastado pelo acordo dos interessados.[7]
Aproximando-nos da situação concreta em discussão nos autos, vemos que a autora reparou o veículo nas suas oficinas, sem a prévia peritagem da ré seguradora, e sem a escolha por parte desta, da oficina para a realização da reparação, exigindo depois o pagamento do “custo da reparação”.
Vejamos a posição do Professor Paulo Mota Pinto sobre esta matéria[8]: «Quanto à possibilidade de exigência do “custo da reparação” a título indemnizató­rio, ela não se encontra prevista na nossa ordem jurídica. O credor pode sempre exi­gir a própria realização coactiva da prestação, nos termos dos artigos 817.° e segs., e, a nosso ver, quando peça indemnização pode igualmente reclamar o ressarcimento na forma específica, sujeito aos limites do artigo 566.°, n.º 1. Mas não existe entre nós possi­bilidade de exigir, em vez da própria realização coactiva da prestação ou da indemnização em via específica, um ressarcimento correspondente aos custos da reparação do objecto da prestação realizada (salva a faculdade que o credor tem, nos termos do artigo 828.°, de requerer, em execução, que o facto fungível seja prestado por outrem à custa do devedor)
Conclui o professor citado, que o lesado terá, pois, de optar entre reclamar a realização coactiva da prestação ou a “indemnização em via especifica” e, apenas no caso de se verificarem as circunstâncias do artigo 566.°, n.º 1 (quando seja inviável a reconstituição da situação anterior à lesão, quando não repare integralmente o dano ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor), poderá exigir uma indemnização em dinheiro.
Encontra assim acolhimento na doutrina e na jurisprudência citadas, a síntese proposta no parecer junto aos autos, subscrito pelo Professor António Pinto Monteiro, onde conclui que: i) a reparação impõe-se à vontade do lesado; ii) não pode o lesado optar pela indemnização em dinheiro, em vez da reparação do veículo; iii) não pode converter-se o lesante, obrigado à reparação do veículo (reconstituição natural), em mero devedor da importância necessária a essa reparação; iv) a prioridade da reconstituição natural implica que o lesante não pode ser remetido ao papel de quem simplesmente “paga a factura”; v) é o lesante quem deve encarregar-se da reparação, efectuando-a ele próprio, ou mandando efectuá-la, pois é nisso que consiste a reconstituição natural; vi) cabe ao devedor a escolha da oficina, sem prejuízo de o lesado se poder, justificadamente, opor à reparação na oficina escolhida.

3.2. Apreciação do direito invocado pela lesada (Apelante), face ao princípio da reconstituição natural
Definida que se encontra a primazia da reconstituição natural e a consequente subsidiariedade da obrigação de indemnizar, há agora que averiguar, perante a factualidade provada, se assiste à Autora o direito que invoca na petição.
Provaram-se na presente acção, todos os pressupostos enunciados no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil (o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e um nexo causal entre o facto e o dano), pelo que sobre a Ré impendia a obrigação de indemnizar, nos termos do já citado artigo 562.º do Código Civil – reparação dos danos demonstrados, reconstituindo a situação anterior ao acidente.
Como se refere no acórdão do STJ já citado[9]: «exemplo típico de restauração natural é a reparação da coisa danificada».
Na situação em apreço, a Ré (seguradora), face à verificação de todos os pressupostos legais enunciados, estava vinculada à reconstituição natural da situação anterior ao evento que provocou o dano, que se traduzia na reparação do veículo (por ela realizada, ou por terceiro).
A questão resume-se a saber se a Autora, com a sua conduta após o acidente, inviabilizou ou não a reconstituição natural a que a Ré se encontrava adstrita.    
Vejamos a factualidade relevante provada:

2) No dia 15 de Novembro de 2006, ocorreu um embate envolvendo o veículo referido em A) e o conjunto circulante com as matrículas ...PR/C- ....

10) A autora notificou a ré, em 16.11.06, para esta efectuar a peritagem ao veículo referido em A);

11) Sem que a ré a tivesse diligenciado em tempo, a autora ordenou uma peritagem técnica para avaliação dos custos de reparação;

12) Determinou a reparação do veículo, que se iniciou em 21 de Novembro de 2006 inclusive.

18) Em 1 de Junho de 2007, mediante fax, a A. enviou nessa data, uma carta datada desse dia e uma outra datada de 16/11/2006;

19) Após a recepção deste fax, a ré aguardou então alguns dias à espera que a sua segurada lhe participasse o acidente em causa nos presentes autos;

20) Como tal tardasse, em 21 de Junho de 2007, a ré enviou uma carta à sua segurada, (…)” a solicitar-lhe que lhe participasse o sinistro em apreço;

21) Entretanto, a ré contactou a autora e, soube que o veículo desta já havia sido reparado há muito tempo;

22) E por carta de 6 de Julho de 2007, a ré comunicou à autora que já não lhe era possível atender a reclamação que esta lhe havia feito em 1/6/07;

23) Só posteriormente a estes factos é que a segurada da ré, por fax de 17 de Julho de 2007, participou o embate a esta.

24) A ré pretendia peritar e reparar, às suas ordens e expensas, o veículo identificado em A), numa oficina por si garantida, nomeadamente concessionárias e representantes oficiais da marca deste veículo e próximas da sede da autora e que lhe ofereciam todas as garantias de condições técnicas de prestarem um serviço de qualidade, rápido e eficaz a um preço justo e no mais curto prazo de tempo.
O acidente ocorreu numa quarta-feira (dia 15), a Autora notificou a Ré na quinta-feira (dia 16) e iniciou a reparação do veículo nas suas próprias instalações (facto 14), na terça-feira (dia 21).
Se exceptuarmos o dia da notificação (quinta-feira), decorreram apenas dois dias úteis entre essa comunicação e o início da reparação.
Assistia à lesada (ora recorrente), o direito à peritagem a realizar pela seguradora, que não lhe podia opor a inércia do seu segurado na participação do sinistro, tanto mais que podia ser demandada directamente, não estando essa demanda dependente da participação do segurado.
De acordo com o princípio geral enunciado no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil, apesar do sinistro ter ocorrido em momento anterior à vigência do Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, a seguradora encontrava-se vinculada ao procedimento de boa fé, nos termos gerais, enunciados no artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil.
Tal exigência, traduzida no dever de colaboração intersubjectiva, a que se refere Menezes Cordeiro[10], decorre da concepção da relação obrigacional complexa[11], e já existia antes da sua expressa consagração no artigo 36.º do diploma legal citado.
A norma referida, apesar de não ser aplicável, repete-se, à situação sub judice, constitui um excelente indicador para a avaliação da conduta da seguradora in casu, e nela se refere que as peritagens devem ser concluídas no prazo de 8 dias úteis, somados aos 2 dias úteis previstos para o primeiro contacto (alíneas a) e b) do n.º 1), no prazo máximo de 12 dias úteis (alínea c).
Ou seja, à luz do critério de «Diligência e prontidão da empresa de seguros», que o legislador veio a consagrar, não se pode falar, no caso em apreço, de qualquer violação do dever de diligência, por parte da seguradora.
Finalmente, cabe referir que, caso se verificasse um atraso na resposta por parte da seguradora, susceptível de ser considerado violação do dever de diligência, corolário do enunciado princípio geral de boa fé, deveria a lesada (ora recorrente), notificar a seguradora, dando-lhe um prazo razoável para o cumprimento da obrigação a que estava adstrita, com a admonição de que, caso incumprisse, assumiria a reparação, exigindo mais tarde o pagamento do respectivo preço, a título de indemnização.
Nessas circunstâncias específicas, poderia equacionar-se a legitimação do afastamento do princípio da primazia da reconstituição natural, por excessiva onerosidade, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, traduzida numa injustificada espera, susceptível de causar outros danos.
Provou-se que «a ré pretendia peritar e reparar, às suas ordens e expensas, o veículo identificado em A), numa oficina por si garantida, nomeadamente concessionárias e representantes oficiais da marca deste veículo e próximas da sede da autora e que lhe ofereciam todas as garantias de condições técnicas de prestarem um serviço de qualidade, rápido e eficaz a um preço justo e no mais curto prazo de tempo» (facto 24).
A lesada (ora recorrente), não permitiu essa peritagem, já que optou por iniciar a reparação do veículo nas suas próprias instalações, decorridos dois dias úteis.
Face ao princípio enunciado, da primazia da reconstituição natural e consequente subsidiariedade da obrigação de indemnizar, decorrente da conjugação do artigo 562.º, com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, afigura-se, salvo o devido respeito, que com a sua conduta, juridicamente injustificada, a lesada (recorrente) inviabilizou a reconstituição natural a que tinha direito.
De todo o exposto decorre a improcedência da sua pretensão e, consequentemente, o naufrágio do seu recurso, sendo de manter a sentença recorrida.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, confirmando a douta decisão recorrida.
Custas do recurso pela Apelante.
                                                         *



Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
Emídio Costa


[1] Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, pág. 581.
[2] Ob. cit., anotação ao artigo 566.º, pág. 581 e 582.
[3] Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 525.
[4] No mesmo sentido, veja-se Castro Mendes, in Direito Civil, Teoria Geral, 1979, edição AAFDL, Vol. III, pág. 815.
[5] Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, Dezembro de 2008, pág. 1490 e 1491.

[6] Proferido no Processo n.º 06A1363, acessível em http://www.dgsi.pt
[7] No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ, de 29.04.2003, proferido no Processo n.º 03B891, acessível em http://www.dgsi.pt
[8] Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, Dezembro de 2008, pág. 1541 e 1542
[9] De 29.04.2003, proferido no Processo n.º 03B891, acessível em http://www.dgsi.pt
[10] Direito das Obrigações, 1.º Volume, AAFDL, Agosto 1980, pág. 142.
[11] Como refere Menezes Cordeiro, ob. cit., no cumprimento da obrigação o interesse de uma pessoa é prosseguido por meio de uma conduta de outra, pressupondo mesmo condutas recíprocas, exigidas como correspectivo a favor de interesses próprios dos sujeitos envolvidos, na relação obrigacional complexa.